terça-feira, julho 02, 2019

Para que serve Israel? - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 02/07

País ainda é o porto de abrigo para o eterno judeu errante


Para que serve Israel? Boa pergunta. Às vezes esquecemos o básico. E o básico foi explicado há quase 50 anos pelo filósofo Isaiah Berlin no melhor dos seus ensaios. Não, não é o clássico “Dois Conceitos de Liberdade”, que nos apresenta um Berlin liberal.

É “Jewish Slavery and Emancipation”, que nos apresenta um Berlin sionista, antes de essa palavra ter sido proscrita pelos bem pensantes. O ensaio não envelheceu uma ruga.

Argumenta Berlin que o iluminismo e a Revolução Francesa libertaram os judeus da Europa Ocidental. Como? Permitindo que a vasta maioria se integrasse pacificamente nas sociedades gentias e que abandonasse, na medida do possível, as suas identidades judaicas.

Mas depois existiram três tipos de judeus que responderam à tentação da assimilação de formas diferentes.

O primeiro grupo recusou essa assimilação e, fechado na ortodoxia, continuou a viver à margem da sociedade gentia.

Mas o que interessava a Berlin eram os dois grupos seguintes, que continuaram a viver a sua condição judaica de forma perturbante e perturbada. Como se fossem “seres humanos deformados”, portadores de uma “corcunda”.

Havia aqueles que exibiam essa deformidade, de forma histérica, como se a corcunda fosse a principal das virtudes humanas.

E havia aqueles que escondiam essa condição, vivendo na ansiedade permanente de serem descobertos.
Seja como for, ambos eram corcundas, ambos partilhavam o mesmo destino: sentirem-se estranhos em terra estranha. Pelo menos, até a criação de Israel.

Para Berlin, Israel normalizara a condição judaica. Ou, nas palavras do próprio, Israel era a operação cirúrgica que removera a deformidade. Pela primeira vez em 2.000 anos, os judeus podiam caminhar com as costas direitas.

Não sei se o diretor israelense Nadav Lapid leu Isaiah Berlin. Parece. Sobretudo quando assistimos ao seu “Synonymes”, um filme que estranhamente ainda não estreou no Brasil —digo estranhamente porque foi sensação entre a crítica e premiado com o Urso de Ouro em Berlim. (Para os interessados, existe o DVD na Amazon francesa.)

No centro de “Synonymes” encontramos Yoav (Tom Mercier), um jovem israelense, ex-soldado, que abandona Israel para encontrar uma nova identidade em Paris.

Yoav é um caso terminal de autorrepúdio e autopunição. Recusa falar hebraico. Recusa usar quipá.
“Vou ser francês!”, diz ele (em francês), transportando um dicionário no bolso e comportando-se como se fosse Jean-Paul Belmondo nos filmes de Godard. “Israel vai morrer antes de mim!”, declara ufanamente.

Em contraposição a Yoav, temos o seu amigo Michel (Olivier Loustau), também judeu, que aproveita qualquer oportunidade para exibir seu sionismo agressivo. A sequência em que canta o hino de Israel na cara dos passageiros do metrô, esperando que alguém o ataque, é de gelar os ossos.

Yoav e Michel representam os corcundas de que Berlin nos falava. Representam, em suma, uma nova crise da identidade judaica, marcada por um desconforto existencial que chega a ser absurdo e risível. E, dessa vez, sem a desculpa de não terem um Israel para normalizar os seus problemas.

Pelo contrário: Israel parece ser a causa das suas neuroses —neurose por negação (Yoav), outra por afirmação (Michel). Será que Berlin estava fundamentalmente errado quando atribuía ao projeto sionista o remédio milagroso para curar os judeus da diáspora?

Não conto o fim desta espantosa história parisiense. Mas conto outra, também passada em Paris.
Foi em 1894. Um oficial francês, de nome Alfred Dreyfus, era levado a tribunal e falsamente acusado de espionagem para a Alemanha.

O caso dividiu a França e fez emergir na praça pública um antissemitismo que impressionou Theodor Herzl. Na altura, Herzl era correspondente em Paris de um jornal austríaco. Se os judeus não estavam em segurança na França, o berço do iluminismo, onde poderiam eles viver seguros?

A resposta de Herzl, publicada no ano seguinte, intitula-se “O Estado Judaico”. Ali estava o programa sionista moderno, que a desagregação do Império Otomano, depois da Grande Guerra, converteu em possibilidade. Os judeus só estariam em segurança quando tivessem o seu próprio estado.

O filme de Lapid não é tão otimista e messiânico. Mas, em tom amargo, há pelo menos o reconhecimento de que existem portas que não se abrem para estrangeiros, por mais que eles tentem.

E que Israel, “malgré tout”, ainda é o porto de abrigo para o eterno judeu errante.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Bolsonarismo em estado de negação - PEDRO MENDES

GAZETA DO POVO - PR - 02/07


A soberba tomou o governo Bolsonaro. Precede a ruína? A ver. Um bom conservador confiaria no velho ditado. Poucas combinações são tão destrutivas quanto autossuficiência demais com autocrítica de menos. Essa mistura já derrubou impérios e megaempresas. Foi ingrediente fundamental na derrocada do PT.

O bolsonarismo quer acreditar que o governo tem apoio do povo. Afinal, muita gente foi à Avenida Paulista no último domingo (30). Estaria tudo certo se uma foto da Paulista refletisse bem o apoio popular ao presidente, o que não é o caso. Pesquisas de opinião pública são melhores para esta função e a foto que elas mostram é de um presidente em queda livre.

Em janeiro, de acordo com o Ibope, 49% dos brasileiros avaliavam o governo Bolsonaro como ótimo ou bom, enquanto 11% classificavam a gestão como ruim ou péssima. É como se o bolsonarismo estivesse ganhando o jogo por 5 a 1: para cada detrator do governo, existiam mais de cinco brasileiros apoiando-o.

Desde então, um terço dos apoiadores de Bolsonaro já pulou fora do barco, enquanto a oposição triplicou de tamanho. Como resultado, o jogo empatou: em junho, 32% dos entrevistados classificaram o governo como ótimo ou bom e também 32% classificaram como ruim ou péssima.

Há diferenças regionais e de classe nos movimentos de opinião pública. Surpreendentemente, o apoio a Bolsonaro cresce na região Sul e entre aqueles com renda superior a 5 salários mínimos. É provável, portanto, que a maioria dos leitores desta Gazeta do Povo note um apoio crescente ao governo dentro da sua bolha social, mas esta percepção não pode ser extrapolada para toda a população brasileira.

Frente a esses números, alguns apoiadores do governo já tem resposta pronta: ‘se essas pesquisas acertassem alguma coisa, Haddad seria presidente!’, o que não é verdade, mas é repetido pelos chefes de torcida do governo. Mas é exatamente por esse tipo de papo que eu escrevo esse texto: o bolsonarismo está em estado de negação e teorias conspiratórias sobre institutos de pesquisa servem como desculpa para ignorar o progressivo derretimento do apoio ao presidente.

A perda de popularidade de Bolsonaro não existe só no Ibope. Praticamente todas as pesquisas de todos os institutos sérios apontam a mesma tendência de diminuição do apoio ao presidente. Para questionar os resultados do Ibope, é preciso provar a existência de uma rede organizada de institutos de pesquisa que se dedicam a fraudar números para beneficiar a esquerda. É preciso, inclusive, colocar a XP Investimentos nesta conspiração, pois as pesquisas por eles encomendadas mostram os mesmos resultados das outras.

Falta a Bolsonaro a capacidade de dialogar. Aqui, não pretendo repetir clichês sobre articulação, presidencialismo de coalizão, Rodrigo Maia, etc, embora isso tudo seja relevante para analisar a falta de diálogo que tomou o bolsonarismo. O problema é mais profundo. Bolsonaro não consegue dialogar com o brasileiro médio, aquele que jura representar.

No passado, o bolsonarismo entendeu a cabeça do brasileiro. Assim, venceu a eleição. Enquanto o PT embarcava no ‘lulalivrismo’ e o PSDB passava a mão na cabeça de Aécio, Bolsonaro e a direita foram firmes no combate à corrupção e apoio à Lava Jato, em consonância com o eleitor mediano. Vale o mesmo para o endurecimento das leis penais – desejado pelo povo, desprezado em Brasília. Alckmin foi expulso da Paulista em março de 2016, Ciro e Haddad endossaram a teologia do “golpe”, mas Bolsonaro podia se apresentar como representante da maior massa que já se reuniu nas ruas brasileiras em tempos de democracia. Nas últimas eleições, só um dos grandes candidatos convencia ao se distanciar dos impopulares governos Dilma e Temer – não por acaso, Bolsonaro, que estava alinhado à população, venceu.

O presidente chegou onde está por responder aos anseios do brasileiro comum. A julgar pelos primeiros seis meses, parece que foi sorte. Jair Bolsonaro parece incapaz de repetir a sensibilidade política que ele mesmo teve nos últimos anos.

Há erros no governo. Muitos. O MEC ainda não apresentou um plano ambicioso para a educação, mas o ministro Weintraub parece estar sempre à procura de uma polêmica que possa esconder sua falta de conteúdo. A política ambiental do governo é temerária. Os recentes decretos sobre armas, além de inconstitucionais, contrariam a opinião do brasileiro médio.

Ainda assim, o bolsonarista vê no presidente mais acertos do que ele tem, supondo que o governo tem uma agenda e está progredindo nela. Nada mais distante do que se vê em Brasília. O semestre termina sem que o governo tenha aprovado um projeto cuja tramitação não tenha sido liderada pessoalmente pelo mesmo Rodrigo Maia que é xingado nos protestos de rua. O mesmo Maia que contribui com a tramitação acelerada da reforma previdenciária.

Ninguém constrói uma hegemonia sem frequentes correções de rota e reflexões profundas sobre eventuais erros. O bolsonarismo parece incapaz de autocrítica. Eu já vi esse filme: ‘Democracia em Vertigem’, disponível na Netflix, que conta a história de um grupo político incapaz de enxergar seus próprios defeitos. A história é sobre a cegueira petista, mas o estado de negação tem semelhança direta com as últimas posturas do governo Bolsonaro.

Ao fim das contas, o bolsonarismo precisa escolher onde quer estar daqui a cinco ou dez anos. Se quiser seguir no poder, não há saída além de levar os críticos a sério, escutar o que eles têm a dizer e, na base do diálogo, trazer mais gente para o barco. Mas esta talvez não seja a prioridade. O inferno são os outros, os institutos de pesquisa estão mentindo. É possível que o bolsonarismo, com inveja da esquerda, queira mesmo é assistir um documentário de Josias Teófilo sobre a conspiração de impuros contra um presidente patriota. Neste caso, o governo e sua militância estão no caminho certo."

Caminhando contra o vento - GUSTAVO NOGY

GAZETA DO POVO - PR - 02/07


Não me manifesto andando.

Sou um manifestante sedentário. Ou melhor: sou manifestamente sedentário. Enquanto uns andam, eu escrevo. Cada um faz o que sabe ou gosta de fazer. Preciso – e prefiro – ficar parado quando penso, escrevo e, de resto, que não haja muita gente berrando em torno. Questão de temperamento e preguiça. Aliás, a ideia de se manifestar publicamente, em si mesma, é bastante aborrecida.

“Ah, nossa, estou tão bravo que vou me manifestar, hein?!”

“Acordei tão cívico que vou agora mesmo exibir meu civismo pras moças, viu?”

Está bem, se manifeste aí, cidadão peripatético. Manifestou-se? Pronto, agora vamos respirar, enxugar o suor, pensar na vida.

Reconheço que as manifestações têm muito de saudável e até mesmo atlético. Se a moda pega, e parece que pegou, em breve academias de ginástica fecharão as portas. Não sei se a política vai melhorar, tenho dúvidas sérias, tenho certezas sérias, mas que todo mundo ficará magrinho e disposto, ficará.

Política pública para a saúde é isso: do it yourself!

Eu me lembro de quando muita gente saiu às ruas pedindo a cabeça e o aquilo roxo do Fernando Collor de Mello. Conseguiram. Ficaram conhecidos como os “caras pintadas”. Foram, há quem garanta, importantes para o impeachment.

Lindbergh Farias, aquelezinho, liderou as manifestações.

Anos depois, Lindbergh Farias virou o que virou. Ou melhor: virou o que sempre foi e quis ser. Gastou toda a revolta protestando contra um governo ruim, para depois protestar a favor de um governo pior.

Em 2013, nas tais “jornadas de junho”, estavam lá as multidões e os mascarados. Amigos meus, que respeito, foram às ruas. Eu não estava. Eu não fui. Fiquei em casa falando mal de todo mundo. Dos mascarados. Dos amigos. É meu jeito de me manifestar. Uns reclamam andando, eu reclamo parado.

Agora, pelo jeito, a manifestação virou parte do calendário litúrgico. Domingo sim, domingo não, tem gente na rua gritando e discursando e protestando contra e protestando a favor. Veremos quem será o Lindbergh Farias da vez. A história se repete, vocês sabem, insiram aqui o clichê. Pode acabar se repetindo rápido demais.

Não obstante, tenho dúvidas, tenho certezas, se essas manifestações frequentes produzirão resultado, além de baixar o colesterol ruim das pessoas e fortalecer as respectivas pernas.

“Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração”.

O efeito surpresa, o elã da revolta, o ethos da indignação, o tremelique do engajamento – tudo aos poucos pode acabar em tédio e desinteresse. Na Argentina, a Casa Rosada fica no centro de Buenos Aires, à mercê do povão. O governo é vizinho dos governados. Eles batem lata toda semana, protestam todo mês, e nem por isso viraram os Estados Unidos. Protestar é bom, votar direito é melhor.

Com a rotina, as manifestações grudam no cenário como papel-de-parede, e ninguém as percebe como manifestações. Movimento incessante se confunde com imobilismo. De repente, fica difícil distinguir a manifestação da micareta, o protesto do carnaval, a revolta contra da revolta a favor, a marcha nupcial da marcha da maconha, a Mancha da Gaviões, a parada cívica da parada gay. Emenda uma coisa na outra e Deus nos acuda.

Assistindo a tudo ontem, conspirando quietinho e derrubando Bastilhas daqui do sofá, sonhando revoltas e revoluções como um Robespierre de camisa polo e com os pés no pufe, me veio à mente um dos mais estranhos aforismos dentre os muitos aforismos estranhos do Kafka (Kafka mesmo, não kafta. Estou de regime, ao contrário do ministro da Educação, que só pensa em acepipes).

Transcrevo.

“Leopardos irrompem no templo e bebem até o fim os jarros de sacrifício; isso se repete sempre, sem interrupção. Finalmente, pode-se contar de antemão com esse ato, e ele se transforma em parte da cerimônia”.

Surpresa difícil - MERVAL PEREIRA

O Globo - 02/07

Esquerdistas insistem em querer se beneficiar dos efeitos da reforma sem o ônus de apoiá-la publicamente



A reunião de hoje do governador do Piauí, o petista Wellington Dias, com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, provavelmente será infrutífera. Se resultar em acordo, com a inclusão de estados e municípios na reforma da Previdência, será uma grata surpresa para todos, e um benefício para a economia do país, que terá uma organização horizontal do sistema de previdência.

Os governadores, especialmente os oposicionistas do Nordeste, querem resolver seus problemas sem colocar as digitais na reforma. Mas a maioria dos temas não tem relação com a Constituição Federal, apenas seria mais fácil para eles. Só a alíquota acima de 14% será possível constitucionalizar.

A colocação do tema no bojo da reforma, para a apreciação da Comissão Especial, é delicada e pode trazer risco para a aprovação, a não ser que haja certeza de que os governadores vão agregar votos. Os parlamentares favoráveis à reforma calculam que o governo pode perder cerca de 40 votos de sua base com essa inclusão, e os governadores, sobretudo os de oposição, têm que acrescentar outros tantos para que a aprovação da reforma continue viável.

E por que está difícil aprovar a reforma da Previdência com a inclusão de estados e municípios? Porque os deputados federais, temendo desgaste nas próximas eleições, querem deixar a decisão regional para governadores e prefeitos, que teriam que ter o apoio dos deputados estaduais e dos vereadores.

Estes, por sua vez, são potenciais competidores dos deputados federais e dos estaduais nas próximas eleições. Teriam que também se comprometer com medidas impopulares para que todos se apresentassem como responsáveis pela reforma da Previdência, no êxito ou no fracasso.

Isso acontece porque ninguém está certo de que, com a aprovação dessa e de outras reformas estruturais, a economia vai embalar novamente. Se isso acontecer, os que hoje votarem a favor poderão assumir os benefícios alcançados.

Mas, no momento, embora a ampla maioria saiba que são medidas saneadoras importantes, disputam contra oposicionistas o eventual desgaste popular. É uma punição do Centrão aos governadores de esquerda, que querem os benefícios da reforma sem se expor.

Deputados continuam criticando a covardia dos esquerdistas, que insistem em querer se beneficiar dos efeitos da reforma sem bancar o ônus de apoiá-la publicamente.

É uma irresponsabilidade, pois, apesar de não afetar o resultado final da economia que o governo quer fazer com a reforma da Previdência, vai quebrar o Tesouro dos estados e municípios, que irão pedir mais tarde uma renegociação da dívida, já feita há 20 anos.

Mas, com deputados preocupados apenas com a eleição seguinte, fica difícil uma solução para o país. O temor de ficar impopular é tamanho que os governadores do Nordeste não aceitam sequer a reforma ser validada nas assembleias estaduais por meio de projeto de lei ordinária, com exigência apenas de maioria simples para aprovação.

Insistem na inclusão automática de estados e municípios na proposta que tramita no Congresso. Alguns governadores são exceções, como o de Goiás, Ronaldo Caiado, que tem a proposta de entrar no Supremo Tribunal Federal (STF), logo após a aprovação da reforma, com pedido de autorização para decretar a adesão dos estados sem necessidade de aprovação do Legislativo.

É uma tentativa de levar a reforma até os estados e municípios, em vez de ficar submetido a interesses políticos eleitorais. Ou então inserir na emenda constitucional um dispositivo que permita aos governadores fazer a reforma por decreto, com validade limitada, até a aprovação do texto pelas assembleias.

Mas dificilmente a maioria dos governadores aceitará, pois o que querem é garantia de contas em ordem sem nenhum desgaste. Uma saída pode ser a adesão opcional dos estados e municípios, mas é difícil organizá-la, política e juridicamente.

A missão da imprensa - FERNÃO LARA MESQUITA

O Estado de S. Paulo - 02/07

É buscar as soluções que aos grupos em disputa pelo poder só interessa esconder...



Quarta-feira passada David Alcolumbre comemorou como “um feito histórico para a democracia do Brasil” a aprovação do orçamento impositivo. Como sempre, deu-se o último passo antes de dar-se o primeiro. Colheu-se o fruto antes de plantar a árvore.

Multiplicar por 5.594 (26 governadores e 5.568 prefeitos) os focos de dispersão do dinheiro público sem instalar antes uma democracia verdadeiramente representativa, como sonha fazer o ministro Paulo Guedes, já seria uma temeridade. Dar aos 513 deputados federais e aos milhares de estaduais e municipais carta branca para decidir como gastar nosso dinheiro sem meter-lhes antes na boca o bridão do voto distrital, da retomada de mandato (recall) e do referendo é nada menos que suicídio.

Deputados e vereadores são eleitos às cegas por esses nossos “partidos” em metástase e sua lei eleitoral de enganar trouxa. Uma vez depositado o voto na urna, não nos devem mais nada. O dinheiro para a reeleição é tomado, e não contribuído. E podem voltar aos plenários sem um único voto se houver um palhaço popular o bastante para arrastá-los. Fica o contribuinte refém de legisladores que podem sacar da sua conta sem ter sequer de mostrar a cara e contra os quais ele não pode nada. E o pior é que como o slogan do “Menos Brasília, mais Brasil” já estava no ar não dá nem pra reclamar.

Como parece complicado argumentar contra mais um princípio elementar da democracia – a desconcentração do dinheiro dos impostos –, fica o dito pelo não dito. Mas o caso é que é mais um que vai ser transformado no seu avesso. Esse tipo de tapeação é recorrente nessa nossa “democracia” que parece mas não é. Metade das denúncias de corrupção eleitoral apoiaram-se nesse tipo de manipulação. Primeiro “esqueceu-se” a diferença fundamental entre a sistematização da venda dolosa de votos e a aceitação de dinheiro de “caixa 2”. E então passou-se a dar como criminosas operações de financiamento de campanha que só mais além vieram a ser postas fora da lei. Com todos enfiados no mesmo saco tornou-se impossível tirar o País do impasse por dentro da política e o tão esperado combate efetivo à corrupção virou essa briga de bandidos no escuro que procura tornar indistinguível o joio do trigo e arrasta para a vala comum o que resta da política, do Judiciário e da imprensa sadios.

E taí o Brasil parado e estrebuchando...

Tudo neste país está emaranhado na subversão sistemática da ordem cronológica e das relações de causa e efeito. Vivemos num turbilhão de ações e reações desencadeadas para conter a manifestação dos efeitos dos nosso problemas, nunca para eliminar suas causas, que ninguém mais sabe onde começa, de que vai resultando um frankenstein institucional em marcha acelerada para o desastre.

Na arte da construção de instituições – um trabalho refinado ao longo de milênios de sangue, suor e lágrimas – a ordem dos fatores não só altera, mas quase sempre inverte o resultado. Todas as corcundas e escolioses, todos os membros retorcidos ou atrofiados das nossas instituições decorrem do aleijão original da planta dos pés de todas elas: a desigualdade petrificada na Constituição, a distorção matemática da representação do País Real no País Oficial, a absoluta independência entre representantes e representados uma vez encerrada a eleição.

É por isso que, de como (não) defender a própria vida ao que fazer com a Previdência, da sexualidade do seu filho ao regime de trabalho que melhor convém a cada um, do orçamento público à definição do próprio regime político, tudo pode ser e é discutido à revelia dos destinatários das leis e das providências que as “excelências” houverem por bem barganhar entre elas.

A ausência absoluta do eleitor nesses debates é o espaço vital da corrupção.

O papel dos políticos nas democracias é ajustar os contornos das figuras a serem desenhadas pelo povo, não o contrário. O da imprensa é balizar e ditar o ritmo dessa operação a quatro mãos. Se ela pode constranger as autoridades a crer que a providência mais urgente e profícua que podem tomar por esta nação em guerra é criminalizar a heresia de descrer da nova “verdade anunciada” de que aquilo com que cada ser humano nasce entre as pernas não existe, imagine-se o que não poderia fazer se assumisse as tarefas de trazer o debate político sempre para as causas essenciais dos nossos problemas e de pôr debaixo dos narizes dos nossos representantes os consagrados remédios usados por quem já se curou há quase 200 anos das mesmas doenças de que o povo brasileiro continua condenado a parecer.

É uma só humanidade que habita este mundo que começa na Venezuela e termina na China. Quando, na virada do século 19 para o 20, os Estados Unidos estiveram tão doentes de corrupção quanto o Brasil está hoje e seu povo se sentia tão impotente quanto o nosso, jornalistas foram em caravana à Suíça estudar as ferramentas de democracia direta com que aquele país se tinha livrado da mesma praga 30 ou 40 anos antes e voltaram para casa com a seguinte receita: “O povo suíço reconhece na iniciativa (de propor leis e de dar e tirar mandatos) e no referendo o seu escudo e a sua espada. Com o escudo do referendo afasta todas as leis que não deseja; com a espada da iniciativa abre caminho para transformar as suas próprias ideias em leis”. Foi esse “feito histórico” para as suas respectivas democracias que fez de ambos os dois povos mais livres e ricos da História da humanidade.

A fórmula do remédio que pode curar a democracia brasileira não tem tradução em português. A missão da imprensa porventura interessada em livrar-se de ser confundida com os políticos pela opinião pública e acabar tendo o mesmo destino deles é ir buscar onde estiverem todas as soluções que aos grupos em disputa pelo poder só interessa esconder, dá-las a conhecer a este país doente e, assim, fazer o Brasil reconciliar-se com o Brasil.

O balé eleitoral de Bolsonaro - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 02/07

É razoável esperar que presidentes, ao menos, leiam compromissos que juram ou subscrevem

Jair Bolsonaro é um político profissional. Já passou 47% da sua vida no Legislativo, o triplo do tempo em que esteve no Exército, que o prendeu, processou e afastou por indisciplina. Mesmo assim, continua no autoengano da negação da política e esgrimindo uma suposta ignorância sobre o que diz a Constituição.

Na noite de domingo, ele escreveu: “Respeito todas as Instituições, mas acima delas está o povo, meu patrão, a quem devo lealdade.”

A essência dessa frase de 16 palavras é o exorcismo de outra, com 20 vocábulos: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Está destacada em parágrafo único no primeiro artigo da Carta — à qual Bolsonaro jurou obediência oito vezes seguidas nos últimos 30 anos.

Não se pode exigir que presidentes sejam sábios, mas é razoável esperar que, ao menos, leiam compromissos que juram ou subscrevem.

Apenas 48 horas antes, Bolsonaro havia celebrado a adesão ao acordo Mercosul-União Europeia, cujo fundamento é a cooperação entre instituições, sob princípios da democracia liberal e do desenvolvimento sustentável. É, essencialmente, um grande acordo político, com efeitos práticos no comércio nas duas margens do Atlântico.

Como premissa, estabelece a impossibilidade de retrocessos em tratados em vigor. Obriga a “implementação efetiva” de políticas ambientais e antidesmatamento, como previsto no “Acordo de Paris”; contra a discriminação no trabalho, por gênero, identidade ou orientação sexual; impõe ações contra o trabalho escravo e infantil; garantias aos direitos dos índios, à liberdade sindical e ao direito de negociação coletiva, entre outros aspectos.

Bolsonaro vai precisar se aperfeiçoar no contorcionismo retórico para continuar no balé eleitoral da negação da política, evidência de um certo transtorno bipolar com a democracia. O acordo Mercosul-União Europeia deve aumentar sua taxa de confusão entre aquilo que aparentemente deseja e a vida real sob regras democráticas.


A política comanda - FABIO GIAMBIAGI

O GLOBO - 02/07

Como estarão o emprego e a economia daqui a um ou dois anos?

Há uma frase atribuída a Mussolini, muito citada quando se discutem questões associadas à governabilidade: “ Governare l’Italia non é facile ne difficile: è inutile” . A frase voltou a ser lembrada nos últimos tempos e mais de um analista entende que hoje se aplica a parte considerável das democracias, enredadas num turbilhão de conflitos envolvendo um componente de grande polarização, graus variados de fragmentação da representação partidária, perda de representatividade dos partidos e a proliferação de haters nas redes sociais. Não é de estranhar que, nesse ambiente, se consolidem alternativas de um mosaico diferenciado de regimes autoritários, indo desde o já consolidado poder do Partido Comunista na China até o regime aparentemente vitalício de Putin na Rússia, passando por casos menores como o de Erdogan na Turquia.

Nesse sentido, a economia brasileira se encontra numa situação difícil. Não somos nem uma democracia com poucos partidos — como os EUA — na qual, apesar de alguns problemas, o sistema continua sendo funcional, o país segue seu rumo, e a economia se mantém em expansão, nem parece haver a menor chance de vingar algo sequer vagamente assemelhado à figura de um “ditador inspirado” capaz de assumir o leme do país. Para o mal ou para o bem — pessoalmente, não tenho dúvidas que para o bem —, somos uma democracia. Complexa, com coisas que não funcionam ou funcionam muito mal, mas uma democracia enfim.

Numa conversa pessoal, contemplando o panorama eleitoral, um amigo me dizia, em 2018: “O Brasil precisa de um presidente da República que tenha quatro requisitos. Ele tem que ser ao mesmo tempo reformista, inspirador, agregador e articulador”. Sintetizo, repetindo as palavras dele, o que escutei na ocasião desse meu amigo, com alguma liberdade editorial da minha parte:

“Reformista, porque é tão grande a quantidade de leis e dispositivos constitucionais que é necessário modificar no Brasil, que sem implantar uma série de reformas — e não apenas a previdenciária — será difícil imaginar um retorno pujante do crescimento econômico.

Inspirador, porque ele deve ser uma figura para a qual o país inteiro — e não apenas os seus seguidores — olhe e veja um exemplo a ser seguido, que inspire cada indivíduo a encarar com tenacidade as dificuldades a enfrentar.

Agregador, porque ele precisa ser um líder que permita levar para o governo algumas das melhores expressões da vida nacional, nos campos não só da economia, mas da ciência, da educação, da diplomacia, da política etc.

Articulador, porque no quadro de extrema fragmentação partidária do país, com aproximadamente 30 partidos com representação no Congresso, a característica forma parte da job prescription do cargo, uma vez que, sem coordenar esforços com as lideranças parlamentares, a relação entre o Poder Executivo e o Congresso fica muito comprometida e a aprovação das propostas oficiais ao longo de quatro anos se torna muito mais difícil”.

Entendo que a combinação desses pontos é chave para analisar as perspectivas futuras da economia brasileira. O casal que depois de dois anos de casamento gostaria de comprar um apartamento; o dono de um restaurante que deu certo e está pensando em abrir uma filial; a grande empresa multinacional que cogita fazer um investimento de US$ 300 milhões, olham para o futuro e se perguntam: como estarão o emprego e a economia daqui a um ou dois anos? E isso está umbilicalmente ligado à questão política: ter um ambiente propício a decisões que envolvem risco implica ter alguma previsibilidade, o que está associado a percepções subjetivas de questões tais como “tranquilidade” e “normalidade” do país. Se teremos um ano ruim seguido de três bons ou quatro anos de crescimento medíocre dependerá da avaliação que os agentes econômicos — que investem — e a população em geral — que consome — fizerem sobre essas questões. “Articulação política” é o nome do jogo para a macroeconomia dar certo.


Os próximos bilhões - NIZAN GUANAES

FOLHA DE SP - 02/07

Os empreendedores digitais e suas startups são a voz e o caminho para o futuro


Os próximos bilhões de usuários da internet virão dos países e das regiões menos desenvolvidas do planeta, inclusive do Brasil. Eles estarão ávidos por entretenimento e entreter. Querem passar o tempo consumindo vídeos e games das plataformas digitais e expressar aos amigos e ao mundo suas ideias em seus próprios vídeos, mensagens, ringtones e o que mais vier. Onde passa 1 gigabyte passa 1 terabyte.

A revolução digital é ainda muito jovem. O iFood tem só 8 anos; o Uber tem 10; o iPhone, 12; o Facebook, 15; o Alibaba, 20; o Google, 21; a Amazon, 25; a internet, 30.

E a jovem rede mundial na verdade enreda só meio mundo. Apenas metade dos 7,7 bilhões de habitantes da Terra está conectada, e essa marca só foi alcançada em 2018.

A metade que está fora é a metade de menor inserção econômica e tecnológica. Quando ela se conecta, geralmente entra via celular de baixo custo consumindo serviços de entretenimento e conversação.

Os especialistas preveem que a expansão demográfica da web desacelere porque os ainda excluídos sofrem de ausência aguda de recursos. Mas tenho dúvidas. Milhares de startups pelo mundo, além dos gigantes da tecnologia mundial, investem bilhões planejando como conectar mais pessoas a menor custo.

Facebook e Google têm planos mirabolantes para expandir a conectividade global, mas a vantagem dos desenvolvedores locais é que eles conhecem muito melhor as demandas e capacidades dessa imensidão desassistida.

Na Índia, país paradigmático no processo de inserção digital da baixa renda, empreendedores locais crescem plugando milhões de novos usuários com hardware e software baratos, quase sempre mobile. Já são mais de 600 milhões de indianos na web, numa população total de 1,3 bilhão de pessoas. Só falta
conectar os outros 700 milhões!

É um campo aberto semeando os sonhos de novos empreendedores que enxergam o mundo como uma aldeia global —a última barreira é a falta de conexão.

Conheci um time incrível de empreendedores brasileiros em Harvard que é assim: eles empreendem para o mundo desde criancinha. Contrariando pessimismos conjunturais, não lhes faltam ambição e coragem.

Enxergam no Brasil uma terra fértil de oportunidades, como gerações de empreendedores antes deles enxergaram e realizaram.

O Brasil de 210 milhões de brasileiros —há décadas entre as maiores economias do mundo, resistente a choques de várias direções e intensidades— começa a criar seus unicórnios. Aqui, segundo o IBGE, 65% da população está conectada à web, e mais de 70 milhões de brasileiros ainda estão fora da rede. Cada um deles, uma oportunidade.

O Brasil precisa dar a esses empreendedores condições para investir e competir no mundo sem barreiras, lembrando que as empresas mais valiosas que surgiram nos últimos anos, inclusive no Brasil, são digitais.
É preciso muita atenção, respeito e cuidado com esse setor, fonte de riqueza presente e futura.

Todos os países relevantes do mundo estão adotando ou em vias de adotar legislações e estruturas especiais para estimular as startups, inclusive o Brasil.

Nosso ambiente de negócios em geral é um dos piores do mundo. Para as novas empresas não enfrentarem as mesmas amarras que seguraram nossa economia no passado, precisamos ouvir esses empreendedores e empreendedoras digitais e suas startups maravilhosas.

Eles são a voz e o caminho para o futuro.


Nizan Guanaes
Empreendedor, fundador do Grupo ABC.

O ‘02’ e as forças ocultas - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S. Paulo - 02/07


Governo estimula manifestações que atacam o Congresso quando deveria concentrar energia na reforma da Previdência.


É muito arriscada a estratégia do governo de atiçar manifestações, que agora têm até vídeos do chefe do GSI, general Augusto Heleno, de boné e camiseta amarela, pulando uma cerca, assumindo lugar de honra no palanque, empunhando microfone e vociferando contra os “canalhas” e “esquerdopatas”. O ponto alto do domingo.

Já ontem, as divisões pipocaram dentro do próprio governo, com o “02”, vereador Carlos Bolsonaro, ostentando sua mania de perseguição e postando coisas sem nexo. Joga suspeitas sobre os seguranças do GSI do general Heleno, diz que está “sozinho nessa” e é “alvo mais fácil ainda tanto pelos de fora tanto por outros”. Quais os “de fora”? E quem seriam os “outros”? Já há quem veja mais um general no alvo dos olavistas. E um general fundamental para Bolsonaro.

A mensagem do filho do presidente termina com um tom épico. Após dizer que eles (quem?) vieram deixar “uma mensagem”, ele concluiu: “Creio que essa (?!) faz uma parte dela (da mensagem?!), mesmo que isso custe a minha vida!” O que é isso?

E, hoje, temos a votação do parecer da reforma da Previdência na Comissão Especial e o depoimento do ministro Sérgio Moro para três comissões simultaneamente. Os governadores do Nordeste, todos eles do PT ou ligados ao partido, ignoraram a reforma e fizeram uma nota unicamente para atacar Moro e os procuradores e, indiretamente, mas nem tanto, defender a liberdade do ex-presidente Lula.

Na nota, um óbvio contraponto às manifestações de domingo, os governadores consideram as conversas entre Moro e procuradores da Lava Jato, reveladas pelo site The Intercept Brasil, como “de extrema gravidade” e condenam: “ao lixo o direito”... Eles são do PCdoB, do MDB, do PSB, além do PT, e calaram sobre a reforma da Previdência, fundamental para o futuro não só do Brasil, mas dos seus Estados.

Com o governo apoiando ostensivamente as manifestações pró-Lava Jato e os governadores nordestinos condenando, o Brasil aprofunda uma polarização insana que gera tensão e expectativas e alimenta manifestações. Por enquanto, elas são pacíficas, como destacou o presidente Jair Bolsonaro, mas o governo só tem seis meses. Até quando dura a paz nas ruas?

Em São Paulo, ficou bem claro como a polarização vai abrindo divisões dentro dos próprios movimentos. Boa parte da sociedade é cegamente a favor de Bolsonaro e boa parte, também cegamente, a favor de Lula. Mas há quem seja pró-Moro, mas não morra de amores por Bolsonaro, e quem seja pró-Bolsonaro, mas desconfiando das conversas de Moro e procuradores da Lava Jato, pelo combate à corrupção.

Divisões fortes, com o Nordeste se assumindo como um bolsão vermelho e o Sul, como a principal base bolsonarista – única região onde o presidente, em vez de cair, subiu no Ibope.

Em resumo: o governo estimula manifestações que, daqui e dali, atacam o Congresso, o Supremo, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Governadores de uma região inteira invertem prioridades. O general do GSI assume pela primeira vez sua veia palanqueira, com viés belicoso. E o filho do presidente teme misteriosas forças ocultas, de dentro e de fora do governo, que podem até custar a sua vida.

Tudo isso quando o Planalto deveria estar comemorando o acordo com a União Europeia e as energias do presidente da República, do governo, dos governadores e da sociedade deveriam estar concentradas na reforma da Previdência.

Não é assim. Os mesmos manifestantes que defendem a reforma e atacam o Congresso não percebem que é ele, o Congresso, que está salvando a reforma, o equilíbrio fiscal e o futuro do País. Viva o Congresso! Aliás, um viva às instituições!

Manifestações, parecer da reforma, Moro na Câmara, governo focando em divisões


Quem é a autoridade? - MICHEL TEMER

FOLHA DE SP - 02/07

O povo se expressa pela manifestação do Legislativo


Observei, ao longo do tempo, que muitos entendem que autoridade é uma pessoa física. Presidente, governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores, juízes e até outras categorias são (ou se acham) autoridades, segundo o uso comum. Não são. São, isto sim, autoridades constituídas. E constituídas pela única autoridade legítima nos estados democráticos: o povo.

Todo poder emana do povo não é regra de palanque político, de momento eleitoral. É regra jurídica, que diz quem manda no Estado. E, a partir daí, quem manda constitui autoridades por eleições ou por vias legalmente estabelecidas. Estas, autoridades constituídas, exercerão funções definidas na Lei Maior: legislação, execução e jurisdição. Vejam que a lei criadora do Estado é fruto da vontade de um povo determinado. Por isso, costuma-se dizer que ela expressa a soberania popular.

Soberania, por sua vez, é vocábulo que vem de soberano, supremo e incontestado governante, como ocorria no Estado absolutista. Significa que não encontra contraste. É incontrastável. Juridicamente é a capacidade de querer coercitivamente, fixando competências, direitos e deveres. E sanções quando for o caso. É o que faz a Lei Maior, a Constituição. Portanto, desde o nascimento do Estado de Direito, verifica-se a certeza da dicção: autoridade é o povo.

É quem titulariza e defere o exercício do poder constituinte originário, cuja vontade prossegue na elaboração legislativa infraconstitucional. A derivação se dá por meio de leis nascidas no Parlamento ou, no nosso sistema, por medidas provisórias. Portanto, depois de nascido o Estado por meio da Constituição (que é ditada, no geral, pelos representantes populares), é o Legislativo que passa a expressar a vontade popular. Por meio, naturalmente, dos atos normativos que edita.

Nele, Legislativo, estão presentes os representantes do povo. Repito: única autoridade do Estado. Assim, quando se edita a lei, esta é que revela a autoridade. Nesse sentido, o Legislativo é o primeiro poder do Estado. Ele, legislador, só pode fazer aquilo que está escrito na Lei Maior. E a legislação é o ato deflagrador da atividade jurisdicional e executiva.

A jurisdição, “juris dicere”, significa aplicar o direito posto pelo legislador na solução de controvérsias. E o Executivo executa o disposto na lei. Tanto é assim que a competência para regulamentar a lei por meio de decreto não pode ultrapassar os seus limites sob pena de este ser anulado por ato normativo, o chamado decreto legislativo. Em outras palavras, o Judiciário e o Executivo (ressalvada a hipótese da medida provisória) não são deflagradores da atividade estatal.

Têm o Executivo e o Judiciário a iniciativa para provocar a deflagração. Tem o Executivo ainda competência de impedir o ingresso da lei ou de parte dela na ordem jurídica por meio do veto. Mas não tem a palavra definitiva, pois o veto pode ser derrubado pelo Legislativo. De igual maneira, o Judiciário. Este pode dizer —em tarefa importantíssima— o que é lei e o que não é.

Explico: em ação direta de inconstitucionalidade ou mesmo em ação que questione a constitucionalidade de um ato normativo, oferecida em litígio individual ou coletivo, pode fazer banir do sistema lei que contrarie a Constituição. O mesmo pode dar-se na ação direta de constitucionalidade. E na arguição de descumprimento de preceito fundamental.

É por isso que, quando as ruas se manifestam, quem deve vocalizar essa voz (afinal, é o povo) é o Legislativo após examinar o conteúdo e as circunstâncias das postulações. Executivo e Judiciário poderão aumentar essa sonoridade. Poderão somar-se à voz popular propondo a modificação normativa. Modificada, passa-se a aplicá-la.

Afinal, a mensagem dada pela Constituição, embora crie três órgãos do Poder, é que o povo na democracia se expressa pela manifestação do Legislativo. Portanto, a autoridade está na lei, não nas pessoas constituídas pela vontade popular. Não é sem razão que a Constituição estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa senão em virtude de lei, elevando-a às culminâncias da atividade estatal.

Peço escusas àqueles versados em razão da obviedade do que escrevi. É que ele serve de alerta no momento em que nem todas as autoridades constituídas se pautam pela Carta Magna e pelas leis. Até porque, muitas vezes, consideram-se acima delas. E isso é o que cria a chamada “insegurança jurídica”. E, consequentemente, a instabilidade institucional, circunstância indesejada não só pelos cidadãos comuns como pelos investidores, nacionais ou estrangeiros.
Michel Temer

Ex-presidente da República (2016-2018)

É vital que reforma cubra toda a Federação - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 02/07

A possibilidade de estados e municípios não entrarem no projeto põe a população em risco


A negociação em torno da reforma da Previdência é repleta de riscos e imprevistos, devido aos interesses em jogo. No caso das alterações imprescindíveis no sistema de seguridade, os problemas são de tamanho proporcional ao tempo que os políticos deixaram passar sem adequar as regras do INSS (dos empregados do setor privado) e dos “regimes próprios” (dos servidores públicos) às mudanças demográficas. O bem-vindo aumento da expectativa de vida da população requer que as pessoas passem mais tempo no trabalho ativo, contribuindo para a Previdência. Como isso não ocorreu, os déficits bilionários explodem, e, agora, tenta-se corrigir o erro.

Como se trata de uma reforma que implica mudanças na Constituição, há um longo rito a ser cumprido. O que significa que existem mais chances para obstruções e sabotagens contra a atualização do sistema, tramadas no Congresso por representantes de corporações que se beneficiam das atuais regras, a maioria delas do funcionalismo público.

Tem sido assim desde a tentativa, ainda na gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), de se estabelecer uma idade mínima para aposentadoria, derrotada por um voto. Com Lula e Dilma — mais com o primeiro —, houve avanços na seguridade do funcionalismo, mas insuficientes. Porém, em meio a crises no PT, partido capturado pela antiga visão ideológica de que o Estado tudo pode — a receita da hiperinflação. No momento, enquanto o relator do projeto da reforma, deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), se prepara para apresentar à Comissão Especial um parecer complementar a seu relatório, há riscos de ficar pendente a inclusão de estados e municípios no projeto.

Se isso ocorrer, ainda no governo Bolsonaro mais governadores deverão pedir socorro ao Tesouro, pela impossibilidade de pagarem seus compromissos, devido ao estrangulamento de seus caixas provocado por aposentadorias e pensões do funcionalismo.

A política tem uma lógica nada cartesiana. Mesmo com a contabilidade asfixiada, governadores não trabalhariam em favor da reforma por serem de oposição. Exemplo de Pernambuco (Paulo Câmara, PSB), Maranhão (Flávio Dino, PcdoB) e Bahia (Rui Costa, PT).

Há, ainda, manobras e reações típicas do varejo da política, no estilo baixo clero, de parlamentares adversários de governadores, que preferem deixá-los enfrentar o grande desgaste de tentar aprovar a reforma em sua assembleia legislativa. O parlamentar típico também não deseja ser acusado de ter trabalhado “contra” os servidores em Brasília.

No entanto, dificultar a extensão das mudanças para toda a Federação é que prejudicará o funcionalismo e a população dos estados, onde já existem casos de falta de dinheiro para hospitais e postos de saúde.

Impedir que a reforma aprovada no Congresso abranja toda a Federação é condenar a população a enfrentar uma crise que já se agrava em serviços públicos básicos.


Bolsonaro nos passos do PT - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 02/07

Preocupação em relação às agências reguladoras foi manter a ingerência política.


Ao vetar a parte do novo marco jurídico das agências reguladoras (Lei 13.848/19) que estabelecia a indicação de diretores a partir de uma lista tríplice, o presidente Jair Bolsonaro mostrou sintonia com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em vez de proteger a autonomia das agências, a preocupação comum dos dois presidentes foi manter a ingerência política sobre elas.

Dias antes do veto, Bolsonaro afirmou que “as agências travam os Ministérios. Você fica sem ação. Você tem que negociar com agência, é um poder paralelo”. Foi precisamente essa a visão sobre as agências que imperou durante as administrações petistas e que tantos prejuízos gerou. Com a diminuição da relevância e da funcionalidade das agências reguladoras, importantes serviços públicos ficaram sem a devida regulamentação e sem o devido controle. O preço de tal descaso foi pago pela população.

Mas não é apenas com Lula da Silva que o presidente Jair Bolsonaro vem se identificando quando o tema são as agências reguladoras. Ele segue também os passos da presidente Dilma Rousseff, que ficou conhecida pelo atraso na indicação das diretorias das agências. Por falta de iniciativa da presidente, cargos ficaram vagos durante meses. Houve casos de vacância de mais de ano. Além disso, verbas cortadas prejudicaram o funcionamento das agências.

Segundo levantamento feito pelo Estado e pela União Nacional dos Servidores de Carreira das Agências Reguladoras Federais (UnaReg), até dezembro Bolsonaro terá de preencher 14 vagas. Até o momento, ele indicou apenas 3 nomes. A demora poderá levar à mesma situação ocorrida na gestão de Dilma, com diretorias vagas inviabilizando o trabalho das agências, sem quórum mínimo para as votações. Para que um cargo não fique vago, é preciso indicar os nomes antes do término do mandato dos diretores.

Das 14 vagas, 4 já estão abertas e apenas 2 nomes de substitutos foram enviados pelo Executivo ao Senado. Outros cinco postos ficarão vagos até o início de agosto, quando vencem os mandatos dos atuais dirigentes. Apenas para um deles já há um indicado.

Foi tão grave o problema da vacância nas diretorias das agências durante o governo de Dilma Rousseff que o Congresso estabeleceu uma medida corretiva para a inércia presidencial. A Lei 13.848/19 previu que, “ocorrendo vacância no cargo de Presidente, Diretor-Presidente, Diretor-Geral, Diretor ou Conselheiro no curso do mandato, este será completado por sucessor investido na forma prevista no caput e exercido pelo prazo remanescente, admitida a recondução se tal prazo for igual ou inferior a dois anos” (art. 5.º, § 7.º).

O atraso de Bolsonaro na indicação de nomes para as agências reguladoras é contraditório com o veto aplicado à Lei 13.848/19. O presidente se insurgiu contra a lista tríplice, querendo liberdade total para indicar candidato, mas ao mesmo tempo não fez as indicações que deveria fazer. A contradição, no entanto, é apenas aparente. As duas atitudes manifestam profunda incompreensão a respeito do papel das agências, a mesma incompreensão vista durante os 13 anos de PT na administração federal.

A confirmar seu desapreço pelas agências, o presidente também vetou uma importante garantia contra a “captura regulatória”, que é a utilização das agências por parte de agentes políticos ou empresariais para fazer valer seus próprios interesses. O Congresso proibiu a indicação de quem tivesse, nos últimos 12 meses, algum vínculo, como sócio, diretor ou empregado, com empresa que explora atividade regulada pela agência. O presidente vetou essa restrição, alegando que era exagerada. Ora, para realizar sua missão de promover a qualidade e a continuidade da prestação dos serviços públicos, a agência precisa ter independência tanto da esfera política como do setor privado.

O Congresso tentou corrigir um problema, mas o presidente Jair Bolsonaro vetou a solução. Como se vê, a origem dos problemas nem sempre está no Legislativo. Provém muitas vezes do inquilino do Palácio do Planalto.