terça-feira, março 27, 2018

A República desnuda - HÉLIO GOMES COELHO JUNIOR

GAZETA DO POVO - PR - 27/03

Os três poderes são irmãos xifópagos, por inclinação e temperamento. São filhos da mesma casta que controla e utiliza o Estado


As águas de março fizeram o Judiciário navegar e encalhar no mesmo brejal em que já estavam metidos e atolados o Executivo e o Legislativo, na medida em que aquele desvelou ser exatamente como os dois outros poderes. Isso se mostra quando o assunto é manter privilégios e criar benesses com o dinheiro dos cidadãos, contemporizar com os seus e condescender com alguns.

No último dia 15, um bom número de juízes federais e um punhado de juízes do Trabalho resolveram simplesmente não cumprir com seus ofícios, dando as costas aos cidadãos e advogados, para pressionar os juízes da suprema corte. Juízes a constranger juízes. Inaceitável é pouco. Intolerável é o menos.

A sonegação da judicatura por um dia, sem rodeios, foi o meio e o modo que as associações dos magistrados encontraram à advertência do seus superiores, lá do Supremo Tribunal Federal, para que não cortassem (na sessão de julgamento designada para o dia 22) o “auxílio-moradia”. Em 2014, ato isolado de um seu ministro, Luiz Fux, “universalizou” a todos os magistrados (federais, trabalhistas, estaduais e militares) um pagamento mensal de R$ 4.377 limpinhos, sem impostos, com fundamento em uma lei complementar de 1979.

É dizer, em clara prestidigitação – nome chique para ilusionismo –, uma liminar (sempre precária) do ministro Fux logrou ver, na balzaquiana lei, o que a míope sociedade não percebera desde 1979 e, abracadabra, pôs no bolso de cada magistrado brasileiro mais de R$ 4 mil, mês a mês e desde 2014. Passou a espetar no dinheiro público uma conta de mais de R$ 5 bilhões, desde então, quando desde é igual a 2014, e então é 2018.

A sociedade está órfã, pois perdeu interlocutores que muito lhe ajudaram no passado, como a ABI, a CNBB e a OAB


E, como tudo o que é bom para os juízes também é bom para os procuradores, sob o elegante nome de “simetria” que, na boa lógica, equivale à “propriedade da relação que, afirmada entre A e B, pode ser afirmada entre B e A, sem transformação”. O que uma categoria pega a outra se apega.

E o que aconteceu? No dia 22, o ministro Fux, em seu fluente “carioquês”, ao ser interpelado pelo ministro Gilmar Mendes, comunicou à corte que, por conta própria, retirara de pauta o assunto do auxílio-moradia, ante um pedido das associações de classe (de juízes e procuradores) e da Advocacia-Geral da União – que insinuaram manejar o assunto em uma arbitragem –, antecipando o ministro Fux, na sua mambembe justificativa, que há “um débito constitucional da União para com os juízes”. Em um português bem inteligível, quer dizer: fica minha liminar (dada em 2014) até que os interesses corporativos sejam atendidos...

Dinheiro público, precisa ser dito e redito, vem do público privado, pessoas e empresas, que produzem riquezas e pagam impostos para sustentar o Estado e seus servidores.

Deu-se um “jeitinho” de continuar a gastança, que passa de R$ 5 bilhões, por mais alguns meses ou anos. Melhor contar estes em pencas de 12...

Em 21 de março, um dia antes de o Supremo empurrar para baixo do tapete o seu dever de julgar o auxílio-moradia, que queima bilhões e está pendurado em uma liminar dada em 2014, os brasileiros viram e ouviram um diálogo entre pares até então inédito nos quase 200 anos de história do STF (originalmente denominado Supremo Tribunal de Justiça). Durante o embate, veio a revelação de que, entre os 11 membros, há um ministro psicopata e outro ministro advogado militante.

Ou seja, alguns componentes da mais alta corte de Justiça, o secular Supremo Tribunal Federal, não se submetem à serenidade e à urbanidade. Afinal, são comportamentos comezinhos para quem exerce a mais proeminente função judicial, a de bem interpretar a Constituição Federal e a de assegurar a incolumidade do Estado Democrático de Direito.

Fique claríssimo aos cidadãos brasileiros: todos os juízes estão submetidos à Lei Orgânica da Magistratura Nacional. E ela lhes impõe e exige, além de sereno e urbano agir, o conduzir-se de modo irrepreensível, na vida pública e particular, seja um juiz substituto, seja um ministro.

Não fosse bastante e muito, na mesma sessão do dia 22, quando o auxílio-moradia não foi julgado e sim “negociado”, como fruto de uma paralisação de serviços inexpressiva por parte de alguns juízes, e um dia depois de os brasileiros saberem que há ministros adoentados e advogando administrativamente, o Judiciário fez outra à sociedade.

Em meio a uma sessão longa, o que é absolutamente comum em todos os tribunais brasileiros, e quando tratava de questão singela – aplicar o precedente da própria corte e que houvera sido adotado com o prestígio de “repercussão geral” –, eis que um ministro, exibindo um reles cartão de embarque, despede-se da sessão, pois tinha compromisso importante a cumprir no dia seguinte. A internet expõe a agenda: palestrar às 10h30 do dia seguinte no Rio de Janeiro, em um evento que duraria o dia todo. Não é inadequado supor, para quem frequenta congressos, as naturais acomodações de horários quando um palestrante – ainda mais tão ilustre quanto um ministro – não chega a tempo. Fala mais tarde e o auditório fica cheio, sempre.

O despotismo hoje é outro e se manifesta pelos que personificam o Estado e viram as costas à sociedade

Com a sua saída, a corte descontinuou a sessão, fundada no cansaço, e concedeu um “salvo-conduto”, com prazo de validade até o dia 4 de abril, para um paciente que impetrara um habeas corpus. Fez a corte muito bem, pois, se ela tem cansaço, o paciente não tem culpa, e assim deve ficar a salvo de tribunais quasímodos. Parafraseio o ministro Marco Aurélio: “processo não tem capa, tem conteúdo”. Assim, na lata.

O ministro que voa e a corte que se cansa com as lidas, como costuma acontecer, fez o imaginário social também viajar e deitar olhos críticos à magistratura brasileira, com ênfase em suas sinecuras e benesses: férias de 60 dias; recesso de 18 dias (de 20 de dezembro a 6 de janeiro) aos juízes federais e mais 30 dias (em janeiro) aos ministros das cortes federais (em janeiro, as cortes federais em Brasília ficam em recesso); e um sem-número de penduricalhos como auxílios-moradia, alimentação, transporte, escola e quejandos.

No Paraná, nas águas de março, o Tribunal de Justiça encaminhou à Assembleia Legislativa um anteprojeto que pretende gratificar os juízes que integrem comissões, dirijam fóruns e quetais. Voltando às associações de classe (magistrados, procuradores e afins), em regra, quem as dirige não exerce o ofício, pois são pagos – com todos os benefícios – pelo dinheiro público que advém dos impostos tomados dos particulares, como se “fazendo justiça” estivessem.

Os três poderes são irmãos xifópagos, por inclinação e temperamento. São filhos da mesma casta que controla e utiliza o Estado.

A sociedade está órfã, pois perdeu interlocutores que muito lhe ajudaram nos tempos da ditadura militar, dentre eles a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Eram outros tempos, eram outros os condutores. Quem não se recorda, por ter vivido ou estudado, da autoridade intelectual e moral de um Barbosa Lima Sobrinho, um Ivo Lorscheiter e um Raymundo Faoro? Também foram bons coadjuvantes os conselhos de profissões, os sindicatos e as universidades, sem dúvida.

O despotismo hoje é outro e se manifesta pelos que personificam o Estado e viram as costas à sociedade.

As águas de março ficaram mais turvas, sim, mas não será “é pau, é pedra, é o fim do caminho”, como poetava Tom Jobim.

Constituição debaixo do braço, vamos à liça, para que saiamos o quanto antes do estabelecido “finge que me engana que eu finjo que acredito”.

A república está nua e, pior, feia, com a devida vênia.


Hélio Gomes Coelho Júnior, advogado e professor da Escola de Direito da PUCPR, é presidente do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP) e vice-presidente do Colégio de Presidentes dos Institutos dos Advogados Brasileiros.

O indivíduo ausente - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 27/03

Nada difere a PUC das universidades públicas aparelhadas por PT, PCdoB, PSOL etc.; nada difere a PUC, por exemplo, da Uerj

Sob a manchete “Distribuição de jornal gera confusão entre estudantes da PUC-RJ”, este O GLOBO noticiou, em 19 de março, o que nem como eufemismo poderia ser compreendido por mero tumulto — salvo se intimidação, restrição ao direito de ir e vir, assalto à liberdade de expressão e agressão física tiverem mudado de sentido.

Sejamos claros: naquela sexta-feira, dois jovens foram empastelados, escarrados, barbaramente impedidos de fazer circular uma publicação e chamados de fascistas por difundirem conteúdo que em nada — absolutamente nada — afronta a lei brasileira, isso enquanto os agressores destruíam exemplares do jornal (com apoio de ao menos um professor) a não mais que 20 metros da porta de uma universidade. Há vídeos.

É difícil contar a quantidade de crimes cometidos ali. Nenhum deles pelos dois estudantes vítimas da blitzkrieg. Ao que se deve somar a miséria moral de a PUC não haver se manifestado — pública e enfaticamente — contra o ato de censura cometido, à porta de seu campus, por seus alunos contra seus alunos; pusilanimidade que entendo como chancela. Não terá sido a primeira vez — mas ainda chegarei lá.

Sim, li a edição violentada de “O Universitário”, publicação do Centro Dom Bosco, para imediatamente, sem surpresa, mapear o que se passara: um jornal que seja católico, que aponte a degradação ideológica da vida universitária, que discuta criticamente a questão de gênero, que trate do projeto de tomada do Estado por um partido político e que, sobretudo, traga uma entrevista com Olavo de Carvalho e fale de Jair Bolsonaro sem histeria — esse jornal simplesmente não pode existir.

A nota asquerosa do Centro Acadêmico de Comunicação Social da PUC a respeito é autoexplicativa porque expõe o triunfo da mentalidade revolucionária em operar transtornos perceptivos como o que autoriza que as práticas verdadeiramente criminosas — as movidas contra os dois estudantes — sejam defendidas como virtuosas, e a expressão divergente, cerne da liberdade, como gesto de intolerância e opressão. A julgar pelo texto, os princípios éticos que fundamentam a formação de comunicadores no Brasil são os mesmos que dissolveram as fronteiras entre jornalismo e militância. Pelo tom do panfleto, entendi também que o diretório fala em nome da universidade. Reproduzo os trechos a seguir conforme publicados no Facebook do centro acadêmico — também para que possamos nos alarmar com o semianalfabetismo em terceiro grau:

“(...) Se atentarem aos textos impressos verão que nenhum deles se tratam de notícias reais — suas informações carecem de fontes —, mas de opiniões próprias com a intenção de confundir e doutrinar a opinião do universitário. Não há a certeza que chegam a ser opiniões, talvez sejam apenas oposições, já que os textos pouco tem a falar sobre política, apenas tem a intenção de ofender e criticar os valores quais eles atribuem ao comunismo. (...) Escrevemos esse texto para deixar claro que NÃO SERÁ ACEITO a divulgação de mensagens do tipo em nossa universidade. A PUC-Rio é uma universidade plural que presta assistência a um número enorme de alunos, a utilização da imagem cristã para a divulgação de preconceitos é uma mancha para todo o trabalho que a universidade se propõe há tantos anos. (...)”

Estudei na PUC. Minha mais insistente lembrança é a do modo sossegado como se comerciava e consumia drogas na vila dos diretórios — enclave controlado por partidos políticos, eficaz centro de doutrinação de jovens dentro de uma instituição privada à qual pais pagam fortunas em troca de instrução independente aos filhos. Nada, porém, difere a PUC das universidades públicas aparelhadas por PT, PCdoB, PSOL etc.; nada difere a PUC, por exemplo, da Uerj, igualmente anticristãs, matrizes do pensamento único. Sinto-me à vontade para falar sobre “o trabalho que a universidade se propõe há tantos anos”, seguramente não plural, naturalmente hostil ao contraditório — e que não poderia ter melhor representação que o silêncio cúmplice ante a interdição de um jornal católico à porta de uma instituição católica. Isso, repito, tem história. Ou já nos teremos esquecido de “O indivíduo”?

Em 1997, seus editores foram grotescamente proibidos de distribuí-lo na PUC, cercados por dezenas de bandidos infiltrados entre os alunos (estudantes profissionais bancados por partidos), agredidos e submetidos ao espetáculo nazista de assistirem à queima de exemplares do jornal numa fogueira. E o que fez, então, a reitoria? Nada de punição aos bárbaros; mas um serviço a eles: comandou a apreensão do que sobrara da publicação. Uma afronta à memória de seus fundadores, os monumentais Cardeal Leme e Padre Leonel Franca, e — já que nada mudou em 20 anos — um convite à pergunta: quando a Pontifícia Universidade Católica voltará a ser católica?

Carlos Andreazza é editor de livros

Humor de perdição - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 27/03

Será que o fato de fazer piadas com certos grupos ou temas transforma uma pessoa num monstro moral?

1. Até quando teremos Ricky Gervais? Sim, falo do humorista britânico, autor e ator de uma das grandes comédias da história da TV (a série "The Office"), e que regressou aos palcos, sete anos depois, para um novo espetáculo de standy-up comedy.

O resultado, disponível na Netflix, é "Humanity". E, se eu pergunto até quando teremos Ricky Gervais com liberdade absoluta para fazer humor, é por duas razões fundamentais.

A primeira lida com os temas que Ricky Gervais escolhe. Hoje, é fácil fazer piadas politicamente corretas com alvos politicamente corretos —como a religião cristã ou qualquer político conservador. Nesse quesito, Ricky Gervais não é exceção: haverá coisa mais divertida do que o criacionismo fanático?

Mas o humorista vai mais longe, ao tocar nas vacas sagrados do momento --como os direitos das minorias (sobre os transexuais, como a famosa Caitlyn Jenner, Ricky confessa: "Se eu resolvesse mudar quem sou, era mais fácil para mim ser gorila do que mulher") ou o sentimentalismo dos adultos com as crianças ("Por favor, não me mostre mais fotos dos seus filhos, exceto se eles forem sequestrados").

Sem falar da maior vaca sagrada de todas —a ideia delirante de que o povo é puro e sábio nas suas decisões ou opiniões ("Vamos remover os avisos de 'Não beba' das garrafas de lixívia e, dois anos depois, fazemos um novo referendo sobre o brexit, ok?").

Para cabeças simples, Gervais é transfóbico, homofóbico, antihumanista e antidemocrata. Mas será que o fato de fazer piadas com certos grupos ou temas transforma uma pessoa num monstro moral?

Esse é o segundo motivo para assistirmos a "Humanity": as piadas são boas, mas o melhor do espectáculo está nas reflexões sérias que Gervais vai fazendo sobre o clima de "indignação automática" que define o nosso tempo.

O leitor conhece: alguém diz algo; alguém se ofende com algo; alguém tenta proibir o que foi dito.

Antigamente, os adultos seguiam em frente quando viam algo de que não gostavam. Hoje, acrescenta Gervais, são incapazes de lidar com isso porque imaginam que as suas "identidades" —políticas, sexuais, religiosas etc.— são a coisa mais importante do mundo. Quando foi que nos tornamos tão infantis e narcísicos?

Não sei. Mas sei que assistir a "Humanity", sentirmos as nossas crenças atacadas e ainda rirmos com isso é um verdadeiro teste de maturidade.

2. Fazer uma piada com distúrbios psíquicos não é para qualquer um. Mas Ruben Östlund não é qualquer um.

Em "The Square - A Arte da Discórdia", temos um personagem que sofre de síndrome de Tourette. Ele está sentado na audiência, escutando uma conversa no palco entre uma curadora de arte pretensiosa e um artista pretensioso.

E, quando escuta as frases de ambos, a sua coprolalia é mais forte do que ele: há comentários em voz alta com obscenidades à mistura.

O artista fala da sua obra e ele dispara: "Lixo!" A curadora faz uma nova pergunta ao artista —e o homem vai metralhando a donzela com considerações anatômicas que podemos facilmente imaginar na boca do sr. Harvey Weinstein (quando usava robe).

A audiência está incomodada. A curadora e o artista também. Mas, quando alguém se atreve a criticar a atitude do homem, há sempre um benemérito que pede respeito e tolerância. Aquilo é doença.

É o melhor momento do filme. Não apenas por razões literais —o contraste insólito entre a seriedade do diálogo e o despropósito daquelas frases— mas porque Östlund consegue, metaforicamente falando, resumir o espírito do filme em uma única cena: uma crítica à arte conceitual contemporânea, aos seus promotores e aos seus artistas (o artista pretensioso, vestindo blazer e pijama, é uma óbvia paródia a Julian Schnabel).

O homem com Tourette é uma espécie de bobo moderno. Não no sentido pejorativo do termo; no sentido histórico, cultural, medieval. Tal como os bobos antigos, que diziam as verdades ao rei em clima de farsa, o "bobo" do filme também diz as suas verdades —aquelas que o nosso superego reprime— mostrando à audiência que o rei, na verdade, está nu.

Confesso: "The Square - A Arte da Discórdia" não está ao mesmo nível da obra anterior de Östlund ("Força Maior", uma história sutil sobre o animal escondido e amedrontado que existe em nós).

Mas brindo a um diretor "progressista" que prefere perder vários amigos a perder a piada.

João Pereira Coutinho - É escritor português e doutor em ciência política.

As saúvas, a política e o corporativismo - NATHAN BLANCHE

ESTADÃO - 27/03

Eventual afrouxamento das amarras fiscais na Constituição é ameaça à expansão econômica


Como venho alertando desde o ano passado, o caminho que trilham as contas públicas do Brasil é muito perigoso. O risco de os gastos federais romperem o teto constitucional, principalmente a partir de 2019, alimenta as suspeitas de descontrole das despesas públicas e a retomada da discussão sobre a solvência fiscal do País.

O fracasso da reforma da Previdência foi o tiro de misericórdia do Congresso Nacional, pois ela é condição necessária, ainda que insuficiente, para evitar a ruptura das normas constitucionais já a partir do ano que vem. Em 2016, ano anterior à vigência do teto dos gastos, as despesas previdenciárias do Regime Geral representavam 41% do Orçamento da União, tendo subido para 44% em 2017, o primeiro ano de vigência do teto. Sem uma dura reforma da Previdência essa tendência crescente deve fazer com que esses gastos superem pouco mais da metade do Orçamento entre 2021 e 2022.

O crescimento explosivo dos dispêndios da Previdência tem sido o maior responsável pelo aumento do déficit da Seguridade Social, que em 2017 atingiu 4,4% do produto interno bruto (PIB) – R$ 292,4 bilhões –, ante um déficit de 4,1% do PIB em 2016, apresentando, portanto, piora, mesmo com o PIB tendo crescido 1% no ano passado.

Nesse período, as despesas discricionárias, que incluem o custeio dos serviços públicos (excluindo pessoal) e os investimentos em capital, foram reduzidas de 22,7% para 19,7% das despesas totais do governo. Na ausência da reforma da Previdência e sendo a única variável de ajuste, essas despesas sofrerão cortes sucessivos para sustentar o teto do gasto, encolhendo para 13% em 2022 (supondo queda real anual de 10% desse gasto). A retração dos investimentos públicos teve impacto decisivo para a queda da formação bruta de capital fixo, que sofreu retração da ordem de 30% no período de 2014 a 2017.

Infelizmente, há sinais de que políticos e assessores de possíveis presidenciáveis estudam formas de driblar os mandamentos fiscais, com a possível flexibilização da regra de ouro e do teto do gasto, o que seria uma forma de proteger o próximo presidente de eventual crime de responsabilidade. Um eventual afrouxamento das amarras fiscais presentes na Constituição, especialmente antes de reformas essenciais, deve elevar a percepção de risco dos agentes com relação à questão fiscal, ameaçando a consolidação do ciclo de expansão econômica.

A era das escolhas fáceis ficou para trás. Ou o Brasil acaba com a “saúva” ou a “saúva” acaba com o Brasil. A classe política deve incorporar de uma vez por todas o conceito econômico de restrição orçamentária e sinalizar para a sociedade brasileira que os recursos são escassos e devem ser, portanto, alvo de escolhas alocativas. Cada real gasto com a Previdência, por exemplo, significará menos real gasto em educação, saúde e segurança ou em infraestrutura. Cabe à política intermediar essa disputa por recursos. A responsabilidade fiscal deve ser, portanto, um valor de toda a sociedade, independentemente de ideologias ou de preferências alocativas.

Daí a importância de se mobilizar o apoio dos mais variados segmentos à continuidade da atual agenda reformista, desde classes representativas dos trabalhadores e empresários até demais organizações da sociedade civil e impressa. A economia política brasileira no pós-Constituição de 1988 gerou um desequilíbrio perverso para o desenvolvimento sustentável. A crescente demanda pela presença do Estado nas mais diversas searas resultou em aumento do endividamento público e da carga tributária. Essas duas saídas não têm viabilidade no futuro.

O risco fiscal latente, em conjunto com a falta de legitimidade da classe política para exigir maior esforço da sociedade para fechar as contas, aponta para a necessidade de eleger prioridades.

A solução para a crise fiscal não se encontra apenas no plano econômico. Na verdade, a restauração da normalidade democrática e a recuperação da legitimidade da classe política são essenciais para o debate em torno das prioridades da sociedade brasileira no futuro.

A “bagunça” no âmbito institucional, resultado do desentendimento entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, a corrupção sistêmica e a tentativa do funcionalismo público e do Judiciário de frear mudanças para manutenção de seus privilégios e interesses corporativos resultam na total falta de credibilidade, perante a sociedade, não somente do Congresso Nacional, mas também da capacidade das lideranças políticas de fazerem uma boa gestão dos recursos públicos. Em meio a esse complicado cenário socioeconômico temos as eleições presidenciais e legislativas deste ano.

É imperativo o surgimento de uma coalizão político-partidária que apresente um programa de governo baseado em diagnóstico que combine reformas econômicas necessárias para garantir não apenas o crescimento econômico sustentável, mas o aumento da eficiência do Estado na provisão de serviços públicos essenciais para uma sociedade civilizada.

A eventual eleição de populistas de esquerda ou de direita deve ter um custo econômico muito elevado. Não se trata de escolher o novo messias, mas de criar mecanismos para superar a herança maldita de 13 anos de poder dos ditos socialistas populistas da América latina.

A calmaria com a economia brasileira pode ser pontual. Se o caminho da política econômica responsável e a agenda de reformas forem abandonados, o País voltará a trilhar o caminho da bancarrota, da estagnação e da inflação, com elevados custos sociais.

O jogo presidencial é o divisor de águas. Uma escolha equivocada deixará um legado amargo por muito tempo. Que a sociedade, formadores de opinião e líderes políticos estejam à altura dos desafios impostos por esse momento-chave da História brasileira.

*SÓCIO-DIRETOR DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA INTEGRADA

O preço do desastre petista - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 27/03
Se tivessem sido geridos de acordo com as regras e os critérios observados por instituições vinculadas a empresas privadas, os fundos de pensão que atendem empregados de estatais federais poderiam ter obtido rendimento muito maior do que registraram. Só em 2016, os ganhos poderiam ter sido R$ 85 bilhões maiores do que os efetivamente alcançados pelos fundos das estatais; apenas três deles – Previ (dos funcionários do Banco do Brasil), Petros (da Petrobrás) e Funcef (da Caixa Econômica Federal) – poderiam ter auferido rendimento adicional estimado em R$ 75 bilhões.

Os cálculos resultam de auditoria realizada por técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU), cujas conclusões foram aprovadas pelo plenário da Corte de Contas. Além disso, o TCU exigiu dos conselhos deliberativos dos fundos de pensão vinculados a empresas estatais que tiveram os piores desempenhos o envio do cálculo das perdas, que afetaram tanto as patrocinadoras como os empregados participantes dessas instituições de previdência complementar.

O relatório do TCU se baseou num método racional e de grande simplicidade: a comparação da evolução do patrimônio de todos os fundos de pensão em operação no País entre julho de 2006 e maio de 2017, pois todos operam no mesmo mercado, dispõem das mesmas opções de investimentos e estão sujeitos às mesmas regras e restrições administrativas e financeiras. Os auditores do TCU aferiram o rendimento alcançado por instituições vinculadas a estatais e o obtido por fundos de empresas privadas. Obviamente, haverá diferenças entre o rendimento alcançado por um fundo e outro, por causa da diferente composição de suas carteiras e do poder de negociação de cada um. O que se verificou, porém, foi uma diferença gritante de resultados.

Em 2016, enquanto o patrimônio dos 305 fundos privados aumentou 4%, o dos 88 fundos de estatais teve perda de 15%. Aquele foi o ano em que, por meio do impeachment de Dilma Rousseff, o País se livrou da aventura lulopetista, mas ainda sofria as consequências de decisões irresponsáveis do longo período em que o Estado brasileiro foi tomado por organizações criminosas a serviço de partidos políticos e suas ideologias. Como a Petrobrás, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outros órgãos vinculados à administra pública federal, os fundos de pensão foram transformados em instrumentos financeiros e políticos para atender aos objetivos da gestão lulopetista.

Por sua grande capacidade financeira, os fundos das estatais serviram primeiro como alavanca e depois como esteio de projetos de interesse ideológico. Dominados pelo PT e aliados, que indicavam os ocupantes de seus principais cargos deliberativos e executivos, os fundos das estatais, sobretudo os maiores, foram forçados a investir maciçamente em empresas e programas de nítido viés político e de rentabilidade no mínimo duvidosa. Tiveram de participar de consórcios que disputaram as concessões de serviços públicos e investir em empresas escolhidas pelo governo do PT. O resultado concreto dessa irresponsabilidade com o uso de dinheiro destinado a assegurar a aposentadoria dos empregados das estatais é o que foi apontado pelo relatório do TCU.

Entre os investimentos feitos por esses fundos estão os destinados à empresa Sete Brasil, criada no governo Lula como parte de seu projeto megalômano de exploração do petróleo do pré-sal. Citada na Operação Lava Jato, a Sete Brasil entrou com pedido de recuperação judicial em abril de 2016, ocasião em que a empresa listou dívidas de R$ 18 bilhões, sendo cerca de R$ 12 bilhões concentrados em bancos estatais e fundos de pensão de empresas estatais. Outras empresas investigadas em operações policiais por suspeitas de fraude – além da Lava Jato, elas são alvo das operações Greenfield, Sépsis e Cui Bono? –, como empreiteiras e estaleiros, fazem parte da lista daquelas em que, a mando do governo do PT, os fundos estatais investiram. E perderam.