terça-feira, maio 31, 2016

Ruim com ele, pior sem ele - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S. Paulo - 31/05
Perguntar não ofende: qual o objetivo de quem é contra o impeachment de Dilma Rousseff e está queimando pneus em estradas, invadindo prédios da Cultura, gritando “Fora Temer” na parada LGBT, exibindo cartazes no exterior para dizer que “there is a coup in Brazil”? E qual o objetivo de quem é a favor do impeachment, mas torce contra o governo interino de Michel Temer, condena as propostas para combater o rombo das contas públicas e repudia a indispensável reforma da Previdência?

Tanto quem é a favor quanto quem é contra o afastamento de Dilma tem de ter em mente a responsabilidade coletiva com a história e que só há três saídas para um país mergulhado em tantas crises. Fora disso, não há alternativa, a não ser anarquia.

Uma saída é dar uma trégua para Temer governar e a equipe de Henrique Meirelles tentar por a economia em ordem nesses dois anos e meio, para entregar para os eleitores em 2018 um país razoavelmente saneado. Temer não é perfeito e o PMDB tornou-se muito imperfeito, mas ele foi escolhido por Dilma e por Lula e eleito na chapa do mesmo PT que anima os queimadores de pneus, os invasores da Cultura, os que gritam “Fora Temer” e uma turma que mora fora – uns, há tantas décadas, que deveriam estar mais preocupados com o Trump.

Além de habitar o Jaburu, Temer despacha agora no Planalto por força da Constituição, que assim determina: sai um(a) presidente, assume o vice. Não importa se é bonito, feio, gordo, magro, se é Itamar Franco ou se é Michel Temer. Ele está lá, e o Brasil, os brasileiros, a indústria, o comércio e os 11 milhões de desempregados precisam desesperadamente que comece a equilibrar as contas públicas e a fazer a economia andar.

A saída número 2 é a volta de Dilma. Sério mesmo, alguém deseja de fato a volta de Dilma, com sua incapacidade de presidir o País, negociar com o Congresso, ouvir os conselhos do padrinho Lula ou, aliás, ouvir qualquer expert de qualquer área sobre qualquer coisa? No aconchego dos seus lares, na convivência com familiares, amigos e vizinhos e nas conversas com seus travesseiros – e com o próprio Lula –, será que os petistas de raiz querem mesmo a volta de Dilma?

Os deputados não são lá essas coisas, mas acataram o impeachment pelo crime de responsabilidade fiscal, previsto na Constituição e confirmado pelo resultado final: um rombo que o governo Dilma admitia ser de R$ 96,6 bilhões e que a equipe de Meirelles descobriu bater em R$ 170 bilhões. Mas, além do fato formal, deputados e senadores tocaram o processo adiante pelo desmantelamento da economia, o esgarçamento das relações políticas e porque Dilma conseguiu ser a presidente mais impopular do país desde 1985.

A opção 3 (dos favoráveis e contrários ao impeachment) seria a antecipação de eleições diretas, empurrando Temer ou Dilma para a renúncia (dependendo de o Senado confirmar ou não o impeachment), ou dando um golpe branco e mudando a Constituição por questões conjunturais. E o que viria depois? Uma eleição às pressas, sem que os partidos tivessem se preparado e sem candidatos à altura da crise. Dá um frio na espinha pensar nos aventureiros que se lançariam como salvadores da pátria, da ética, da economia, dos “bons costumes”, da “ordem” deles, do “progresso” deles.

Isso não é brincadeira. O seguro, que morreu de velho, recomenda respeitar a Constituição, o Congresso que o eleitor elegeu e a posse do vice que 2014 jogou no Jaburu, na perspectiva de assumir com o afastamento constitucional da presidente. Vale, sim, gritar contra muitas coisas, inclusive a nomeação de um ministro da Transparência indicado, ora, ora, pelo senador Renan Calheiros. Mas o esforço para derrubar Temer, neste momento, é trabalhar contra o Brasil.

Erros e atrasos - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 31/05

Em menos de 20 dias, Temer já tem coleção de erros. O governo Michel Temer já errou demais para o pouco tempo que tem. Criticar a administração Dilma não é o mesmo que avalizar as decisões do presidente em exercício. Temer escolheu alguns excelentes quadros para a economia e acertou na direção das primeiras medidas fiscais, mas já coleciona um número impressionante de erros. Mesmo com falhas, é um governo constitucional, como é o da presidente afastada.

Aquestão que se coloca não é a da legitimidade constitucional, mas da qualidade das decisões. Um ministro da transparência nada transparente em relação às conversas com lideranças envolvidas na Lava-Jato é um dos erros. O presidente tentou mantê-lo mesmo diante das evidências de que ele tinha explicado ao presidente do Senado como ele deveria esconder informações da Procuradoria-Geral da República. No seu pedido de demissão, Fabiano Silveira diz que “não sabia da presença de Sérgio Machado”. Só se Machado tiver ficado transparente ao ponto da invisibilidade, porque Silveira dialogou com ele. Esse é o segundo ministro que cai. O primeiro foi Romero Jucá, que obviamente daria problema. E deu.

Outro erro foi a escolha do general Sérgio Etchegoyen para ministro-chefe da Secretaria de Segurança Institucional. O general foi aquele que soltou uma nota virulenta contra a Comissão da Verdade por ter colocado seu pai, o general Leo Etchegoyen, na lista dos 377 envolvidos com tortura. Mesmo sendo da ativa, quando são limitadas as possibilidades de manifestação política, o general disse que a Comissão da Verdade era “leviana”, porque “estabeleceu a covardia como norma e a perversidade como técnica acusatória” e definiu como “patético" o esforço da Comissão de “reescrever a história”. Não achando suficiente, ele está processando a Comissão da Verdade.

A CNV foi uma iniciativa do Estado brasileiro. É a Nação que precisa se encontrar com a sua História. Expressões como “covardia como norma” e “perversidade como técnica” são boas para definir a tortura que houve no governo militar, e não a tentativa de esclarecer esse crime. É mais uma submissão do poder civil à versão dos militares sobre a ditadura. Temer agora está na estranha situação de ter um dos seus ministros processando o Estado, que criou e manteve a CNV.

O presidente interino, Michel Temer, acha que boas indicações como fez para a Petrobras e o BNDES permitem que ele tenha nomeações políticas para outras estatais. É preciso não ter entendido a lição da Lava-Jato para aceitar indicação política para as empresas do setor elétrico. Lá, houve corrupção, exatamente porque o PMDB e o PT trataram a área como feudo. O governo diz que o critério será o da competência. O ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa foi escolhido dentro dos quadros da Petrobras e tinha fama de competente, mas foi para a diretoria para servir ao PP. O problema é o pedágio que o indicado tem que pagar ao partido que o indica.

Dilma fez uma desordem enorme nas contas públicas. Ao contrário do que ela diz, sua política econômica favoreceu mais os mais ricos, com os enormes subsídios ao capital, muito maiores do que as transferências para os mais pobres. No fim de semana, em entrevista, Dilma disse que nunca recebeu Marcelo Odebrecht no Alvorada, mas a agenda a desmentiu. Disse que ninguém previu a crise econômica, mas ela foi perguntada sobre isso em todas as entrevistas que deu em 2014. Dilma permanece em divórcio com os fatos.

Temer demonstrou que quer organizar a desordem fiscal mesmo sabendo que isso levará anos e que, na melhor das hipóteses, seu período será de 31 meses. Por outro lado, o governo tem dado sinais claros de retrocesso em várias áreas e fez escolhas muito infelizes.

As ‘jabuticabas’ do sindicalismo - JOSÉ PASTORE

O ESTADÃO - 31/05

Poucos são os empregados que conhecem a razão de pagar tanto dinheiro aos sindicatos laborais. Quando muito sabem que são descontados em um dia de salário por ano a título da contribuição sindical (imposto sindical). A cobrança é obrigatória para quem é e quem não é filiado ao sindicato. Isso é lei, não há o que reclamar. É uma jabuticaba brasileira.

Para quem ganha R$ 3 mil por mês, por exemplo, são R$ 100 anuais. E a cobrança não para aí, porque os sindicatos recolhem dos empregados, de uma só vez ou em parcelas, valores que chegam a 10% do salário a título de contribuição assistencial ou negocial. No caso em tela, isso dá mais R$ 300 por ano, descontados de forma generalizada, a despeito de decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior do Trabalho, que limitam essa cobrança aos empregados filiados dos sindicatos e que assim concordarem.

Além dessas duas contribuições, há a associativa – de valores variados, para os filiados dos sindicatos – e a confederativa, que é cobrada para a manutenção do sistema confederativo. São quatro contribuições! Para o empregado que ganha R$ 3 mil por mês, pode-se estimar um dispêndio anual de, no mínimo, R$ 500.

Será que todos os empregados estão de acordo com essas cobranças? Para quem discorda, o primeiro passo é calcular exatamente o quanto de seu salário vai para entidades sindicais, que muitas vezes nem conhecem.

É claro que os sindicatos precisam de dinheiro para formar líderes, promover campanhas salariais, atuar nos poderes públicos e prestar serviços aos seus representados. Sei que muitos fazem tudo isso com rara competência. Mas, como em qualquer outra associação, agremiação ou clube, só deveria pagar quem é filiado ou os que aprovarem o referido pagamento em assembleias democráticas.

As jabuticabas não param aí. Por força de um dispositivo constitucional (artigo 8.°), os sindicatos brasileiros não têm nenhuma obrigação de prestar contas do que gastam aos seus filiados ou representados, nem mesmo ao Poder Público. Você já viu algum balanço anual de sindicato publicado em jornal de grande circulação?

Em nenhuma parte do mundo entidades que recebem recursos públicos estão isentas da responsabilidade de prestar contas aos poderes constituídos e aos seus representados (José Pastore, Reforma sindical: para onde o Brasil quer ir?, São Paulo: Editora LTR, 2003). No Brasil, essa estranha prerrogativa é garantida pela Constituição Federal. Os sindicatos podem fazer o que quiserem com o que arrecadam, até mesmo se engajar em campanhas políticas com apoio a este ou àquele candidato. Você, caro eleitor, alguma vez foi consultado sobre o uso do seu dinheiro para apoiar candidatos ou movimentos sociais?

Nos Estados Unidos, os professores da Califórnia estão neste momento na Suprema Corte pedindo para não pagar contribuições aos sindicatos que usam seus recursos em campanhas políticas que contrariam os seus princípios. Tudo indica que a Corte proibirá a cobrança de professores não sindicalizados.

O Brasil chegou perto de resolver esses problemas quando, em 2003, representantes dos empregados, empregadores e governo, reunidos no Fórum Nacional do Trabalho, firmaram um acordo para eliminar gradualmente a cobrança das contribuições compulsórias, ampliando, no mesmo ritmo, a cobrança de contribuições voluntárias, com a aprovação e controle dos representados. Lula engavetou o histórico acordo que, no fundo, era e é a espinha dorsal da reforma sindical. Sem isso não há como ter no País sindicatos representativos e como fazer valer as regras básicas da democracia.

Sei que o tema é espinhoso. Mas é preciso mudar. O Brasil não pode insistir em querer ser o único certo em todo o mundo.

*É professor da Universidade de São Paulo, presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomercio-SP e membro da Academia Paulista de Letras

O paradoxo de Temer - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 31/05

Mais uma vez o presidente interino, Michel Temer, titubeou para demitir um ministro envolvido em revelações que o inviabilizavam no cargo. O que mais preocupa não é simplesmente a tibieza que Temer vem revelando, que não se esvai com um tapa alegórico na mesa. A razão desse comportamento é que está no centro das atenções.

Ele foi aconselhado a não incluir no Ministério pessoas investigadas nas diversas operações criminais em curso, especialmente a Lava-Jato. Também não deveria acatar sugestões de políticos expostos a essas investigações, muito menos dos presidentes da Câmara (afastado), Eduardo Cunha, e do Senado, Renan Calheiros, ambos com pencas de processos no Supremo Tribunal Federal (STF).

Mas as ligações políticas de longo alcance com toda essa cúpula do PMDB impedem que Temer tenha a independência que o momento exige de um presidente que assumiu o cargo interinamente, devido ao impedimento de uma presidente que, apanhada em desvios fiscais graves, tem, além de tudo, o envolvimento carnal com um partido, o PT, metido em todo tipo de falcatrua.

Curiosamente acontece com Temer o mesmo que com Dilma: o seu entorno está todo contaminado por denúncias de corrupção, com raras exceções, mas as acusações diretas contra ele são ainda tênues. No caso dela, são mais consistentes, até mesmo pelo domínio dos fatos que ela detinha desde que era ministra de Minas e Energia e chefiava o Conselho de Administração da Petrobras. Mas, assim como Dilma está sendo, ele também poderá ser atingido letalmente por delações premiadas ou gravações clandestinas.

Portanto, Temer não tem as mãos livres para agir com desenvoltura neste momento em que depende do apoio do Senado, para confirmar o impedimento definitivo da presidente afastada, e também do Congresso, para aprovar medidas econômicas impopulares, mas decisivas. Por isso ele tem que, ao mesmo tempo em que negocia com políticos, manter a sociedade esperançosa de novos dias, tarefa difícil que às vezes pode ser até mesmo paradoxal.

Nada menos transparente do que a reunião que Fabiano Silveira teve com o presidente do Senado, cuja gravação foi revelada pelo “Fantástico”, da Rede Globo, no domingo. O teor das conversas não deixava dúvidas de que o novo ministro estava orientando seu “chefe” da ocasião a como escapar dos procuradores da Lava-Jato.

Parece pouco provável que ele, como chegou a alegar, não soubesse quem era o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado, mas isso é o de menos. O que revelou o grau de comprometimento de Silveira com o presidente do Senado foi a sugestão para que Renan Calheiros não entregasse ao Ministério Público sua defesa detalhada, evitando assim que os procuradores tivessem base para contestá-la e investigá-lo.

Outro ponto crucial das gravações foi o relato do presidente do Senado de conversas que Fabiano Silveira mantivera com membros do MP, com intuito de sondar o que eles teriam contra Renan Calheiros. Isto é, Silveira, que àquela altura era membro do Conselho Nacional de Justiça indicado pelo próprio Renan Calheiros, usava sua posição para obter informações que beneficiassem quem o indicou.

E assim supostamente agiria no Ministério da Transparência, uma pasta fundamental no combate à corrupção, percepção que retira do ministro sua autoridade moral. O presidente Temer tem um duplo desafio pela frente: recuperar a credibilidade da economia e a imagem do Brasil como um país confiável e seguro como ambiente de negócios.

Recuperar a economia requer esforços e fórmulas que estão sendo encaminhadas pela equipe econômica, em conjunto com áreas estratégicas do governo. Já encaminharam medidas de forte impacto positivo. A recuperação da credibilidade — interna e externa — suscita, porém, para além da agenda econômica, a importância da agenda anticorrupção do governo Temer.

E essa agenda tem sustentação não apenas na opinião pública, o que já não seria pouco, mas num conjunto de exigências internacionais de investidores que buscam ambientes transparentes e seguros para negócios. Países corruptos são tidos como refratários aos investidores internacionais e propensos à insegurança jurídica.

A Justiça e os decaídos - SÉRGIO FERNANDO MORO

O Estado de S. Paulo - 31/05
Tommaso Buscetta é provavelmente o mais notório criminoso que, preso, resolveu colaborar com a Justiça. Um detalhe muitas vezes esquecido é que ele foi preso no Brasil, onde havia se refugiado após mais uma das famosas guerras mafiosas na Sicília. No Brasil, continuou a desenvolver suas atividades criminosas por meio do tráfico de drogas para a Europa. Por seu poder no Novo e no Velho Mundo, era chamado de “o senhor de dois mundos”.

Após sua extradição para a Itália, o célebre magistrado italiano Giovanni Falcone logrou convencê-lo a se tornar um colaborador da Justiça. Suas revelações foram fundamentais para basear, com provas de corroboração, a acusação e a condenação, pela primeira vez, de chefes da Cosa Nostra siciliana. No famoso maxiprocesso, com sentença prolatada em 16/12/1987, 344 mafiosos foram condenados, entre eles membros da cúpula criminosa e o poderoso chefão Salvatore Riina, que, pela violência de seus métodos, ganhou o apelido de “a besta”. Para ilustrar a importância das informações de Tommaso Buscetta, os magistrados italianos admitiram que, até então, nem sequer conheciam o verdadeiro nome da organização criminosa. Chamavam-na de Máfia, enquanto os próprios criminosos a chamavam, entre si, de Cosa Nostra.

Sammy “Bull” Gravano era o braço direito de John Gotti, chefe da família Gambino, uma das que dominavam o crime organizado em Nova York até os anos 80. Gotti foi processado criminalmente diversas vezes, mas sempre foi absolvido, obtendo, em decorrência, o apelido na imprensa de “Don Teflon”, no sentido de que nenhuma acusação “grudava” nele. Mas, por meio de uma escuta ambiental instalada em seu local de negócios e da colaboração de seu braço direito, foi enfim condenado à prisão perpétua nas Cortes federais norte-americanas, o que levou ao desmantelamento do grupo criminoso que comandava.

Mario Chiesa era um político de médio escalão, responsável pela direção de um instituto público e filantrópico em Milão. Foi preso em flagrante em 17/2/1992, por extorsão de um empresário italiano. Cerca de um mês depois, resolveu confessar e colaborar com o Ministério Público Italiano. Sua prisão e colaboração são o ponto de partida da famosa Operação Mãos Limpas, que revelou, progressivamente, a existência de um esquema de corrupção sistêmica que alimentava, em detrimento dos cofres públicos, a riqueza de agentes públicos e políticos e o financiamento criminoso de partidos políticos na Segunda República italiana.

Nenhum dos três indivíduos foi preso ou processado para se obter confissão ou colaboração. Foram presos porque faziam do crime sua profissão. Tommaso Buscetta foi preso pois era um mafioso e traficante. Gravano, um mafioso e homicida. Chiesa, um agente político envolvido num esquema de corrupção sistêmica em que a prática do crime de corrupção ou de extorsão havia se transformado na regra do jogo. Presos na forma da lei, suas colaborações foram essenciais para o desenvolvimento de casos criminais que alteraram histórias de impunidade dos crimes de poderosos nos seus respectivos países.

Pode-se imaginar como a história seria diferente se não tivessem colaborado ou se, mesmo querendo colaborar, tivessem sido impedidos por uma regra legal que proibisse que criminosos presos na forma da lei pudessem confessar seus crimes e colaborar com a Justiça.

É certo que a sua colaboração interessava aos agentes da lei e à sociedade, vitimada por grupos criminosos organizados. Essa é, aliás, a essência da colaboração premiada. Por vezes, só podem servir como testemunhas de crimes os próprios criminosos, então uma técnica de investigação imemorial é utilizar um criminoso contra seus pares. Como já decidiu a Suprema Corte dos EUA, “a sociedade não pode dar-se ao luxo de jogar fora a prova produzida pelos decaídos, ciumentos e dissidentes daqueles que vivem da violação da lei” (On Lee v. US, 1952).

Mas é igualmente certo que os três criminosos não resolveram colaborar com a Justiça por sincero arrependimento. O que os motivou foi uma estratégia de defesa. Compreenderam que a colaboração era o melhor meio de defesa e que, só por ela lograriam obter da Justiça um tratamento menos severo, poupando-os de longos anos de prisão.

A colaboração premiada deve ser vista por essas duas perspectivas. De um lado, é um importante meio de investigação. Doutro, um meio de defesa para criminosos contra os quais a Justiça reuniu provas categóricas.

Preocupa a proposição de projetos de lei que, sem reflexão, buscam proibir que criminosos presos, cautelar ou definitivamente, possam confessar seus crimes e colaborar com a Justiça. A experiência histórica não recomenda essa vedação, salvo em benefício de organizações criminosas. Não há dúvida de que o êxito da Justiça contra elas depende, em muitos casos, da traição entre criminosos, do rompimento da reprovável regra do silêncio. Além disso, parece muito difícil justificar a consistência de vedação da espécie com a garantia da ampla defesa prevista em nossa Constituição e que constitui uma conquista em qualquer Estado de Direito. Solto, pode confessar e colaborar. Preso, quando a necessidade do direito de defesa é ainda maior, não. Nada mais estranho. Acima de tudo, proposições da espécie parecem fundadas em estereótipos equivocados quanto ao que ocorre na prática, pois muitos criminosos, mesmo em liberdade, decidem, como melhor estratégia da defesa, colaborar, não havendo relação necessária entre prisão e colaboração.

Na Operação Lava Jato, considerando os casos já julgados, é possível afirmar que foi identificado um quadro de corrupção sistêmica, em que o pagamento de propina tornou-se regra na relação entre o público e o privado. No contexto, importante aproveitar a oportunidade das revelações e da consequente indignação popular para iniciar um ciclo virtuoso, com aprovação de leis que incrementem a eficiência da Justiça e a transparência e a integridade dos contratos públicos, como as chamadas Dez Medidas contra a Corrupção apresentadas pelo Ministério Público ou outras a serem apresentadas pelo novo governo. Leis que visem a limitar a ação da Justiça ou restringir o direito de defesa, a fim de atender a interesses especiais, não se enquadram nessa categoria.

*Sérgio Fernando Moro é juiz federal

A esquerda e a universidade - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 31/05

SÃO PAULO - "O fato de que (...) sejam `gratuitos´também os estabelecimentos de ensino superior significa tão somente que as classes altas pagam suas despesas de educação às custas do fundo de impostos gerais". Se interpretarmos a frase acima segundo o "Zeitgeist" (espírito do tempo) atual, concluiremos que ela partiu de um neoliberal, ou, pior, de um membro do governo Temer -ambos incapazes de esconder seu ranço direitista.

Seria uma boa aposta. O novo ministro da Educação, afinal, já insinuou que seria favorável à cobrança de mensalidades para alguns tipos de curso em universidades públicas. No mais, estaria no DNA da direita tentar destruir conquistas sociais como a "universidade pública gratuita e de qualidade".

Como o mundo é sempre mais complicado do que nossas palavras de ordem, sinto-me obrigado a revelar que a frase não tem como autor um entusiasta do Estado mínimo como Milton Friedman ou Friedrich Hayek, mas o insuspeito Karl Marx. Ela consta da "Crítica ao Programa de Gotha", de 1875, em que o pai do comunismo faz comentários às teses que os social democratas alemães defenderiam no congresso do partido.

E as críticas do pensador alemão não param por aí: "Isso de `educação popular a cargo do Estado´é completamente inadmissível. (...) Longe disso, o que deve ser feito é livrar a escola tanto da influência por parte do governo como por parte da igreja".

Como todos os filósofos que pretenderam criar sistemas, Marx cometeu alguns equívocos graves, mas isso não tira dele o mérito de ter sido um grande sociólogo e um arguto observador da realidade. Ao criticar a "universidade pública gratuita", ele só viu o que ela de fato representa: um subsídio que os mais pobres dão aos mais ricos -algo que não combina muito com as ideias socialistas. Seria interessante tentar entender como a esquerda contemporânea ficou tão míope nessa matéria.

A multiplicação de patetas - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 31/05

De Sarney a Lula, de Dilma a Renan, o que choca é a naturalidade da conivência, o ambiente de cumplicidade, a consciência de ilícitos, sem lembrança do interesse público



A conversa ganhou um tom confessional:

— O Michel, presidente... Eu contribuí pro Michel.

— Hum...

— Não quero nem que o senhor comente com o Renan. Eu contribuí pro Michel pra candidatura do menino... Falei com ele até num lugar inapropriado... na Base Aérea.

— Mas alguém sabe que você me ajudou?

— Não, sabe não. Ninguém sabe, presidente.

Com oito décadas e meia de vida, seis delas dedicadas ao artesanato da imagem de raposa política, o ex-presidente José Sarney conversou com o aliado Sérgio Machado com a naturalidade de quem se imagina com poder de influir sobre ministros do Supremo ou qualquer magistrado. Efeito, talvez, de meio século de interferências em indicações, promoções e remoções de juízes.

Na intimidade caseira, assentado na longa convivência e conivência com Machado, sentiu-se confortável para confessar a “ajuda” secreta do ex-presidente da Transpetro, que sabia estar sob investigação por corrupção em negócios feitos durante uma década no grupo Petrobras.

Trombou no gravador ambulante e, pela própria voz, colocou-se sob suspeitas. A “contribuição” sigilosa e outras transações agora devem ser expostas pelo mais novo “colaborador do complexo investigatório denominado Caso Lava-Jato” — identificação de Machado no acordo recém-homologado pelo juiz Teori Zavascki.

Hipocondríaco, Sarney procurava um elixir político, como também faziam Lula, Dilma Rousseff, Renan Calheiros, Romero Jucá e outros do PT, PMDB, PP e PSDB. Lula, por exemplo, começara o ano mobilizando sua tropa aliada no Congresso para modificar a essência das leis sobre colaboração de pessoas físicas e empresas. A origem delas remonta a abril de 1989 na Câmara, na comissão criada por iniciativa de Miro Teixeira, com participação de Michel Temer, relator, do então deputado Sigmaringa Seixas, hoje advogado de Lula, e José Genoino, ex-presidente do PT.

Lula, com a mesma singeleza de Sarney, julga decisivo o seu seu poder de influência. Na manhã de segunda-feira, 7 de março, por exemplo, queixava-se ao prefeito do Rio, Eduardo Paes, dos “meninos” do Ministério Público: “Eles se sentem enviados de Deus”. Paes concordou: “Os caras do Ministério Público são crentes, né?”. Lula reforçou: “É uma coisa absurda (...) Eu acho que eu sou a chance que esse país tem de brigar com eles pra tentar colocá-los no seu devido lugar. Ou seja, nós criamos instituições sérias, mas tem que ter limites, tem que ter regras...” Antes de dormir, falou ao advogado Sigmaringa Seixas de sua frustração com Rodrigo Janot. Lula entendia que ele tinha um dever a cumprir, a genuflexão em agradecimento por nomeá-lo procurador-geral da República: “Essa é a gratidão... Essa é a gratidão dele por ele ser procurador” — lamentou.

De Sarney a Lula, de Dilma a Jucá e Renan, os grampos escandalizam porque expõem o modo arcaico de se fazer política no Brasil. Há delitos previstos no Código Penal. Chocante, porém, é a naturalidade da conivência, o ambiente de cumplicidade, a consciência de ilícitos dos agentes públicos. É notável que os diálogos gravados não contenham sequer resquícios de lembrança do interesse público, ou mesmo referências à honestidade. Convergem na intenção de “acabar” com as investigações, em autodefesa. Talvez seja o milagre da multiplicação de patetas.

Por que Dilma não pode voltar - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 31/05
A presidente Dilma Rousseff parece acreditar que, ao se manifestar sobre seu governo e seu afastamento, angaria simpatia e, assim, afasta a hipótese altamente provável de seu impeachment. Sempre que a petista abre a boca, porém, fica claro para o País que, se seu governo já foi desastroso, seu eventual retorno à Presidência seria um cataclismo, pois a administração seria devolvida a quem se divorciou completamente da realidade. No mundo em que vive, Dilma se confunde com Poliana: não cometeu nenhum erro, não é responsável pela pior crise econômica da história brasileira e só foi afastada em razão de um complô neoliberal operado pelo deputado Eduardo Cunha, e não porque a maioria absoluta dos brasileiros exige seu impeachment.

“Temos que defender o nosso legado”, disse à Folha de S.Paulo a presidente responsável por recessão econômica, desemprego crescente, inflação acima da meta e contração da atividade, do consumo e do investimento, além de um rombo obsceno nas contas públicas. Foi essa herança, maldita em todos os sentidos, que criou o consenso político em torno do qual o Congresso faz avançar o impeachment. Assim, quando fala em seu “legado”, não é à dura realidade que Dilma está se referindo, mas sim à farsa segundo a qual seu governo beneficiou os mais pobres – justamente aqueles que mais sofrem com a crise que ela criou.

Na entrevista, Dilma sugere que seu “legado” é a manutenção de programas sociais, o que estaria sob risco no governo de Michel Temer, instituído como parte de uma conspiração para instalar no Brasil uma “política ultraliberal em economia e conservadora em todo o resto”. A desmontagem da rede de proteção aos mais pobres seria, segundo ela, o objetivo dos “golpistas”. Dilma atribui aos adversários a intenção de fazer o que ela própria já estava realizando na prática: todos os principais programas sociais de seu governo sofreram cortes nos últimos anos, em razão da falta de dinheiro.

Especialista em destruir os fundamentos da economia, Dilma achou-se autorizada a comentar as possíveis medidas do governo Temer para tentar recuperar um pouco da racionalidade econômica que ela abandonou. Dilma disse ser “um absurdo” a possibilidade de que a imposição de um teto para os gastos públicos atinja áreas como educação. Para ela, “abrir mão de investimento nessa área, sob qualquer circunstância, é colocar o Brasil de volta no passado”. Foi esse tipo de pensamento, segundo o qual há gastos que devem ser mantidos “sob qualquer circunstância”, que condenou o Brasil a um déficit público superior a R$ 170 bilhões.

Ainda em seu universo paralelo, Dilma disse que em 2014 ninguém notou que o País já passava por uma crise, embora o descalabro estivesse claro para quem procurou se informar. “Quando é que o pessoal percebeu que tinha uma crise no Brasil, hein? A coisa mais difícil foi descobrir que tinha uma crise no Brasil”, disse ela, desafiando a inteligência alheia de forma grosseira até para seus padrões. Bastaria ler os documentos de análise da economia produzidos regularmente pelo Banco Central para constatar o desastre desde sua formação até o seu fiasco final com o episódio Joaquim Levy. Ela prefere imputar as mazelas da economia em seu governo à desaceleração da China, à queda do preço do petróleo, à seca no Sudeste e a um complô da oposição e de Eduardo Cunha, que, segundo suas palavras, é “a pessoa central do governo Temer”. Ou seja: para Dilma, se Cunha por acaso não existisse, ela ainda estaria na Presidência, e a crise, superada.

“A crise econômica é inevitável”, ensinou Dilma na entrevista. “O que não é inevitável é a combinação danosa entre crise econômica e crise política. O que aconteceu comigo? Houve uma combinação da crise econômica com uma ação política deletéria.” Segundo a petista, o Congresso, dominado por forças malignas que tinham a intenção de criar um “ambiente de impasse propício ao impeachment”, sabotou todas as “reformas” que ela queria aprovar. Ou seja, Dilma teima em não reconhecer que o clima hostil que ela enfrentou no Congresso foi resultado de sua incrível incompetência administrativa, potencializada por descomunal inabilidade política e avassaladora arrogância. Prefere denunciar a ação de “inimigos do povo” contra seu governo.

Finalmente, convidada a dizer quais erros acha que cometeu, Dilma respondeu: “Ah, sei lá”.

As mal-ajambradas explicações de Dilma - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 31/05

Em entrevista, Dilma repete a visão delirante do ‘golpe’ e ainda defende a ideia risível de que em 2014 era muito difícil perceber que o Brasil estava em crise. Não lia jornais



Antes de ser afastada da Presidência, no início da manhã de 12 de abril, Dilma Rousseff, entrincheirada no Planalto, cumpriu uma intensa agenda de comícios indoor, em que, inflamada, repetiu a tese ilusória de que estava sendo vítima de um “golpe”.

Não adiantou. O Senado acolheu o pedido de impeachment por crimes de responsabilidade, devido a infrações graves contra o princípio da responsabilidade fiscal e a lei orçamentária, passando a correr o prazo de até 180 dias para seu efetivo julgamento pela Casa, sob a presidência do ministro responsável pelo STF, Ricardo Lewandowski.

A presidente afastada guardou algum silêncio até este domingo, com a publicação de uma entrevista à “Folha de S.Paulo”, em que aproveitou para desdobrar a tese esperta do “golpe” — comprada internamente por militantes, e, no exterior, por aliados, simpatizantes e desavisados —, colocando-se, mais uma vez, como vítima do deputado, também afastado, Eduardo Cunha. Convém apresentar-se como alvo de uma unanimidade nacional — negativa.

Dilma bate na tecla, também nada verossímil, de que o impeachment visa a desmontar a Lava-Jato, como se ela, Lula e o PT não houvessem tramado contra a Operação. O mais lógico, e menos custoso, seria eles reforçarem a aliança com certas parcelas do PMDB em torno deste objetivo comum.

Outro falseamento da realidade — já explorado por Dilma — é culpar a oposição por criar obstáculos a tentativas de o governo enviar reformas ao Congresso. Ora, os governos do PT se notabilizaram por evitar e sabotar reformas. Com a exceção de mudanças no sistema previdenciário do servidor público, iniciadas no primeiro mandato de Lula e completadas apenas em fins de 2015, já no segundo mandato de Dilma. Demorou muito.

Mais dessintonizada ainda da realidade foi a resposta da presidente afastada quando questionada sobre o fato de ter defendido um programa de governo na campanha à reeleição e aplicado outro, um caso irretocável de estelionato eleitoral.

Na visão edulcorada de Dilma, o governo e nem ninguém perceberam que o Brasil havia entrado em crise. Ora, ora. No ano da campanha, 2014, o PIB já desacelerava, o emprego rateava. Numa interpretação benévola com Dilma, ela deixou de ler a imprensa profissional a partir de 2012/13, desde quando veículos como O GLOBO começaram a alertar para os erros de política econômica e os consequentes sinais, cada vez mais fortes, de que viria uma explosão fiscal.

Se a presidente no aguardo do impeachment, assessores e seguidores esperavam melhorar de situação, com a entrevista, frustraram-se. Dilma continua a viver em um mundo próprio, em que a vida real se subordina à vontade política. Engano fatal, por certo.