domingo, maio 24, 2020

Pelos que rastejam - LEANDRO KARNAL

ESTADÃO - 24/05

Com sorriso permanente, o pequeno menino conseguiu tocar aquela alma viscosa

Leocádia é assistente de secretaria da Escola Estadual Professor Heitor Furtado de Mendonça, na Baixada Santista. Ela não está em uma situação tão ruim comparada à das irmãs. Seu emprego é estável. O salário é baixo, porém, somado ao do marido e sem pagar aluguel, ela vive uma vida mediana e sem necessidades estruturais.

Leocádia não é boa em muitas coisas, mas há algo no qual ela é notável. Do nascer ao pôr do sol (e segundo seu marido às vezes dormindo), ela reclama incessantemente. Reclama do transporte público apertado e com pessoas inconvenientes, lamenta a chuva que cai ou que não chega, ataca o frio e deplora o calor. Fala diariamente do horror da comida no quilo perto da escola onde trabalha. “Um verdadeiro grude de prisão”, diz. No campo pessoal, Leocádia tem ojeriza a seus colegas. Nossa secretária é absolutamente imersa no azedume cotidiano de sua vida. Sua boca só abre para emitir juízos negativos.

Assim viveu a funcionária da escola estadual durante anos. Na mesma toada crítica, redigiu atas de conselho e acompanhou semanas de planejamento pedagógico com o tom de lamúria eterna. “Leocadiar” virou dialeto da unidade, usado quando alguém ficava protestando de forma assertiva.

As aulas se iniciaram e tudo previa um ano como todos. Na quarta-feira, 11 de março, a diretora disse à secretária que receberia uma visita de um candidato definido como um “menino rastejante”. Ninguém teve qualquer compreensão do que se tratava. Era, como disse dona Nídia, alguém que não tinha dinheiro para ter uma cadeira de rodas. Ele não era um cadeirante; tratava-se de um rastejante. Carlos Henrique chegou no dia marcado, como previsto, arrastando-se pelos corredores. A cena comoveu até o pétreo coração de Leocádia.

Acostumado a ser alvo do olhar entre a piedade e horror, nada no rosto de Carlos denunciava o inusitado da sua mobilidade. Ele não reclamou e, desde o primeiro instante, manifestou uma alegria intensa, excepcional para aquilo que parecia visível no julgamento alheio: a desgraça de uma vida tocada pela pobreza e pela restrição física. Como todos perceberam nas semanas seguintes, o novo aluno estava sempre sorrindo, permanentemente tendo o rosto iluminado por uma atitude de felicidade. Ele agradecia a todos pela oportunidade de estudar e louvava os professores sempre. Logo se soube de mais detalhes: a família não tinha dinheiro para uma cadeira de rodas, no entanto, um dia, o almejado bem surgiu pela doação de uma rede de farmácias. Com a cadeira desejada, por quase uma semana, ele exultou. O mundo nem sempre é justo e um bando de marginais decidiu que poderia roubar do menino a cadeira de rodas na parada de ônibus. A família se inscreveu novamente em programas para obter o aparelho, porém recebeu caras de desconfiança como se tivesse vendido bem tão precioso. Carlos Henrique voltou a rastejar.

O sorriso permanente foi se tornando contagioso. A acérrima Leocádia começou a levar água para ele no seu trajeto pelo corredor. Ela se ocupou do caso e ajudou em uma campanha para doação de material escolar. A antiga mal-humorada passou a usar roupas mais alegres e, pela primeira vez em muitos anos, foi notado que ela cumprimentava alguém sem vociferar contra o clima ou o transporte. O pequeno menino alegre tinha conseguido tocar aquela alma viscosa e fez brotar dali como, em um milagre, uma pessoa um pouco mais leve.

Prosseguindo com seu novo self, a secretária promoveu um evento com rifa. O objetivo? Uma cadeira de rodas nova para o aluno. Foi um sucesso! Em uma sexta-feira cheia de alegria, chegou o cobiçado objeto. Carlos chorou, apesar de nunca ter pedido nada. Aquela que fora lamuriosa com ele pranteou, sob aplausos de toda a escola que vibrara com a transformação da mobilidade de um e da alma de outra. O menino rastejante conseguira sua ambicionada cadeira; Leocádia atingira a de espírito.

Há pouco, chegou uma moça para trabalhar na merenda e a novata revelou, desde cedo, um pendor para a crítica constante. Leocádia sorriu e chamou a funcionária em um canto para falar da beleza do mundo e das pessoas que possuem menos do que ela. E pensar que tudo começou quando um jovem sorridente rastejou escola adentro e metamorfoseou a pesada lagarta amarga em borboleta leve e feliz.

Meu estimado leitor e minha estimada leitora, Leocádia eu inventei no exercício ficcional. O menino rastejante existe, como outros na mesma situação. Cadeira de rodas não é tão acessível e muitas pessoas ficam imobilizadas em casa ou rastejam. Ver esse jovem real, creiam-me, ressignifica sua noção de crítica. Boa semana para todos nós que andamos e reclamamos...

Barulho por celular é farsa; quer ilusão de vitória. Machado para Bolsonaro - REINALDO AZEVEDO

UOL 24/05

A nota do general Augusto Heleno e a bravata de Jair Bolsonaro em seu destampatório depois da divulgação do vídeo constituem duas maneiras de declarar vitória quando estão perdendo o jogo. Explico.

Ao pé letra, a nota de Heleno ameaça com golpe. Nem seria tão difícil de dar o dito-cujo, caso houvesse consenso nas Forças Armadas. Não há. A dificuldade mesmo estaria em mantê-lo. Eles não conseguem organizar um plano para enfrentar o coronavírus, e não há consenso no próprio governo sobre o rumo econômico a tomar. Ou alguém acha que os militares acreditaram no palavrório de Paulo Guedes?

Sair dando tiro, prendendo e arrebentando, havendo soldadesca disposta e armas, bem, isso é relativamente fácil. A questão é governar depois. Quanto tempo duraria a aventura? O destino dos golpistas seria a cadeia. Ou juntar os corpos da guerra civil aos das vítimas da Covid-19.

O que está em pauta é outra coisa: uma tática de intimidação do Supremo.

Bolsonaro e Heleno sabem que estão, no caso do telefone, fazendo tempestade em copo d'água. O pedido para recolher o celular do presidente foi feito por deputados da oposição. É uma petição como qualquer outra. A obrigação do ministro do Supremo é encaminhar à Procuradoria Geral da República.

Eu estou entre aqueles, por exemplo, que avaliam, e já escrevi isso aqui e disse no rádio, que o pedido não procede com o que se tem até agora.

É certo que Augusto Aras vai opinar que o pedido é descabido. Aliás, imprudente, como sempre, Bolsonaro diz ter a certeza de que será essa a opinião do procurador. Faz parecer que uma decisão de caráter técnico é um arranjo.

Como certamente já lhe disseram que Mello dificilmente mandaria recolher seu celular, quer fazer parecer, de novo, que uma decisão técnica corresponde a um recuo do ministro, para que suas milícias digitais possam gritar: "Ficou com medo, ficou com medo!!!"

Basta esse joguinho vulgar para desqualificar essa gente toda no trato com a institucionalidade.

Sim, é evidente que se trata de uma tática para intimidar o Supremo. E não! Eu não acho que Mello, agora, deva, então, mandar recolher o celular só para mostrar quem manda. Tanto quanto possível, tem de esquecer a gritaria e decidir segundo a razoabilidade.

Para a investigação que está em curso no Supremo, o recolhimento do celular não se mostra, parece-me, necessário. Até porque a reunião revelou coisas muito mais graves. A intervenção ilegal na polícia federal, como resta claro, não fica caracterizada na reunião. O que se tem é a determinação de intervir em tudo, também na PF.

Estupidamente grave, reitero, é a confissão de que o presidente quer armar a população pensando num futuro confronto de natureza política. E a admissão, pelo presidente, de que ele tem um sistema particular de inteligência.

Quem sairá mal no retrato é Augusto Aras. Aposta que vai fazer de conta que nada aconteceu. Afinal, ele tinha com ele esse conteúdo e opinou que deveria permanecer em sigilo. Ele tentou escondê-lo da opinião pública.

Imagino Lula ou Dilma a fazer uma declaração com esse conteúdo. Ou o contrário disso: imaginem os petistas a dizer, na fase de implementação, que o Estatuto do Desarmamento buscava tirar armas do povo para ficar mais fácil implementar uma agenda política.

Isso é o que os paranoicos dizem sobre o Estatuto, mas nunca foi uma confissão.

Pois Bolsonaro confessou: suas portarias sobre armas têm um horizonte político. Afinal, como ele diz, "a liberdade é mais importante do que a vida".

MACHADO DE ASSIS

Ai, ai... Citarei Machado de Assis num texto que trata de Bolsonaro e do general Heleno. É para elevar o debate. No romance "Esaú e Jacó", o enterro de Flora, disputada ferrenhamente pelos gêmeos Pedro e Paulo -- moralmente, eles a mataram --, se dá durante a decretação do estado de sítio pelo presidente Floriano Peixoto.

E o estupendo Machado escreve:
"Não há novidade nos enterros. Aquele teve a circunstância de percorrer as ruas em estado de sítio. Bem pensado, a morte não é outra coisa mais que uma cessação da liberdade de viver, cessação perpétua, ao passo que o decreto daquele dia valeu só por 72 horas. Ao cabo de 72 horas, todas as liberdades seriam restauradas, menos a de reviver. Quem morreu, morreu. Era o caso de Flora; mas que crime teria cometido aquela moça, além do de viver, e porventura o de amar, não se sabe a quem, mas amar? Perdoai estas perguntas obscuras, que se não ajustam, antes se contrariam. A razão é que não recordo este óbito sem pena, e ainda trago o enterro à vista..."

Com o seu "liberalismo de baioneta", é evidente que Bolsonaro não saberá o tamanho da asneira que é opor a vida à liberdade. Quando se luta por liberdade, ARRISCANDO A VIDA (ISSO É OUTRA COISA), o que se quer é uma vida livre, não uma liberdade que vague sem corpo. Porque isso não existe.

Daí que Machado escreva: "A morte é a cessação da liberdade de viver". Sem vida, presidente, então se é livre para quê?

Mas, claro!, essa é uma pergunta feita por quem preza a vida.

Naquele dia 22, o da reunião macabra, já haviam morrido três mil pessoas. E havia 46 mil contaminados.

Não houve uma só palavra, de ninguém!, que denotasse solidariedade, empatia ou dor.

Um mês depois, doentes e cadáveres foram multiplicados por sete. E eles todos continuam a não dar a mínima para a "cessação da liberdade de viver".

Estão ocupados em ameaçar o país com golpe de estado.

A história não lhes será leve.

Armamentismo de Bolsonaro tem aroma venezuelano - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 24/05

Em política, nada do que se diz voluntariamente é tão importante quanto o que se ouve sem querer. Ao liberar o vídeo do strip-tease que Jair Bolsonaro chama de reunião do conselho do governo, o ministro Celso de Mello, do Supremo, permitiu que o país escutasse barbaridades que o presidente preferia esconder. Entre elas a teoria de que é preciso armar o povo para evitar um golpe. Essa pregação cheira mal. Tem um aroma venezuelano.

Hugo Chávez, o coronel autocrata da Venezuela morto em 2013, fundou em 2007 a Milícia Nacional Bolivariana. Hoje, esse grupo é a maior força armada do país. Reúne mais de 2 milhões de civis voluntários. Juram defender a Venezuela. Na verdade, compõem uma força paramilitar que ajuda a prolongar o regime ditatorial de Nicolás Maduro, o sucessor de Chávez.

Bolsonaro tem o hábito de criar assombrações para depois se assustar com elas. Na reunião com seus ministros, em 22 de abril, o capitão enxergou o fantasma de um golpe escondido atrás da política de isolamento social. E insinuou que deseja armar o brasileiro para que ele se desafie a autoridade de governadores e prefeitos.

"Como é fácil impor uma ditadura no Brasil! Como é fácil!", disse Bolsonaro. "O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua."

Se a coisa ficasse só no gogó seria apenas absurdo. Mas a pregação evoluiu para uma portaria, assinada pelo general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, e por Sergio Moro, então titular da pasta da Justiça. Elevou-se a quantidade de munição que um civil com porte de armas pode comprar. Antes, permitia-se a aquisição de 20 cartuchos por ano. Agora, pode-se adquirir até 300 unidades por mês, dependendo do calibre da arma.

"Eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine (sic) essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta! (sic) Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais!"

O fantasma que politiza o vírus, convertendo estratégia sanitária em golpismo, só existe nos delírios de Bolsonaro. Mas o desejo de criar uma legião de adoradores armados é tão real quanto inconstitucional. A Constituição brasileira concede ao Estado o monopólio da força. Ministros do Supremo ficaram de cabelo em pé e olhos abertos.

Um dos magistrados da Suprema Corte disse à coluna: "O presidente Bolsonaro tem pouco apreço pela imprensa livre e adora participar de manifestações em que proliferam as faixas pedindo o fechamento do Congresso e do Supremo. Alguém que coleciona derrotas judiciais já deveria ter compreendido que o Brasil não é a Venezuela."

Por uma trapaça da sorte, Nicolás Maduro também passou a tratar a cloroquina como uma poção mágica de grande utilidade na pandemia. Dias atrás, o ditador anotou no Twitter: "Felicito ao pessoal científico da Saúde de nosso país, que trabalha com boa fé e amor para proteger a saúde do povo. Com eles avançamos na produção do difosfato de cloroquina, fármaco eficiente para o tratamento contra o covid-19".

No Brasil de Bolsonaro, como se sabe, a paixão do presidente pela cloroquina ultrapassa todos os limites, inclusive os da ciência. O remédio fez com que dois médicos se dessem alta do Ministério da Saúde em plena pandemia: o ortopedista Henrique Mandetta e o oncologista Nelson Teich.

Os governantes costumam se diferenciar pelo que mostram e se assemelhar pelo que escondem. Na vitrine, Bolsonaro acha que é o avesso de Maduro. Entre quatro paredes, reunido com seus ministros, o capitão esgrime uma bula que o aproxima do seu contrário.


Felicito al personal científico de la salud de nuestro país, quienes trabajan con buena fe y amor para proteger la salud del pueblo. Con ellos avanzamos en la producción de Cloroquina Difosfato, fármaco efectivo para el tratamiento contra el Covid-19. ¡Sí Se Puede Venezuela! pic.twitter.com/Tsd9ZHbgau-- Nicolás Maduro (@NicolasMaduro) May 15, 2020

Ilha internacional - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo - 24/05

Um estoque de canções francesas, tangos, fados e boleros para o confinamento

Os menores de idade podem não acreditar, mas houve tempo em que a música popular não se limitava ao rock, jazz, pop, soul e rap. Todos os países tinham os seus ritmos e, até meados dos anos 60, eles circulavam entre si. Na vitrola de qualquer família brasileira rodavam tangos, boleros, mambos, fados, valsas vienenses, canções francesas e italianas e até música havaiana. Éramos particularmente cosmopolitas.

Por isso, e encerrando essa série de listas de discos a levar para uma ilha deserta —a quarentena—, eu capturaria também cantores internacionais sem os quais não gostaria de viver. O francês Yves Montand, por exemplo. Quem o conhece de "C'est Si Bon" ou "Paris Canaille" sabe o que quero dizer. Levaria também Georges Brassens, mas combinei com a Gato Preto ficar em um cantor por país.

Em termos, não? Da Argentina, eu não abriria mão de Virginia Luque, para cantar "Nostalgias" e "Cambalache", mas daria um jeito de contrabandear um grupo instrumental, o Sexteto Mayor, por sua interpretação de "Adiós Nonino". E, de Portugal, o fadista Alfredo Marceneiro, que tive a sorte de escutar a um metro de distância, numa quinta perto de Lisboa, em 1973, aos 85 anos, cantando o "Fado Cravo".

Boleros? Quem superava os cubanos? Eu levaria Antonio Machín, que arrasava em "Angelitos Negros" e "Piel Canela", e a fabulosa Freddy, com seus 150 quilos, que fez de "The Man I Love" "El Hombre Que Yo Amé" e estamos conversados. Mas sabendo que o chileno Lucho Gatica dos anos 50 e 60 também era difícil de bater —vide "Frenesi".

E tenha um susto ao descobrir a quase secreta chilena paulistana Madalena de Paula. Seu único álbum, "Sophisticated Lady", de 1979, em que ela canta em inglês, francês, espanhol, alemão e português, está inteiro na internet. Mas se só tivesse uma faixa —"Joana Francesa"— compensaria por todo mundo que eu deixaria para trás.

Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

fazer lives - MARTHA MEDEIROS

O GLOBO - 24/05

Não tem sido fácil — nada tem sido — mas é nosso dever seguirmos vivos no jogo. I’m alive


Tecnologia não é meu forte. Além da inaptidão, tem muita preguiça envolvida. Nada sei sobre cabos, operadoras e filtros. Nem mesmo sei de onde vem e quem paga a internet aqui de casa (desconfio que eu mesma), e, apesar de ter um notebook novinho, de vez em quando ainda escrevo num desktop com Windows 7 sem suporte técnico: a qualquer momento, sumirão todos os meus arquivos. Até meses atrás, não tinha backup. Calma, hoje eu tenho. Obrigada, filha.

Em tempos de distanciamento social, eis que surge um novo desafio: fazer lives.

A primeira foi com a jornalista Patricia Parenza, e, agora que passou, já consigo lembrar sem cair no choro. Sentei no chão da minha biblioteca (não me faça perguntas difíceis como "por que no chão?") e empilhei vários livros onde apoiei o celular e dois copos d´água: andava mal da garganta. Quando Patricia surgiu no vídeo, estava bela e iluminada como Nossa Senhora, enquanto eu estava em meio às trevas, só se enxergavam meus olhinhos aflitos. Então, acendi as lâmpadas dicroicas do teto e fiquei parecida com o ex-ministro Nelson Teich, as olheiras vinham no pé. Como nada está tão mal que não possa piorar, um gerador explodiu na rua e caiu a energia elétrica. No breu, sabiam que eu continuava ali porque tossia entre uma frase e outra.

Patricia, que é uma lady, me presenteou no dia seguinte com um ring light: um anel de luz que faz a gente se sentir em um camarim. Meus problemas acabaram, pensei, e me animei a conversar com a querida Jackie de Botton, diretora da School of Life Brasil. Jackie começou a transmissão 15 minutos antes do combinado para que ajustássemos alguns detalhes, e acreditei que ninguém estava nos vendo ainda - não ria, por ignorância já se fez coisa bem pior neste país. Passei a chamar minha filha, aos gritos, para que viesse até a sala me ajudar (ela estava me assistindo do quarto, em choque), mas nada se comparou ao fato de estarmos sem conexão e eu ter achado que isso não atrapalharia o bate-papo.

Dias depois, estava dividindo a tela do meu celular com Mônica Martelli, que tem quase 2 milhões de seguidores - desta vez o vexame seria épico. Sentei à mesa da sala de jantar, a alguns quilômetros de distância do meu roteador. Acho que foi por isso que a imagem travou e o áudio falhou, mas seguimos assim mesmo, aos tropeços, como se eu estivesse em Marte.

O que aprendi? Que meus leitores são um arraso. Não arredaram pé e seguiram confiando no borrão onde deveria estar meu rosto. Graças ao incentivo deles, fiz novas lives em que me saí melhor, e os convites continuam chegando (inclusive, na terça, dia 26, repetirei a live com Jackie. Te devo esta, amiga). O jeito é ir em frente, sem esquecer de rir das desventuras. Não tem sido fácil - nada tem sido -, mas é nosso dever seguirmos vivos no jogo. I´m alive.

Um novo mundo - LYA LUFT

ZERO HORA - 24/05

Teremos uma humanidade transformada depois da pandemia?


Muito se fala, se pensa, se argumenta sobre isso: depois de passada ou aquietada essa pandemia do coronavírus, teremos um mundo novo, um mundo diferente, uma humanidade transformada, um pouco recauchutada, pior ou melhor?

Em geral sou otimista, o que me permitiu viver bastante bem uma vida já longa, cheia de ganhos e perdas, como a de todo mundo. Pessoalmente, não creio que a gente saia muito melhorada, exceto alguns cuidados de higiene, não atropelar uns aos outros... sei lá. Cuidar mais da saúde, do povo, cuidar mais dos miseráveis e pobres, que são os mais vulneráveis. Mas vejo tanta raiva, tanto horror ao estrangeiro e ao diferente, tanta acusação, tanta irritação que, sem ter um objeto fixo, se lança sobre qualquer um - que não creio muito numa grande melhora na hostilidade geral.

Ao contrário, talvez a gente seja ainda mais egoísta e bairrista, curtindo uma horrorosa xenofobia. Você é de outro edifício, outra rua? Se desinfete por favor, o álcool gel está na porta. Outro bairro? Outra cidade, Estado, região? Outro país? Caia fora, não venha me trazer doença. Talvez no futuro a gente nem lembre mais do corona, mas tenha medo de qualquer pessoa não próxima: seremos tribos isoladas, rangendo os dentes e brandindo paus para quem se aproximar vindo de fora. E não será nem por medo de que roube nossos territórios ou nossos tesouros, mas nossa saúde... ah, aquele vírus.

Estudar, comer, dançar (os furiosos que seremos ainda vão saber dançar?), ir ao cinema, sentar no sofá da sala - tudo com fita métrica na mão: dois metros de distância, ou pouco menos. Vidinha sem graça. Licença para abraçar, transar só para perpetuação da espécie. O resto, muito suspeito, e os vírus, e os vírus?

Seremos mais religiosos, ou transcendentais, ou caridosos, fraternos? Também não sei. Para muitos, a contenção de festas, passeios, despesas, rua, pode significar uma real interiorização também na alma, nos amores. Há quem me diga: descubro cada dia novas qualidades nos meus filhos, novo encanto na minha mulher, nova qualidade no meu marido. Outros, porém, convivem como animais selvagens numa gaiola estreita. Talvez não se ataquem concretamente, mas quanto desejo mau, quanto rancor secreto, quanta palavra maldosa contida na boca que se fecha amargurada.

Enfim, não sabemos, e de momento sou dos que duvidam: sim? Não? Vamos melhorar ou piorar, ou desaparecer do mapa? Possivelmente vamos continuar, cheios de conflito, medo, esperança, alguns milímetros mais humanos... Seja o que for que isso vá significar. Ou ainda achando que tudo aquilo foi histeria e exagero? Ou bem piorados, sussurra o diabinho que às vezes pousa no meu ombro. Vai ser apenas este nosso velho mundinho, mais torto, mais medroso, e um pouco mais raivoso, cheio de ódio e acusações.

Mas vamos ser otimistas: quem sabe será um mundo novo com gente mais amena, mais criativa, mais trabalhadora, mais artística, mais espiritualizada porque passou esse grande susto... Mais amiga e mais bonita porque mais feliz...

Ah, nossos bebês vão começar a nascer mascarados?¶Isso nem os deuses sabem.


Bolsonaro, o Absolutista - ROBERTO ROMANO

O Estado de S.Paulo - 24/05

Líderes bisonhos desejam, mas não possuem saberes para instalar uma ditadura


Jair Bolsonaro exibe notórios traços autoritários já desde antes de sua eleição. Elogia o regime instaurado em 1964 e a tortura, atua contra os direitos cidadãos e, sobretudo, zomba dos direitos humanos. Tais marcas são visíveis para todos, impossível ignorar discursos e gestos, incluindo as mãos prontas para acionar armas.

O projeto de poder que o conduz é simplório e demagógico, mas contém em seu bojo séculos de pensamento contrário à democracia, ao liberalismo, à modernidade. Mas somente no exercício do cargo máximo da República ele revela todo o ranço reacionário e liberticida que move o seu ânimo.

Em ato de que foi cúmplice, o presidente deu ultimato aos demais Poderes: ou seguem o seu ditado ou aceitam o peso das Forças Armadas, que o apoiam. Tal ameaça piora quando diz que a Constituição será obedecida e, notemos, ele é a Constituição. Com a frase Bolsonaro retoma as teses teológico-políticas do século 17 inglês, em especial as de Tiago I. Para aquele monarca, rex est lex (o rei é a lei). Desde aquele tempo ocorre a luta entre juízes independentes, Parlamentos e governos despóticos (B. Bourdin: Theological-Political Origins of the Modern State). Em cada lance histórico um deles obtém hegemonia sobre os demais. Em cada novo movimento de controle estatal surge um regime político diferente.

O programa de Montesquieu - por ele encontrado no diálogo As Leis, de Platão - sobre a harmonia política é um modelo a ser perseguido, nunca foi realizado. Quando a tese liberal democratiza o Estado, o puro modelo se aproxima dos fatos. Mas se a crise de poder deixa as instituições acéfalas, o Judiciário se imiscui ou o Parlamento tudo decide.

O mais frequente é o Executivo praticar golpes de Estado para impor os seus alvos. A crônica dos golpes marca os nomes de Napoleão e de seu sobrinho, seguidos por muitos ditadores. Nos golpes os governantes se livram das obrigações instauradas pela democracia liberal, sobretudo a liberdade de imprensa e a responsabilização dos que ocupam cargos públicos.

Sem democracia o soberano não deve satisfações aos Parlamentos, aos juízes, à cidadania. Tal costume foi combatido na Inglaterra por Edward Coke (1552-1634). Ao admoestar o rei, que defendia seus privilégios contra “os advogados”, Coke afirma que o soberano “não foi educado no conhecimento das leis da Inglaterra”. Tiago I replica: se Coke tem razão, o rei deveria estar sob a lei. A hipótese seria “traição evidente”. Tiago cita Bracton: Rex non debet esse sub homine sed apud Deo et lege (o rei não deve estar sob a lei humana, mas sob a lei divina).

Em 1616, Tiago adianta que “os reis são justamente chamados deuses, pois exercem um modo de semelhança do Divino poder sobre a Terra. Considerados os atributos de Deus, vemos o quanto eles concordam com a pessoa de um rei. Deus tem poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbítrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountable). O mesmo poder possuem os reis. Eles fazem e desfazem de seus súditos, têm poder de erguer e abaixar, de vida e morte, julgar acima de todos os súditos em todos os casos e só devem prestar contas a Deus (yet accountable to none but God)”.

Ainda em 1616 ele se dirige aos juízes da Star Chamber: “Não usurpem a prerrogativa da Coroa. Se aparecer uma questão ligada à minha prerrogativa ou mistério do Estado, trato que não lhes diz respeito, consultem o rei ou o seu conselho, ou ambos; porque tais matérias são transcendentes. As prerrogativas absolutas da Coroa não são assunto para a língua de um advogado nem é legal disputar sobre elas”.

Coke foi preso na Torre de Londres por negar as referidas prerrogativas. É inaceitável para o governante absolutista a norma que obriga os dirigentes a prestar contas de seus atos.

O conceito de accountability, com origens na democracia grega e retomado no Renascimento, liga-se diretamente à liberdade de imprensa. Basta ler os escritos elaborados pelos puritanos (precursores dos que fizeram a Revolução Norte-Americana), em especial os de John Milton, como a Areopagítica. Vencedora em muitos momentos da História, a democracia liberal perdeu o controle do Estado desde a contrarrevolução conservadora iniciada no século 19. Ela persiste em ideários retrógrados que chegaram ao poder via pactos demagógicos com setores religiosos inimigos da ciência. Tais líderes bisonhos desejam, mas não possuem saberes para instalar uma ditadura. Iletrado, o dirigente não governa e quer ditar. Recordemos o chiste de César contra os sáfaros de Roma: Sylla nescivit literas, non potuit dictare - ou seja, Sylla ignorava as letras, não podia ditar (Curtius, E.: A Literatura e a Idade Média Latina).

Infelizmente devemos repetir hoje o dito de Coke: “Bolsonaro não foi educado no conhecimento das leis brasileiras”. Quem identifica sua pessoa com a Constituição repete de modo hilário Tiago I (um governante culto, afinal). Mas um dia “o rei” deixará os palácios rumo à insignificância.

Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)

Aprender com os erros - HÉLIO SCHWARTSMAN

Folha de S. Paulo - 24/05

Errar uma vez é ruim, mas repetir já é burrice



O Brasil tinha uma enorme vantagem sobre outros países no manejo da pandemia de Covid-19, mas não soube utilizá-la em seu favor. Como estivemos entre as últimas nações a ser atingidas, pudemos observar atentamente o que aconteceu na Ásia, na Europa e na América do Norte. Lamentavelmente, não usamos esse conhecimento para nos preparar para o que viria.

Meu receio é que a história se repita na saída do isolamento. Dentro de uns dois meses, se não houver uma catástrofe maior do que a já contratada, a curva de contágios deverá refluir e precisaremos tentar retomar a economia, sem descuidar da questão sanitária, pois o vírus continuará em circulação e ainda teremos a maior parte da população suscetível a ele.

Vários países asiáticos e europeus já se encontram nessa fase. Seria um crime se não tentássemos aprender com seus acertos e erros. Logo saberemos quais são as atividades mais e as menos perigosas. Retomar aulas com cuidados extras parece algo seguro. Em breve teremos uma ideia do risco de frequentar praias, cultos religiosos, espetáculos etc.

De modo mais geral, dá para dizer que é complicado sair do isolamento sem uma boa capacidade de testagem e de rastreamento de contactantes. Não creio que já as tenhamos alcançado.

Outro ponto que me parece fundamental no caso do Brasil é assegurar que haja leitos de baixa complexidade para todos os que precisarem. Dadas as condições de moradia presentes nas áreas mais pobres, são enormes as chances de um doente contaminar o resto da família. Pior, existe a suspeita de que infecções contraídas em casa sejam mais graves do que as pegas na rua, onde a dose viral tende a ser menor.

A possibilidade de monitorar de perto os pacientes, em especial os com comorbidades, permite ainda evitar o agravamento de quadros, reduzindo a necessidade de UTIs.

Errar uma vez é ruim, mas repetir o erro já é burrice.

Militar sem cargo liberou compra de mais munição - PATRIK CAMPOREZ

ESTADÃO - 24/05

General já havia deixado função quando autorizou norma que triplica o limite para aquisição de projéteis; Bolsonaro cobrou Moro e ministro da Defesa durante reunião


BRASÍLIA - Por ordem do presidente Jair Bolsonaro, o Exército usou a assinatura de um oficial já exonerado e sem função para publicar, em 23 de abril, portaria que triplica o limite de compra de munições no País. O general de brigada Eugênio Pacelli Vieira Mota já tinha deixado o cargo de diretor de Fiscalização de Produtos Controlados quando autorizou, com um e-mail enviado de sua conta pessoal, a última versão do texto. A norma elevou de 200 para 600 o número de projéteis permitidos anualmente por registro de arma de pessoa física.

Um dia antes, na reunião com ministros de 22 de abril, que se tornou pública anteontem, o presidente determinou ao ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e ao então titular da Justiça, Sérgio Moro, que providenciassem a portaria que ampliava o acesso a munições. “Peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assinem essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bostas”, disse Bolsonaro.

Ele se referia a prefeitos e governadores que adotam o isolamento social como medida de combate ao novo coronavírus, seguindo a recomendação de autoridades mundiais. “Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme, que é a garantia que não vai ter um filho da puta pra impor uma ditadura aqui, que é fácil impor uma ditadura, facílimo”, afirmou Bolsonaro na reunião. “Eu quero todo mundo armado. Que povo armado jamais será escravizado.”

Documentos oficiais do Exército obtidos pelo Estadão mostram que a elaboração do parecer de Pacelli ocorreu em menos de 24 horas. A portaria interministerial 1.634 – assinada por Azevedo e Moro – foi baseada, ainda, em outro parecer produzido em tempo recorde. Subscrito por Fernanda Regina Vilares, chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, essa segunda peça limita-se a um “OK” em mensagem de WhatsApp.

Cronograma

O Diário Oficial de 25 de março publicou a ida de Pacelli para a reserva – com validade a partir do dia 30 daquele mês. No mesmo dia, o general Alexandre de Almeida Porto tomou posse no comando da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados.

Em 13 de abril, Pacelli escreveu uma carta de despedida. Destacou “avanços” de sua gestão para garantir o rastreamento de armas e munições. Os avanços estavam materializados em três portarias que seriam revogadas por determinação de Bolsonaro.

Um dia depois, Pacelli recebeu e-mail do consultor jurídico do Ministério da Defesa, Idervânio Costa, pedindo que, como diretor de Fiscalização de Produtos Controlados – cargo que não ocupava mais – se manifestasse com “urgência” sobre a liberação de compra de mais projéteis por pessoa. Na mensagem, Costa cobra “avaliação e manifestação de concordância do Departamento de Fiscalização do Exército à nova minuta de portaria”. O e-mail diz que alterações na norma “foram decorrentes de decisão superior”.

Às 22h de 15 de abril, fora do expediente do Exército, Pacelli enviou parecer de apenas três linhas de seu e-mail pessoal: “Desculpando-me imensamente pela falta de oportunidade... Após análise, não observamos qualquer impedimento à publicação. Pequenos demandas/ajuste serão necessários”.

Por nota, o Ministério da Defesa informou que Pacelli, apesar de ter sido exonerado em 25 de março, só transmitiu a chefia da Fiscalização de Produtos Controlados em 16 de abril. A reportagem enviou quatro e-mails solicitando ao ministério o fundamento legal que garantiu ao general despachar já exonerado. A pasta não respondeu.

Professor de Direito Constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Escola Superior da Advocacia da OAB-SP, Flávio de Leão Bastos Pereira afirmou que, do ponto de vista jurídico, quando um servidor é exonerado, deixa de ter capacidade para praticar sua função. “Temos a chamada causa de extinção da competência e dos vínculos com a autarquia. Quando se dá a exoneração não existe mais vínculo com aquela função”, disse. O professor avaliou que qualquer ato praticado por servidor exonerado deve ser considerado sem feito. ]

Militares ouvidos pelo Estadão disseram que, quando um general é enviado para a reserva, é comum ficar “encostado” por um tempo no batalhão onde atuava. Esse período é necessário para o militar preparar os trâmites burocráticos de sua saída. Para Pereira, essas regras internas não abrem brecha para alguém atuar em função sobre a qual não tem mais competência. “Essas regulamentações não podem contrariar a Constituição.”

Concordância

Um general que trabalhou com Pacelli disse ao Estadão que o oficial foi “convocado a concordar” com a portaria, pois seria o especialista sobre o assunto e seu substituto, apesar de nomeado, não “estava a par da situação”. A reportagem tentou contato com Pacelli, mas não obteve resposta. O Exército não explicou por que um e-mail pessoal do general foi anexado ao processo.

No mês passado, o Exército, também sob pressão, já havia revogado três portarias que aprimoravam o rastreamento e a marcação das balas e armas de fogo. As normas eram exigências do Ministério Público Federal e do Tribunal de Contas da União. A revogação das três portarias está sendo investigada como possível ato de interferência de Bolsonaro no Exército.

Facilitar o acesso a armas foi uma das promessas de campanha de Bolsonaro, apoiado por lobistas do setor, clubes de tiro e colecionadores, que comemoraram tanto a ampliação da compra de munições quanto a revogação das normas sobre rastreamento. No País, 379.471 armas estão nas mãos da população, segundo a Polícia Federal. Dessa forma, o novo decreto pode possibilitar a compra de 227.682.600 balas (600 munições por arma).

Golpismo à luz do dia - BRUNO BOGHOSSIAN

Folha de S. Paulo - 24/05

Presidente e ministros traduzem impulsos autoritários em ataques explícitos, sem nenhum pudor



Seria uma injustiça afirmar que Jair Bolsonaro flerta com o autoritarismo. O vídeo da reunião ministerial do governo em abril mostra que o presidente e seus auxiliares, mais do que isso, traduzem seus impulsos golpistas em ataques explícitos, sem nenhum pudor.

Os assuntos do encontro eram o coronavírus e os planos para a economia, mas Bolsonaro estava mais interessado em atiçar seu conselho de radicais. Defendeu atropelar outros Poderes, falou em intervenção militar e prometeu armar a população contra seus adversários.

Nas quase duas horas de gravação, aparece em estado bruto a aposta do bolsonarismo na escalada de um conflito com as demais instituições democráticas, com o intuito de acumular um poder quase ilimitado.

O presidente disse que não aceitaria ser alvo de processos “baseados em filigranas” e que haveria “uma crise política de verdade” caso o Supremo tomasse “certas medidas”. “Não vou meter o rabo no meio das pernas”, desafiou. Quando Abraham Weintraub falou em mandar para a cadeia os ministros do tribunal, ninguém manifestou incômodo.

Bolsonaro não se conforma com o fato de que não reina soberano. Atacou o “bosta desse governador” e o “prefeitinho do fim do mundo” que decretaram medidas de isolamento social. A ministra Damares Alves afirmou que eles deveriam ser presos, repetindo o que parece ser o método favorito do governo para lidar com críticos e adversários.

Atormentado pela limitação de sua autoridade, o presidente passeia pelo terreno da exceção, sem ser incomodado. Exortou as Forças Armadas a reagirem ao que chamou de “contragolpe dos caras” e disse que era preciso armar a população contra seus opositores. No dia seguinte, o governo ampliou em 18 vezes o acesso de cidadãos comuns a munições.

O golpismo é o recurso único de um grupo que nunca teve interesse em seguir a regra do jogo. O radicalismo está enraizado no gabinete presidencial. Bolsonaro seguirá esse caminho enquanto não for impedido.

Bolsonaro ignora debate econômico para tratar de cocô petrificado, taxímetro e três pinos - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 24/05

Guedes propõe vender BB, legalizar cassinos, 1 milhão de aprendizes militares e detona investimento público



Dois ministros discutiram de modo agressivo um plano de reconstrução econômica em parte baseado em obras públicas na reunião de 22 de abril, tornada pública agora pelo Supremo. Jair Bolsonaro nada disse do debate entre Paulo Guedes (Economia) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) acerca do futuro pós-epidemia.

Em matéria econômica, quase se limitou a adiar para 2023 (em uma eventual reeleição) a ideia de privatizar o Banco do Brasil, proposta por Guedes, e a dizer que a crise decorrente do fechamento do comércio era uma “trozoba” que empurrariam “para cima da gente”.

No mais, em assuntos correlatos, tratou de algumas de suas obsessões, como mudanças em taxímetros, em tacógrafos e no “chip na bomba de combustível” (“putaria!”) e na tomada de três pinos.

Mencionou ainda problemas regulatórios, por assim dizer, quando afirmou que “cocô petrificado de índio” (problemas de patrimônio histórico) travava uma obra do empresário Luciano Hang (dono da Havan). Ou quando elogiou medida que facilitou a vida de milhares de pessoas no Vale do Ribeira, região paulista em que passou infância e adolescência.

No debate da política da reconstrução, Marinho criticou “dogmas” (as posições de Guedes) e disse que o aumento da despesa federal com a epidemia seria grande, uns R$ 600 bilhões, a fim de evitar problemas sociais e quebra de empresas. Assim, seria adequado empregar de 5% a 10% desse valor em obras de infraestrutura e promoção do emprego durante uma recuperação que “vai ser muito lenta”.

No encontro, Guedes (Economia) e o ministro Marcelo Antônio (Turismo) defenderam a legalização dos cassinos, como incentivo ao turismo. A fim de convencer a ministra Damares Alves (Direitos Humanos), que se opõe ao jogo, Guedes disse: “O cara entra, deixa grana lá que ele ganhou anteontem..., bebe, sai feliz da vida. Aquilo não atrapalha ninguém. Deixa cada um se f..., ô, Damares”.

Guedes disse ainda que o Brasil poderia se beneficiar de mais investimentos americanos caso assinasse o “General Purchase Agreement”. Talvez se referisse ao “General Procurement Agreement” (Acordo de Compras Governamentais), acordo patrocinado pela OMC, que pode abrir as concorrências públicas a maior participação de empresas estrangeiras.

O ministro da Economia pareceu dizer que tenta também organizar com o ministério da Defesa a contratação de “um milhão de aprendizes” pelos “quarteis brasileiros”. Os jovens receberiam cerca de R$ 200 por alguns meses, teriam aulas de “organização social e política do Brasil”, disciplina escolar dos tempos da ditadura, fariam exercícios físicos e talvez trabalhassem em obras públicas.

A reunião ministerial era destinada à apresentação do plano Pró-Brasil, que seria anunciado ao público naquela mesma quarta-feira, 22 de abril, pelo ministro Braga Netto (Casa Civil). Fazia dias, o plano era vazado e motivo de atritos entre Guedes e Rogério Marinho. Braga Netto não apresentou mais detalhes do plano do que na entrevista coletiva. A ideia foi atacada duramente por Guedes.

O ministro da Economia disse, para começar, que chamar a proposta de Plano Marshall revelava “despreparo enorme” (o plano foi um programa de auxílio à Europa patrocinado pelos EUA, após a Segunda Guerra mundial). De passagem disse que a “China deveria financiar um Plano Marshall para ajudar todo mundo que foi atingido”.

Enfatizou sua posição de que a retomada do crescimento deve ser conduzida por “investimentos privados, pelo turismo, pela abertura da economia, pelas reformas”.

Diz que o plano de obras públicas tinha a “digital” de Marinho e insinuou que era eleitoreiro, para este ano, quando o adequado seria pensar na reeleição de Bolsonaro, seguindo o plano de longo prazo de seu ministério. Diz que o “Pró Brasil” foi vazado para “a imprensa” de modo a passar a impressão de que seu ministério “estava fora”.

Marinho defende-se em seguida. Insinua que as acusações de Guedes são “teoria da conspiração”. Diz que “não existem verdades absolutas”, pois em um uma crise inédita seriam necessários “remédios extraordinários, de forma circunstancial”.

Governos liberais, diz, estariam “preparando programas de reconstrução”: “muda o papel do Estado”. Lembra o caso das grandes despesas públicas com “capital humano e infraestrutura” da Alemanha na reunificação, nos anos 1990, a fim de reduzir a desigualdade entre as partes Ocidental e Oriental do país.

Mais tarde, quase no final do encontro, Guedes volta ao ataque por este ponto. Diz que conhece o caso dessa e de outras reconstruções por ter lido oito livros sobre cada assunto; que leu Keynes três vezes no original antes de fazer seu doutorado nos EUA.

Guedes respondeu que não havia dogma. Que o governo seguia na “direção norte”, com “reformas estruturantes” e “de repente”, depois da epidemia, foi “para o sul”, fazendo programas de auxílio antes de alemães e de ingleses, “só atrás um pouquinho” dos EUA.

No mais, era o caso de manter as contas públicas arrumadas, com ajuda por exemplo da reforma da Previdência, da queda dos juros e da contenção do salário dos servidores. “Não tem jeito de fazer um impeachment se a gente tiver com as contas arrumadas, tudo em dia. Acabou! Não tem jeito”.

As exportações iriam bem, mas é preciso ser cuidadoso com a China. “A China é aquele cara que você sabe que tem que aguentar, porque, ‘procês’ terem uma ideia, para cada um dólar que o Brasil exporta ‘pros’ Estados Unidos, exporta três pra China”, disse o ministro.

O ministro Tarcísio de Freitas (Infraestrutura) diz que os investimentos privados virão, mas as obras apenas começariam em 2023 e 2024. De imediato, seria necessário algum dinheiro extra para seu ministério, que teria capacidade operacional de investir no máximo R$ 14 bilhões por ano. Logo, com orçamento atual de R$ 8 bilhões, precisaria apenas de um complemento de até R$ 4 bilhões em obras que poderiam ter efeito imediato para “gerar emprego”. Ao encerrar sua participação, Freitas diz: “Tivemos aí dois caras aí na história recente que pegaram terra arrasada e entraram pra História. Um foi o Roosevelt, o outro foi o Churchill. O terceiro vai ser o Bolsonaro”.

Roberto Campos, presidente do Banco Central, disse que resumiria sua intervenção a notar “três pontos importantes”: 1) O setor privado no mundo inteiro estaria com medo de “tomar risco”: “não vai ter como ter uma saída rápida sem que o governo não entre, de alguma forma, tomando risco”; 2) Análise de despesas extras do governo pelo critério de maior efeito na preservação de emprego e boas empresas; 3) Boa governança de projetos de infraestrutura, colocando “agentes internacionais que fazem governança mundial”.

Limites, responsabilidades e governabilidade - JOSÉ SERRA

O Globo - 24/05

A dimensão política dessa crise multidimensional se configurou no início da atual administração


O artigo do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, sobre “Limites e responsabilidades”, publicado no último dia 14 no “Estado de S.Paulo”, vem em bom momento. Justamente quando nos encontramos em uma tempestade mais que perfeita, na qual limites constitucionais, morais, econômicos e de segurança sanitária estão sob intensa pressão. E também porque abre as portas para um diálogo de alto nível, quando uns poucos, infelizmente, fazem ouvidos moucos e se excedem em palavras loucas.

O general Mourão tem razão em apontar o caráter político da atual crise e o papel primordial que o Estado nela desempenha. Entretanto, não podemos ignorar que a dimensão política dessa crise multidimensional se desencadeou no início da atual administração, tendo contribuído para um PIB que vem marcando passo com crescimento em torno de 1% ao ano.

Com efeito, o programa de reformas econômicas foi mal conduzido, desperdiçando o período de boa vontade de que os novos mandatários costumam gozar. O governo federal não apresentou uma proposta de legislação coerente e bem definida, tampouco prioridades claras. E os negociadores do Planalto no Parlamento encontraram um campo minado devido ao empenho do presidente da República em tornar pública sua recusa a aceitar a legitimidade dos demais Poderes do Estado brasileiro.

Resulta-se daí a queda na confiança de consumidores e investidores, sobretudo estrangeiros, o que, no primeiro trimestre deste ano, levou à retração de 1,95% do Índice de Atividade Econômica (IBC-BR), considerado uma prévia da variação do PIB. Como as decisões dos consumidores e dos investidores se baseiam em expectativas que, assim como as causas, vêm antes de seus efeitos, não se pode atribuir a crise econômica à pandemia, cujos efeitos sobre a atividade econômica vieram depois. A crise política levou à crise econômica, que foi exponenciada pela crise sanitária.

O vice-presidente tem razão em destacar o papel nefasto da polarização. Ela não existe no vácuo, mas resulta de uma ação deliberada de radicalizar as diferenças entre ideias e valores na sociedade, de modo a dividi-la entre os extremos e excluir, assim, os moderados. Esse extremismo levou a um resultado incomum: no primeiro turno, os dois candidatos — Jair Bolsonaro (então PSL) e Fernando Haddad (PT) — receberam, respectivamente, votos de 33,4% e 21% dos eleitores aptos a votar. No segundo turno, o presidente foi eleito com votos de 31% de eleitores aptos, com um aumento de ausências, votos brancos e nulos. O percentual de votos nulos no segundo turno chegou a 7,4% (8,6 milhões), o maior índice desde 1989, e um aumento de 60% em relação a 2014, quando 4,6% dos votos foram anulados.

Um Executivo com esse grau de fragilidade, tanto no número de eleitores — que são os detentores originários da soberania — quanto em sua presença no Congresso, comete um erro fatal ao recusar o diálogo com os demais poderes constituídos. Sem diálogo e sem reconhecer a legitimidade dos interlocutores, não é possível convencê-los de que sua agenda é a melhor expressão do interesse da Nação. Insistindo em governar por decreto, virando as costas para os parlamentares, tratando-os com ofensas e acusações, um presidente presta um enorme desserviço, não apenas a si próprio, mas principalmente ao país.

A questão federativa está definida na Constituição brasileira, que é única e difere das demais federações. Nos Estados Unidos, por exemplo, apenas o fato de que são os estados que elegem o presidente, e não o voto popular direto, sugere que não devemos seguir cegamente um modelo estrangeiro. Trata-se de uma questão fundamental, que merece ser debatida, como também as relações entre os poderes. Depende apenas da disposição para o diálogo, o que é distinto da contabilidade de cargos e verbas à qual o Executivo parece estar inclinado a aderir.

José Serra é senador (PSDB-SP)

O Inferno de Dante - VERA MAGALHÃES

ESTADÃO - 24/05

Reunião ministerial é a representação da obra do poeta nos tempos de pós-verdade


“Deixai toda a esperança, vós que entrais!” A inscrição aparece quando o poeta italiano Dante Alighieri cruza o Portal do Inferno em sua epopeia A Divina Comédia. Vale para quem se arrisca a assistir à representação da obra nos tempos de pandemia e pós-verdade. Sim, estou falando da reunião ministerial do governo Jair Bolsonaro de 22 de abril, para a qual o único adjetivo possível é dantesca.

O fato de que alguns críticos anestesiados por tanto horror produzido por este governo tenham conseguido minimizar o que se passou ali nos leva de novo à obra do poeta italiano: são pessoas que estão ali no Vestíbulo, pouco antes do Primeiro Círculo do Inferno.

É o lugar dos covardes, fracos e indecisos, no qual se encontram hoje um bom número de homens públicos, alguns pretensos formadores de opinião e uma parcela letárgica da sociedade.

Mas há os que já desceram a alguns dos Nove Círculos do Inferno percorridos por Dante em sua viagem. Nos seis primeiros estão os que cometem pecados involuntários, nos quais há culpa, mas não dolo.

A coisa começa a ficar mais grave quando se passa aos três últimos círculos, com seus vales, fossas e esferas. É nesses lugares sombrios que estão os participantes da reunião macabra capitaneada por Bolsonaro, o capitão da versão pandêmica do inferno dantesco.

O Sétimo Círculo é o lugar dos violentos. Bolsonaro prega abertamente a criação de uma milícia paramilitar armada até os dentes para resistir a governadores, prefeitos e ordens judiciais. É a defesa da criação de um Estado paralelo, diante de ministros absolutamente silentes.

Os dez fossos do penúltimo círculo do inferno são a morada dos sedutores, aduladores, simoníacos (traficantes de coisas divinas), adivinhos, corruptos, hipócritas, ladrões, maus conselheiros, semeadores de discórdia e falsificadores.

Todas essas figuras aparecem na reunião, sem filtro. Ricardo Salles fala em aproveitar a “tranquilidade” da pandemia para barbarizar na desregulamentação de áreas como meio ambiente e agricultura. Chega a quase salivar de excitação, aos olhos de um incrédulo e novato Nelson Teich, que conseguiu ficar no vestíbulo do inferno bolsonariano, antes de se afogar em seus rios de cloroquina.

Damares Alves está lá, nos fossos do Oitavo Círculo, se esmerando para mostrar serviço ao chefe e falando em usar sua pasta para prender (!) prefeitos e governadores. É estarrecedora a distorção de realidade que ela demonstra, num semitranse, ao elencar notícias falsas para justificar que iria “pegar pesado” dali por diante. Bolsonaro adorou.

Abraham Weintraub, então, pode fazer um rodízio entre os fossos, pois preenche todos os requisitos para chafurdar naquele inferno pelo resto dos seus dias. Para júbilo de um Bolsonaro que exige de seus ministros a capitulação absoluta aos pecados logo na abertura da comédia dantesca, fala em prender “vagabundos”, entre os quais os ministros do STF.

O Nono Círculo do Inferno é o dos traidores. É o lugar de Bolsonaro, e será também o dos que insistirem em seguir com ele diante da evidência de crimes (interferir na Polícia Federal para proteger familiares de investigações, como fica comprovado pelo vídeo e pelas declarações e ações posteriores do presidente), autoritarismo e absoluta falta de humanidade, empatia e preocupação com uma pandemia que ceifa vidas de brasileiros aos milhares enquanto o presidente da República e seus asseclas atentam contra o bom senso, a saúde pública, a ética e a Constituição à luz do dia e em horário de expediente. O Inferno descrito por Dante talvez não contenha círculos suficientes para descrever o que se passou em Brasília em 22 de abril.

O iceberg, o navio, e o comandante - AFFONSO CELSO PASTORE

ESTADÃO - 24/04

Não há exagero em prever que os investimentos diretos vão desabar, chegando aos níveis mais baixos dos últimos 20 anos.

Quando o radar sinaliza um iceberg, o comandante adverte o timoneiro a mudar o rumo do navio. Mas pode ser tentado a mudar o timoneiro. Se após a pandemia retornarmos ao teto de gastos, como prega o atual ministro da Economia, o risco é mais baixo. Porém, se a curva de contágio do vírus demorar a achatar, como é provável, a recessão aumenta, minando o apoio da população ao presidente, e no lugar do atual ministro da Economia pode ser colocado algum adepto da cloroquina fiscal, aumentando os gastos públicos para fazer o País crescer. As consequências seriam a insustentabilidade da dívida pública e o aumento das saídas de capitais, que já vem ocorrendo.

O balanço de pagamentos é composto por dois grupos de contas: as contas correntes e a conta financeira e de capitais. A menos de erros e omissões, a diferença entre elas é o saldo no balanço de pagamentos. O Brasil quase sempre teve déficits nas contas correntes, que nunca deixaram de ser superados pelos ingressos de capitais – os investimentos estrangeiros diretos e em carteira (renda fixa e ações). Em 2007, antes da crise de 2008/09, tínhamos equilíbrio nas contas correntes, mas o ingresso de capitais pouco acima de US$ 80 bilhões gerou um superávit de US$ 80 bilhões no balanço de pagamentos, e o Banco Central elevou as reservas. Em 2011, devido à forte recuperação do crescimento, tivemos um déficit nas contas correntes de US$ 80 bilhões, mas os ingressos de capitais chegaram a um pico de US$ 160 bilhões, com novo superávit no balanço de pagamentos e um novo aumento das reservas. Nos últimos 12 meses, contudo, assistimos a um déficit nas contas correntes de US$ 50 bilhões, com um ingresso nulo na conta financeira e de capitais. Pela primeira vez, em décadas, temos um déficit no balanço de pagamentos, que nos últimos 12 meses já atingiu US$ 50 bilhões. Consequência: as reservas caem.

Por que caíram os ingressos de capitais? A queda observada nos investimentos em carteira desde a perda do grau de investimentos do país vem se acelerando. Nos últimos 12 meses saíram mais de US$ 50 bilhões, dos quais perto de US$ 25 bilhões só nos últimos 30 dias. Quanto aos investimentos diretos, nos últimos 12 meses ingressaram US$ 50 bilhões, mas estes devem cair não só devido à redução dos investimentos no Brasil, mas também porque a recessão mundial gera grandes prejuízos nas matrizes de multinacionais, que não têm como (nem deveriam) investir nas suas subsidiárias brasileiras. Não há exagero em prever que os investimentos diretos vão desabar, chegando aos níveis mais baixos dos últimos 20 anos.

Se os déficits nas contas correntes não declinassem teríamos déficits enormes na balança de pagamentos, acelerando a queda de reservas, mas eles também vão cair. Com a recessão há uma redução sensível nos gastos em as viagens internacionais, nas remessas de lucros e dividendos, nos fretes e seguros, e nas importações. No entanto, embora o real depreciado e os bons preços dos alimentos provoquem otimismo quanto as exportações, não se pode ignorar que o valor em dólares das exportações brasileiras tem elevada elasticidade com relação ao valor em dólares das exportações mundiais, que despencam com a recessão mundial.

O que ocorreria se o governo decidisse elevar os gastos públicos, esperando que o “multiplicador keynesiano” elevasse a demanda agregada? O déficit nas contas correntes, que nada mais é do que o excesso da demanda agregada sobre o PIB, tenderia a aumentar. Porém, diante da política fiscal expansionista cresceria o risco percebido pelos investidores não residentes, levando a uma aceleração da saída de capitais. No mercado financeiro ninguém (ainda) acredita que um ministro, que repetidas vezes tem reafirmado seu compromisso como teto de gastos, aceitaria tal mudança de rumo. Mas o presidente, que admite não entender de economia, pode escolher alguém que não hesitaria fazê-lo. Lembrem-se da cloroquina. Uma política fiscal expansionista não só piora a dinâmica da dívida pública como acentua o desequilíbrio externo, e esta outra dimensão da crise ainda não está no radar. Sabemos como termina a história: no limite, para truncar a depreciação cambial e a venda de reservas, chegaríamos ao controle de capitais. É só olhar para a Argentina.

Há um iceberg por perto, e o risco de colisão é alto. Depois de tanto esforço, sofrer uma recaída do “efeito Orloff” seria uma lástima.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS

Liberais de fôlego curto - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 24/05

Os tempos atuais dão saudades de Fernando Henrique


Não faltaram liberais nas últimas eleições. Os defensores da economia de mercado, que se sentiam violentados pelos excessos da burocracia, denunciavam os graves erros da gestão petista, em uma campanha com temperatura elevada.

Parece, porém, que não entenderam a real importância do liberalismo na política e na economia.

O contraditório permite a disputa de propostas. Com frequência, boas intenções têm efeitos colaterais inesperados. O debate baseado em dados permite analisar as diversas opções, identificar equívocos e corrigir rumos, beneficiando a gestão pública.

Não seria fácil para nenhum governante lidar com uma crise do tamanho da atual. Mas isso não dá ao governo imunidade às críticas. É preciso aceitá-las, até porque os problemas existem e estamos conseguindo descuidar tanto da saúde quanto da economia.

Resta um consolo para a direita que se sente acusada injustamente, apesar do despreparo do governo. Muitos petistas sofrem da mesma dor.

Para desespero de ambos os grupos, apenas Fernando Henrique aceitou as gralhas da democracia sem reagir com cotovelada. Não se trata de feito pequeno neste país com cacoete autoritário.

O contraditório é tão relevante na economia quanto na política. Empresas em condições heterogêneas disputam a preferência do consumidor. A valerem as regras da concorrência, somente os mais eficientes devem prosperar.

Nesse processo, há muitas histórias inesperadas. Há 40 anos, poucos diriam que a Microsoft se tornaria maior do que a IBM. A competição na economia de mercado estimula a inovação e os ganhos de produtividade que terminam por beneficiar a sociedade.

Por isso, é fundamental a diversidade de iniciativas empreendedoras. Não se sabe o que vai dar certo e a experimentação desorganizada descobre caminhos inesperados. Exatamente o oposto do dirigismo estatal que implementou a fracassada lei de informática nos anos 1980.

Não faltam, no entanto, autoproclamados liberais, entusiastas deste governo, que utilizam a crise para pedir auxílio contra a concorrência externa, apesar do câmbio atual, ou a reedição de subsídios à custa da sociedade. Nada diferente do que lhes concedeu o governo Dilma.

Parte do nosso atraso, porém, decorre precisamente das muitas proteções a empresas e setores ineficientes em meio a um poder público muito caro quando comparado com os demais países emergentes.

Pelo visto, o liberalismo verde-amarelo tinha prazo de validade e fica cada vez mais parecido com o velho estatismo latino-americano.

Os extremos da política no Brasil são demasiadamente assemelhados, inclusive na sua incompreensão das regras do Estado de Direito.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

O risco Bolsonaro é o mais grave no meio da pandemia - ROLF KUNTZ

ESTADÃO - 24/05

A economia já estava mal e o desemprego era elevado antes de chegar o coronavírus


Tenham cuidado e levem a sério o presidente Jair Bolsonaro, assim como bala perdida, assalto com arma, excesso de velocidade, coronavírus e atentados à democracia. São riscos tão sérios quanto o desemprego, a devastação da Amazônia, a perda de mercados externos e a fuga de capitais. Nada disso é abstrato ou maldosamente hipotético. O risco Bolsonaro, incluída sua diplomacia, é preocupação diária nos mercados e fator constante de instabilidade cambial. Além disso, é uma sombra permanente sobre a política de saúde. Enquanto aumenta o contágio e se multiplicam as mortes atribuídas à covid-19, o presidente estimula as aglomerações, delas participa e frequenta manifestações golpistas. Empenhado em campanha pela reeleição e na defesa de interesses familiares, tenta interferir na Polícia Federal e pressiona governadores e prefeitos pela retomada imediata da economia.

Pode-se chamá-lo de risco Bolsonaro ou custo Bolsonaro. Qualquer das duas denominações é mais descritiva que presidente Bolsonaro. O termo Presidência remete à noção de governo, atividade quase sempre evitada pelo atual chefe do Executivo. Um ano depois de sua posse, o desemprego pouco havia mudado. No primeiro trimestre de 2019 os desocupados eram 12,7% da população ativa. No período de janeiro a março de 2020 eram 12,2%, ainda sem os efeitos da crise derivada da pandemia.

Em um ano a taxa de subutilização passou de 25% para 24,4% e a dos informais ficou estável. Quando a pandemia chegou, 12,9 milhões de pessoas estavam desempregadas, mas até esse momento o chefe do Executivo havia ignorado ou desprezado o problema.

O descaso de sua excelência em relação às condições econômicas do País sempre foi notório. No ano passado o produto interno bruto (PIB) cresceu 1,1%, pouco menos que em 2017 e 2018. É quase espantoso um crescimento menor que o do fim de mandato do presidente Michel Temer, prejudicado pela incerteza eleitoral e pelos efeitos de uma desastrosa paralisação do transporte rodoviário - ação apoiada pelo deputado Jair Bolsonaro. Iniciado o mandato, o novo presidente continuou evitando o assunto. Questionado sobre economia, costumava remeter o interlocutor ao seu “posto Ipiranga”, o ministro da área, Paulo Guedes.

Mas o respeito à categoria dos “postos Ipiranga” sumiu quando apareceu uma pandemia devastadora. Em menos de um mês saíram dois ministros da Saúde, ambos médicos e ambos empenhados, mesmo com algumas concessões diplomáticas, em levar em conta a ciência e os padrões profissionais.

Os dois ministros foram pressionados a afrouxar as medidas de segurança e facilitar o uso da cloroquina. Os benefícios desse remédio são ainda incertos no combate ao novo coronavírus. Mas seus efeitos colaterais são conhecidos, podem ser sérios e envolvem risco de morte. Entre o benefício incerto e o perigo muito provável, fizeram a escolha mais prudente. O medicamento tem sido usado em casos graves de covid-19, mas nessas circunstâncias a avaliação de ganhos e riscos pode ser diferente. Em qualquer caso, a opinião médica é indispensável.

Essa opinião foi desprezada na pregação do uso amplo da cloroquina. Também esse tema foi ideologizado: quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, tubaína, disse o presidente no dia 19. Ele apareceu rindo, num vídeo, ao fazer essa piada. Naquele dia pela primeira vez foi ultrapassada a linha de mil mortes em 24 horas - 1.719 segundo a informação oficial. Pelos padrões normais de compostura, o momento era impróprio para gracinhas. Alguém deve ter avisado o presidente, porque depois ele postou mensagem lamentando as mortes.

Talvez ele desconhecesse os novos números, dirá alguma pessoa caridosa. Mas o desconhecimento, nesse caso, é apenas mais uma evidência de seu distanciamento do problema real. Ele já havia classificado a covid-19 como gripezinha, participado de aglomerações e respondido com um famoso “e daí?” a uma pergunta sobre as mortes.

Recentes manifestações de interesse pela economia estão fora do padrão mantido por mais de um ano. As condições econômicas já eram muito ruins antes da pandemia. Durante cinco meses consecutivos, entre novembro e março, a indústria produziu menos que um ano antes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dados de abril já refletirão os efeitos da nova crise, mas seria tolice atribuir o mau estado da indústria, do emprego e do consumo só aos problemas associados à covid-19.

Ao defender o menor isolamento, a pronta reativação econômica e a difusão de um medicamento milagroso, o presidente reafirma seu populismo, atende a pressões de grupos empresariais e tenta neutralizar possíveis competidores na próxima eleição. Ao manter as tensões políticas e a pressão contra o Legislativo e o Judiciário, reforça a insegurança de investidores, já assustados com a desordem no enfrentamento da emergência sanitária. A fuga de capitais e a alta do dólar são reflexos muito claros desses fatos. O risco Bolsonaro afasta investidores e o custo Bolsonaro pesa nas contas de empresas brasileiras.

JORNALISTA

AMEAÇAS - MIRANDA SÁ

BLOG DO MIRANDA SÁ 

@MirandaSa_

“O mundo não está ameaçado pelas pessoas más, mas sim por aquelas que permitem a maldade” (Albert Eisntein)


A chegada das novas arroubas no Twitter, mal-educadas e agressivas, convulsiona a livre circulação de ideias e o debate sadio. Não me permito aceitar delas esta ação odienta, acionada sem dúvida alguma, por controle remoto.

A idiotia desses caçadores de mitos é tão desprezível que me obrigou a abandonar o antigo costume de não deletar opiniões e muito menos bloquear quem quer que seja por emiti-las. Faço-o agora porque considero inaceitáveis as mentiras xerocadas que saem dos porões do Planalto

Como um dos pioneiros do Twitter no Brasil evoco o testemunho dos que conhecem a minha atuação na rede social; sempre guardando respeito pela opinião alheia mesmo discordando dela; sem ofensas nem palavrões para expressar minha discordância por alguém ou por algo vindo do campo político.

Entretanto, logo que a enxurrada de novas arroubas surgiu, chamadas de robôs por uns e de gado por outros, tentei mostrar-lhes que era errada a falta de respeito por outrem; procurei até instruí-las como polemizar sem ofender.

Também evitei reclamar no início, mantendo, como princípio, o ensinamento de Confúcio, de que ser ofendido não tem importância, a não ser se mantivermos isto como raiva ou planejamento de vingança.

De nada adiantou, porque são hordas que chegam como marolas na beira mar, disseram-me que são os mesmos com diversos perfis, como os terroristas mantém inúmeros codinomes.

E o pior de tudo não é apenas o tratamento desairoso, as injúrias e os xingamentos, mas a ação de criar confusão e desentendimentos entre os antigos participantes da rede social.

Com a insistência aprendida com herr Goebbels de repetir a mentira mil vezes que pareça uma verdade, conseguem arrastar os desavisados para o redemoinho do extremismo, com o mesmo método dos lulopetistas fanatizados pelo chefe corrupto e corruptor.

Lembrando esses antecedentes, registro como os narcopopulistas, cúmplices da corrupção, atacam Sérgio Moro, cuja formação intelectual, coragem e patriotismo levaram à prisão o ex-presidente Lula, receptor de propinas para si, seus filhos e hierarcas do PT.

Agora os extremistas da direita e da esquerda estão juntos e misturados, investindo contra Moro. Uns movidos pelo ódio a quem desmoralizou Lula, e outros porque ele não compactuou com os esquemas de familiocracia, resistindo ao controle da Polícia Federal, órgão de Estado e não de Governo.

Para este pessoal armado dolosamente de mentiras e perfídias, nos ataques que mantêm aos que lutam contra a corrupção e os corruptos em geral, sem bandidos de estimação, dirige a sua mira contra Moro e ao que chamam de “lavajatismo”, isto é, contra os defensores da Lava Jato, conduzida por procuradores, policiais e juízes patriotas.

Me incluo entre os que não ensarilharam as armas das antigas batalhas para evitar que no Brasil se tornasse uma terra de ninguém. Pouco me importa os cães que ladram enquanto a caravana passa.

Acho até graça dos que investem contra mim. Como não podem usar o carimbo de “traidor”, porque nunca estive entre os beneficiados do sindicalismo militar de Bolsonaro, a quem não conhecia, e muito menos aos seus filhos complicados. Votei nele contra o lulopetismo corrupto, como votaria em Tiririca se hipoteticamente disputasse o 2º turno com um poste de Lula.

Riu dos que me chamam de “velho”. Sou sim, e daí? Com a minha idade não me troco pelos jovens analfabetos funcionais e muito menos pelo fanatismo cego daqueles de meia idade…

Se me propuserem protagonizar uma cena política com estes cretinos, farei como a imortal cantora e atriz Mistinguett, símbolo da canção e da sensualidade no século passado. Casada com um brasileiro, visitou o Brasil várias vezes.

Às vésperas de completar 80 anos, Mistinguett foi procurada por um diretor de teatro propondo-lhe participar de uma peça com o enredo em que uma experiente atriz dava conselhos a uma estrela que nascia.

A grande artista francesa, mostrando entusiasmo, achou que a ideia era excelente e perguntou: – ‘Quem vai fazer o papel da velha? ”.

O Estado paralelo de Bolsonaro - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 24/05

Solução encontrada por Bolsonaro para desafiar limites a seu poder foi começar a criar um Estado paralelo, em que as normas não são as inscritas na Constituição


“É melhor já ir se acostumando”, dizia um dos slogans da campanha de Jair Bolsonaro à Presidência, em 2018, num infame jogo de palavras com o nome do candidato para advertir o País sobre o que estava por vir. E, de fato, parece que uma parte considerável dos brasileiros já se acostumou à chocante degradação moral liderada pelo presidente Jair Bolsonaro e escolheu ignorar ou relativizar as robustas provas de que ele não tem - como jamais teve - a menor condição de exercer a Presidência.

Em qualquer país civilizado, o teor da reunião do presidente com seus ministros no dia 22 de abril, tornado público por determinação judicial, teria escandalizado todos, não só pelos múltiplos delitos ali cometidos e revelados, mas por explicitar a transformação da Presidência da República em propriedade privada de Bolsonaro, da qual, como um monarca absoluto, imagina poder dispor como bem entender. Aqui e ali, no entanto, houve gente disposta a dizer que nada de mais se passou na reunião - nem crimes nem desafio às instituições, só alguns exageros verbais do presidente e de seus ministros mais entusiasmados, pouco comuns até em reunião de condomínio.

A história está repleta de exemplos de sociedades que, em nome do saneamento da política, permitiram que gângsteres chegassem ao poder e, uma vez lá, por meio da propaganda e da intimidação, transformassem seus crimes em atos virtuosos, naturalizando sua imoralidade. Como consequência, todos os que tentassem impedi-los, fossem instituições ou partidos, eram, estes sim, considerados criminosos.

Pois é exatamente o que se passa neste momento no Brasil. Conforme se vê na reunião ministerial de 22 de abril, ministros defenderam a prisão de magistrados que, em obediência à Constituição, tomaram decisões contra o governo e de prefeitos e governadores que, seguindo recomendações de autoridades de saúde, impuseram quarentena contra a pandemia de covid-19. Ou seja, delinquentes, no país dos bolsonaristas, são os que respeitam a lei e o bom senso. Tudo sob o olhar complacente do presidente da República - que por sua vez, em lugar de estimular o urgente debate sobre as medidas para conter a pandemia, que deveria ser sua única preocupação no momento, passou a destratar e ameaçar os ministros que não demonstrassem lealdade absoluta a ele e aos filhos, em constante detrimento da lei.

A solução encontrada por Bolsonaro para desafiar os limites a seu poder, bem ao estilo dos governos totalitários em que se inspira, foi começar a criar uma espécie de Estado paralelo, em que as normas que valem não são as inscritas na Constituição, mas as que vagam na sua cabeça. Conforme ele mesmo revelou na reunião ministerial, depois de se queixar de que os órgãos oficiais não lhe passam “informações”, Bolsonaro disse que dispõe de um “sistema de informações” particular: “Sistema de informações, o meu funciona. O meu particular funciona. Os que têm (informações) oficialmente desinformam”.

Para Bolsonaro e seus camisas pardas, o Estado brasileiro, com suas instituições e sua Constituição, só existe para frustrar suas intenções revolucionárias - razão pela qual, conforme a ideologia bolsonariana explicitada pelo presidente na reunião, esse Estado que lhe tolhe os movimentos é, na prática, uma “ditadura” contra o “povo” que ele diz encarnar. A tal “ditadura” se revela, segundo Bolsonaro, por meio de governadores que impõem quarentena, por meio de ministros do Supremo que o impedem de nomear um amigo para chefiar a Polícia Federal, por meio das instituições judiciais que investigam seus filhos e por meio dos órgãos que não lhe dão informações às quais o presidente legalmente não pode ter acesso.

Para lutar contra essa “ditadura” imaginária, Bolsonaro exige que o “povo” - isto é, a malta bolsonarista - se arme, conforme deixou claro na tal reunião. Em outras palavras, quer a formação de milícias armadas justamente para intimidar as autoridades do Estado que o bolsonarismo deseja destruir.

Foi assim que, num passado não muito distante, na Itália do pré-guerra ou na Venezuela contemporânea, líderes fascistas, aliados a uma elite pusilânime ou simplesmente arrivista, começaram a demolir, tijolo por tijolo, o Estado Democrático de Direito. Mais do que nunca, é prudente levar a História a sério.

Uma reunião patética - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 24/05

Chega a ser um exercício pedagógico, sobretudo num tempo de horas vagas

A leitura da transcrição da patética reunião do ministério de Jair Bolsonaro exige algum tempo, mas chega a ser um exercício pedagógico, sobretudo num tempo de horas vagas. Descontem-se os palavrões (37). Esqueçam-se as tolices (um dos maganos dizendo que o pico da epidemia parecia ter passado). Deixem-se de lado os delírios presidenciais. Sobra o quê? O ministro da Economia, Paulo Guedes, dizendo que leu o economista inglês John Maynard Keynes no original, insistindo nas suas “reformas estruturantes” e colocando duas propostas na mesa.

A primeira foi criativa, caso inédito de colocação do maoísmo a serviço dos cânones da universidade de Chicago. Ele propôs uma mobilização de jovens para que se formassem como aprendizes. Quantos? “Duzentos mil, trezentos mil”. Nas suas palavras: “O cara de manhã faz calistenia, canta o hino, bate continência”, ajuda a abrir estradas e “aprende a ser cidadão”. O doutor lembrou que a “Alemanha fez isso na reconstrução”. Em 1945 a Alemanha estava destruída e faminta, mas deixa pra lá.

Afora a ingenuidade dessa proposta de militarização do andar de baixo, Guedes expôs outra avenida para o progresso e novamente inspirou-se na Ásia. Nas suas palavras:

“O problema do jogo lá... nos recursos integrados [provavelmente ele disse “resorts”]. Tem problema nenhum. São bilionários, são milionários. Executivo do mundo inteiro. O cara vem, é... fazem convenções ... olha, a ... o ... o turismo saiu de cinco milhões em Cingapura pra 30 milhões por ano. (...) Macau recebe 26 milhões hoje na ... na China. Só por causa desse negócio. É um centro de negócios. É só maior de idade. O cara entra, deixa grana lá que ele ganhou anteontem, — ele deixa aquilo lá, bebe, sai feliz da vida. Aquilo ali num ... atrapalha ninguém. Aquilo não atrapalha ninguém. Deixa cada um se foder. (...) O presidente fala em liberdade. Deixa cada um se foder do jeito que quiser. Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário. Deixa o cara se foder, pô! Não tem ... lá não entra nenhum, lá não entra nenhum brasileirinho”.

No meio de uma epidemia e de uma recessão, o ministro da Economia oferece a legalização da jogatina em resorts turísticos. Esse é um velho sonho de Bolsonaro, desde sua conversão à ideia pelo magnata americano Sheldon Adelson, dono de resorts em Las Vegas, Cingapura e Macau. De fato, nos cassinos de Adams, “brasileirinho” não entra. Guedes conhece o Rio de Janeiro. Ele ganha um mês de férias em Macau se realmente acredita que alguém operará um cassino por lá sem que o crime organizado (e a milícia) entrem na operação. Sem cassinos, três governadores do Estado foram para a cadeia e um continua lá. (Na China, o hierarca que ocupou cargos equivalentes à presidência da Petrobras e ao Gabinete de Segurança Institucional está trancado).

O aspecto patético da reunião presidida por Bolsonaro é que ela não leva a lugar nenhum. E não leva porque o presidente não tem a menor ideia do que fazer, salvo sair por aí arrumando brigas.

Alô, alô Faria Lima
Um trecho das falas de Paulo Guedes, para a turma do papelório pensar na vida.

“Ô presidente, esses valores e esses princípios e o alerta aí do Weintraub é válido também, como seu... sua evocação é que realmente nós estamos todos aqui por esses valores. Nós tamos aqui por esses valores. Nós não podemos nos esquecer disso. Nós podemos conversar com todo mundo aqui, porque é o establishment, é porque nós precisamos dele pra aprovar coisa, mas nós sabemos que nós somos diferentes. Nós temos noção que nós somos diferentes deles”.

O Centrão no FNDE
Jair Bolsonaro prometeu governar com a boa vontade daquilo que chamava de “bancadas temáticas”. Nem ele, que acredita em “resfriadinho”, acreditava nisso. O deputado Alceu Moreira (MDB-RS), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária avisava: “Quem disser que sabe qual é o resultado que esse novo modelo produzirá, de duas uma: ou é adivinho ou está mentindo”. Deu-se o inevitável e a “nova política” do capitão desembocou num acordo com o velho centrão. Nem sempre o inevitável precisa ser tóxico, os governos anteriores mantiveram padrões variáveis de moralidade nas suas negociações com essa bancada de interesses difusos, mas Bolsonaro exagerou. No primeiro toma-lá-dá-cá entregou o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas. No segundo, terceirizou uma diretoria do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, entregando-a ao chefe de gabinete da liderança do Partido Liberal, onde reina o inesgotável Valdemar Costa Neto. Com um caixa de R$ 55 bilhões o FNDE não é coisa que possa ficar dando sopa.

Em menos de dois anos do governo de Bolsonaro, esse fundo já teve três presidentes e vida acidentada. Com pouco mais de uma semana, em janeiro de 2019, descobriu-se que uma mão invisível havia mudado um edital, permitindo a inclusão de publicidade nos livros didáticos. A burocracia explicou-se dizendo que “houve um erro operacional no versionamento”. O que é isso, não se sabe. Em agosto passado o FNDE publicou um edital para a compra de 1,3 milhão de computadores, notebooks e laptops para a rede pública de ensino. Coisa de R$ 3 bilhões. A Controladoria Geral da União sentiu cheiro de queimado. E não era para menos, 355 escolas receberiam mais laptops que seu número de alunos. Uma delas, em Itabirito (MG) receberia 30.030 laptops. Como tinha 255 alunos, disso resultaria que cada um deles receberia 117 pequenos computadores.

O edital foi suspenso, o presidente do FNDE foi trocado e a peça foi revogada. Pouco depois,sem qualquer aviso, caiu o segundo gestor do fundo. O que seria um caso clássico de bom funcionamento dos órgãos de controle da máquina do Estado, tornou-se também um exemplo da falta de transparência de um governo que faz uma nova política. Ninguém sabe quem botou o jabuti no edital de agosto.

O ministro da Educassão, Abraham Weintraub, perdeu a oportunidade de lustrar sua biografia. Em vez de sugerir a prisão de ministros do Supremo, poderia ter mostrado o caminho da Procuradoria à turma que concebeu o edital do FNDE.

Brazil?
De um empresário que opera internacionalmente:

"Do jeito que vai a reputação do Brasil pelo mundo afora, daqui a pouco eu só conseguirei ser atendido pelas secretárias eletrônicas".

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e não acredita em denúncias.

A única coisa que ele não entende é por que os Bolsonaro demitiram Fabrício Queiroz e sua filha Nathalia.

Tendo demitido o chevalier servant os Bolsonaro não deveriam ter se interessado pela sua defesa.

Proeza
O governo do Rio conseguiu uma proeza: antecipou os escândalos em torno da construção dos hospitais de campanha e adiou suas inaugurações.

Coprolalia - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 24/05

O presidente Bolsonaro, na verdade, tem uma fixação com figuras escatológicas, especialmente quando está pressionado. O mais deprimente é ver-se como ministros procuram aproximar-se do presidente através de um linguajar vulgar

O grande escritor brasileiro Rubem Fonseca, notável por sua capacidade de relatar cruamente a violência física ou verbal de seus personagens que espelham uma sociedade corrompida moralmente, escreveu um livro de contos cujo título, “ , Secreções, excreções e outros desatinos”, trata de temas escatológicos em diversas dimensões.

Até mesmo chegou a criar uma palavra, “copromancia”, que dá nome a um dos contos, para definir a capacidade de fazer previsões analisando as próprias fezes. Lembrei-me dele vendo o vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro, ao ouvir uma frase que, a princípio, não fez o menor sentido.

Referindo-se aos inimigos que estariam prontos a avançar sobre a democracia brasileira, Bolsonaro disse a certa altura: “O que eles querem é nossa hemorroida, a nossa liberdade”. A boca suja do presidente Jair Bolsonaro não chamou a atenção apenas dos brasileiros, ganhou dimensões internacionais. Os principais jornais do mundo noticiaram a dimensão politica do vídeo, que estava em jogo, mas deram destaque ao linguajar presidencial.

Bolsonaro falou cerca de 30 palavrões diferentes, e outras palavras chulas ou com sentido dúbio, como no caso da “hemorroida” colocada em uma frase aparentemente por ato falho, ou como uma metáfora que precisa ser explicada por uma mente pervertida.

Um amigo mais benevolente acha que o presidente quis dizer “hemorragia”, no sentido de os inimigos quererem vê-lo sangrar, mas confundiu-se. Mesmo nesse caso, a confusão seria uma revelação de preocupações mais profundas de uma pessoa que sempre se revela disposto a brandir sua masculinidade em tom de brincadeira, salientando que seu abraço é hétero, que sua amizade por outro homem é hétero.

A compulsão por obscenidades, seja através de gestos ou de palavrões, mesmo em situações sociais impróprias, é uma característica de um tipo raro da síndrome de Tourette que se chama “coprolalia”. Assim como “copromancia” inventada por Rubem Fonseca, a “coprolalia” usa o prefixo grego “copro”, que se refere a fezes, para definir essa incontinência verbal.

O presidente Bolsonaro, na verdade, tem uma fixação com figuras escatológicas, especialmente quando está pressionado. O mais deprimente é ver-se como ministros procuram aproximar-se do presidente através de um linguajar vulgar, como Paulo Guedes, da Economia, que em meio a uma exibição patética de lustro intelectual, falava palavrões desnecessários, ou o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, sentado em frente ao presidente, concordava balançando a cabeça acintosamente e, na sua hora de falar, misturou bravatas com expletivos de baixo calão.

Na sexta-feira à noite, ao chegar ao Palácio Alvorada, o presidente parou para falar com seguidores, e fez um longo relato sobre a crise com o ex-ministro Sérgio Moro. Exaltado, continuou falando palavrões, mesmo sabendo que a entrevista poderia estar sendo transmitida ao vivo.

Falou “no rabo de maus brasileiros”, vangloriou-se de que o vídeo fora, na sua visão, “um traque”, e saiu-se com essa: “A montanha pariu um oxiúro”. Referia-se a um verme de cerca de 15 milímetros, que cresce no intestino dos mamíferos, incluindo os humanos. O principal sinal do oxiúro no corpo é uma coceira anal intensa.

Freud dividiu a sexualidade infantil em várias fases, sendo uma delas a anal, quando as crianças aprendem a controlar os esfíncteres da bexiga e do intestino. A não superação desse estagio pode gerar personalidades distorcidas.

Já houve tentativas de explicar o comportamento anormal de Bolsonaro de diversas maneiras. Eu mesmo já escrevi sobre a possibilidade de ele sofrer de uma síndrome pós-traumática depois da facada que recebeu durante a campanha. Assim como o presidente americano Donald Trump já foi considerado louco, também Bolsonaro é visto assim.
Mas psicanalistas o definem como sociopata. E a mania de falar palavrão pode significar apenas que é uma pessoa mal educada.

A corrosão na confiança dos investidores - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 24/05

Sob Bolsonaro, a Presidência se tornou o principal vetor de instabilidades na República


Não são muitas as certezas possíveis sobre o cenário brasileiro depois da pandemia. Uma delas, porém, é a de que o país vai precisar atrair investimentos externos para ajudar a alavancar o processo de recuperação da economia.

O governo tem insistido numa perspectiva otimista, assentada na venda de 36 empresas estatais a partir de agosto. Na lista oficial constam, entre outras, Eletrobras, Correios, Embrapa, Finep, Nuclep, Serpro, Dataprev e Casa da Moeda.

Em paralelo, acha possível a atração de até US$ 100 bilhões do setor privado para a área de petróleo. Argumenta com a disponibilidade de US$ 1,5 trilhão no mercado mundial.

Talvez fosse real na virada do ano, mas o mundo mudou com o vírus, e uma dose de realismo pode ser adequada. O Brasil encerrou 2019 como um dos quatro maiores receptores de investimentos estrangeiros diretos. Foram US$ 78,6 bilhões. Em março, no início da pandemia, o Banco Central refez projeções e estimou uma queda de 24%, para US$ 60 bilhões, neste ano. Poderá ser maior, devido ao recrudescimento da disputa por hegemonia entre Estados Unidos e China e das políticas protecionistas em vários países.

Já não basta oferecer condições favoráveis ao trânsito de capitais. Vai ser preciso firme sinalização sobre a estabilidade política, a segurança jurídica e o rigor na proteção ambiental — fator cada vez mais relevante nas decisões dos maiores fundos globais.

A chave está na conquista da confiança. E nesse ponto reside, hoje, a grande dificuldade brasileira, com um governo que se mostra desnorteado. Sob Jair Bolsonaro, a Presidência se tornou o principal vetor de instabilidades na República, depois do novo coronavírus. O governo se transformou numa usina de crises e de conflitos com o Legislativo e o Judiciário. Exemplo vívido está no vídeo da reunião ministerial de abril, com o presidente dizendo que sua intenção é “armar o povo” e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, pedindo a prisão de integrantes do Supremo Tribunal Federal. Ou com o ministro Augusto Heleno direcionando ameaças a outros Poderes.

O governo não fomenta confiança. Ao contrário, acirra as próprias contradições programáticas. Militante da retórica antipolítica, Bolsonaro passou 16 meses sem se preocupar com uma base parlamentar e, agora, adotou o “toma lá dá cá”. Tal qual os antecessores que criticava, passou a distribuir cargos em troca de votos no Congresso, em alianças pouco confiáveis com líderes notórios pelo prontuário em escândalos de corrupção.

A instabilidade resulta em insegurança. Soma-se a confusão em áreas como meio ambiente, e o obscurantismo na política externa, com hostilização a parceiros como a China.

O governo reconhece a dependência de capitais externos para a economia emergir da crise. Mas mantém uma postura corrosiva naquilo que é mais decisivo à atração dos investidores: a confiança.