Ou Jair Bolsonaro tem uma estratégia capaz de causar inveja aos líderes de países civilizados que tiveram de se render ao isolamento social, entre eles o seu ídolo Donald Trump, ou o presidente brasileiro está numa tática suicida. Empurra os cadáveres do coronavírus para dentro da sucessão presidencial de 2022.
O Planalto virou uma espécie de centro terapêutico para tratar Bolsonaro dos seus distúrbios. O presidente combina sintomas de esquizofrenia política (perda de contato com a realidade pandêmica) e paranoia administrativa (conceito exagerado de si mesmo e mania de perseguição). Henrique Mandetta optou por tomar distância social do paciente.
A implicância de Bolsonaro com Mandetta não encontra amparo na racionalidade. Personagem obscuro, o ministro da Saúde ganhou luminosidade na crise. A sociedade gostou do modo como Mandetta decidiu tourear o vírus, enrolado na bandeira da ciência. O sucesso do auxiliar subiu à cabeça de Bolsonaro.
Autoconvertido em garoto propaganda das aglomerações, Bolsonaro levou Mandetta e os governadores —sobretudo o paulista João Doria— à alça de mira. Ao colocar o ministro e o rival político no mesmo balaio, atacando o isolamento social defendido por ambos, Bolsonaro oscilou entre o maníaco e o depressivo.
Portou-se como maníaco ao converter Mandetta, com seus 76% de aprovação, num caso raro de ex-ministro que permaneceu insepulto por várias semanas no exercício do cargo de ministro. Revelou-se depressivo ao injetar 2022 num 2020 já convulsionado por duas crises dramáticas: a sanitária e a econômica.
Se Bolsonaro estiver certo na sua aversão a um isolamento social adotado ao redor do mundo, ele se tornará um candidato imbatível não à reeleição, mas ao posto de gênio da humanidade. No momento, fazem a mesma aposta apenas os ditadores da Bielorússia, do Turcomenistão e da Nicarágua.
Se Bolsonaro estiver errado na sua estratégia de recusar o papel de líder do gerenciamento da crise, preferindo terceirizar responsabilidades e culpar Mandetta e os governadores pela recessão e o desemprego que estão por vir, ele corre o risco de acumular dois prejuízos políticos.
Funcionando o isolamento, Bolsonaro amargará o reconhecimento do mérito de Mandetta e dos governadores no esforço para poupar vidas. Fracassando a tática de trancar as ruas em casa, Bolsonaro se arrisca a ser responsabilizado por ter agido como pregoeiro da retomada prematura de uma hipotética normalidade.
O tempo dirá se Bolsonaro é um gênio ou apenas um político suicida. Mandetta preferiu não esperar pela resposta. Cansou da rotina do centro terapêutico do Planalto. Ainda na posição de futuro-quase-ex-ministro, Mandetta percebeu que o pior tipo de solidão é a companhia de Bolsonaro.
A despeito do seu estilo zen-pantaneiro, Mandetta não suportou a neurose que o obrigava a submeter a língua à fita métrica, apenas para não cutucar os fantasmas interiores de Bolsonaro. Tudo perturba e irrita o presidente. O sucesso dos subordinados o perturba. A ciência o irrita.
"Sessenta dias tendo de medir palavras", contabilizou Mandetta. "Você conversa hoje, a pessoa entende, diz que concorda, depois muda de ideia e fala tudo diferente. Você vai, conversa, parece que está tudo acertado e, em seguida, o camarada muda o discurso de novo. Já chega, né? Já ajudamos bastante."
Nesta quinta-feira, Bolsonaro começa a receber os candidatos à vaga de ministro da Saúde. Na véspera, Mandetta falou aos repórteres em timbre de despedida. Quem ouviu ficou com a impressão de que o doutor não pediu demissão nem foi demitido. Mandetta se deu alta do convívio clínico com Bolsonaro.
Ironicamente, Mandetta tomou finalmente o rumo da porta de saída na sede do centro terapêutico do governo. Bolsonaro dava expediente no prédio no instante em que o ainda ministro discorreu sobre o "descompasso" que se estabeleceu entre a pasta da Saúde e o presidente. "Ele quer um outro tipo de posição..."
Mandetta disse que tem a "ciência" para oferecer. "Fora desse caminho, tem que achar alternativas..." Realçou que o brasileiro aderiu ao isolamento por "instinto de proteção à vida." Declarou que, também na pasta da Saúde, "um dos pilares é a defesa intransigente da vida."
Ele reiterou: "Nós apoiamos um segundo pilar que é a defesa intransigente da ciência: sem ciência nós não andamos, não é possível." Quer dizer: para Mandetta, Bolsonaro despreza a vida ao se contrapor à ciência.
À espera de um substituto, Mandetta parece descrer da hipótese de o futuro ministro promover uma reviravolta na gestão da pandemia. "Acho que o vírus se impõe. A população se impõe. O vírus não negocia com ninguém. Não negociou com o Trump, não vai negociar com nenhum governo."
Se Mandetta estiver correto, exceto pela entrada de um novo paciente, nada mudará no centro terapêutico do Planalto. O esquizogoverno de Bolsonaro parece guiar-se pela máxima do jovem Tancredi, personagem do romance O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa: "Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude".