quinta-feira, abril 16, 2020

Mandetta não foi demitido da Saúde, ele se deu alta - JOSIAS DE SOUZA

 UOL - 16/04


Ou Jair Bolsonaro tem uma estratégia capaz de causar inveja aos líderes de países civilizados que tiveram de se render ao isolamento social, entre eles o seu ídolo Donald Trump, ou o presidente brasileiro está numa tática suicida. Empurra os cadáveres do coronavírus para dentro da sucessão presidencial de 2022.

O Planalto virou uma espécie de centro terapêutico para tratar Bolsonaro dos seus distúrbios. O presidente combina sintomas de esquizofrenia política (perda de contato com a realidade pandêmica) e paranoia administrativa (conceito exagerado de si mesmo e mania de perseguição). Henrique Mandetta optou por tomar distância social do paciente.

A implicância de Bolsonaro com Mandetta não encontra amparo na racionalidade. Personagem obscuro, o ministro da Saúde ganhou luminosidade na crise. A sociedade gostou do modo como Mandetta decidiu tourear o vírus, enrolado na bandeira da ciência. O sucesso do auxiliar subiu à cabeça de Bolsonaro.

Autoconvertido em garoto propaganda das aglomerações, Bolsonaro levou Mandetta e os governadores —sobretudo o paulista João Doria— à alça de mira. Ao colocar o ministro e o rival político no mesmo balaio, atacando o isolamento social defendido por ambos, Bolsonaro oscilou entre o maníaco e o depressivo.

Portou-se como maníaco ao converter Mandetta, com seus 76% de aprovação, num caso raro de ex-ministro que permaneceu insepulto por várias semanas no exercício do cargo de ministro. Revelou-se depressivo ao injetar 2022 num 2020 já convulsionado por duas crises dramáticas: a sanitária e a econômica.

Se Bolsonaro estiver certo na sua aversão a um isolamento social adotado ao redor do mundo, ele se tornará um candidato imbatível não à reeleição, mas ao posto de gênio da humanidade. No momento, fazem a mesma aposta apenas os ditadores da Bielorússia, do Turcomenistão e da Nicarágua.

Se Bolsonaro estiver errado na sua estratégia de recusar o papel de líder do gerenciamento da crise, preferindo terceirizar responsabilidades e culpar Mandetta e os governadores pela recessão e o desemprego que estão por vir, ele corre o risco de acumular dois prejuízos políticos.

Funcionando o isolamento, Bolsonaro amargará o reconhecimento do mérito de Mandetta e dos governadores no esforço para poupar vidas. Fracassando a tática de trancar as ruas em casa, Bolsonaro se arrisca a ser responsabilizado por ter agido como pregoeiro da retomada prematura de uma hipotética normalidade.

O tempo dirá se Bolsonaro é um gênio ou apenas um político suicida. Mandetta preferiu não esperar pela resposta. Cansou da rotina do centro terapêutico do Planalto. Ainda na posição de futuro-quase-ex-ministro, Mandetta percebeu que o pior tipo de solidão é a companhia de Bolsonaro.

A despeito do seu estilo zen-pantaneiro, Mandetta não suportou a neurose que o obrigava a submeter a língua à fita métrica, apenas para não cutucar os fantasmas interiores de Bolsonaro. Tudo perturba e irrita o presidente. O sucesso dos subordinados o perturba. A ciência o irrita.

"Sessenta dias tendo de medir palavras", contabilizou Mandetta. "Você conversa hoje, a pessoa entende, diz que concorda, depois muda de ideia e fala tudo diferente. Você vai, conversa, parece que está tudo acertado e, em seguida, o camarada muda o discurso de novo. Já chega, né? Já ajudamos bastante."

Nesta quinta-feira, Bolsonaro começa a receber os candidatos à vaga de ministro da Saúde. Na véspera, Mandetta falou aos repórteres em timbre de despedida. Quem ouviu ficou com a impressão de que o doutor não pediu demissão nem foi demitido. Mandetta se deu alta do convívio clínico com Bolsonaro.

Ironicamente, Mandetta tomou finalmente o rumo da porta de saída na sede do centro terapêutico do governo. Bolsonaro dava expediente no prédio no instante em que o ainda ministro discorreu sobre o "descompasso" que se estabeleceu entre a pasta da Saúde e o presidente. "Ele quer um outro tipo de posição..."

Mandetta disse que tem a "ciência" para oferecer. "Fora desse caminho, tem que achar alternativas..." Realçou que o brasileiro aderiu ao isolamento por "instinto de proteção à vida." Declarou que, também na pasta da Saúde, "um dos pilares é a defesa intransigente da vida."

Ele reiterou: "Nós apoiamos um segundo pilar que é a defesa intransigente da ciência: sem ciência nós não andamos, não é possível." Quer dizer: para Mandetta, Bolsonaro despreza a vida ao se contrapor à ciência.

À espera de um substituto, Mandetta parece descrer da hipótese de o futuro ministro promover uma reviravolta na gestão da pandemia. "Acho que o vírus se impõe. A população se impõe. O vírus não negocia com ninguém. Não negociou com o Trump, não vai negociar com nenhum governo."

Se Mandetta estiver correto, exceto pela entrada de um novo paciente, nada mudará no centro terapêutico do Planalto. O esquizogoverno de Bolsonaro parece guiar-se pela máxima do jovem Tancredi, personagem do romance O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa: "Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude".

Mandetta cai por suas qualidades. Ou: O que "camarada" fala não se escreve - REINALDO AZEVEDO

UOL - 16/04


O ministro está se despedindo da pasta da Saúde porque Bolsonaro se irrita com o que ele faz de certo. Erro não é critério para demissão. Ao contrário: pode até ser um ativo



O ministro Luiz Henrique Mandetta já deixou claro que, na prática, está fora do Ministério da Saúde. Segundo o que se pôde perceber nesta quarta-feira, aguarda apenas que o presidente da República escolha o substituto para que possa fazer a transição. Parece-me correto e responsável de sua parte que não saia batendo a porta, considerando o que está em jogo. E o homem pode se preparar: vem por um aí uma tempestade de acusações para demolir a sua reputação.

"Ah, Mandetta provocou a própria demissão quando concedeu aquela entrevista ao Fantástico". Pode ser. Mas prefiro pôr a coisa em outros termos: quando, numa visita a um canteiro de obras de um hospital de campanha para atender a doentes do coronavírus, o presidente da República promove aglomeração de pessoas e faz pouco caso do isolamento social — e isso nas barbas do ministro, que o acompanhava no evento —, bem, parece que o chefe atua para desmoralizar o subordinado.

Ou não foi isso o que fez Bolsonaro em Águas Lindas, em Goiás, no sábado passado, afrontando, adicionalmente, o governador Ronaldo Caiado (DEM), que é médico e sabidamente defensor do isolamento social? "Ah, mas a entrevista foi a melhor resposta?" Cada um julgue a seu modo. Eu, pessoalmente, a considerei adequada porque só havia ali uma alternativa: o pedido de demissão. Ou o ministro passaria a imagem de quem está coonestando um comportamento que ele mesmo condena.

Ademais, não venham me dizer que a convivência se tornou impossível a partir dali. Já era. De resto, é preciso respeitar a história, os fatos. Em entrevista à VEJA, Mandetta confirma que aguarda apenas a indicação do substituto e diz que não há como ficar porque "são 60 dias de batalha, e isso cansa". Sessenta dias? Ele explica:
"Sessenta dias tendo de medir palavras. Você conversa hoje, a pessoa entende, diz que concorda, depois muda de ideia e fala tudo diferente. Você vai, conversa, parece que está tudo acertado e, em seguida, o camarada muda o discurso de novo. Já chega, né? Já ajudamos bastante".

Quem conhece Bolsonaro sabe que isso define a relação com ele. Vale também para os ministros militares que atuam no Planalto. Já chegou a fazer pronunciamento em cadeia de rádio e TV cujo conteúdo era conhecido apenas por Carlos Bolsonaro e pelo chamado "Gabinete do Ódio". O chefe da Casa Civil, general Braga Netto, não sabia de nada.

No dia 28 de março, um sábado, o ministro Gilmar Mendes esteve com o presidente a pedido deste. Quem agendou a conversa informal foi André Mendonça, advogado-geral da União. A opinião expressa pelo ministro já é pública. Recomendou ao presidente que evitasse o caminho da judicialização, alertando que o momento pedia uma convergência de esforços dos Três Poderes da República, em consonância com os governadores.

Que se saiba, o presidente não objetou nem evidenciou resistência ao que ouvia — até porque era a opinião de outros presentes. É possível que o ministro tenha saído de lá com a impressão de que o bate-papo fora produtivo. No dia seguinte, Bolsonaro saiu desfilando por Brasília, provocando aglomerações e falando contra o isolamento social. Pouco depois, chegou a aventar a possibilidade de determinar a retomada da normalidade econômica por intermédio de um decreto.

Mandetta, os ministros palacianos, Mendes... Uma coisa é o que Bolsonaro combina com interlocutores; outra é o que faz num rompante. Ainda que se imagine haver cálculo naquilo tudo, pergunta-se: para quê?

Sim, Mandetta é um político e é possível que pense um futuro para si mesmo. É curiosa certa linha de argumentação que se ouve e se lê aqui e ali: "Ah, o ministro é político; João Doria é político... Atuam pensando também no seu futuro..." É mesmo? Se estiverem contribuindo para salvar vidas, de acordo com os protocolos da ciência, que mal há nisso? Ou terá a política se transformado num monopólio de Jair Bolsonaro? E, no caso, com a consequência indesejada de espalhar o vírus.

É possível que erros de Mandetta venham à tona. Mas ninguém com um mínimo de honestidade intelectual pode deixar de reconhecer que Bolsonaro não o está demitindo em razão dos seus defeitos. O que derrubou o ministro foram as suas qualidades. Abraham Weintraub é a prova de que incompetência e indigência intelectual não derrubam ministro, certo?