domingo, março 29, 2020

Muitos treinadores do país têm dificuldade em seguir a evolução do futebol - TOSTÃO

FOLHA DE SP - 29/03

O futebol brasileiro piorou porque não aproveitou a evolução técnica e científica das últimas décadas


Existem treinadores que acreditam muito mais no que acham, no que fizeram e que um dia deu certo, do que na evolução do futebol e da ciência esportiva. Além disso, muitas coisas no futebol dão certo, mesmo erradas, já que há inúmeros fatores envolvidos no resultado e na atuação das equipes.

A mesma postura ocorre com políticos, dirigentes e profissionais de diversas áreas. É uma mistura de superstição, prepotência, ignorância, fanatismo e negação psicológica.

Por isso e por vários outros motivos, muitos treinadores brasileiros têm tido grande dificuldade em acompanhar a evolução do futebol, que foi marcante nos últimos 20 anos.

É uma das causas do 7 a 1, de o Brasil não ganhar o Mundial desde 2002 e de os times terem enormes problemas contra adversários sul-americanos mais fracos e/ou com muito menos investimentos.

O futebol brasileiro não piorou porque perdeu sua essência, o brilho, o jogo irreverente, surpreendente, dos anos 1960. Isso tudo é importante, mas o futebol brasileiro piorou porque não aproveitou a evolução técnica, tática e científica das últimas décadas.

Isso contribuiu também para a diminuição do número de grandes craques. Não se deve confundir os fenomenais atletas, que são poucos, com os bons, ótimos. Estes continuam sendo formados em grande quantidade no Brasil.

De vez em quando, ouço alguém dizer que um treinador precisa optar entre ter um forte conjunto ou ter muitos craques, como se estes atrapalhassem o coletivo da equipe. Nada a ver.

Retorno à seleção de 1970, assunto da coluna anterior, que, 50 anos atrás, em junho, ganhou o terceiro título mundial. Era uma equipe que tinha o melhor de todos os tempos, além de vários craques, que estão entre os grandes da história. Tinha ainda um excepcional conjunto, além de praticar um jogo revolucionário para a época.

Parreira, em 1970, era uma mistura de auxiliar da preparação física e observador. Ele assistiu, no estádio, à semifinal entre Itália e Alemanha.

Parreira bateu dezenas de fotos e as colocou em sequência, para mostrar a marcação individual da equipe italiana e o posicionamento do zagueiro que ficava na cobertura, atrás dos quatro outros defensores.

Zagallo e todos nós decidimos que eu jogaria entre os quatro defensores e o zagueiro da sobra, para evitar que ele saísse na cobertura. Resolvemos ainda que, quando Jairzinho entrasse em diagonal e fosse acompanhado pelo lateral-esquerdo Fachetti, Carlos Alberto avançaria e ocuparia esse espaço no ataque.

Assim, saiu o quarto gol. Neste e no gol de Gérson, o zagueiro da sobra não saiu na cobertura, porque eu estava à sua frente. Foi também uma vitória tática.

No vestiário, logo após a conquista, dei ao dr. Roberto Abdalla Moura minha medalha de campeão e a camisa com que joguei o primeiro tempo. Guardei, porque sabia que a do segundo tempo seria arrancada de meu corpo após a conquista do título, como ocorreu. Dr. Roberto foi o médico que me operou do olho nos Estados Unidos, oito meses antes da Copa.

Ele, convidado pela comissão técnica, viajava de Houston até o México, dormia no hotel da concentração com os jogadores e acompanhava as partidas da seleção no estádio.

Horas depois da final, houve um jantar, uma festa da Fifa para o time campeão. Antes da sobremesa, saí de fininho, peguei uma carona com um mexicano e fui para o hotel, onde encontrei meus pais. Choramos, abraçados.

Tostão
Cronista esportivo, participou como jogador das Copas de 1966 e 1970. É formado em medicina.

Despreparados para a guerra** - PERSIO ARIDA

Folha de S.Paulo - 29/03

A resposta do governo tem sido tímida, desorganizada e a reboque dos fatos. Muitas propostas já deviam ter sido postas em prática, como devolver aos trabalhadores até mesmo 100% do saldo de suas contas no FGTS.

Diante da perspectiva de queda sem precedentes do PIB, economista propõe achatamento da curva de juros, defende que governo complemente salários e sugere mudança institucional para permitir que BC possa comprar títulos do Tesouro em mercado. Neste momento só lunático veria risco inflacionário, afirma


A história vai mostrar que ideia de que o coronavírus é uma gripezinha causou uma tragédia humana e social. Tivemos sorte porque o vírus demorou para chegar aqui, mas a desperdiçamos com a inépcia governamental.

Se o governo tivesse levado a sério a epidemia, poderia ter testado desde o começo do ano todos os viajantes que entraram no Brasil, como a China testa até hoje todos os que chegam do exterior. Poderia ter se preparado aumentando o número de leitos, estocando equipamentos médicos e de proteção para os profissionais da saúde. Poderia ter providenciado um grande estoque de kits de testagem do coronavírus.

Se o Brasil tivesse um sistema de saúde com grande capacidade ociosa, teríamos a opção de um tratamento social verticalizado, isolando os mais fragilizados e fazendo uma grande campanha de prevenção para o restante da população que iria trabalhar normalmente, mas não é esse o nosso caso.

O fato é que nenhuma sociedade tolera continuar a vida econômica como se nada estivesse acontecendo enquanto pessoas morrem na fila de espera do pronto-socorro ou do hospital porque não há vagas para internação. Nas nossas circunstâncias, as medidas de distanciamento social ou quarentena estão corretas —o resto é terraplanismo, oportunismo político ou lobby de empresários insatisfeitos.

Do ponto de vista econômico, há dois desafios. O primeiro é como responder à recessão. O segundo é como sair da quarentena sem causar repiques ou novos surtos de contaminação do coronavírus.

Começo pela recessão. As estimativas do PIB de 2020 variam muito, até porque dependem da duração da quarentena, da amplitude da rede de sustentação social que vier a ser implementada e também do que acontecerá no resto do mundo. No entanto, a julgar pelo que acontece, teremos uma queda sem precedentes em nossa história.

A resposta do governo tem sido tímida, desorganizada e a reboque dos fatos. A garantia de que não faltará dinheiro para a saúde foi importante, mas muitas medidas anunciadas com pompa e circunstância não saíram do papel. E muito mais deve ser feito, tanto para pessoas físicas quanto para empresas, no intuito de reduzir ao mínimo o impacto da crise.

Várias propostas já foram escritas pelos economistas para assegurar uma rede de proteção social efetiva —e muitas delas já deveriam ter sido postas em prática. São medidas de caráter temporário e com foco nos mais necessitados. Segue uma lista, com alguns acréscimos meus:

(a) O Tesouro deve pagar parte substancial dos salários dos trabalhadores. No Reino Unido, o governo vai desembolsar 80% dos salários, até determinado limite, para evitar demissões.

(b) Usando dados do Cadastro Único, Bolsa Família, BPC e CPFs nas companhias telefônicas, é possível ter um cadastro-base para um programa de transferência direta aos autônomos e desempregados, uma renda mínima para aqueles que comprovadamente não tenham nenhuma outra fonte de renda.

(c) Ampliar o alcance do seguro-desemprego e devolver aos trabalhadores parte expressiva ou até mesmo 100% do saldo de suas contas junto ao FGTS. Isso poderia ser viabilizado através de um empréstimo do Banco Central para a Caixa, tendo como lastro os créditos hoje financiados pelo FGTS.

(d) Empréstimos a pessoas físicas com base no histórico do Imposto de Renda.

(e) Diferir por lei parte do pagamento de prestações da casa própria, independentemente do banco que financiou a aquisição do imóvel.

Do ponto de vista das empresas, devemos postergar o pagamento de impostos e dívidas tributárias para preservar o caixa. O Tesouro deveria conceder empréstimos para pequenas e médias empresas, além de programas de apoio específicos a setores particularmente atingidos.

Obviamente tudo isso vai impactar a dívida pública. Uma coisa, no entanto, é a dívida que cresce por irresponsabilidade populista dos governantes ou por força dos interesses privados incrustados na Orçamento; outra é um aumento excepcional de dívida diante de circunstâncias excepcionais.

O Banco Central tem respondido bem e agressivamente ao desafio de manter a liquidez do sistema financeiro. Faz sentido agora reduzir as taxas de juros, de curto e longo prazo. O preço dos empréstimos de liquidez importa mais que nunca em uma recessão. O Tesouro precisa encurtar o perfil da dívida pública, e o quadro institucional deve ser alterado para permitir ao Banco Central comprar títulos do Tesouro em mercado.

É importante diferenciar o que não deve ser feito do que pode ser feito dependendo da evolução da crise. Aumentar investimentos públicos ou comprar ações para fazer a Bolsa subir são exemplos de mau uso dos recursos públicos. Comprar debêntures e cotas de fundos de crédito, como faz o Banco Central Europeu, ou o Tesouro conceder empréstimos sem exigência de colateral são passos que podem vir a fazer sentido.

Deveríamos nos preocupar com a solvência do governo quando a dívida pública chegar a 85% ou 90% do PIB? E se o governo não conseguir mais vender papéis de dívida e tiver que pagar os credores em moeda?

Há uma enorme confusão nessa matéria. Bancos centrais imprimem papel-moeda, mas no mundo digital em que vivemos os pagamentos feitos em notas impressas são irrelevantes. O grosso das transações ocorre através de cartões de crédito e débito, transferências bancárias ou aplicativos de pagamento digital. Exceto pelo papel-moeda, a “moeda” que o Banco Central cria é um depósito remunerado na conta de alguma instituição financeira.

A dívida pública, qualquer que seja seu tamanho, sempre pode ser paga. No limite, o Banco Central pode creditar os valores devidos na conta dos detentores dos papéis da dívida.

Disso não decorre que seu tamanho não faça diferença. Um estoque muito grande de dívida pública pode gerar pressões inflacionárias, mas só um lunático acharia que corremos um risco inflacionário nas circunstâncias atuais.

Além das medidas para minorar o efeito da recessão, temos que pensar na saída da quarentena. Todos sabemos que quarentenas por períodos longos de tempo são insustentáveis. O problema é que, por despreparo do governo, estamos às cegas.

É fácil pensar o ideal. Testagem em massa para poder diferenciar áreas em que o problema foi equacionado de outras onde o vírus ainda está se disseminando. Testar os que estão com febre, testar os que foram a hospitais, mas não precisaram ser internados, testar aleatória e maciçamente para detectar os assintomáticos.

Uma boa base de dados de contaminação pelo vírus, revisada diariamente, combinada com uma análise dos padrões de conectividade e da disponibilidade de leitos nos permitiria saber, com razoável segurança, quais cidades ou regiões poderiam reativar as atividades econômicas suspensas na quarentena.

Conhecemos a disponibilidade de leitos, e há estudos sobre conectividade disponíveis. Podemos mobilizar programadores que utilizem algoritmos de inteligência artificial para lidar com grande quantidade de dados.

O drama está na testagem em massa. O governo não se preocupou em ter a quantidade de kits necessários. Sem dados de testes abrangentes, a reativação da economia, muito provavelmente, levará a repiques do coronavírus.

Uma vacina vai demorar a surgir, mas a invenção de um teste rápido e barato ou uma combinação eficaz de remédios poderiam nos ajudar muito no curto prazo. São, no entanto, esperanças no momento. A triste realidade atual é que teremos de conviver com o vírus por mais tempo do que se imagina.

Em um discurso de estadista, o presidente francês, Emmanuel Macron comparou a epidemia do coronavírus a uma guerra. Ganhar uma guerra, como bem sabem os generais, depende em boa medida do preparo prévio na logística, nos armamentos, nos planos de contingência e nos cenários de risco. Por incúria ou ignorância, entramos em uma guerra sem preparo algum.

Do ponto de vista econômico, o desafio agora é como responder à recessão e como sair da quarentena sem causar repiques ou novos surtos de contaminação do coronavirus

É possível ampliar o alcance do seguro-desemprego e devolver aos trabalhadores parte expressiva ou até mesmo 100% do saldo de suas contas junto ao FGTS


**Este artigo foi escrito a partir de perguntas elaboradas pelos jornalistas Vinicius Torres Freire e Marcos Augusto Gonçalves.

Persio Arida
Economista, foi presidente do BNDES e do Banco Central no governo de Fernando Henrique Cardoso

O risco duplo para o país - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 29/03

Bolsonaro só pensa em reeleição e é capaz de pôr a saúde dos brasileiros em risco para chegar lá com condição de renovar seu mandato


Jair Bolsonaro é o pior presidente que poderíamos ter para nos guiar na travessia desta tempestade sem precedentes. Ele sempre foi menor do que a cadeira que ocupa, mas agora revela em cada ato, palavra e decisão que conspira contra a saúde da população. Não é uma questão de gostar ou não do governante. A análise objetiva leva à conclusão de que ele hoje é um obstáculo a que o país supere a turbulência, minimizando perdas humanas e econômicas.

Nas últimas semanas, foram sucessivos episódios completamente desviantes. Açulou manifestação contra o Congresso, foi cumprimentar manifestantes em época de pandemia e que carregavam faixas hostis a lideranças políticas, fez declarações bizarras e mal informadas sobre assunto da maior gravidade. Estimulou brasileiros a não seguirem a orientação das autoridades sanitárias e enquadrou o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, que ficou no governo, depois de “adaptar” suas opiniões, para usar a expressão da ex-ministra Marina Silva. É o soldado que marcha errado no batalhão dos governantes mundiais. Todos os outros, com maior ou menor rapidez, entenderam que nenhum líder pode pôr em risco a vida dos seus concidadãos.

Bolsonaro não faz o que faz por incompreensão do problema e dos riscos. Ele não se importa com o perigo que estamos correndo. O centro de suas atenções está apenas nele próprio e nos seus filhos. Vê em cada sombra um adversário, em cada discordante, um traidor, em cada decisão de outra autoridade, uma conspiração contra o seu poder.

Além dessa mentalidade , o presidente Bolsonaro também está fazendo um cálculo político. Ele acha que depois que o coronavírus passar -“algumas mortes terão, mas acontece, paciência”, como disse em seu português claudicante - ficará o amargo gosto da crise econômica. E ele poderá jogar todo o peso dela sobre os seus adversários políticos. Bolsonaro só pensa em reeleição e é capaz de pôr a saúde dos brasileiros em risco para chegar lá com condição de renovar seu mandato.

Mas renovar o mandato para fazer o quê? Bolsonaro não governa, nunca se aprofunda nas decisões que serão tomadas, não tem o gosto de estudar as soluções para os problemas nacionais. Seu pensamento é como a sua fala: sincopado, non sequitur, rasteiro. Chances para se tornar uma pessoa mais capaz de entender o país que ele governa ele teve. Foi de uma das melhores escolas do Exército, passou 28 anos na Câmara, em que há excelentes técnicos sobre qualquer assunto que se queira entender. Não liderou, não foi respeitado, não relatou matéria importante. Passou o tempo parlamentar em agressões aos colegas e à história, em defesas corporativas, em miudezas.

Foi eleito para governar o Brasil e poderia ter entendido qual é o comportamento correto de uma pessoa pública, mas continuou com seu circo de horrores diário. A coleção dos absurdos que disse e fez é inesgotável. O país foi se acostumando a ter um presidente com maus modos. Foi se acostumando a se perguntar: qual foi a última de Bolsonaro? Várias vezes ele atravessou linhas intransponíveis na democracia. Ele e seus filhos. Um filho, vereador do Rio, senta-se na mesa com ministros e dá ordens no Planalto, para citar um exemplo. Outro filho, deputado, ofende o maior parceiro comercial, o chanceler o defende, e o presidente tem que tentar arrumar a bagunça. O país foi aceitando o inaceitável. Nesta pandemia, no entanto, ele tem feito muito mais do que quebrar normas de condutas. Ele hoje representa uma ameaça concreta à saúde pública.

O país está lidando com um inimigo que ameaça, adoece, sufoca e mata. É da vida de pessoas que se trata. E Bolsonaro sistemática e reiteradamente subestima o perigo que nos ronda, quando deveria ser o primeiro a se perguntar o que é possível fazer para proteger ao máximo os brasileiros.

Quando as instituições brasileiras não reagem a tantos abusos, a democracia começa a morrer, o que sempre foi no fundo o seu grande projeto. Admirador confesso de ditadura e torturadores, Bolsonaro não acredita, nem respeita, os limites constitucionais. Para ele, são um estorvo. A grande pergunta é o que mais o país aceitará. E quais as cicatrizes que esse tempo deixará na democracia brasileira.

Não repetir 2009 - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 29/03

É importante que as medidas para sustentar renda e emprego sejam transitórias


Em 2009, como resposta à grande crise financeira internacional, o governo expandiu o gasto público e os empréstimos do BNDES, entre outras medidas. Era política contracíclica para estimular a economia.

A política, correta em 2009, perenizou-se. Os excessos já estavam claros na virada de 2009 para 2010. Começamos a cavar o buraco que terminou na grande crise brasileira de 2014-2016.

Assim, é muito importante que sejam transitórias todas as medidas que têm sido desenhadas para sustentar a renda e o emprego formal durante a crise produzida pela parada súbita da economia em consequência do enfrentamento da pandemia da Covid-19.

Não podemos repetir os erros de um passado tão próximo.
Presidente Jair Bolsonaro durante pronunciamento à imprensa no Palácio do Planalto para falar sobre a crise do Coronavírus - Pedro Ladeira/Folhapress

Além de recursos adicionais para a saúde, que o Tesouro tem transferido às secretarias, o pacote mínimo inclui: alguma ação para sustentação de renda dos trabalhadores informais; um programa de financiamento, com risco do Tesouro, para a sustentação do emprego formal; e algum programa de sustentação da receita dos estados e municípios.

Na quinta-feira (26), a Câmara aprovou auxílio de R$ 600 mensais por três meses aos trabalhadores do setor informal.

Para os trabalhadores do setor formal, será necessário cortar os custos das empresas e compartilhar a queda do produto ao longo do período de calamidade entre empregados, empregadores e governo.

O ideal é que os salários dos setores parados sejam reduzidos à metade e que o seguro-desemprego pague metade dessa queda. O trabalhador terá queda de 25% do salário, fato permitido pelo artigo 503 da CLT nas atuais circunstâncias.

A queda de 25% do salário pode ser compensada pela liberação do FGTS, como sugeriu Persio Arida nesta Folha.

Evidentemente os servidores públicos devem ser incluídos no esforço fiscal dos atuais tempos de guerra. Os salários do serviço público, como do setor privado, deveriam ser reduzidos em 25%.

Ecoando a proposta de Nelson Barbosa no Blog do Ibre (bit.ly/2JhrPAW), o governo enviou ao Congresso Nacional um projeto de emenda à Constituição (PEC) que permite ao Banco Central, em momentos de calamidade, a compra de títulos públicos e privados. Prepara o caminho para uma operação de sustentação da folha de pagamento de empresas.

Finalmente o tema mais delicado: algum programa de sustentação da renda dos estados e municípios.

Se o Tesouro sustentar a renda dos estados e municípios —por exemplo, garantir a receita de ICMS, ISS e o FPE nos níveis de 2019—, o custo do programa será muito elevado. A receita total de ICMS, ISS, FPE e FPM é da ordem de 11% do PIB. Uma frustração de receita por três meses de 75% tem custo fiscal de 2,1% do PIB ou R$ 150 bilhões.

Com todos os programas somados, incluindo a queda de receita da União, teríamos um déficit primário de uns 8% do PIB. É um pouco menor do que países desenvolvidos têm feito, mas parece excessivo para uma economia emergente que já parte de um nível excessivo de dívida.

Ou seja, temos o seguinte dilema: o pacote que parece razoável para enfrentarmos a crise nos legará um nível de dívida muito elevado.

Penso que não escaparemos de, conjuntamente com o pacote fiscal temporário, aprovar medidas que sinalizem construção de um equilíbrio fiscal a longo prazo.

O melhor candidato é a aprovação, conjuntamente com o pacote fiscal emergencial, da emenda constitucional emergencial para vigorar pelos próximos cinco anos, ao menos, para permitir a reconstrução da estabilidade fiscal.

Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.

Isolamento sim! - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 29/03

Governo emite sinais trocados e Brasil começa a se dividir. Coronavírus agradece



Eta gripezinha que está custando caro! O presidente da República fala para um lado e os ministérios agem para o outro, anunciando montanhas de dinheiro para enfrentar o abandono dos miseráveis que precisam do Bolsa Família, a insegurança dos informais e a dramática ameaça aos empregos. Isolamento, sim, para salvar vidas. E medidas emergenciais para reduzir os danos na economia.

É a realidade se impondo, com as lições vindo assustadoramente de fora. Se não quer ouvir a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Ministério da Saúde, a ciência e as estatísticas, o presidente deve ao menos se informar sobre o que aconteceu nos dois países mais afetados pelo Covid-19 no mundo. Nos Estados Unidos, seu tão amado Trump foi obrigado a recuar e agora clama para os americanos ficarem em casa. Na Itália, o mea culpa do prefeito de Milão é um grito de alerta.

Trump, como o “amigo” brasileiro, minimizou o coronavírus até que os EUA passaram a ser o epicentro da doença, ultrapassando os cem mil infectados e beirando 1.500 mortos. Só aí ele se rendeu à única “vacina” contra a pandemia: o isolamento social. Na Itália, o prefeito de Milão desdenhou do tsunami, animando as pessoas a saírem. Agora admite: “Errei”. Tarde demais. Os italianos já contabilizam mais de 9 mil mortes, 919 só na sexta-feira.

“Infelizmente, algumas mortes terão. Paciência, acontece, e vamos tocar o barco”, conformava-se o presidente brasileiro no mesmo dia, ignorando alertas e estatísticas, a lógica, o bom senso, a humanidade. Pior: a responsabilidade. Tudo em nome do seu novo slogan político: “O Brasil não pode parar”. O problema é que, se milhões são contaminados e milhares morrem, aí é que o Brasil vai parar. Só não vê quem põe sua visão pessoal acima das evidências.

Num país dividido, com um governo que emite sinais trocados, governadores e prefeitos, em maioria, decidem deixar o capitão falando sozinho e se articulam para enfrentar a pandemia, acolher os infectados e evitar mortes, enquanto os do Nordeste lançam manifesto “pela vida”. Mas o efeito do comando do presidente contra o isolamento já se faz sentir, com governadores aliados de Mato Grosso, Santa Catarina, Rondônia e Roraima se assanhando para flexibilizar o isolamento.

Na sociedade, o mesmo. CNBB (bispos), OAB (advogados), ABI (imprensa), SBPC (ciência), ABC (ciência) e Comissão de Direitos Humanos de São Paulo fazem alerta “em defesa da vida” e conclamam a população a “ficar em casa”, em respeito à ciência, aos profissionais de saúde e à experiência internacional.

Do outro lado, as falas e a campanha do presidente produzem aumento de pessoas nas ruas, shoppings de Minas reabrindo, a ofertazinha bacana da CNI em tempos de gripezinha: testes rápidos de coronavírus, de 15 em 15 dias, para 9,4 milhões de trabalhadores industriais. Isolamento social? “Só para pessoas com exame positivo.”

Bolsonaristas vão alegremente às ruas contra o isolamento. Mas de carro, que ninguém é besta, enquanto defendem que seus empregados se exponham ao vírus em ônibus e metrôs e garantam seu lucro. Só não entenderam ainda, e vão entender na marra, que, se os trabalhadores se contaminarem, eles também vão se contaminar, depois contaminar seus amores, famílias, amigos. E, “infelizmente, algumas mortes virão...”, lembram?

É profundamente importante, sim, reduzir os danos na economia, nos empregos, na pobreza. E é por isso que o Estado está devidamente flexibilizando a prioridade fiscal para tomar as medidas necessárias. O que não pode é desdenhar da morte em nome da economia. Até porque nada comprova a eficácia desse método ignorante e desumano (para não buscar adjetivos e referências pavorosas na história).

Oportunismo - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 29/03

Disputas miúdas na política dificultam o diálogo



O Brasil entrou enfraquecido nesta crise. As disputas miúdas na política dificultam o diálogo e a construção de soluções coordenadas.

A mediocridade da economia reflete as muitas dificuldades que as empresas enfrentam há anos, o que agrava o impacto da parada súbita da atividade.

O setor público encontra-se engessado pelas despesas obrigatórias. Como resultado, estados e municípios pedem novos esforços da população e recursos do Tesouro Nacional, em parte para pagar a sua folha de pessoal nestes tempos de queda de receita.

É urgente cuidar da saúde, mesmo que implique aumento da dívida pública. Os novos meios de pagamento ("maquininhas") podem ser utilizados para transferir recursos públicos para os micro e pequenos empreendedores.

É preciso, porém, separar o joio do trigo. Existem muitos pedidos justificados, mas também há casos de oportunismo.

O Tesouro Nacional não é um manancial inesgotável. Sem gestão adequada, a dívida crescente, já uma das maiores entre os países emergentes, pode resultar em prolongada depressão.

O país empobreceu. Os acionistas perderam metade ou mais do seu patrimônio, pequenos comerciantes devem quebrar, trabalhadores informais estão sem renda.

A queda da arrecadação é o efeito colateral de uma sociedade mais pobre e que, portanto, pode pagar menos tributos. O setor público deveria saber que precisa fazer a sua parte, cortando gastos obrigatórios para contribuir com as despesas emergenciais.

Não é o que está acontecendo. Governadores pedem ao Tesouro, isto é, à sociedade, que compense a queda de receita, com estimativas que parecem superestimadas. Além disso, ficam a inventar novas formas de onerar as empresas. Parecem dizer: "setor privado, você paga pela política social enquanto eu aumento a dívida pública para preservar a renda dos servidores".

Enquanto isso, os Legislativos e Judiciários dos estados têm fundos com bilhões em caixa. Não seria o caso de utilizar esses recursos, que foram arrecadados da sociedade, para auxiliar no combate à pandemia?

Se o Estado brasileiro não é capaz de se ajustar à realidade, então há algo de muito errado com as nossas regras. Como defender o direito adquirido dos servidores em um país que recorrentemente aumenta a carga tributária, onerando cada vez mais o setor privado, ainda mais em uma crise desta proporção? Quem ganha mais de R$ 30 mil está entre o 1% com maior renda.

O poder público deveria, como o resto do Brasil, contribuir com sua cota de sacrifício e cuidar dos grupos de riscos e das famílias mais vulneráveis, que são as vítimas principais deste cataclismo, e não compactuar com o corporativismo.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia
.

Covid-19: primeiras lições, desafios e propostas - ARMÍNIO FRAGA

FOLHA DE SP - 29/03

Covid-19: primeiras lições, desafios e propostas
Para o futuro, necessidade de reforçar e aprimorar SUS precisa voltar à tona


A crise humana, social e econômica causada pelo novo coronavírus está arrasando o planeta. A economia global já caminhava para um fim de ciclo de crescimento, após uma década de dinheiro barato e suas previsíveis consequências. O Brasil, ainda muito próximo do fundo do poço, tentava sem sucesso acelerar seu crescimento. A promessa de ideias liberais na economia gerou entusiasmo na bolsa, mas predominou o clima iliberal na política, que inibiu os “espíritos animais” do investimento. Isso antes da calamidade.

Neste contexto, chegou aqui o vírus, já comprovadamente espaçoso e perigoso. A reação inicial foi de minimizar o potencial do dano. Precioso tempo de resposta foi assim perdido. Desde então o número de casos reportados exibe tendência explosiva. Temendo o colapso do sistema de saúde, estados e municípios buscaram um isolamento social formal e extenso, como se fez mundo afora, uns de chofre, outros tardia e tragicamente.
O ministro da Economia, Paulo Gudes, durante coletiva de imprensa para falar sobre medidas do governo pra conter a epidemia de Coronavírus, no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira /Folhapress

Empresas em vários setores vivem hoje um colapso em suas receitas. As pessoas vivem em estado permanente de alta ansiedade quanto a sua saúde e seu emprego. As empresas se veem forçadas a demitir, para garantir sua sobrevivência. Um quadro de terror.

Em função da real ameaça de colapso econômico, o presidente da República quer ainda adotar uma estratégia de “isolamento vertical”. Nessa estratégia, o primeiro passo seria o isolamento social radical e completo por duas semanas, prazo suficiente para identificar e isolar portadores do vírus. Os mais idosos e vulneráveis permaneceriam isolados, e os demais voltariam a trabalhar normalmente.

Mas o primeiro passo já não ocorreu, nem ocorrerá, por várias razões geográficas e sociais. Além disso, o grupo vulnerável aqui é enorme: cerca de 38% da população é idosa e/ou portadora de doenças crônicas. Uma tentativa prematura de liberação geral teria como consequência uma inaceitável mortandade. O Reino Unido foi o único país que apontou para esse caminho, mas desistiu rapidamente face à escalada do contágio.

Nos resta, portanto, uma estratégia a partir de ações em quatro grandes frentes: médica (sobretudo equipamento e hábitos), logística (que garanta o suprimento, sobretudo de alimentos, para acalmar a população), assistencial (amparando os mais pobres, agora perdendo seu ganha pão) e das empresas (ameaçadas de falência). O isolamento seria flexibilizado aos poucos, na medida em que se tenha sucesso no controle da pandemia. Assim seriam minimizados os custos humanitários e econômicos.

Houve progresso na semana que passou. Listo alguns destaques. O país vive um mutirão emergencial de preparação para o pico de demanda por leitos e equipamentos. Sociedade civil engajada aqui. Declarou-se formalmente estado de calamidade, o que permite gastos acima das metas e tetos existentes. O Banco Central tomou inúmeras providências para estimular o crédito, inclusive a criação em conjunto com o Tesouro de uma linha de crédito de R$ 45 bilhões para as pequenas e médias empresas, muitas fatalmente atingidas pela crise. O Congresso aprovou com a concordância do Executivo a distribuição R$ 600 por mês para trabalhadores do setor informal, com base em informações do Cadastro Único. Em todas essas áreas há que se zelar para que os recursos atinjam seus objetivos, pois há muita pressa.

É necessário que mais recursos sejam canalizados para a população através dos canais do Bolsa Família e de um amplo programa para cadastrar as novas vítimas da crise econômica. Enquanto isso não ocorre, transferências adicionais podem ser feitas com a necessária urgência em bases provisórias, a partir de dados do Imposto de Renda e do INSS.

Cabe mencionar a possibilidade de se criar com recursos públicos uma nova linha de crédito para as PMEs que fluiria a partir dos canais dos cartões de crédito, a um custo bem baixo e amortização apenas quando as receitas das empresas se recuperassem. Essa linha seria crucial para atingir as menores empresas, muitas informais e não cobertas pela linha já anunciada. Levo muita fé nesta alternativa que entendo está sendo explorada pelas autoridades.

Urge a definição de uma estratégia compartilhada pelas três esferas do governo. Faz muita falta um gabinete focado exclusivamente na gestão da crise no governo federal, capaz de planejar, executar e comunicar para a nação os resultados de seu trabalho.

Concluo com dois temas onde identifico mais duas lições, voltadas para o futuro. Em primeiro lugar, o papel do SUS. Antes da crise já era clara a necessidade de se reforçar e aprimorar o SUS. Agora mais do que nunca o tema precisa voltar à tona assim que possível.

Em segundo lugar, embora haja bastante espaço fiscal para responder à crise, este espaço não é infinito. Portanto, as medidas devem ser adotadas a partir de uma estratégia bem definida e transparente, para que prioridades sejam respeitadas. Uma vez adotadas as medidas urgentes, a recuperação da saúde fiscal da nação deve voltar a ser uma prioridade, dado que infelizmente nosso histórico nesse terreno é fonte de preocupação. A continuidade do processo de construção de um Estado eficaz e financeiramente equilibrado apontaria para um futuro mais próspero e justo, e daria mais espaço para as respostas à crise.

Arminio Fraga
Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

O que você fez durante a epidemia? - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 29/03

Quando a crise passar, veremos quem fez o quê


A Gerdau, a Ambev e o hospital Albert Einstein deram uma lição ao grande empresariado nacional. Anunciaram a doação de um centro de tratamento de Covid-19 com cem leitos à prefeitura de São Paulo. Em duas semanas entregarão 40 leitos e, até o fim de abril, estarão prontos os outros 60. A unidade atenderá pacientes do SUS.

O pavilhão ficará anexo ao hospital M’Boi Mirim, na periferia da cidade. A Gerdau doará a estrutura do prédio, a Ambev bancará o custo, e o Einstein cuidará dos pacientes. Nenhum grande acionista da Gerdau ou da Ambev ficará mais pobre com a doação. Nas últimas semanas nenhum deles saiu por aí dizendo tolices demófobas em eventos teatrais. Sem espetáculo, fizeram o que acharam que deviam.

O Albert Einstein, nascido da filantropia da comunidade judaica de São Paulo aderiu à iniciativa num momento em que as grandes empresas de medicina privada (inclusive algumas que se dizem filantrópicas) oferecem aos brasileiros um virótico silêncio. Quando celebridades e ministros adoecem, é comum ver-se o logotipo desses hospitais na telinha. Agora que a emergência sanitária chegou ao andar de baixo, sumiram. (O ministro Luiz Henrique Mandetta queixou-se de que um desses potentados sequer devolveu seu telefonema.)

Coisas boas também acontecem. O colégio Miguel de Cervantes, situado nas proximidades do Einstein, abriu 300 vagas para filhos de enfermeiros, técnicos e médicos do hospital. A escola ocupa uma área de 60 mil metros quadrados e as crianças ficarão lá durante os turnos dos pais, assistidos por voluntários, sem contato físico. O hospital fornecerá a alimentação da garotada. Outro colégio da cidade, o Porto Seguro, aderiu à iniciativa.

Em Manaus, uma rede de lojas Bemol doou ao governo do estado seu estoque de mil colchões e máscaras. (Repetindo, doou o estoque.) No Rio de Janeiro, pizzarias continuam mandando refeições aos profissionais de saúde da cidade. Alguns deles trabalham em turnos de 24 horas.

Coisas assim parecem gotas d’água, mas como dizia Madre Teresa de Calcutá, “toda vez que eu ponho minha gota no oceano, ele fica maior”.

Um dia isso tudo terá passado e uma pergunta haverá de alegrar muita gente, encabulando outros: “O que você fez durante a epidemia do Covid?”

Bolsonaro atrapalha
Passará o tempo e ficará a lembrança de que, durante a epidemia do Covid, o presidente da República fez confusões, gracinhas e provocações com delírios autoritários.

Brincando com a crise sanitária, Bolsonaro causou estragos, mas os governadores e as lideranças parlamentares contiveram a ruína. Resta a crise econômica, paralela e duradoura. Nela, não haverá lugar para gracinhas, fantasias ou teatrinhos como que se organizou com amigos da Federação das Indústrias de São Paulo.

Em tempos saudáveis, durante a negociação da reforma de Previdência, sua ekipekonômica tentou tungar o Benefício de Prestação Continuada dos miseráveis. Depois decidiram taxar os desempregados. Com a epidemia, inventaram uma Medida Provisória de garantia ao desemprego sem contrapartida. Exposta a demofobia da iniciativa, veio a história de que acontecera um êrro de redação. Contem outra, doutores.

A matriz demófoba dos Acadêmicos da Economia foi ao vinagre e os doutores descobriram que o andar de baixo existe. Lidando com essa vertente da crise, volta-se ao ponto de partida: a máquina federal precisa funcionar.

A mente tumultuada do capitão produz frases desconexas. Um exemplo: “O povo tem que parar de deixar tudo nas costas do poder público”. Ele nunca recebeu um só centavo que não viesse das arcas do Tesouro, que é sustentado por esse mesmo povo.

Para Bolsonaro, tudo “é uma questão de poder”. Nas suas palavras, “se acabar a economia, acaba qualquer governo, acaba o meu governo”.

Engano, nenhum governo corre o risco de acabar, mas o dele depende de Jair Bolsonaro.

A lição de Bernanke
Durante a crise financeira de 2008 o professor Ben Bernanke (Stanford) estava à frente do Federal Reserve Bank americano. Ele era um verdadeiro economista liberal e fizera carreira estudando a Depressão dos anos 1930.

A situação estava tão braba que o secretário do Tesouro, Henry Paulson, em jejum, trancou-se no banheiro para vomitar.

Ambos decidiram despejar dinheiro no mercado, resgatando empresas que corriam o risco de quebrar, espalhando o pânico. Era o contrário do que havia aprendido, ensinado e praticado. Diante do que parecia uma contradição, ele ensinou ao mundo e a seus pares:

“Não há ateu em trincheira, nem ideólogo em crise financeira”.

Banqueiro doido
Quando ninguém sabe o que fazer, ou quando as rotinas não apontam uma saída, surgem loucos que se revelam gênios.

Em 1906, a cidade de San Francisco foi destroçada por um terremoto, seguido de incêndios. Amadeo Giannini tinha um pequeno banco e sua clientela vivia no andar de baixo. Ele alugou um caminhão de lixo e tirou todo o dinheiro de seu cofre. (Outros banqueiros achavam que deviam deixá-los nas caixas fortes e o calor assou as notas.)

A grande ideia de Giannini foi botar uma mesa na rua. Ele passou a emprestar dinheiro a quem estivesse precisando, confiando nos fios dos bigodes. Ele contava que recebeu de volta tudo o que emprestou e que, no primeiro dia dessa operação maluca, recebeu depósitos equivalentes a 1,5 milhão de dólares em dinheiro de hoje.

Mesmo que tenha exagerado, seu tamborete virou o Bank of America, um dos maiores dos Estados Unidos e ele entrou para a história da banca.

Hoje e ontem
O doutor Rubem Novaes, presidente do Banco do Brasil, ensinou que muita bobagem é feita e dita, inclusive por economistas, por julgarem que a vida tem valor infinito”.

A vida do outros, certamente. De qualquer forma, ele não é o único que pensa assim, nem essa maneira de pensar é nova.

Em 1830, a Santa Casa do Rio de Janeiro colocou um anúncio num jornal pedindo aos senhores de escravos que não mandassem para os cemitérios escravos doentes, mas ainda vivos.

Lembrando esse episódio, a historiadora Mary Karasch ensinou que naquele tempo a marca do comportamento do andar de cima não era e crueldade, mas o “simples descaso”.

Alívio
Na cúpula do Judiciário cozinha-se uma trégua para as empresas que estão em recuperação judicial que, sem malandragens, viram-se obrigadas a atrasar pagamentos por causa da contração da economia.

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota, venera todos os governantes presentes, passados e futuros. Por isso se aborreceu ao saber que a revista inglesa Economist chamou o capitão de “BolsoNero”.

O cretino acha que o imperador romano ganhou má fama por causa de historiadores marxistas da época. Ele teria tocado violino durante o incêndio de Roma, mas os violinos só apareceram séculos depois.

O mundo pós-corona - VERA MAGALHÃES

O Estado de S.Paulo - 29/03

Da economia às relações pessoais, passando pela política, nada será como antes


Se há uma única certeza a respeito de como sairemos dessa pandemia que bagunçou o dia a dia das pessoas, as relações interpessoais, a economia e a geopolítica do planeta é que nada, em nenhum desses territórios, voltará a ser como antes quando (e se) tudo isso passar.

Governantes populares até a virada do ano foram solapados pela crise; outros cuja imagem já parecia desgastada renasceram das cinzas; aqueles com uma reeleição certa no horizonte padecem na incerteza, enquanto os casos escalam em seus países; lideranças jovens aparecem em países não centrais do globo, e chamam a atenção pela forma segura com que conduzem seus governados no combate a um inimigo invisível, mas poderoso.

Na economia, na meca do capitalismo mundial, os Estados Unidos, Donald Trump, depois de flertar em ondas com o negacionismo em relação à pandemia, terminou a semana acionando o Ato de Proteção de Defesa, uma lei da época da Guerra da Coreia, para exigir que empresas como as icônicas montadoras de veículos produzam ventiladores para respiradores pulmonares e os forneçam ao Estado.

O Reino Unido, outro país que tentou ser blasé, deu um cavalo de pau e terminou a semana com restrições severas à circulação e o príncipe Charles e o premiê Boris Johnson “coronados”, símbolo imagético dificilmente superável.

Não será possível retornar - depois que o mundo sair de uma quarentena dura, que separa famílias e obriga as pessoas a redescobrirem desde regras de higiene pessoal até técnicas de trabalho e estudo remotos - ao estado em que estávamos, de um mundo polarizado e radicalizado em certezas tão absolutas quanto estúpidas.

Sim, alguns países fecharam mais suas fronteiras e a ideia de um “vírus chinês” infectando o mundo favorece uma sinofobia que campeia pelas purulentas redes sociais, mas a evidência de que a mesma China que iniciou o contágio tem muito a ensinar ao mundo em termos de contenção e continuará a ser imprescindível na hora de “religar" a economia planetária forçam, por exemplo, a que o mesmo Trump teça loas ao amigo “Xi”.

Não será possível imaginar um futuro pós-pandemia sem que a ciência finalmente, na marra, passe a ser levada em conta em decisões políticas e econômicas. Epidemiologistas, sujeitos antes exóticos que podiam ser bons consultores de filmes-catástrofe, viraram consultores de Estado e estrelas televisivas. E será preciso que sejam ouvidos sobre o timing da retomada da normalidade.

O negacionismo científico, essa chaga do século 21, que levou à eleição de néscios aqui e alhures, está cobrando um preço em forma de vidas humanas bem antes de fritarmos graças ao subestimado aquecimento global. Isso é devastador, e não há dogmas econômicos ou narrativa que sejam capazes de dar conta da resposta necessária.

O que nos traz ao momento atual do Brasil. Jair Bolsonaro parece ter resolvido dobrar todas as apostas mundiais em termos de irresponsabilidade. Pode até levar alguns mínions entediados a tirarem suas SUVs blindadas das garagens para um rolê com cafonas bandeiras do Brasil no capô, mas já está claro que não vai calar as panelas, algumas delas nas mesmas varandas gourmet.

E, o que é mais dramático, pode comprometer seriamente nossa resposta a essa pandemia. O preço será cobrado em cadáveres. Quando a irresponsabilidade de um governante é sentida na pele das pessoas e daqueles a quem elas amam, não há rede de robôs na internet que contenha o estrago.

Já não somos os mesmos que éramos em janeiro. Em São Paulo, Nova York, Milão ou Wuhan. Não seremos os de antes quando um dia sairmos de casa. Ou os governantes percebem que o mundo é outro e que deles se exige lucidez, ou serão varridos do mapa.