JOÃO UBALDO RIBEIRO
O QUE FIZ NAS FÉRIAS
ponto de vista
hoje no ESTADÃO
Regresso da minha movimentada estada anual em Itaparica com o ânimo elevado, não só pelo que lá vi como pelo que vejo cá. O que vi lá procurarei relatar adiante, mas o que tenho visto cá é quase plácida pasmaceira. Tem esse negócio aí de cartão corporativo, ou que outros nomes cabalísticos lhe dêem, mas sabemos por experiência que é tudo brincadeirinha, como sempre, e já estão combinando o resultados das investigações, o governo felicíssimo e todo mundo mais também felicíssimo, até porque talvez certas molezas sejam retiradas (e transferidas para outras práticas, nunca extintas), mas o cartão permanecerá, sob os mais fartos elogios, não só do presidente como de sua leal oposição. O desfecho é invariavelmente um sábio ''''não muda nada aí'''', até porque o povo não liga e é chegado a um cabresto curto desde as origens. Mudar isso seria um grande abalo em nossa busca de uma identidade nacional.
E o clima que tenho percebido, não posso negar, é de geral contentamento e felicidade. Desfiam-se números róseos para a economia, com aumento de empregos formalizados, consumo acelerado, inflação sob controle e apenas um problemazinho lá e cá, para dar graça. Todo mundo tem problema e o governo não é exceção. O que interessa é que o País se transformará num gigantesco canteiro de obras, a coisa está boa por tudo quanto é canto - a começar pelas culminâncias da popularidade do presidente - e falastrões maledicentes e agoureiros, do meu tipo, devem agora pelo menos ter a decência de reconhecer que erraram em tudo.
Faço isso com prazer, adoro ser politicamente correto. Ao que parece, errei em tudo e este ano será para todos um rosário de triunfos. Claro, não retiro nada do que escrevi. Uma coisa é reconhecer que se errou, outra coisa é desdizer-se. Talvez sejam manias d''''artista, maluquices de escritor, má vontade ou o que for lá, mas continuo, digamos, pensando errado. Até torço, pois, afinal, se trata de meu país e de meus compatriotas, para continuar errado ou mesmo erradíssimo e, vindo a deflagrar-se a revolução cultural já por muitos ansiada, envergarei com o garbo possível as orelhas de burro que me destinarem e darei o melhor de mim no desempenho das tarefas de limpador de estábulos da fazenda onde me submeterão a indispensável processo reeducativo.
Quanto à ilha, continua em posição de vanguarda no pensamento político e filosófico, que condiz perfeitamente com o clima ora vigente no País. Já não contamos com a Escola Filosófica do Sorriso de Desdém, aqui amiúde mencionada e jamais esquecida, nem temos mais um filósofo do porte do finado Luiz Cuiúba, mas, por exemplo, está em pleno funcionamento, sob a liderança de um peixeiro amigo meu que sempre roubou no peso (um para comprar, outro para vender; aquele mais leve, este mais pesado) e que por enquanto prefere manter seu nome em segredo, o Círculo de Estudos Santa Luzia. Designação duplamente adequada, pois o Mercado Municipal tem o nome dessa santa e ela é a padroeira dos que padecem da visão. Na opinião majoritária dos membros do grupo, o mal do Brasil é justamente não vermos o óbvio.
O agitador Zeca Harfush, conhecido na ilha como Zecamunista, devido a seu passado bolchevique, o mais respeitado quadro intelectual do Grupo, me concedeu uma breve entrevista, na qual, entre cusparadas de fumo de rolo mascado e breves surtos de exacerbação, me explicou sua posição, que, esperam ele e seus companheiros de pensamento e ação, virá a ser em breve a postura assumida de todos os brasileiros.
- Nós somos realistas - explicou-me o lendário subversivo. - E chegamos a nossas conclusões através de métodos rigorosamente lógicos e científicos. Partimos de um axioma básico que, certamente por motivos voluntaristas, moralistas, hipócritas, reacionários e colonizados, todos destituídos de qualquer fundamento na realidade, persistimos em negar, quando sua aceitação plena é a base para nossa afirmação como grande potência.
- Interessante, muito interessante. Que axioma é esse?
- Somos todos ladrões! - exaltou-se ele repentinamente. - Ladrões e trambiqueiros! Quando finalmente aceitaremos essa verdade cristalina, para assumir nosso papel de destaque no concerto das nações? É da nossa natureza meter a mão em qualquer grana que esteja dando sopa e procurar imediatamente se fazer, assim que chega a um cargo público. Qualquer um de nós é assim! O erro é, em vez de canalizar isso para nosso próprio benefício, querer combatê-lo, à custa de tanta mentira e sofrimento inúteis. O Grupo de Estudos Abra o Olho, que é o nome popular oficial de nosso movimento, tem como proposta básica a aceitação integral de nossa condição de povo de ladrões. Violentar a nossa natureza é que nos faz um mal terrível.
- Compreendo. É curioso que já ouvi essa opinião em outros lugares. Isso se aplica a esse problema dos cartões, não?
- É óbvio! Quanto tempo está sendo perdido com essa conversa mole dos cartões? Você sabe o que mais chateia o brasileiro nessa história? É que não deram um cartão a ele! Se tivessem dado, ele era todo a favor, a realidade é essa! Nosso lema é em latim, para impressionar o povão: ''''Hodie mihi, cras tibi'''', primeiro o meu! Que graça tem o sujeito se sacrificar para chegar ao poder e não se fazer? É para isso que o Estado existe, vamos deixar de ser burros! Colonizados! Moralistas de merda! Chega de querer prender ladrão, o certo é prender otário! Ladrões do Brasil, desuni-vos, a não ser para formação de quadrilhas! Nós somos bons mesmo é de maracutaia!
- E vocês pretendem levar esses ideais adiante, nas próximas eleições?
- Com certeza. A depender de quem compre os nossos votos, é claro.
domingo, fevereiro 24, 2008
ALEX MEDEIROS
Colunista: Alex Medeiros
E-mail: alexmedeiros@interjato.com.br
E-mail: alexmedeiros@interjato.com.br
A GENEALOGIA DOS COVARDES
Segundo a mitologia cristã, originária no livrão grosso de Javé, os homens descendem de Adão, as mulheres são filhas da serpente e os covardes herdaram o código genético de Caim, o sacripanta que matou o irmão, gerando até hoje o fratricídio civil.
Minha geração, que vestiu calça comprida no segundo tempo da ditadura militar, aprendeu com a geração anterior a classificar o criminoso torturador como o maior e mais safado dos covardes. Montaigne dizia que "a covardia é a mãe da crueldade".
Não precisa filosofar muito diante da frase do filósofo francês, nem repeti-lo em ensaios, para entender que a vil genitora pariu muitos filhos, vários arquétipos de crueldade, na manjedoura irracional do gênero humano.
Hoje eu já não coloco aquele torturador dos porões de antanho na cabeça do ranking da covardia. Seus atos, por mais hediondos, continham as digitais dos autores ideológicos de tais crimes, por mais que na pele da vítima ficassem as marcas da sua própria tara.
Sim, porque o torturador é - antes de ser um covarde - um tarado, aquele que falsifica a coragem numa atitude furtiva e de prévia proteção dele mesmo. O poeta Goethe bem definiu tal tipo de covarde: aquele que só ameaça quando se acha em segurança.
Era assim o torturador pau-mandado dos ditadores. Na segurança de um covil, na proteção dos chefes e na coragem escondida num capuz, era fácil abater sua presa. Mais havia um covarde maior que o torturador, exatamente o patrocinador da covardia, o mandante do crime.
Bingo! Eis aí a terminologia correta para o maior de todos os covardes. O mandante do crime, esse termo tão comum no linguajar das delegacias e nas pautas das editorias de Polícia. É o líder disparado do ranking das podridões humanas, o rei da covardia.
O profeta Maomé, das santas escrituras e risíveis caricaturas, ensinava que "a pior forma de covardia é testar o poder na fraqueza do outro". Perfeito. Na fraqueza de caráter dos assassinos subsiste e persiste a maldade dos covardes, a falsa valentia do mentor intelectual dos crimes.
O inseto que se veste com pele e vísceras humanas, conhecido no popular como mandante do crime, não tem na essência moral a verdadeira coragem do enfrentamento frontal. Se vale de outro infeliz, um grau abaixo dele na escala periódica da covardia, para praticar o que não ousa fazer.
Como os ditadores do passado e seus asseclas de malvadezas, que determinavam aos torturadores o ato de que não tinham coragem de executar, o covardão-mandante é uma figura menor, subnutrida de ética e que se esconde nos muitos medos que lhes atormentam.
No enorme clube do primeiro de todos os covardes tem carteirinha carimbada o marido traído, o machão frouxo que entende nos chifres um problema maior do que seus deslizes morais e sociais. O chifrudo que manda matar um pé-de-lã é também o mais ridículo dos covardes.
No desespero de manter incólume sua pseudo-honra masculina, imagina que sua condição de corno não atingirá o estágio de fama se o pé-de-lã que usufruiu de seus lençois for enterrado antes. Acha que enterrará junto o prazer que a esposinha sentiu em outros braços.
O corno vingativo que encomenda o assassinato do rival é a essência e excrescência do covarde. Jamais encontrará coragem ou hombridade para ficar frente a frente com aquele que, por ventura, tantas vezes encarou (de frente e de costas) a razão do seu raivoso e doentio ciúme.
Tal tipo de zé mané sofre por antecipação ao imaginar fitar nos olhos quem lhe arrebatou a maior de todas as conquistas. Mais fácil para sua covardia é terceirizar a histeria sileciosa. E então goza na bala dos outros a ira covarde dos que por não saber gozar foi trocado à revelia.
Voltando à literatura de Javé, foi Jesus quem decretou bem-aventurados os mansos, pois eles herdarão a Terra. Já esse escriba, farto da maldade humana, declara que aventurados sejam os cornos mansos, e que os cornos vingativos herdem as galhadas do inferno. (AM)
publicado no Jornal de Hoje
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