Na repartição do que quer que seja a parte do leão fica com quem tem o poder
Além das seguidas capitulações espontâneas do presidente, o que mais tem comprometido a reforma da Previdência é a “embriaguez da onipotência numérica” vivida pela família Bolsonaro. Tratase de uma confusão que decorre do encantamento com a contagem de números absolutos revelados pelo súbito destampar de panelas há muito forçadamente lacradas, operado pelo aprendizado no uso das redes sociais, que tem levado a trágicos erros de avaliação política pelo mundo afora, da Primavera Árabe em diante.
Depois do salto proporcionado pela ânsia do Brasil de se livrar da venezuelização que elegeu Bolsonaro, as pesquisas indicam uma volta da opinião pública ao leito da normalidade. Cada vez mais as manifestações de radicalismo só repercutem no gueto da direita incondicional, que não precisa ser conquistada, pois já é e nunca deixará de ser dele, assim como os 30% da esquerda incondicional foram do PT e são hoje dos seus sucedâneos. Para tudo mais elas só prejudicam. Como chegar a 308 deputados (partindo dos atuais 190) mais 49 senadores que a reforma requer carimbando qualquer conversa com eles como “prova” de corrupção?
A próxima parada, diz Paulo Guedes, é o Novo Pacto Federativo que reservará 70% do dinheiro dos impostos para Estados e municípios e 30% para a União. A distribuição do dinheiro dos impostos em consonância com a quantidade de assistidos por cada ente de governo, entretanto, é produto, onde ocorre, de um arranjo político revolucionário, e não o contrário. Na repartição do que quer que seja a parte do leão fica com quem tem o poder. É uma lei da natureza. Logo, para inverter a distribuição do dinheiro é preciso antes pôr o povo no poder.
O federalismo foi o arranjo institucional que deu consequência prática a essa inversão. A fórmula que criou governos dentro de governos, cada um deles soberano na sua esfera de atuação, mas dividido em três Poderes encarregados de filtrar as decisões uns dos outros, foi, pela primeira vez na História da humanidade, uma teoria criada para ser posta imediatamente em prática estritamente dentro da característica pragmática da cultura anglo-saxônica. Não para “criar uma nova humanidade”, à latina, mas para resolver um problema específico: como montar um esquema funcional para transferir o poder do monarca absolutista humano para o conjunto da população, também humana, e evitar o retorno à condição anterior de opressão, agora por uma maioria. Esse o ponto a que chegou a Democracia 3.0, modelo século 18, que nós nunca alcançamos. E não foi suficiente. Ele teve de evoluir, no século 20, para a Democracia 4.0, que pôs o indivíduo reinando soberano sobre todas as outras soberanias ao reforçar dramaticamente os poderes dos eleitores antes e depois do momento das eleições, com os direitos de cassar mandatos a qualquer momento, dar a última palavra sobre as leis que se dispõem a obedecer e submeter até os juízes, periodicamente, à confirmação do seu beneplácito. Pôr o carro adiante dos bois com um eleitorado inteiramente desarmado e legalmente proibido de defender-se contra a violência legislativa e regulatória dos donos do poder (como nos querem até em relação à própria vida os radicais desarmamentistas) só levará a uma multiplicação desastrosa dos focos de corrupção.
A maior dificuldade para arrumar o Brasil não está no confronto entre visões divergentes, está em formular uma visão divergente de fato, coisa que não poderá ser aprendida na práxis política corrente, que, pela direita e pela esquerda, vive da distribuição de pequenos privilégios. Vai requerer um longo mergulho no estudo da teoria política, assunto hoje anatemizado como sintoma de propensão à corrupção, e da história da evolução da democracia, pois em todos os países os problemas foram os mesmos que enfrentamos e muitos conseguiram superá-los. Não é preciso reinventar a roda. A questão é como fazer isso num país que socializou o pequeno privilégio numa extensão inédita no mundo e todos amam o seu, cujas escolas ou estão destruídas, ou estão censuradas pelo aparelhamento ideológico, o que nos leva ao outro grande foco de ruídos dos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro.
Nas democracias de DNA saxônico vigora um princípio que explica a resiliência delas e tem tudo que ver com federalismo. O controle da educação deve ficar o mais longe possível de quem já tem o controle da força armada, explicitamente como elemento básico de prevenção contra a sede insaciável de mais poder que todo poder tem.
De fato não faz nenhum sentido, senão como instrumento de perpetuação no poder, que num país continental cheio de itaocas e de megalópoles plantadas em realidades culturais, geográficas e de vocação econômica radicalmente diversas umas das outras, um único órgão centralizado, como o MEC, imponha o mesmo currículo e os mesmos métodos pedagógicos para todo mundo em todos os níveis de educação. Por isso, naquelas democracias, o controle das escolas públicas não fica sequer na mão do poder municipal, fica a cargo da menor unidade do sistema, os conselhos (school boards) eleitos por cada bairro entre os pais dos alunos que frequentarão aquela escola. Com sete membros com mandatos de quatro anos desencontrados, metade eleita a cada dois anos, são esses boards que contratam os diretores de cada escola pública e aprovam (ou não) os seus orçamentos e os seus programas pedagógicos.
Um conjunto de “distritos escolares”, o primeiro elo do sistema de eleições distritais puras, único que cria uma identificação perfeita entre os representantes eleitos e cada um dos seus representados permitindo o controle direto legítimo e seguro de uns sobre os outros, constituirá um distrito eleitoral municipal. Uma soma destes fará um distrito estadual, um conjunto dos quais dará um dos distritos federais que elegerão os deputados do Congresso Nacional.
A política, o patinho feio de todo o drama brasileiro, não pode, portanto, ser o último fator a ser considerado. Se for para curar o País, terá de ser o primeiro.
Além das seguidas capitulações espontâneas do presidente, o que mais tem comprometido a reforma da Previdência é a “embriaguez da onipotência numérica” vivida pela família Bolsonaro. Tratase de uma confusão que decorre do encantamento com a contagem de números absolutos revelados pelo súbito destampar de panelas há muito forçadamente lacradas, operado pelo aprendizado no uso das redes sociais, que tem levado a trágicos erros de avaliação política pelo mundo afora, da Primavera Árabe em diante.
Depois do salto proporcionado pela ânsia do Brasil de se livrar da venezuelização que elegeu Bolsonaro, as pesquisas indicam uma volta da opinião pública ao leito da normalidade. Cada vez mais as manifestações de radicalismo só repercutem no gueto da direita incondicional, que não precisa ser conquistada, pois já é e nunca deixará de ser dele, assim como os 30% da esquerda incondicional foram do PT e são hoje dos seus sucedâneos. Para tudo mais elas só prejudicam. Como chegar a 308 deputados (partindo dos atuais 190) mais 49 senadores que a reforma requer carimbando qualquer conversa com eles como “prova” de corrupção?
A próxima parada, diz Paulo Guedes, é o Novo Pacto Federativo que reservará 70% do dinheiro dos impostos para Estados e municípios e 30% para a União. A distribuição do dinheiro dos impostos em consonância com a quantidade de assistidos por cada ente de governo, entretanto, é produto, onde ocorre, de um arranjo político revolucionário, e não o contrário. Na repartição do que quer que seja a parte do leão fica com quem tem o poder. É uma lei da natureza. Logo, para inverter a distribuição do dinheiro é preciso antes pôr o povo no poder.
O federalismo foi o arranjo institucional que deu consequência prática a essa inversão. A fórmula que criou governos dentro de governos, cada um deles soberano na sua esfera de atuação, mas dividido em três Poderes encarregados de filtrar as decisões uns dos outros, foi, pela primeira vez na História da humanidade, uma teoria criada para ser posta imediatamente em prática estritamente dentro da característica pragmática da cultura anglo-saxônica. Não para “criar uma nova humanidade”, à latina, mas para resolver um problema específico: como montar um esquema funcional para transferir o poder do monarca absolutista humano para o conjunto da população, também humana, e evitar o retorno à condição anterior de opressão, agora por uma maioria. Esse o ponto a que chegou a Democracia 3.0, modelo século 18, que nós nunca alcançamos. E não foi suficiente. Ele teve de evoluir, no século 20, para a Democracia 4.0, que pôs o indivíduo reinando soberano sobre todas as outras soberanias ao reforçar dramaticamente os poderes dos eleitores antes e depois do momento das eleições, com os direitos de cassar mandatos a qualquer momento, dar a última palavra sobre as leis que se dispõem a obedecer e submeter até os juízes, periodicamente, à confirmação do seu beneplácito. Pôr o carro adiante dos bois com um eleitorado inteiramente desarmado e legalmente proibido de defender-se contra a violência legislativa e regulatória dos donos do poder (como nos querem até em relação à própria vida os radicais desarmamentistas) só levará a uma multiplicação desastrosa dos focos de corrupção.
A maior dificuldade para arrumar o Brasil não está no confronto entre visões divergentes, está em formular uma visão divergente de fato, coisa que não poderá ser aprendida na práxis política corrente, que, pela direita e pela esquerda, vive da distribuição de pequenos privilégios. Vai requerer um longo mergulho no estudo da teoria política, assunto hoje anatemizado como sintoma de propensão à corrupção, e da história da evolução da democracia, pois em todos os países os problemas foram os mesmos que enfrentamos e muitos conseguiram superá-los. Não é preciso reinventar a roda. A questão é como fazer isso num país que socializou o pequeno privilégio numa extensão inédita no mundo e todos amam o seu, cujas escolas ou estão destruídas, ou estão censuradas pelo aparelhamento ideológico, o que nos leva ao outro grande foco de ruídos dos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro.
Nas democracias de DNA saxônico vigora um princípio que explica a resiliência delas e tem tudo que ver com federalismo. O controle da educação deve ficar o mais longe possível de quem já tem o controle da força armada, explicitamente como elemento básico de prevenção contra a sede insaciável de mais poder que todo poder tem.
De fato não faz nenhum sentido, senão como instrumento de perpetuação no poder, que num país continental cheio de itaocas e de megalópoles plantadas em realidades culturais, geográficas e de vocação econômica radicalmente diversas umas das outras, um único órgão centralizado, como o MEC, imponha o mesmo currículo e os mesmos métodos pedagógicos para todo mundo em todos os níveis de educação. Por isso, naquelas democracias, o controle das escolas públicas não fica sequer na mão do poder municipal, fica a cargo da menor unidade do sistema, os conselhos (school boards) eleitos por cada bairro entre os pais dos alunos que frequentarão aquela escola. Com sete membros com mandatos de quatro anos desencontrados, metade eleita a cada dois anos, são esses boards que contratam os diretores de cada escola pública e aprovam (ou não) os seus orçamentos e os seus programas pedagógicos.
Um conjunto de “distritos escolares”, o primeiro elo do sistema de eleições distritais puras, único que cria uma identificação perfeita entre os representantes eleitos e cada um dos seus representados permitindo o controle direto legítimo e seguro de uns sobre os outros, constituirá um distrito eleitoral municipal. Uma soma destes fará um distrito estadual, um conjunto dos quais dará um dos distritos federais que elegerão os deputados do Congresso Nacional.
A política, o patinho feio de todo o drama brasileiro, não pode, portanto, ser o último fator a ser considerado. Se for para curar o País, terá de ser o primeiro.