Conheço pessoas que marcham contra o capitalismo mas não abrem mão dos seus frutos. Coisas como iPhone, café da Starbucks ou viagens de avião para lugares "intocados" pelo homem branco.
Sem falar de assuntos mais sérios, como cirurgias que exigem material altamente sofisticado. Curioso: nunca escutei nenhum dos militantes a recusar as máquinas e a optar coerentemente pelo feiticeiro da tribo.
Quando vejo certas passeatas contra a globalização e os manifestantes tirando "selfies" com orgulho, lembro-me sempre de uma observação de Paulo Francis sobre uma marcha contra a fome (acho) em que um dos participantes –um burguês qualquer de inclinações marxistas– tomava um sorvete durante o desfile.
Eu tomo sorvetes e não vou ao desfile. Sou um vergonhoso pró-capitalista por um motivo tão básico que nem merece comentário: o capitalismo tornou a minha vida melhor. Há quem sinta inveja dos ricos. Eu sinto gratidão: compro a revista "Forbes" com regularidade e, folheando as suas páginas, murmuro um "obrigado" a cada retrato.
Mas não é apenas gratidão. É admiração. Nunca seria um bom capitalista. Não tenho resistência para a vida miserável que os capitalistas levam –viagens de negócios, almoços de negócios, reuniões de negócios, infartes de negócios. Falei em "resistência" mas a palavra certa é preguiça: só de pensar em montar uma empresa sinto um cansaço tão extremo que preciso de uma sesta imediata e duas horas de spa.
Por outras palavras: a energia de Jeff Bezos parece-me tão inatingível como a velocidade de Usain Bolt. E se falo de Bezos é porque ele se prepara para suplantar Bill Gates como o homem mais rico do mundo. Parabéns, rapaz. Muito obrigado, rapazes.
Bill Gates permitiu-me bater essas linhas com rapidez, depois de consultar vários jornais do globo inteiro. Bezos teve uma influência mais subtil mas não menos revolucionária: ele poliu o selvagem que havia em mim.
Consigo ver esse selvagem: tinha 13 ou 14 anos e os pais, com uma paciência infinita, desembarcavam em Londres com ele. Durante um ano, o selvagem tinha poupado todos os tostões para quatro dias de "flânerie" literária. Os pais tiravam-lhe a coleira, largavam-no em Charing Cross Road e ele desaparecia durante 24 horas.
Quando regressava ao hotel, trazia às costas a Biblioteca de Alexandria, ou uma parte dela. Para quem vinha de um país pequeno, recém libertado de uma ditadura, aquilo era uma experiência espiritual, não apenas livresca.
Às vezes, sinto saudades desses tempos de descoberta e apoplexia. Mas é nostalgia de ingrato. A Amazon, que conheci nos primeiros anos da idade adulta, não permitiu apenas acesso fácil ao melhor do pensamento e das artes. A Amazon arrasou com a própria noção de periferia: era possível estar na aldeia e ter acesso ao último livro de um autor relevante.
Por último, e talvez mais importante, a Amazon deu-me poder: o poder que só o conhecimento permite.Por isso Jeff Bezos desperta a hostilidade de tantas "elites": elas podem falar de "democracia" como se fosse um tique nervoso; mas a Amazon democratizou realmente a cultura –a alta, a média, a baixa– de uma forma que nenhum governo –de direita, de esquerda, de centro– seria capaz de igualar.
Hoje, é moeda corrente discutir o desaparecimento do "intelectual público". Existem várias explicações para esse eclipse –crescente especialização do saber; complexidade dos fenômenos sociais; segmentação dos interesses dos consumidores; etc. etc. Certo, tudo certo.
Mas o "intelectual público" desapareceu quando ele deixou de ter acesso exclusivo à informação e ao conhecimento. Não admira que muitos deles manifestem tanto rancor contra o capitalismo, em geral, e contra o sr. Bezos, em particular. No fundo, no fundo, como é possível permitir ao povão o acesso direto à fonte sem "engenheiros de almas humanas"?
Entendo o drama. E tenho solução para ele: tomar um bom sorvete que isso passa.