A gourmetização da exploração será oferecida como nova tendência de negócios
Os últimos séculos nos legaram um hábito de controle: computadores, celulares, longevidade, vacinas, anticoncepcional. A contingência parecia acuada no seu canto como algo cafona.
Eis que ela volta à cena, na forma descrita pela literatura trágica: cruel, randômica e carregando no seu coração a cegueira não humana dos elementos indiferentes do universo. O vírus é niilista na sua estrutura cosmológica.
A fúria motivacional se constituiu, nos últimos anos, em paradigma do mundo corporativo, da educação e, logo, da filosofia e da teologia. O paradigma do coaching se fez cosmologia. E, com o mercado da pandemia, esse processo só se radicalizará porque as pessoas estão em pânico. Sob pânico, a exploração cresce exponencialmente.
Ricardo Cammarota
O mercado da pandemia faria Adam Smith (1723-1790) se perguntar de forma mais radical ainda quais seriam os danos causados pelo enriquecimento das nações aos sentimentos morais. Adam Smith era um filósofo da moral, como, aliás, a maioria dos iluministas britânicos dos séculos 18 e 19. O mercado da pandemia faria nosso filósofo enrubescer de vergonha.
Se a ganância, o egoísmo e o oportunismo sempre foram “paixões negativas” que produzem riqueza, fato não ignorado por Adam Smith, o mercado da pandemia comprovará seu temor original de forma mais radical.
O pânico das pessoas diante da visita cataclísmica da contingência, pondo em dúvida nossos avanços na vida social, econômica, política e global, já dá indícios de que o mundo pós-pandemia será mais hostil, controlador e explorador do que foi até aqui.
Purpurina e “gourmetização” da exploração serão oferecidos como novas tendências de negócios em todos os níveis. Aliás, a comparação feita pela primeira ministra alemã Angela Merkel entre o que vivemos e a Segunda Guerra Mundial se revela cada vez mais evidente.
Nas guerras, as virtudes se tornam raras, e não o contrário. Como já descrevera o grande Tolstói (1828 1910) no seu “Guerra e Paz”, romance que se passa nas guerras napoleônicas, as guerras e as batalhas são eventos em que imperam a covardia, a sorte e o azar como senhores do mundo.
Sua conhecida concepção de história, discutida a fundo pelo filósofo Isaiah Berlin (1909-1997) em seu livro “Pensadores Russos”, revela um Tolstói descrente em qualquer sentido histórico maior, uma espécie de anti-Hegel convicto.
Reduzidos ao medo e à precariedade moral, econômica e política, homens e mulheres perdem certas virtudes sociais construtivas e se lançam, como podem, à acomodação e à miséria ética. Foi essa a grande causa do colaboracionismo em escala monumental durante a ocupação nazista nos países da Europa.
Políticos, empresários, artistas, intelectuais, pais e mães de família, em grande maioria, em silêncio, atravessaram a ocupação nazista fazendo qualquer negócio em nome de refeições mínimas no seu dia a dia.
Já vemos os sinais: busca de fama às custas do medo das pessoas diante da pandemia, aumento do nível da exploração do trabalho em nome do marketing, redução de grande parte da população às esmolas dos Estados, defesa de “passaportes de imunidade” para as pessoas trabalharem e, no Brasil, irresponsabilidade na gestão política.
Se alguns acham que a ciência sairá fortalecida moralmente com a pandemia, suspeito que esse juízo não seja tão óbvio. À primeira vista, a espera desesperada pela vacina e por medicamentos nos faz crer nesse fortalecimento da visão social da ciência.
Todavia, ao olhar um pouco mais atento, a ciência tem demonstrado sua multiplicidade contraditória de comportamentos, que vão desde as virtudes de pesquisa que animam muitos dos melhores cientistas e instituições até a busca vaidosa pelas luzes da fama, além de sua vocação totalitária quando erguida ao pedestal da política.
Enfim, o vínculo entre o novo mercado da pandemia e o niilismo já se faz sentir aos olhos de quem sempre soube que esta profunda descrença no mundo nos espreita pela fresta da porta. Arriscaria dizer que um grande desafio espiritual pós-pandemia será não sucumbir ao niilismo mais uma vez.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.