O Globo/Folha de SP - 12/04
Ministro perdeu uma oportunidade de ficar calado quando disse que “a saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia"
O ministro Luís Henrique Mandetta perdeu uma oportunidade de ficar calado quando disse que “a saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia, porque eles também são seres humanos e também precisam colaborar, ajudar, participar.”
Para um ministro da Saúde que construiu sua reputação falando no valor do conhecimento, só se pode atribuir essa declaração à síndrome do holofote. Dialogar com as milícias e com o tráfico é coisa que o poder público do Rio de Janeiro pratica há décadas. O próprio Mandetta já viu a promiscuidade suprapartidária que dialoga com a contravenção em Mato Grosso do Sul.
A essência da fala do ministro é um truísmo. Em diversas áreas o poder público precisa dialogar com a bandidagem para trabalhar em paz. O que ela não precisa é legitimá-lo, coisa que Mandetta fez. Essa legitimação não funciona apenas como um gesto simbólico. Ela ampara organizações criminosas. Além disso, tanto os traficantes como as milícias dividem-se em facções. Como se faria esse diálogo: numa assembleia?
O ministro da Saúde poderia se informar sobre as consequências de sua fala com o ministro da Justiça, mas faz tempo que o doutor Sergio Moro entrou numa quarentena. Além dele, poderia também recorrer ao acervo de conhecimentos da família Bolsonaro com milicianos. Ninguém deve se meter com decisões profissionais dos médicos, mas eles também não devem ir além delas, atropelando as leis.
Numa guerra, o poder público pode precisar de algum tipo de entendimento com o crime organizado, mas não pode legitimá-lo. Em 1941, o governo americano entendeu-se com a máfia do porto de Nova York para que ela não atrapalhasse seus embarques militares. Mais: em 1943, quando a tropa do general George Patton desembarcou na Sicília, cultivou a simpatia da máfia. O “capo” Don Calogero Vizzini tornou-se prefeito da cidade de Villalba e coronel honorário da exército americano. O preço desse diálogo seria um problema dos italianos.
O general Patton nunca assumiu publicamente a ajuda da Máfia.
O Itaú Unibanco dá o exemplo
O Itaú Unibanco anunciará amanhã uma doação de R$ 1 bilhão para o combate à Covid-19. O dinheiro irá para a fundação do banco e será administrado exclusivamente por um conselho de profissionais da saúde, onde estarão diretores de hospitais públicos e privados. Dinheiro na veia.
Essa será a maior iniciativa filantrópica já ocorrida no Brasil e sua lembrança ficará gravada na história da pandemia. Para se ter uma ideia do tamanho da doação, estima-se que em 2016 todas as iniciativas filantrópicas de corporações brasileiras somaram R$ 2,4 bilhões. (Nessa cifra entraram ações relacionadas com cultura, meio ambiente e educação, por exemplo.)
De onde eles estão, Olavo Setúbal (1923-2008) e Walther Moreira Salles (1902-2001), criadores dos dois bancos, terão um momento de orgulho.
Andrew Carnegie
Não custa relembrar Andrew Carnegie.
Ele foi um pobre imigrante escocês que se tornou o homem mais rico dos Estados Unidos. Em 1901, aos 65 anos, vendeu seu império siderúrgico e passou o resto da vida distribuindo dinheiro. Carnegie ensinou:
“Morrer rico é uma desgraça”.
Ele se foi em 1919, depois de ter doado 350 milhões de dólares. (Algo como US$ 10,5 bilhões em dinheiro de hoje.)
Tasca
O ministro Alexandre de Moraes sabe Direito e travou a ofensiva de Bolsonaro contra as medidas de isolamento determinadas pelos governadores.
Na sua decisão, redigida em juridiquês, ele foi além. Reconhecendo que “não compete ao Poder Judiciário substituir o juízo de conveniência e oportunidade realizado pelo Presidente da República no exercício de suas competências constitucionais”. Até aí, o óbvio, mas o doutor foi além:
“Porem, é seu dever constitucional exercer o juízo de verificação da exatidão do exercício dessa discricionariedade executiva (...) verificando a realidade dos fatos e também a coerência lógica da decisão com as situações concretas.”
Se Moraes quer “coerência lógica” do presidente da “gripezinha”, perde seu tempo. Mesmo assim, não é atribuição do Poder Judiciário determinar sua interdição.
Em seu benefício, deve-se registrar que Alexandre de Moraes apenas segue uma virótica mania do Judiciário de ir além das próprias chinelas.
Sessões eletrônicas
As próximas sessões do Supremo Tribunal serão realizadas em videoconferências. Realiza-se assim o sonho de vários ministros.
Eles poderão ficar com os rostos no vídeo, tirando o som dos soporíferos votos de alguns colegas.
Memória
Nos anos 1940, o garoto Michel Temer vivia num sítio em Tietê, no interior de São Paulo, e por perto havia um bosque de eucaliptos chamado de Hospital. Ele não passava por perto e, muitas vezes, perdeu o sono por causa das assombrações que apareciam entre as árvores.
A memória da região contava que durante os surtos de febre amarela do início do século, era lá que se enterravam os doentes, alguns deles ainda vivos.
Carnificina
De um empresário que já viu de tudo:
“Vem aí uma carnificina em cima dos pequenos negociantes. Uma parte vai quebrar e quem tiver sorte venderá para um concorrente.”
Segunda-feira
Está entendido que, pelos piores motivos, Jair Bolsonaro quer demitir o ministro Luiz Henrique Mandetta. Também está entendido que Mandetta tem seus limites e se dispõe a ir embora para não ser avacalhado.
Mesmo assim, não se pode dizer que Bolsonaro estivesse disposto a demiti-lo na segunda-feira.
Ficou a impressão de que o presidente foi dissuadido por conselheiros militares (abracadabra). Admita-se, contudo, que a demissão iminente de Mandetta foi divulgada por gente que, sabendo-a incerta, queria que ao final Bolsonaro ficasse mal na fotografia, como se tivesse sido obrigado a engoli-lo.
O médico e o paciente querem se livrar um do outro. Ambos esperam o melhor momento.
Erosão
Em 2018 o candidato Jair Bolsonaro era o quindim da maioria dos médicos e de todos os empresários do agronegócio.
Com seu diagnóstico da “gripezinha” perdeu os médicos. Com a encrenca que seu ministro da Educassão arrumou com a China, perdeu as lideranças empresariais da lavoura e da pecuária.