domingo, junho 02, 2013

O enigma das elites - J. R. GUZZO

REVISTA VEJA


 Lula saiu do povo e não voltou mais. Anda com bilionários, exige jato particular para ir às suas conferências e Johnnie Walker Rótulo Azul no cardápio de bordo


A elite brasileira é acusada todo santo dia pelo ex-presidente Lula de ser a inimiga número 1 do Brasil - uma espécie de mistura da saúva com as dez pragas do Egito, e culpada direta por tudo o que já aconteceu, acontece e vai acontecer de ruim neste país. É possível até que tenha razão, pois se há alguma coisa acima de qualquer discussão é a inépcia, a ignorância e a devastadora compulsão por ganhar dinheiro do Erário que inspiram há 500 anos, inclusive os últimos dez e meio, a conduta de quem manda no país, dentro e fora do governo. O diabo do problema é que jamais se soube exatamente quem é a elite que faz a desgraça do Brasil. Seria indispensável saber: sabendo-se quem é a elite, ela poderia ser eliminada, como a febre amarela, e tudo estaria resolvido. Mas continuamos não sabendo, porque Lula e o PT não contam. Falam do pecado, mas não falam dos pecadores; até hoje o ex-presidente conseguiu a mágica de fazer discursos cada vez mais enfurecidos contra a elite, sem jamais citar, uma vez que fosse, o nome, sobrenome, endereço e CPF de um único de seus integrantes em carne e osso. Aí fica difícil.

Mas a vida é assim mesmo, rica em perguntas e pobre em respostas; a única saída é partir atrás delas. Na tarefa de descobrir quem é a elite brasileira, seria razoável começar por uma indagação que permite a utilização de números: as elites seriam, como Lula e o PT frequentemente dão a entender, os que votam contra eles nas eleições? Não pode ser. Na última vez em que foi possível medir isso com precisão, no segundo turno das eleições presidenciais de 2010, cerca de 80 milhões de brasileiros não quiseram votar na candidata de Lula, Dilma Rousseff: num eleitorado total pouco abaixo dos 136 milhões de pessoas, menos de 56 milhões votaram nela. É gente que não acaba mais. Nenhum país do mundo, por mais poderoso que seja, tem uma elite com 80 milhões de indivíduos. Fica então eliminada, logo de cara, a hipótese de os inimigos da pátria serem os brasileiros que não votam no PT.

As elites seriam os ricos, talvez? De novo, não faz sentido: os ricos do Brasil não têm o menor motivo para se queixar de Lula, dos seus oito anos de governo ou da atuação de sua sucessora. Ao contrário, nunca ganharam tanto dinheiro como nos últimos dez anos, segundo diz o próprio Lula. Ninguém foi expropriado sequer em 1 centavo, ou perdeu patrimônio, ou ficou mais pobre em conseqüência de qualquer ato direto do governo. Os empresários vivem encantados, na vida real, com o petismo; um dos seus maiores orgulhos é serem "chamados a Brasília" ou alcançarem a graça máxima de uma convocação da presidente em pessoa. No puro campo dos números, também aqui, não dá para entender como os ricos possam ser a elite tão amaldiçoada por Lula e seus devotos. De 2003 para cá, o número de milionários brasileiros (gente que tem pelo menos 2 milhões de reais, além do valor de sua residência) só aumentou. Na verdade, segundo estimativas do consórcio Merrill Lynch Capgemini, apoiado pelo Royal Bank of Canada e tido como o grande perito mundial na área, essa gente vem crescendo cada vez mais rápido. Pelos seus cálculos, surgem dezenove novos milionários por dia no Brasil, o que dá quase um por hora, ou cerca de 7 000 por ano; em 2011, o último período medido, o Brasil foi o país que teve o maior crescimento de HNWIs - no dialeto dos pesquisadores, "High Net Worth Individuais", ou "milionários". O resultado é que há hoje no Brasil 170 000 HNWIs - os 156 000 que havia no levantamento de 2011 mais os 14 000 que vieram se somar a eles, dentro da tal conta dos dezenove milionários a mais por dia.

Não dá para entender bem essa história. O número de milionários brasileiros, após dez anos de governo popular, não deveria estar diminuindo, em vez de aumentar? Deveria, mas não foi o que aconteceu. A sempre citada frota de helicópteros de São Paulo, com 420 aparelhos, é a segunda maior do mundo; no Brasil já são quase 2000, alugados por até 3 000 reais a hora. Os 800 000 brasileiros, ou pouco mais, que estiveram em Nova York no ano passado foram os turistas estrangeiros que mais gastaram ali: quase 2 bilhões de dólares. Na soma total de visitantes, só ficaram abaixo de canadenses e ingleses - e seu número, hoje, é dez vezes maior do que era dez anos atrás, início da era Lula. O eixo formado pela Avenida Europa, em São Paulo, é um feirão de carros Maserati, Lamborghini, Ferrari, Aston Martin, Rolls-Royce, Bentley, e por aí afora. Então não podem ser os ricos os cidadãos que formam a elite brasileira - se fossem, estariam sendo combatidos dia e noite, em vez de viverem nesse clima de refrigério, luz e paz.

Um outro complicador são as ligações de Lula com a nossa vasta armada de HNWIs, como diriam os rapazes da Merrill Lynch. É um mistério. Como ele consegue, ao mesmo tempo, ser o generalíssimo da guerra contra as elites e ter tantos amigos do peito entre os mais óbvios arquiduques dessa mesmíssima elite? Ou será que bilionários e outros potentados deixam de ser da elite e recebem automaticamente uma carteirinha de "homem do povo" quando viram amigos do ex-presidente? Para ficar num exemplo bem fácil de entender, veja-se o caso do ex-governador de Mato Grosso Blairo Maggi, uma das estrelas do círculo de amizades políticas de Lula. O homem é o maior produtor individual de soja do mundo, e a extensão das suas terras o qualifica como o suprassumo do "latifundiário" brasileiro. É detentor, também, do título de "Motosserra de Ouro", dado anos atrás pelo Greenpeace - grupo extremista e frequentemente estúpido, mas que ainda faz a cabeça de muita gente boa pelo mundo afora. É claro que não há nada de errado com Blairo: junto com seu pai, André, fundador da empresa hoje chamada Amaggi, é um dos heróis do progresso do Brasil Central e da transformação do país em potência agrícola mundial. Mas, se Blairo Maggi não é elite em estado puro, o que seria? Um pilar das massas trabalhadoras do Brasil? Lula anda de mãos dadas com Marcelo Odebrecht, presidente de uma das maiores empreiteiras de obras do Brasil e do vasto complexo industrial que crescerem torno dela. Ainda há pouco foi fotografado em companhia do inevitável Eike Batista, cuja fortuna acaba de desabar para meros 10 bilhões de dólares, numa visita a um desses seus empreendimentos que nunca decolam; foi seu advogado, logo em seguida, para conseguir-lhe um ajutório do governo. É um fato inseparável de sua biografia, desde o ano passado, o beija-mão que fez a Paulo Maluf, hoje um aliado político com direito a pedir cargos no governo - assim como Maggi, que ainda recentemente foi cotado para ser nada menos, que o ministro da Agricultura de Dilma. Dize-me com quem andas e eu te direi quem andas e te direi quem és, ensina o provérbio.   Talvez não dê, só por aí, para saber quem é realmente Lula. Mas, com certeza, está bem claro com quem ele anda.

As classes que Lula e o PT descrevem  a "elite brasileira" não são suas amigas só de conversa - estão sempre prontas para abrir o bolso e encher de dinheiro a companheirada. Nas últimas eleições presidenciais, presentearam a candidata oficial Dilma Rousseff quase 160 milhões de reais - mais do que deram a todos os outros candidatos somados. Há de tudo nesses amigos dos amigos: empreiteiros de obras, é claro, banqueiros de primeira, frigoríficos empenhados até a alma no BNDES, siderúrgicas, fábricas de tecidos, indústrias metalúrgicas, mineradoras. É o que a imprensa gosta de chamar de "pesos-pesados do PIB". Ninguém, nessa turma, faz mais bonito que as empreiteiras, que dependem do Tesouro Nacional como nós dependemos do ar. Foram as maiores doadoras privadas às eleições municipais do ano passado: torraram ali quase 200 milhões de reais, e o PT foi o partido que mais recebeu. Ficou com cerca de 30% da bolada distribuída pelas quatro maiores empreiteiras do país, e junto com seu grande sócio da "base aliada", o PMDB, raspou metade do dinheiro colocado nesse tacho. Todo mundo sabe quem são: Andrade Gutierriz, Queiroz Galvão, OAS e Camargo Corrêa. Mas esses nomes não resolvem o enigma que continua a ocultar a identidade dos membros da elite. Com certeza, nenhum dos quatro citados acima pertence a ela, já que dão tanto dinheiro assim ao ex-presidente, seu partido e seus candidatos. Devem ser, ao contrário, a vanguarda classes populares.

Restariam como membros da elite, enfim "inconformados" com o fato de que "um operário chegou à Presidência" ou que a "classe melhorou de vida. Mais uma vez, não dá para levar a sério. Por que raios essa gente toda está inconformada, se não perdeu nada com isso? Qual diferença prática lhes fez a eleição de presidente de origem operária, ou por que sofreriam vendo um trabalhador viajar de avião? Num país com 190 milhões de habitantes, é óbvio há muita gente que detesta o ex-presidente, ou simplesmente não gosta dele. E daí? Que lei os obriga a gostar? Acontece com qualquer grande nome da política, em qualquer lugar do mundo.  Ainda outro dia, milhares de pessoas foram às ruas de de Londres para festejar alegremente a morte da ex-líder britânica Margaret Thatcher - que já não estava mais no governo havia 23 anos. É a vida. Por que Lula e seus crentes não se conformam com isso e param de encher a paciência dos de outros com sua choradeira sem fim? O resumo dessa ópera é uma palavra só: hipocrisia. Lula bate tanto assim na "elite" para esconder o fato de que ele é hoje, na vida real, o rei da elite brasileira. O ex-presidente diz o tempo todo que saiu do povo. De fato, saiu - mas depois que saiu não voltou nunca mais. Falemos sério: ninguém consegue viver todos os dias como rico, viajar como rico, tratar-se em hospital de rico, ganhar como rico (200 000 reais por palestra, e já houve pagamentos maiores), comer e beber como rico, hospedar-se em hotel de rico e, com tudo isso, querer que os outros acreditem que não é rico. Lula exige jato particular para ir às suas conferências e Johnnie Walker Rótulo Azul no cardápio de bordo. Quando tem problemas de saúde, interna-se no Hospital Sírio-Libanês de São Paulo, um dos mais caros do mundo. Sempre chega ali de helicóptero. Vive cercado por um regimento de seguranças que só o típico magnata brasileiro costuma ter. O ex-presidente sempre comenta que só faIam dessas coisas porque "não admitem" que um "operário" possa desfrutar delas. Mas onde está o operário nisso tudo? É como se o banqueiro Amador Aguiar, que foi operário numa gráfica do interior de São Paulo e ali perdeu, exatamente como Lula, um dos dedos num acidente com a máquina que operava, continuasse dizendo, sentado na cadeira de presidente do Bradesco, que era um trabalhador manual.

Lula não trabalha, não no sentido que a palavra "trabalho" tem para o brasileiro comum, desde os 29 anos de idade, quando virou dirigente sindical e ganhou o direito legal de não comparecer mais ao serviço. Está a caminho de completar iria 68 e, depois que passou a fazer política em tempo integral, nunca mais tomou um ônibus, fez uma fila ou ficou sem dinheiro no fim do mês. Melhor para ele, é claro. Mas a vida que leva é um igualzinha à de qualquer cidadão da elite. O centro da questão está aí, e só aí. Todo o resto é puro conto do vigário.

Não enlouqueça com os preços - RUTH DE AQUINO

REVISTA ÉPOCA

Pesquise sempre, em qualquer cidade. Rasgar dinheiro é um atestado de loucura 



O consumidor não gosta de se sentir otário. Está na hora de boicotar quem mete a mão no nosso bolso. Quando o brasileiro médio começa a viajar ao exterior para fazer compras sem se sentir roubado, é porque nossa economia desandou. Felizmente, ainda não perdemos a referência de preços, como nossos hermanos na Argentina, onde os índices são todos maquiados, e a presidente Cristina Kirchner restringe o direito de ir e vir do cidadão. Mas tudo fica mais caro de um dia para outro – de alimentos a serviços e passagens. E bem acima dos salários.

Fiz um teste com uma lista de supermercado. Grãos, legumes, frutas, carnes, peixe, legumes, verduras, laticínios, produtos de limpeza. Mínima quantidade de cada mercadoria. No mercado Zona Sul do Leblon, paguei R$ 452. No mercado Mundial, da Barra da Tijuca, R$ 345. Mesmas marcas, mesmos pesos. E uma diferença de 30% no preço total. Só 12 quilômetros separam os dois estabelecimentos. Pesquise sempre em qualquer cidade. Rasgar dinheiro é atestado de loucura.

Muitos bares e botequins do Rio de Janeiro e de São Paulo aprenderam a lucrar o máximo, tirando proveito da crise real e psicológica. Reduzem as porções – e o tamanho dos salgados – e cobram R$ 5 a unidade. Em botecos cariocas recomendados por guias, como Jobi ou Chico e Alaíde, os croquetes e bolinhos de aipim ficaram raquíticos, viraram umas bolinhas. E mais caros. Parece que R$ 5 passou a ser o valor mínimo de qualquer coisa. É quanto os quiosques da praia cobram por uma água de coco que pode acabar em três goles. Absurdo!

O quiosque Palaphita Kitch, com bela vista na Lagoa Rodrigo de Freitas, se define como uma “experiência mística”, onde você “entra um e sai outro” – bem mais pobre e revoltado com os preços e o serviço. Uma caipirinha de cachaça “especial” custava ali R$ 26 até pouco tempo atrás! Em Búzios, na costa norte do Rio, um picolé na Praia de Geribá chega a custar R$ 13. Não, obrigada. Vou direto ao fornecedor para satisfazer o desejo por sorvetes.

Jovens resolveram contra-atacar a carestia desenfreada lançando sites úteis. O www.riomaisbarato.com.br dá dicas de opções culturais gratuitas e lugares para comer e beber que não provoquem indigestão na hora da conta. Em São Paulo, quatro amigos criaram o www.boicotasp.com.br para alertar sobre as armadilhas. Os usuários denunciam o grau de exploração do lugar, de 0 a 5, e podem publicar foto do que consumiram com o preço ao lado.

A remarcação abusiva de preços é um duplo tiro no pé. Primeiro, afasta o cliente. O consumo das famílias brasileiras caiu drasticamente no primeiro trimestre de 2013. Todos pensam duas vezes antes de comprar. A inadimplência aumentou. Uma pesquisa da Fecomércio do Rio em nove regiões metropolitanas mostrou que os brasileiros passaram a parcelar compras de alimentos com cartão de crédito. É a primeira vez que isso acontece nos últimos sete anos.

Não somos o povo mais culto do mundo. Mas a classe média não é desinformada. Os gastos de turistas brasileiros no exterior se multiplicam. Nos Estados Unidos, o que gastamos em compras só perde para japoneses e britânicos. Em Paris, as ruas estão coalhadas de conterrâneos. Não é só porque o poder aquisitivo da classe média aumentou no Brasil. É porque nosso país está caro demais, impraticável. Gasolina, transporte, restaurante, shows.

Uma tendência atual é viajar para Nova York ou Miami para fazer o enxoval do bebê. Compra-se pela metade do preço, ou um quinto do preço às vezes, uma mercadoria de mais qualidade que a oferecida no Brasil. Nosso país e o governo Dilma não fazem o menor esforço para estimular o turismo e o consumo domésticos, com preços competitivos. Não temos ferrovias, e as passagens de avião são um escândalo no Brasil. Na Europa, há promoções incríveis com hospedagem. Barato para o padrão nacional.

No bairro de Saint-Germain, em Paris, é possível comer direito em restaurante chinês, japonês ou francês por 8 euros (entrada, prato e sobremesa). Restaurantes sofisticados oferecem menus de almoço em conta, numa relação custo-benefício inexistente no Brasil. E os vinhos? Um chileno de média para baixa qualidade custa, no Brasil, o mesmo que um bom Bordeaux em Paris. Nos Estados Unidos, compra-se um Mouton Cadet por menos de US$ 10. Resultado: turistas brasileiros têm comprado lá fora caixas de vinho.

O vilão são os impostos, as taxas? Está na hora de adequar tudo aos salários. O consumidor não é masoquista. Ninguém está disposto a enlouquecer com os preços. Esperamos que Dilma não imite a viúva Kirchner. A Argentina pune as vítimas de sua política econômica e não os malfeitores. Podemos fazer melhor.

A secretária e a patroa - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 02/06

Estreou semana passada o filme francês A Datilógrafa, que ainda não vi e possivelmente não verei em função do meu pouco tempo livre. Minha patroa anda cada vez mais ocupada, e quem segura o rojão sou eu, claro.

Mas seria ótimo assistir a um filme onde, finalmente, sou protagonista. Pelo que ouvi dizer, a história se passa em 1958, quando as mulheres estavam começando a colocar as manguinhas de fora. Uma garota de 21 anos recebe de presente uma máquina de escrever e resolve aventurar-se no excitante mercado de trabalho, esforçando-se para ser uma boa secretária, que era a atividade adequada às moças daquela época.

Depois o filme parece que vira uma competição, e daí por diante não sei mais nada, mas o resumo inicial me fez lembrar de quando ganhei, aos 13 anos, uma Olivetti Lettera 32. Tirei-a do estojo com o maior cuidado e suspirei: estava ali o passaporte para a profissão que eu sempre havia sonhado exercer.

Fiz um curso de datilografia e passei a praticar todo dia. Comecei a escrever poemas só para exercitar os dedos no teclado, eu que até então me atrevera apenas aos diários escritos à mão. Vinha um verso, vinha outro, e eu ali, treinando, fazendo de conta que era poeta, até que tivesse idade suficiente para virar a secretária que eu desejava ser.

Num acesso de loucura, acabei mandando uns poemas para uma editora e, pra encurtar a história, publicaram um livro meu. Já trabalhava como redatora publicitária nessa época, porque tinha que ganhar algum dinheiro, mas lembro que, quando faltava uma secretária na agência, eu me oferecia para ficar no lugar dela. E tive meu dia de telefonista também.

O tempo passou e lancei outro livro, e mais outro, e depois da poesia veio a crônica, abandonei a propaganda, fui apresentada ao computador, comecei a escrever para vários jornais, meus textos passaram a ser adaptados para o teatro, iniciei na ficção e aí aconteceu: virei secretária de mim mesma.

Hoje, realizada, passo 80% do dia atendendo ligações, respondendo toneladas de e-mails, avaliando contratos, agendando entrevistas, negociando prazos de entrega, indo ao cartório para reconhecer firma, ao correio para remeter livros, ao súper para fazer as compras da casa, negociando cachês com revistas, trocando mensagens com a contadora, marcando sessões de fotos, providenciando vouchers de hotéis e passagens aéreas para os compromissos fora do Estado, autorizando publicações de textos em livros didáticos, avaliando novas propostas de trabalho e me desculpando em nome da minha patroa por ela não conseguir atender todos os pedidos de leitura de blogs.

Não sei o que seria dela se não contasse comigo para esse serviço de secretariado, se bem que hoje a madame abusou: me botou para escrever sua coluna. Espero que não acostume, só me falta ter que assumir os seus 20% restantes de tempo.

No limite - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 02/06

Matam mesmo quando o assaltado não oferece resistência. Matam para matar, por nada, para nada


O que, afinal, está acontecendo? Em três meses, milhares de motocicletas são roubadas em São Paulo, centenas de residências e transeuntes são assaltados, trabalhadores, mulheres e pais de família são assassinados com uma frequência assustadora. Viver em São Paulo tornou-se risco de morte, é isso? Quer dizer, então, que a cidade está em guerra?

Pior: a cidade está ocupada por bandidos armados que surgem a qualquer momento e em qualquer ponto dela, empunhando fuzis, armas automáticas, decididos a tirar a vida de qualquer um.

Pelo modo como agem, parecem particularmente empenhados em matar, como se isso lhes desse especial satisfação. Matam mesmo quando o assaltado não oferece resistência. Matam para matar, por nada, para nada.

Mas por que razão agem assim? Uma hipótese é a de que estejam drogados, por ser difícil admitir que sejam todos homicidas natos.

Sou da teoria de que o cara nasce poeta e nasce homicida. Digo isso porque sei de gente que em hipótese alguma admitiria tirar a vida de alguém, enquanto outros, a primeira coisa em que pensam, se alguém os ofende, é acabar com ele. Felizmente, raras pessoas são assim.

Daí levantarmos a hipótese de que, se tantos assaltantes matam gratuitamente, é por estarem fora de si, drogados.

Aliás, a droga é um dos motivos que levam aos roubos e assaltos. Com frequência, a polícia, quando prende assaltantes, encontra drogas com eles. Isso explica parte do terror que assusta a cidade, mas não explica tudo.

Não explica, por exemplo, ações criminosas levadas a cabo por verdadeiras equipes de bandidos, munidos de armas pesadas, sofisticadas, obedecendo a um plano minuciosamente traçado.

Quando a polícia chega à sede da quadrilha, depara-se com vasta quantidade de armas, munições e até planos de ação cuidadosamente elaborados.

Esses dados parecem indicar que, fora os bandidos comuns e os drogados, há organizações criminosas, diferentes das antigas quadrilhas do passado: estas de agora se valem de novos recursos teóricos e tecnológicos, que fazem delas organizações eficazes.

Além dos novos meios de comunicação e um conhecimento detalhado do aparelho repressivo, de que dispõem, parece-me haver, em algumas delas, pelo menos, a ação organizada e planejada, apoiada em uma infraestrutura capaz de acumular o produto roubado para vendê-lo, mais tarde, dentro de um esquema que inclui o comércio legal.

Do contrário, como se explica a descoberta frequente de galpões e armazéns cheios de mercadorias roubadas, numa quantidade que tornaria inviável comercializá-las, a não ser com apoio num sistema legal de comércio?

Ou seja, nestes casos, legalidade e ilegalidade se confundem, ou melhor, o comércio legal se alia ao crime e lucra com isso. Trata-se, portanto, de um tipo de criminalidade bem mais ameaçadora, porque capaz de minar a estrutura social e corromper setores inclusive responsáveis pelo combate ao crime, incluindo aí os aparelhos policial e judicial.

Estas são algumas considerações e especulações de alguém que não é especialista no assunto, mas que foi levado a refletir sobre o problema.

Não tenho dúvida de que as autoridades responsáveis pelo combate à criminalidade, em São Paulo e no país, estão igualmente preocupadas e buscando solução para tão grave problema.

Mas isso não basta para tranquilizar as pessoas. Ouvi, outro dia, na televisão, um cidadão afirmar que nem ele nem qualquer membro de sua família sai mais à noite, seja para ir ao cinema seja para jantar num restaurante.

Significa que os cidadãos são agora reféns dos bandidos? Isso se torna tanto mais assustador quando se sabe que o Brasil mesmo, como país, é um dos mais violentos do mundo. Li que se mata mais gente aqui do que na guerra civil da Síria.

É hora, portanto, de o governo, em suas diferentes instâncias, buscar com seriedade a solução desse problema.

Não por acaso, faz poucos dias, o governador de São Paulo admitiu quanto é grave a situação, tanto que anunciou um programa de combate à criminalidade, prevendo bônus aos policiais que mais se empenharem no combate ao crime, além da ampliação do efetivo policial. Tais medidas não solucionarão o problema, mas, pelo menos, implicam o reconhecimento de quão grave ele é.

O dia em que Ariano se compadeceu - HUMBERTO WERNECK

O Estado de S.Paulo - 02/06

À porta da casa onde Ariano Suassuna nos aguardava, a moça, misto de assessora e anjo da guarda, me sussurrou a recomendação:

- Não toque no assunto da morte do pai.

- Por quê? - indaguei.

- Pode acabar muito mal - encerrou ela, tão enfática quanto enigmática.

E essa agora? Não esperava assuntos interditos quando cheguei ao Recife, naquele outubro de 2011, com a missão de entrevistar o criador do Auto da Compadecida para a revista Mitsubishi.

O próprio Ariano, jovialíssimo em seus 81 anos de idade, nos recebeu na varanda do belo casarão de 1870, no bairro de Casa Forte, onde vive desde 1959 com a mulher, Zélia. Saiu mostrando a propriedade. No mesmo terreno estreito e longo, que vai de um quarteirão a outro, as filhas Maria, Mariana e Ana Rita construíram suas casas. Outra, Isabel, morava em frente. O primogênito Joaquim estava passando uma temporada com os pais, de forma que naquele momento só um dos filhos, Manuel, não tinha sua base ali ou nas proximidades. Quase todos os netos - 15, à época - cresciam à sombra dos avós. Para desgosto de Ariano, um dos meninos resultou não ser torcedor do Sport, infortúnio que ele pôs na conta do genro: "Não perdoo o 'missionário' que o converteu", brincou, sem esconder o desgosto de ter casado três filhas com torcedores do Náutico.

Foi uma conversa ótima, embora a mim, como repórter, me incomodasse a presença de alentada plateia, na qual se incluía a moça que me recomendara evitar o assunto da morte do pai. Ariano não me parecia ser homem de suscetibilidades, e muito menos de luxos e de cerimônia. Hospitaleiro, certa vez foi capaz de um gesto amalucado para deixar à vontade um iluminador de TV que, em meio à gravação, quebrou um dos boizinhos de barro que enfeitavam a sala. O que fez o dono das reses? Apanhou outro boizinho e o espatifou no chão.

Apesar da advertência, era fatal que a entrevista, largamente biográfica, caminhasse para o que foi a grande tragédia na vida do escritor. Seu pai, João Suassuna, ex-governador da Paraíba, era deputado federal quando um primo de sua mulher, João Dantas, matou no Recife o governador paraibano, João Pessoa, crime que veio a ser o estopim da Revolução de 30. Em 9 de outubro, seis dias depois da eclosão do movimento, como retaliação, João Suassuna foi assassinado pelas costas por um pistoleiro.

Para Ariano, que tinha apenas 3 anos, aquele haveria de ser, claro, um trauma vitalício, agravado pela dor suplementar de ver a imagem do pai equivocadamente associada às carcomidas forças contra as quais se fez a Revolução. "Mas mataram meu Pai. Desde esse dia, / eu me vi, como um Cego, sem meu Guia, / que se foi para o Sol, transfigurado", dirá nos versos de um soneto. Numa entrevista em 2000, perguntaram-lhe se, tanto tempo depois, perdoaria o assassino do pai. "Esse é um processo que ainda está em curso", limitou-se a responder.

Foi o que me animou a ignorar a recomendação do anjo da guarda. Mal fiz a pergunta, senti instaurar-se na sala um espinhento desconforto e a emoção chacoalhar o entrevistado. A coisa vai mesmo acabar mal - cheguei a pensar.

Mas não. Entre pausas abissais, Ariano foi desencavando a lembrança do que lhe dissera certa amiga: é mais fácil rezar a Ave Maria do que o Pai Nosso, já que o Pai Nosso manda "perdoar a quem nos tem ofendido". Pedregoso silêncio. "É um processo difícil", retomou o escritor, agora invocando a mãe, dona Rita de Cássia, que próxima dos 90 anos lhe contou ter finalmente conseguido perdoar o matador de seu marido.

Nova pausa.

"Se eu me digo religioso, tenho a obrigação de perdoar", admitiu Ariano Suassuna, que, nascido católico, só aos 25 anos se fez batizar. "Acredito no Demônio e acredito no Inferno. Mas não acredito que o Inferno seja eterno, nem que haja punição eterna, porque absoluto, só Deus." Sem dizer-lhe o nome, o criador do Auto da Compadecida falava de um provável habitante do Inferno, Miguel Alves de Souza, o pistoleiro que matou seu pai - e, pela primeira vez, concedeu: "Se depender de uma concordância minha, ele sai hoje mesmo".

Terra em transe - DANUZA LEÃO

FOLHA DE SP - 02/06

De onde tinham vindo, será que eram da mesma festa? Ninguém sabia, e garanto que ninguém tinha bebido


Para quem não sabe: Millôr Fernandes disse uma vez a um amigo que quando morresse não queria homenagens, mas gostaria muito de ter um banquinho com seu nome no Arpoador, para que os namorados sentassem e vissem o por do sol. Na tarde cinzenta da última segunda-feira, o banquinho de Millôr foi inaugurado oficialmente. Banquinho, em termos: projetado por Jaime Lerner e com o perfil de Millôr desenhado por Chico Caruso, virou um superbanquinho.

Os amigos foram chegando aos poucos e se acomodando debaixo de uma grande tenda, onde cariocamente eram servidos os carioquíssimos mate, água de coco e biscoitos Globo. Como o Rio é muito animado, uma musiquinha animava a festa, tocando única e exclusivamente bossa nova.

O elenco era de primeiríssima: o que havia de mais mais em cada setor, nos quesitos jornalismo, arquitetura, poesia, artes plásticas, design, música, boemia, mundo teatral e televisivo, mundo jurídico etc. etc.; e mulheres, muitas mulheres, como Millôr gostava. Ele era dos poucos homens que tinha amigas, amigas mesmo --e apenas amigas.

Houve um momento em que olhei em volta distraidamente e vi, em cima de uma pedra, um homem exercendo seu duro ofício de estátua viva; nesse dia ele era um verdadeiro pirata, com colares, brinco em uma orelha só, botas, lenço na cabeça. Perfeito, ele não se moveu durante todo o tempo do evento, com o qual, aliás, não tinha nada a ver. Muito curiosa sua presença.

Apesar da ausência do homenageado --por força das circunstâncias--, estavam todos alegres, lembrando, contando histórias. E mais gente chegando, mais gente chegando. Eis que, por detrás das pedras do Arpoador, por detrás do pirata, aparece um casal de noivos, ela vestida da maneira mais tradicional: branco longo, véu e grinalda. Foi um toque quase surrealista, assim do nada. Já estava escurecendo, e eis que do mar começam a surgir homens lindos, que pareciam saídos de grutas no fundo dos oceanos; em relação com a realidade, apenas as pranchas de surfe. Detalhe: foi naquele mar que foram jogadas as cinzas de Millôr.

Mas melhor ainda foi quando se juntaram a esses homens oito ou dez mulatas deslumbrantes, todas vestidas --despidas, aliás-- como destaques de escola de samba, cada uma com o biquíni de uma cor, penas na cabeça, e de repente começaram a dançar, na areia, com os homens saídos do mar. De onde tinham vindo, será que eram da mesma festa? Ninguém sabia, e garanto que ninguém tinha bebido, foi tudo verdade.

Mas nossa festa era outra, e eis que Fernanda Montenegro, convidada a ler um texto do próprio Millôr, foi chamada pelo título "a grande dama do teatro brasileiro". Ela deu uma risada marota --pela originalidade, talvez; grande Fernanda. Depois dela falou Helio, irmão de Millôr, com seus juvenis 92 anos, e, como não podia deixar de ser, as "otoridades": o sub prefeito da zona sul da cidade, o responsável pela preservação dos monumentos e, como não podia deixar de ser, os agradecimentos de praxe às firmas que colaboraram com o cimento, a tinta e não sei mais o quê para que o banquinho virasse uma realidade etc. e tal.

O mais incrível de tudo: todos viram tudo que eu vi e estou contando, e ninguém nem falou sobre o assunto, achando tudo absolutamente normal, grande Rio de Janeiro.

Cena de Fellini? Melhor ainda: de Glauber. Só faltou mesmo Paulo Autran, para que se visse, ao vivo e em cores, uma nova versão de "Terra em Transe" 2013.

Uma tarde absolutamente inesquecível.

Sindicalismo esgotado de tanta embromação - ORLANDO DINIZ

O GLOBO - 02/06
Para quem viveu um pedaço do agitado século XX, não é um despropósito querer saber nesta altura da segunda década do século XXI: para que servem, nesta quadra da história, os representantes políticos, sociais e associativos nesse mundo de ansiedades e expectativas exacerbadas? Tendem a desaparecer, como os dinossauros? Seriam essas lideranças que podem indicar caminhos? Quem pode dizer se os atuais representantes de grupos sociais correspondem às suas expectativas são os representados. A eleição pura e simples não revela essa correspondência. Às vezes, em vez de a escolha ser motivada pela capacidade, dedicação e talento do candidato, o que define a disputa (quando há) são tramoias e jogadas opacas. Mas até esses truques estão saindo de moda.
O setor do qual faço parte, o comércio, é o mais importante no dia a dia das pessoas. O comércio de bens, serviços e turismo é fonte inesgotável de soluções para os dramas de qualquer sociedade. Nenhum outro gera tantos empregos, renda, impostos e benefícios à coletividade.

É uma engrenagem poderosa. Devidamente apoiada, pode reduzir a criminalidade, o tráfico e tantas moléstias sociais que grassam pela falta de alternativas para a sobrevivência.

Mas para explorar esse potencial é necessário buscar tecnologia, onde ela estiver, para aumentar a eficiência, dar grandeza à atividade e expandir oportunidades, o que se consegue profissionalizando pessoas e transformando vidas.

A Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro aposta nisso. Firmou convênio com a Confederação Nacional da Indústria, para aprimorar conceitos e oferecer às lideranças do comércio ferramentas de gestão para profissionalizar o gerenciamento das entidades que turbinam o setor. Fizemos convênios com as mais respeitadas instituições do mundo para oferecer aqui as melhores estratégias e táticas para o empreendedorismo, escolas de culinária e até mesmo cursos de uma centenária escola de cerveja da Alemanha. Outros convênios estão sendo negociados.

Em todos os estados, aliás, as respectivas federações têm buscado suprir as demandas represadas e aceleradas de seus representados, porque não querem também perder o trem da história. Mas o desafio é cada vez maior, o grau de exigência está mais alto e é crescente. O dirigente que não atenta para essa realidade se condena à rejeição de seus liderados.

É tempo de praticar o marketing da sinceridade.

O sindicalismo está extenuado, esgotado de embromação. Gramsci define crise como o momento em que o velho já morreu e o novo ainda não nasceu. É nesse endereço que mora a crise de identificação entre representados e representantes.

A questão é política, sem dúvida. Mas, sem desatar esse nó, não se instala a política de desenvolvimento necessária para destravar a equação e dar à população os benefícios que o comércio pode dar.

Outros mundos- MARCELO GLEISER

FOLHA DE SP - 02/06

A sonda Kepler, que busca planetas semelhantes à Terra, revolucionou nossa visão do Universo


Na semana passada, cientistas da Nasa puseram o telescópio espacial Kepler em uma espécie de coma tecnológico: a sonda, desenhada para buscar planetas semelhantes à Terra girando em torno de estrelas na nossa vizinhança cósmica, falhou de uma forma que parece irremediável.

Lançada em 2009, a Kepler encontrou 132 planetas e 2.700 outros astros que podem passar no teste e esperam estudos mais detalhados. A confirmação será feita por telescópios terrestres que agora sabem para onde olhar nos céus.

Custando US$ 550 milhões, a sonda Kepler revolucionou nossa visão do Universo e do nosso lugar nele.

A noção de que estrelas têm planetas girando à sua volta é muito antiga, remontando ao menos à Grécia Antiga, onde filósofos como Epicuro, já no século 4º a.C., sugeriram a existência de outros mundos: "Existem infinitos mundos parecidos e diferentes do nosso. Pois os átomos, infinitos em número, se espalham pelas profundezas do espaço." A noção foi elaborada por Giordano Bruno ao final do século 16 em seu tratado "Sobre o Universo Infinito e os Mundos". Para Bruno, esses outros mundos seriam semelhantes à Terra, também habitados.

Era claro que, caso existissem outras Terras, a centralidade da nossa estaria ameaçada. No debate sobre a existência de outros mundos, essa era a questão essencial: somos únicos e, portanto, especiais de alguma forma, ou apenas a norma do que existe pelos confins do espaço?

Foram necessários 413 anos após a morte de Bruno para que tivéssemos uma resposta ao menos parcial a essa pergunta. Em quatro séculos, passamos da mera especulação sobre a existência de outras Terras à observação concreta de planetas que, se não são como o nosso, ao menos podem ser semelhantes.

Hoje, temos uma disciplina em astronomia chamada de planetologia comparada, na qual as propriedades de planetas diversos são examinadas e estudadas em detalhes.

Mesmo que ainda em sua infância, aprendemos já várias coisas: que estrelas, na sua maioria, têm planetas girando à sua volta; que a vida só é possível naqueles que respeitam uma série de regularidades nas suas propriedades astronômicas e que têm composição química bem específica.

Note que quando cientistas falam de vida em outros planetas se referem à vida como nós a conhecemos, isto é, baseada em compostos de carbono e em soluções aquosas. Outros tipos, mesmo que interessantes, são provavelmente ficção. (A menos que a vida tenha evoluído de tal forma que tenha deixado para trás sua carcaça de carbono, existindo numa espécie de rede digital definida em campos eletromagnéticos, sem existência física.)

Se estamos ainda na infância de nossa exploração cósmica, podemos ao menos nos contentar com o que já aprendemos: há centenas de bilhões de planetas na nossa galáxia; se não são infinitos, esses mundos são incontáveis; talvez existam alguns com propriedades semelhantes às do nosso; detalhes da vida nesses mundos dependem da história de cada um e, por isso, somos únicos no Universo, produtos da Terra e de sua história única.

Outras sondas mais poderosas do que a Kepler continuarão a busca. Mas o que já aprendemos demonstra nossa importância cósmica.

Crepúsculo tumultuado - DORRIT HARAZIM

O GLOBO - 02/06
Nelson Mandela bem que merecia tratamento mais generoso neste crepúsculo de sua fértil, radiosa e decisiva vida pelos séculos 20 e 21. Uma figura pública tão idolatrada mundo afora e tão recatada na esfera privada deveria ter direito a cuidados especiais.
Pois as notícias vindas da África do Sul são ruins. O indefectível sorriso largo e suave já incorporado às suas feições, e que nenhum bípede sem a alegria de viver no DNA conseguiria simular ao longo de 94 anos, começa a dar apagões. Não tanto pela idade avançada ou saúde debilitada. Para ele, o mais difícil de digerir talvez seja o comportamento dos humanos à sua volta.

Uma dessas ocasiões pouco edificantes ocorreu no final do mês de abril. Fazia nove meses que o povo sul-africano não via imagens do seu adorado Madiba, devido a quatro preocupantes internações hospitalares em menos de um ano, e o líder histórico da luta contra o apartheid finalmente tivera alta. Ocorreu então à cúpula do African National Congress (ACN), partido que Mandela liderou por décadas e que o elegera primeiro presidente negro do país, quase vinte anos atrás, aproveitar a ocasião e forçar uma visita a ser transmitida pela emissora estatal SABC.

O que se viu foi deprimente: nove integrantes da cúpula do partido aboletados atrás da poltrona de Mandela, e um, o presidente Jacob Zuma, sentado na poltrona ao lado, segurando a mão esquiva e rígida do Nobel da Paz.

A imagem tem um quê da foto montada em 1985 no Hospital de Base de Brasília para mostrar um presidente eleito (mas jamais empossado, pois morreu antes), Tancredo Neves, com a equipe médica.

No caso da encenação sul-africana, Mandela permaneceu impassível, com expressão soturna no olhar, mais por irritado. Os pedidos de sorrir para os smartphones dos visitantes foram respondidos com silêncio gélido.

Indignado, o clã familiar acusou os políticos de terem invadido a privacidade do patriarca, explorado sua fragilidade e procurado ganhar dividendos políticos. No entanto, quando chegou a sua vez de precisar de dividendos, não fez diferente. Para desgosto de Mandela, chegou aos tribunais do país a disputa agora pública que duas das três filhas do ex-presidente travam com George Bizos, o amigo histórico e advogado de confiança do pai, pelo controle de dois fundos de investimento do patrimônio a ser herdado. Apesar de ter sido o próprio Mandela que delegara plenos poderes de gestão a Bizos, as filhas contestam a validade dessa decisão e contestam a legitimidade gerencial nos fundos do advogado que defendeu Mandela da acusação de sabotagem e conspiração contra o Estado racista 50 anos atrás.

Até por ter passado 27 anos de sua vida preso, Mandela gostaria de prover um mínimo de segurança financeira para as filhas, 17 netos e 14 bisnetos.

A julgar pelas amostras, contudo, a dilapidação será mais rápida.

De todo modo, em matéria de exposição pública da vida privada de um homem tão fidalgo, nada será tão doloroso como foi o fim de seu casamento com Winnie Mandela, sua segunda mulher. Vale recordar o que já foi descrito quinze anos atrás.

Desde sua libertação do cárcere de Robben Island, em 1990, Mandela constatara que o matrimônio que sobrevivera a 32 anos de luta mas conhecera apenas seis anos de convivência deixara de existir. Durante a longa ausência do marido, Winnie fora presa várias vezes, continuara militando, passara a comandar a ala feminina do partido e se tornara admirada no país como a "Mãe da Pátria". Adquiriu poder, cercou-se de guardacostas e tornou-se polêmica.

Mandela procurou uma separação amigável, mas a vulcânica Winnie, à época já acusada de várias violações e irregularidades, não aceitou. Para não interferir no andamento dos vários processos a que a esposa respondia, o marido, já então eleito presidente da África do Sul pós apartheid, aguardou dois anos em silêncio. Em 1996, recorreu à Corte Suprema de Johannesburgo.

Durante dois intermináveis dias de audiências transmitidas ao vivo para um país eletrizado, Madiba recorreu em juízo ao argumento- chave que desejou não ter de usar: Winnie era adúltera, mantinha há anos um relacionamento com um jovem advogado do partido.

Raras vezes, nestes tempos de todo mundo- conta-tudo, um adultério foi descrito com tanta mesura: "Fui o homem mais solitário durante o último período em que estivemos juntos...

Winnie jamais vinha para o nosso quarto se eu estivesse acordado...", resumiu.

"Apelo à Corte para não me fazer perguntas que me obriguem a arranhar a imagem da acusada e a causar dor a nossas filhas e netos..." Winnie ainda tentou um acordo de US$ 5 milhões em troca do divórcio.

Renunciou a seu segundo mandato de deputada federal por envolvimento num escândalo fiscal e prestou testemunho perante a Comissão da Verdade e Reconciliação por várias acusações de violações de direitos humanos e abusos de poder. Atualmente está em seu terceiro mandato parlamentar.

Já Nelson Mandela foi tocar o que lhe restava de vida privada após o doloroso divórcio. Aos 77 anos, iniciou um romance com Graça Machel, a viúva do ex-presidente de Moçambique, 26 anos mais jovem, e com ela está casado até hoje.

A consagrada escritora sul-africana Nadine Gordimer assim define seu conterrâneo tantas vezes chamado de "santo secular": "Mandela é dotado de total ausência de vaidade e orgulho.

O que ele tem é respeito por si mesmo. Só pode dar-se a esse luxo a pessoa que sabe quem é e o que fez da vida. Mandela sabe." Merece, portanto, ser deixado sossegado, a sorrir da vida. No dia 18 do próximo mês o mundo comemora o "Mandela Day", dia de seu 95º aniversário e data oficializada pela ONU desde 2009 para se pensar nos outros.

Antecipadamente, o mundo lhe deseja um feliz aniversário. E que a disputa pelo espólio político e patrimonial seja, pelo menos, mais discreta.

O povo das coberturas - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

O ESTADÃO - 02/06

Vai-se para uma cobertura atrás de um quintal


Amigo nosso, que acabei de inventar, mudou-se de um apartamento no quarto andar para um apartamento de cobertura. E nos contou que descobriu outra civilização: o povo das coberturas.

Começara investigando as coberturas próximas à sua, num raio que permitia o abano e a identificação fisionômica. Havia quatro à sua volta e ele estabeleceu contato com três. A quarta era de uma mulher de idade indefinível que molhava suas plantas de biquíni e desprezava os seus acenos matinais.

Todas as coberturas próximas tinham plantas, duas tinham pequenas piscinas. Uma tinha o que parecia ser uma coleção de esculturas eróticas. Ele está convencido de que, como um arqueólogo ao contrário, tropeçara numa civilização desconhecida no céu. O povo das coberturas é diferente. Ele só não sabe se é a diferença que o faz procurar as coberturas ou as coberturas que o torna diferente.

Ele encheu o terraço da sua cobertura com plantas, o que serviu para aproximá-lo da mulher de biquíni, com quem ele agora troca saudações entusiasmadas todas as manhãs. Agitam os braços, fazem grandes gestos de agradecimento ao sol e à chuva e desenvolveram uma sólida identificação comunitária pela mímica, de pomar a pomar.

Nosso amigo acredita que é a vegetação que faz a diferença entre o povo das coberturas e o dos outros andares. O povo das coberturas distancia-se o máximo possível do chão atrás de uma paradoxal compulsão agrícola. Em vez da fascinação milenar do jardim suspenso, o que ele tem, no fundo, é uma nostalgia da casa.

A cobertura é o térreo invertido e, portanto, uma espécie de exaltação do térreo. Ao contrário do que se pensa, vai-se para uma cobertura por humildade, pela mais rasteira das virtudes. Vai-se atrás de um quintal.

Nosso amigo conta que está à beira de uma revelação. Suspeita que todas as coberturas da cidade formam uma rede semafórica, uma silenciosa conspiração de sinais trocados acima da percepção comum e do controle das autoridades. Ele já captou luzes piscando numa cobertura e respondida da outra num código desconhecido. E acha que ainda não foi incluído na rede porque talvez duvidem das suas credenciais. Podem ter concluído, observando-o através de suas lunetas (todas as coberturas têm lunetas), que a dele é uma irreversível alma de quarto andar.

Ele tem passado as noites em claro, tentando decifrar o código e saber o que eles dizem. Não tem dúvida de que existe um intercâmbio clandestino entre os tetos da cidade e não descansará enquanto não descobrir o que combinam. Ou o incluírem no mistério.

Cangaço no Leblon - JOÃO UBALDO RIBEIRO

O GLOBO - 02/06

‘Eu não aguento ouvir falar no Bolsa Família! Eu fico à beira de uma síncope! A legalização do jogo do bicho ia contribuir bastante para desbastar o Bolsa Família. Era só botar gente atualmente viciada em Bolsa Família para trabalhar anotando bicho’



Começo de tarde ameno, atmosfera quase modorrenta no boteco. Até o pessoal que se posta nas mesas de fora, para melhormente apreciar a graça e o encanto da aplaudida e famosa mulher leblonina — a qual, no dizer inspirado de Dick Primavera, é o sorriso de Deus e o único consolo neste vale de lágrimas — está meio devagar. O desfile parece um pouco fraco, tudo indicando que as moças e senhoras, em vez de ir à praia, preferiram dormir até tarde, para consternação geral. E, no setor de debates sobre a complexa realidade nacional, o ambiente carecia da presença sempre estimulante do comandante Borges, que não apareceu no último domingo, reunido alhures com sua turma da velha guarda, para juntos rememorarem os tempos gloriosos em que desbravavam os ares daqui e d’além-mar, em aviões de todos os tipos e tamanhos. Recordar é viver, devia estar tirando o atrasado e ia faltar novamente.

Em razão dessa perspectiva, não foi sem algum alvoroço que o perceberam chegar, apear de sua admirada bicicleta elétrica de última geração e dirigir-se ao lugar de costume, sobraçando, com o semblante carrancudo, uma pasta cheia de papéis. Estabeleceu-se imediata curiosidade entre os presentes. O queixo empinado e o ar quase beligerante talvez significassem que aqueles papéis continham novos pormenores sobre o Plano Borges, que ele certamente ia expor e defender com o habitual vigor, como já fizera anteriormente. Mas não era nada disso, o que ele mesmo explicou, depois de notar que sua pasta havia chamado a atenção de todos.

— Isto aqui — disse ele — é a papelada que eu estou juntando para meu contrato com a empregada. Não vou deixar nenhuma brecha, comigo eles vão se dar mal, nenhum deles vai me tirar o couro.

— Eles quem, comandante?

— Eles! Todo mundo conhece a figura do advogado de porta de xadrez, não conhece? Esse é manjado, se bem que quem ganha dinheiro mesmo hoje em dia é advogado de porta de ministério, mas aí já é para o alto coturno. Pois muito bem, agora temos o advogado de porta de cozinha! Já deve haver umas quinze a vinte quadrilhas desses pilantras pelo Brasil afora, é um grande negócio, porque todo mundo sabe que a Justiça do Trabalho nunca dá ganho de causa ao empregador. Já deve existir uma quadrilha no Leblon, que dá uma gruja aos porteiros dos edifícios, para saber quem demitiu a empregada recentemente. Aí eles prometem muita grana à empregada que for na deles, desencavam tudo quanto é lei, regulamento e portaria e levam as calças do infeliz! Aqui pra eles! Comigo é tudo no papel e ainda vou montar uma central eletrônica para monitorar a empregada o dia todo! Eles não me pegam, chega de bandidagem! Voltem para a porta do xadrez, que lá não falta serviço, vão advogar para os traficantes, vão advogar para os bicheiros, a ilegalidade do bicho está ai mesmo, para todos se servirem.

— Não entendi bem.

— Deixe de ser burro, todo mundo ganha com o jogo do bicho na ilegalidade, aqui é assim. Tem jogatina patrocinada em tudo quanto é canto, só não pode o jogo do bicho. Está na cara por que não pode. Fica mais barato para o bicheiro, que não tem que pagar custos trabalhistas nem registrar ninguém e é uma boa fontezinha de renda para advogados, delegados, detetives, PMs e talvez mais outros. Todo mundo ganha, é por isso que o jogo do bicho é ilegal.

— Quer dizer que você é a favor da legalização.

— Eu sou. Mas não tanto para acabar essa mamata e, sim, para ajudar a amenizar outra mamata, o Bolsa Família. Eu não aguento ouvir falar no Bolsa Família! Eu fico à beira de uma síncope! A legalização do jogo do bicho ia contribuir bastante para desbastar o Bolsa Família. Era só botar gente atualmente viciada em Bolsa Família para trabalhar anotando bicho. Trabalho leve, na medida certa para o freguês do Bolsa Família, que não se dá bem pegando no pesado, que é que você me diz dessa ideia? Eu sei, você está discordando de mim. Falar em trabalho aqui no Brasil é uma falta grave! Vencer na vida é conseguir uma mamata! Emprego bom aqui é o de vigia, que recebe adicional de trabalho noturno e de periculosidade para dormir no emprego! Vida boa quem tem aqui é ladrão, bandido e cangaceiro!

— Ladrão e bandido, certo, mas cangaceiro não tem mais.

— Onde é que você mora? Eu sei, mora aqui mesmo no Rio. Mas não pense que, por morar no Rio, você está livre do cangaço, o cangaço agora é nacional, não é só no Nordeste, você vai ver. E já viu na Paraíba, faz uma semana. Os cangaceiros entraram numa cidade e tomaram conta de tudo, pior que no tempo de Lampião, com tiroteio, roubos de bancos, invasão de prédios públicos e tudo mais a que o cangaço tem direito. Cangaço moderno, com armas pesadas, carros poderosos, tudo coisa fina, ou melhor, coisa grossa. Daqui a pouco, entra definitivamente na moda, aqui essas coisas entram na moda. Nós somos muito adiantados e nossa legislação é ainda mais adiantada.

— Isso é pessimismo em demasia, não é, não?

— Pelo contrário, eu estou otimista! Eu acho que, quando o cangaço chegar aqui, não vai conseguir fechar o Leblon por mais que uns cinco dias, mesmo fazendo reféns. O Leblon, você sabe, é fácil de fechar, isto aqui é uma ilha. Eles fecham as saídas e…

— Comandante, isso é delírio, não pode acontecer.

— Claro que pode e só deixará de poder se chegar a guilhotina, que todo mundo sabe que é o melhor método porque não precisa de energia e os órgãos podem ser doados! Guilhotina! Robespierre! A cabeça deles!

Disparada Gay! Cadê o Feliciano! - JOSÉ SIMÃO

FOLHA DE SP - 02/06

Acho hilárias aquelas bichas evangélicas que viraram homens. Viraram héteras. Héteras de Jesus!


Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República!

Hoje é Corpus Alegres! Parada Gay! Ops, Disparada Gay. Porque gay não tem parada nem pra tirar foto 3x4!

E este ano vai ser: Viva Daniela Mercury! Fora Feliciano! A Daniela arrombou o armário e jogou do décimo andar. E Feliciano? O pastor da chapinha? O Feliciano vai pra Parada Gay fantasiado de armário!

Já imaginou o Feliciano de chapinha, em cima dum trio elétrico, fantasiado de armário? E depois esticar a noite assistindo a um show da Preta Gil na The Week! Bolsonaro não vai porque foi pescar com o Ricky Martin e o Elton John! Todo pitbull é uma Lassie enrustida!

E um cara postou no Twitter: "Na física, Lei de Newton. Na lógica, Lei de Murphy. E na Parada Gay, Lady Gaga". A Lei da Lady Gaga.

Treze quilômetros de biba. A maior minoria do planeta.

E eu conheço uma rua perfeita pra estacionar pra Parada Gay. Aquela rua atrás do Masp: Professor PICAROLA! Como diz aquela biba: "Gostei dos dois!". Rarará.

E sabe como se chama Parada Gay em Portugal? Portugays!

E acho hilárias aquelas bichas evangélicas que viraram homens. Viraram héteras. Héteras de Jesus!

E aquele ex-gay pastor e deputado baiano pelo PSB revela: "Não posso ficar perto de homem, a carne é fraca". Então, não é ex-gay. A cura saiu pela culatra. Rarará!

E a maior biba do mundo foi Santos Dumont. Que adorava voar! Rarará!

E com toda essa confusão, a Caixa devia gravar outro comercial: "O Dudu tá lendo errado". Rarará!

E tô adorando o Aécio contando piadas no intervalo da novela. Concorrência com o Ary Toledo!

E o site "Sensacionalista" revela a estratégia do Barcelona pro segundo semestre: o Neymar cava o pênalti e o Messi bate! Rarará. É mole? É mole mas sobe!

E eu tenho uma amiga tão carente que se apaixonou pelo telemarketing! "Você é muito importante para nós." Aí, ela acreditou, chorou e se apaixonou!

E o Daniel continua se esgoelando na abertura da novela: "Grita! Grita! Grita!".

E mais um predestinado. Um guarda municipal em Curitiba chamado Guardiano! Rarará!

Nóis sofre mas nóis goza.

Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

Touradas - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

O GLOBO - 02/06

A alma ibérica se divide em duas, uma mais caliente e a outra menos. Portugal é uma Espanha ponderada. A divisão está evidente na tourada, essa metáfora para todas as dicotomias humanas. Na Espanha matam o touro, em Portugal apenas o irritam. Ainda não se chegou a um acordo sobre o quê, exatamente, toureiro e touro simbolizam. A metáfora não é clara. Razão x instinto? Cultura x natureza? Civilização x força bruta? Ou – como li em algum lugar – tudo não passa de um ritual de sedução, com o Homem subjugando a Mulher, a Besta Primeva e todos os seus terrores, numa espécie de tango sangrento em que não falta uma penetração no fim? Ou o toureiro gracioso é a mulher estilizada e o touro resfolegante uma paródia de homem? Enfim, seja o que for que se decide numa arena de touros, os espanhóis terminam o ritual, os portugueses deixam pra lá.

Na Argentina, os líderes militares da época da repressão foram processados e as atrocidades cometidas pela ditadura punidas, ou pelo menos amplamente discutidas. No Chile, aos poucos a história ainda mal contada do governo Pinochet se incorpora à história oficial do país – para ser reconhecida e expiada, para que reconciliação não signifique absolvição e para que nunca mais se repita. No Brasil, a repressão foi menos assassina do que na Argentina e no Chile – se é que se pode falar em graduações de barbaridade – e ninguém ainda teve que dar muitas explicações. No caso, a simpática irresolução portuguesa desserve a História. Pois, se o touro continua vivo, o que há para expiar? Aqui, até agora, venceu o deixa-pra-lá-ismo.

Já que temos que ser ibéricos, o que é melhor, ser português ou espanhol? Os espanhóis parecem viver mais perto do coração selvagem da vida. Os portugueses preferem menos drama e menos sangue. Voltando ao touro: uma tourada espanhola sempre acaba com o animal morto, com uma resolução. Uma tourada portuguesa pode ser um espetáculo emocionante, mas o touro sobrevive e nada se resolve. E ainda se discute se convém irritar o touro.

Tudo ou nada - TOSTÃO

FOLHA DE SP - 02/06

O Brasil, em casa, não precisa jogar muito para ganhar da desfalcada Inglaterra


É uma irresponsabilidade realizar a partida de hoje, entre Brasil e Inglaterra, com enorme público e com o Maracanã inacabado, por causa das obras em volta do estádio. A suspensão e a liberação do jogo, pela Justiça, despertaram, em todo o mundo, mais temor sobre a organização do Mundial.

Há uns 15 anos, critico a maneira de jogar no Brasil. Não vou repetir os detalhes. O leitor já está cansado de ler. Alguns jornalistas discordam, por terem ótimos conhecimentos técnicos, e outros, porque não entendem do assunto. São os que mais opinam. Isso tem mudado. Recentemente, até a turma do oba-oba aplaudiu as duras críticas do alemão Breitner e de Paulo Autuori.

O brilhante jornalista inglês Tim Vickery, radicado no Brasil há muito tempo, que admira e que tem uma visão ampla, correta e imparcial do futebol brasileiro, disse, no programa Redação SporTV, sem o exibicionismo de Breitner nem a excessiva tolerância e submissão de parte da crônica esportiva, que não entende como o Brasil valoriza hoje muito mais o estilo guerreiro, brigado, do que os conceitos de como se jogar um bom futebol.

As partidas entre Atlético e Tijuana e entre Fluminense e Olimpia mostraram novamente que o futebol sul-americano se aproxima, cada vez mais, do jogo tumultuado, emocionante, do jeito que gosta o torcedor apaixonado, e, cada vez menos, do jogo mais técnico e dos torcedores que querem apreciar, entender, e não apenas torcer. Neste caminho, piora a qualidade de nosso futebol. Evidentemente, há também partidas, no Brasil, que reúnem muita emoção e muito talento, muitas delas em jogos do Galo.

Preciso explicar algo que tenho dito nestes 15 anos. Sempre critiquei a supervalorização dos técnicos brasileiros, porque deram a eles uma excessiva importância nos resultados. Por outro lado, houve, neste tempo, um crescimento da importância dos sistemas táticos e, consequentemente, dos treinadores, no mundo todo. Parece contraditório, mas não é. Nesta evolução tática, os técnicos do Brasil ficaram para trás.

Nosso futebol não evoluiu, ou piorou, mas não está tão ruim. Em casa, se melhorar bastante, passa a ter chances de ganhar a Copa do Mundo. O Brasil não precisa jogar muito para ganhar dos ingleses. A Inglaterra pratica um futebol coletivo melhor que o do Brasil, mas tem um jogo muito linear, previsível. Não tem a impetuosidade dos alemães, a delicadeza, no trato da bola e na troca de passes, dos espanhóis nem um fenômeno, como a Argentina.

Quando o Mundial terminar, dependendo do resultado, da atuação da seleção e da organização do evento, haverá uma grande depressão ou uma grande euforia. No Brasil, é tudo ou nada. Seja o que for, é necessário haver uma profunda reformulação, a médio prazo, de conceitos e de nomes, dentro e fora do campo.

Um sonho de infância - UGO GIORGETTI

O Estado de S.Paulo - 02/06

O zagueiro Dante é baiano de Salvador. Saiu do Brasil com uns vinte anos e se foi pelo mundo. Não foi vendido por quantias fantásticas, não era ninguém quando se iniciava no Brasil; foi, na realidade, aventurar como tantos brasileiros que vêm no futebol uma das poucas possibilidades de ascensão social. Jogou na Europa em times sem expressão até que deu com os costados na Alemanha. Lá, pouco a pouco, foi se destacando e, finalmente, entrou para a elite do futebol mundial ao ser contratado pelo poderosíssimo Bayern de Munique.

A partir daí o Brasil acordou para esse seu filho distante e ignorado. Foi imediatamente convocado para a seleção brasileira, como é atualmente praxe, não importa qual o treinador esteja ocupando o cargo. Diga-se de passagem, que os treinadores que convocam tantos jogadores do exterior nunca concorrem, eles mesmos, com estrangeiros. Não ocorre a ninguém da CBF chamar um técnico de prestígio do futebol europeu. E sabemos que há muitos. Curioso, muito curioso.

Bem, voltando a Dante, começou a ser chamado e na sequência, aparentemente se tornou jogador imprescindível, da maior importância, a ponto de a CBF criar um caso com o Bayern de Munique, que não o queria ceder para o amistoso contra a Inglaterra, tendo uma final de Copa da Alemanha para disputar. Os treinadores do Brasil, Felipão e Parreira, num dado momento, passaram boa parte da responsabilidade de resolver o problema para o próprio jogador. Ele que pressionasse o Bayern para ser liberado. Liberado, aliás, para um jogo que, além de amistoso, pode não acontecer. Por uma daquelas vergonhosas e usuais trapalhadas de quem comanda o esporte e a política no Brasil, o local da partida foi considerado inadequado legalmente. Uma liminar o liberou e garante a partida, que, porém, uma outra liminar pode impedir de novo. Quem pode saber, no Brasil?

Nessas circunstâncias, Dante pode voltar para a Alemanha e ter de explicar a Karl-Heinz Rummenigge, seu diretor, que tudo foi apenas uma brincadeira e não houve Brasil x Inglaterra. Os alemães não são famosos pelo senso de humor e Dante teria de escolher cuidadosamente as palavras de suas justificativas. Mas, o Brasil é o país do jeitinho e tudo leva a crer que a partida será mesmo realizada. E Dante virá para jogar. Ele foi liberado, com o pessoal do Bayern rangendo os dentes.

Não sei se o jogador pressionou o clube para liberá-lo. O que importa é o pedido para que o fizesse. Na realidade, a pressão para que o fizesse. A ameaça, segundo o pessoal do Bayern, foi de que não voltaria jamais a vestir a camisa do Brasil. Essa ameaça e a atitude do jogador pedem um exame mais detido. Por que, em primeiro lugar, Dante precisa do Brasil? Para que vestir a camisa de um país cujas condições sociais e mesmo esportivas o obrigaram a emigrar? O que o Brasil fez por Dante? Deu-lhe instrução pública de qualidade? Provavelmente não. Deu-lhe condições de sustentar a si e a sua família? Provavelmente não. Então qual é o direito que o Brasil tem de exigir fidelidade e amor dessa pessoa? Nenhum, e possivelmente não teria nem um nem outro, não fossem os sonhos de infância.

Todo menino que joga bola sonha com a seleção. Todos se vêm vestindo a amarelinha, tão gloriosa, tão querida. É esse o sonho que permanece intacto dentro de cada jogador e que Dante dividiu com todos seus amigos de infância. É diante de todos os outrora meninos como ele, que Dante quer aparecer vestindo a amarelinha.

Essa é a ambição de menino que não sai nunca, que não morre nunca. É com isso que a CBF joga. Exige do Dante adulto que defenda uma pátria que não lhe deu nada, mas conta com o Dante criança, para cumprir essa tarefa. Usando as memórias, o mundo infantil que cada um carrega para sempre a CBF pede que esse jogador se indisponha com o clube que, esse sim, lhe dá tudo. É honesto um procedimento desses?

Forma e conteúdo - ILIMAR FRANCO

O GLOBO - 02/06

O ex-presidente Lula cuspiu fogo sobre o amigo e presidenciável Eduardo Campos (PSB-PE), há poucos dias, em Brasília. A pessoas próximas, disse que não aceita as conversas sigilosas de Campos com tucanos e com grandes empresários, e o assédio que vem fazendo a petistas para que mudem de partido, casos do senador Lindbergh Farias (RJ) e da ex-prefeita Luizianne Lins (CE).

Fora da agenda
O Meio Ambiente está na moda, e a candidatura de Marina Silva (Rede) ao Planalto força os demais a ter propostas. Mas a vida prática mostra que elas não são para valer. A cidade de São Paulo é um exemplo. Os rios Tietê e Pinheiros, que cortam a cidade, são dois lixos a céu aberto. Desde os anos 1980, todos os grandes partidos (PMDB, PTB, PT, PP, PSDB e DEM/PSD) já estiveram na prefeitura e nada relevante foi feito para despoluir os rios. O ex-deputado Fernando Gabeira, do PV, explica: “O descaso dos partidos é reflexo do atraso deles, e a falta de amadurecimento da sociedade faz com que essa deficiência dos partidos não seja tão sentida.”

“A ONU não vale nada. É como o Senado: não vota nada, não vale nada, não representa nada. O que vale é o Conselho de Segurança”
Pedro Simon Senador PMDB-RS

Sem reforma ministerial
Apesar dos problemas relacionados à desarticulação política do governo com o Congresso, não há por parte da presidente Dilma qualquer disposição para trocar ministros.

Ofertas
Com suas conversas com Eduardo Campos (PSB-PE) congeladas enquanto o governador não anuncia se concorrerá ao Planalto, o senador Armando Monteiro (PTB), na foto, está sendo assediado para concorrer ao governo de Pernambuco numa chapa que incluiria o deputado João Paulo (PT) e o ministro Fernando Bezerra (Integração Nacional), fora do PSB.

Sem clima
Um líder de partido da base aliada no Senado reclamava durante a semana do desânimo em desenvolver o papel no governo Dilma. Disse que não há margem de negociação com o Planalto e que a resposta-padrão é que nada pode.

O PV e Marina
Uma ala do PV se ressente pelo fato de Marina Silva ter deixado o partido e resiste a apoiar sua candidatura. Mas um dos ícones dos verdes, o ex-deputado Fernando Gabeira, é daqueles que defendem apoiá-la. Sustenta que o campo dos ambientalistas é pequeno e não suporta duas candidaturas. Por isso, o melhor a fazer é unir e concentrar em torno de um candidato.

Em campanha
O vice-presidente Michel Temer estará dia 12 de junho em Paris para defender a candidatura do Brasil a sede da Expo 2020. Participará de jantar oferecido aos membros do Bureau International des Expositions, responsável pela escolha.

Os negociadores
O presidente do PP, Ciro Nogueira (PI), instala, na quarta-feira, Conselho Político integrado por dez candidatos a governador. O presidente será o vice de Minas Gerais, Alberto Pinto, cotado para a sucessão do tucano Antonio Anastasia.

NOVO IMPOSTO. O deputado Vicente Cândido (PT-SP) apresentará PEC para que donos de jatinhos, helicópteros e lanchas paguem IPVA.

Curto-circuito - VERA MAGALHÃES - PAINEL

FOLHA DE SP - 02/06

A oposição vai fazer barulho contra a antecipação de receitas da usina de Itaipu Binacional prevista na medida provisória 615. É daí que sairão os recursos para subsidiar o desconto na conta de luz. PSDB e DEM vão apresentar emenda para suprimir o artigo que prevê a antecipação e tentarão obstruir a votação. A antecipação trará aos cofres do governo cerca de R$ 15 bilhões, receita referente ao pagamento até 2023 do valor devido pelo Paraguai ao Brasil pela construção da usina.

Trombone O presidenciável tucano Aécio Neves diz que a tentativa de antecipar receitas mostra "que o governo fracassou na gestão fiscal''. "Dilma quer dispor de recursos que seriam recebidos pelos três próximos governos. Ultrapassou todos os limites", diz o mineiro.

Vacina Para se contrapor à esperada acusação do governo de que trabalha contra a redução da conta de luz, a oposição vai apresentar emenda à MP propondo a redução de PIS e Cofins sobre a energia para chegar a uma redução de até 5% na tarifa.

Pau de sebo Aécio vai se lançar em território de Eduardo Campos (PSB), seu potencial adversário em 2014. O PSDB quer levar o mineiro às duas maiores festas de São João: Caruaru, que o governador de Pernambuco visitou ontem, e Campina Grande, na Paraíba, Estado também comandado pelo PSB.

Sonhático Eduardo Campos, por sua vez, replica estratégia de Marina Silva e participa hoje da conferência Vox 2013, organizada pelo movimento Novo Jeito, grupo de jovens ativistas que usa a internet como canal de mobilização, nos moldes da Rede.

Caravana Lula vai levar comitiva de empresários no giro que fará a partir de amanhã por Colômbia, Peru e Equador. O ex-presidente deve usar a viagem, na qual se reunirá com membros dos governos, para fechar negócios para empresas brasileiras.

Dois pesos Em embargo ao STF (Supremo Tribunal Federal), a defesa de João Paulo Cunha (PT-SP) aponta suposta contradição em votos de Gilmar Mendes e Carmen Lúcia para condenar o deputado e absolver José Borba por lavagem de dinheiro.

Modus operandi Os advogados do petista alegam que Mendes constatou, ao votar, que o procedimento utilizado por Borba para receber recursos do valerioduto foi exatamente o mesmo utilizado por João Paulo.

Outra coisa Já Rosa Weber entendeu que enviar outra pessoa para sacar o dinheiro no banco em seu lugar caracterizaria a prática da corrupção, e não de lavagem. João Paulo foi condenado pelo crime por 6 votos a 5.

Amistoso? Michel Temer disse ao vice-presidente dos EUA, Joe Biden, que viajará a Israel e Palestina e proporá que formem um combinado para jogar contra a seleção brasileira para celebrar a paz. "Seria melhor jogarem contra os EUA. Todos temem o Brasil", brincou Biden.

Reação 1 Empresas do eixo São Paulo-Rio estudam ir à Justiça contra a licitação da Linha Leste do metrô de Fortaleza, orçada em R$ 2,5 bilhões. Questionam o modelo de um lote só para a obra.

Reação 2 Além disso, as empresas argumentam que a construtora Marquise, que integra um dos cinco consórcios que disputam a obra, em parceria com Queiroz Galvão e Camargo Corrêa, não tem qualificação para o projeto.

Memória A Marquise construiu o hospital de Sobral, cuja fachada desabou em fevereiro, semanas depois de um show de inauguração com Ivete Sangalo que custou R$ 650 mil ao Estado.

tiroteio
Dilma, Mercadante e Rui Falcão deveriam se preocupar mais com a economia, que está definhando, que com Eduardo Campos e PSB.
DE BETO ALBUQUERQUE (RS), líder do PSB na Câmara, atribuindo ao PT articulação contra a candidatura presidencial do governador de Pernambuco.

Contraponto

Tô limpo!
Durante votação da política antidrogas, na semana passada, o deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP) disse que sabia da existência de movimentos pela liberação da maconha, mas estava surpreendido porque percebera que havia movimentos também pela liberação do crack.

-O deputado sabe que não existe isso. Deve estar se referindo ao tempo em dirigiu a Portuguesa e liberou muito craque, com q-u-e, a ponto do seu time cair para a segunda divisão! -brincou Chico Alencar (PSOL-RJ).

O petebista se defendeu dizendo que não dirigia a Lusa na época do rebaixamento.

Transferência de poder - JOÃO BOSCO RABELLO

O Estado de S.Paulo - 02/06

O presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), aposta na aprovação, antes do recesso, de proposta estabelecendo o caráter impositivo da execução das emendas ao orçamento, hoje autorizativo por norma constitucional. Sua convicção não deve ser tomada por exagero, dado o grau de independência individual que a medida significa para cada parlamentar, prerrogativa praticamente irrecusável.

Se as previsões de importantes lideranças políticas, respaldando a certeza de Alves, se confirmarem, a recém- iniciada gestão do PMDB na direção do Poder Legislativo retirará do Executivo o principal instrumento de pressão de que se valem, há décadas, sucessivos governos, independentemente da coloração partidária - com reflexo direto na relação de forças dentro da base aliada.

No plano imediato, a medida é um duro golpe para o estilo da presidente Dilma Rousseff de se relacionar com o Congresso. Embora não inove no uso das emendas como poder de barganha, seu governo fez do contingenciamento da verba parlamentar meio único de convencimento, mais ameno com o PT, renovando no âmbito parlamentar o tratamento diferenciado que já favorece seu partido na distribuição, em número e importância, dos cargos na estrutura de poder.

Essa distinção ao PT responde parcialmente pelo fato de só agora se registrar a iniciativa para inverter o poder impositivo no processo político transferindo-o do Executivo para o Legislativo. De fato, de tão simples aprovação, é de se perguntar por que não ocorreu antes.

Um integrante da base explica que no governo Lula o contingenciamento era concentrado nos parlamentares oposicionistas, dando aos da base a certeza de que teriam suas verbas liberadas, mas seu adversário regional, não. A renúncia ao poder impositivo tinha sua razão de ser na medida em que o governo a utilizava em favor de seus aliados.

Hoje, o PMDB avalia que o tratamento seletivo se dá dentro da base, da qual faz parte, para inferiorizá-lo nas disputas eleitorais cujas campanhas estão em curso, recebendo assim tratamento de adversário por parte do governo. No comando das duas Casas do Legislativo promove, então, a inversão do sistema, ciente do poder contaminador que a matéria tem em ambas.

Em teoria, a iniciativa empurra para o aprimoramento do processo legislativo, ao livrar os parlamentares da pressão pela aprovação de matérias que o governo prefere ver aprovadas sem debate, na base do não discuta, aprove. Num eventual segundo mandato de Dilma, quando terá de administrar os efeitos das concessões, principalmente fiscais, feitas neste para assegurar a reeleição, a nova realidade a levará a uma vida bem mais dura.

O santo forte da Colômbia - MAC MARGOLIS

O Estado de S.Paulo - 02/06

Uma estrela sobe no firmamento das Américas e não é a de Barack Obama, nem a do papa Francisco. O astro da hora é Juan Manuel Santos. Há três anos no cargo, o presidente colombiano governa um país em raro momento de paz, estabilidade e projeção internacional. Tem o aval da maioria do exigente eleitorado e dificilmente deixará de se reeleger no ano que vem.

O receituário "santista" nada tem de populismo barato ou de arroubos ideológicos. É a humildade fiscal combinada com o oportunismo político, na mão de quem sabe ocupar espaços e evitar as atoleiros em um mundo em transição. Com o quinto PIB latino-americano, a economia colombiana já desbancou a da Argentina. Os investidores estrangeiros derramam dinheiro na indústria mineral e petroleira.

A prosperidade segue no rastro da paz. Os índices de violência caíram. Até a guerrilha parece cooperar. Semana passada, o governo de Santos anunciou o primeiro passo para o fim do conflito com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que infernizam o país há meio século.

Sucesso. O acordo, firmado em Havana, Cuba, é parcial e trata apenas das regras da distribuição de terras nas zonas em conflito. As Farc ainda não entregaram as armas. Entretanto, aos 49 anos, a guerrilha está sem lastro popular e dá claríssimos sinais de cansaço.

Santos não criou sozinho o bom momento colombiano. Foi eleito há três anos com uma mistura de aplauso comedido e franco ceticismo. Novato na política, ele deve sua eleição ao antecessor, Álvaro Uribe, que ergueu a muralha da renascença.

A contragosto do nacionalismo latino-americano, ele aceitou US$ 7 bilhões em ajuda bélica e moral de Washington e botou a guerrilha para correr. As fileiras das Farc definharam, recuaram mata adentro e enterraram no caminho meia dúzia de comandantes.

Implacável, Uribe colheu louros e inimigos. Ambicioso, fracassou na tentativa de mudar a Constituição e ganhar um terceiro mandato. Resignou-se com o papel de padrinho e emplacou seu sucessor, o inexperiente Santos.

Como ministro da Fazenda e depois da Defesa, Santos ajudou a executar a ofensiva uribista. Herdou a paz que levou ao boom econômico, mas soube evitar o radicalismo do chefe que fez de Uribe um Dom Quixote das Américas.

Jogador, Santos estendeu a mão para Hugo Chávez na tentativa de encerrar a danosa guerra fria entre os dois vizinhos. Seu patrono tachou-o de traidor. Santos ainda lançou a Colômbia rumo a uma arriscada diplomacia de resultados, com sua reputação em jogo e dividendos ainda desconhecidos.

Acerto. Até o momento, acertou em cheio. Uma das garantias de que Santos está no caminho certo é a sua crítica bipolar. De um lado, apanha de Uribe, que atira contra Santos com sua conta no Twitter como bombardeava os guerrilheiros com helicópteros Black Hawk. Ingênuo, irresponsável e entreguista são alguns dos salvos uribistas contra o seu sucessor.

De outro lado, colhe a fúria da ala bolivariana do continente. Semana passada, após a visita a Bogotá do líder oposicionista venezuelano, Henrique Capriles, o presidente Nicolás Maduro acusou Santos de "meter uma punhalada nas costas da Venezuela".

De ultraje a ultraje, Santos navega bem. E ainda aproveita as oportunidades perdidas na acidentada política internacional. No novo Mercosul companheiro, o abraço à Venezuela preteriu as trocas econômicas do bloco, que recuaram 9% em 2012. Já na Aliança do Pacífico, o mais recente pacto latino-americano, o comércio aumentou 1,3% no ano passado. Nada mal em um momento em que a economia global patina. O líder do bloco? A Colômbia, é claro.

Santos quer mais e já projeta a Aliança do Pacífico como o novo motor de crescimento para as Américas. Ainda é uma aposta, assim como é a diplomacia de resultados de Bogotá e como também é a arriscada negociação com as Farc. No entanto, é a melhor jogada no momento na América Latina.

Acorda, Brasil, enquanto é tempo - CLÓVIS ROSSI

FOLHA DE SP - 02/06

O país não perde o sono com a Aliança do Pacífico porque está dormindo profundamente no ponto


Marco Aurélio Garcia, o assessor internacional da presidente Dilma Rousseff, tem toda a razão ao dizer que a Aliança do Pacífico, o conglomerado que abre um rombo no quintal do Brasil, não tira o sono do grande país tropical. Não tira porque, de fato, o Brasil está dormindo no ponto, como se dizia antigamente, em matéria de integração regional e negociações comerciais.

Lembro-me de uma conversa com Marco Aurélio, pouco antes da posse de Dilma, na qual ele dizia que o novo governo cuidaria mais da institucionalização das iniciativas lançadas ou consolidadas no período Lula do que de inovar mais.

Parecia fazer sentido, por mais que institucionalização aos ouvidos de jornalistas soe a burocratização, inimiga mortal do jornalismo.

De fato, Lula e seu chanceler Celso Amorim tinham todos os dedos ligados na tomada, se mexiam em todas as direções, puseram o Brasil no mapa do mundo mais do que em qualquer momento anterior. Quem, como eu, cobre viagens presidenciais ao exterior desde o governo do general Ernesto Geisel, já se vão quase 40 anos, pode dar testemunho ocular desse fato.

Portanto, tinha lógica institucionalizar novidades ou organismos frescos como os Brics, a Unasul, a agora denominada Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos), o Ibas (Índia, Brasil, África do Sul), a Aspa (América do Sul/países árabes).

Pena que nem se avançou na institucionalização nem se lançaram novas iniciativas. Nem sequer se reinjetou vida em um organismo, o Mercosul, paralisado há anos.

A propósito: Paraguai e Uruguai, dois dos cinco sócios do Mercosul, já pediram status de observadores na tal Aliança do Pacífico, formada por Chile, Colômbia, Peru, México e Costa Rica.

Mais grave ainda: enquanto o Brasil dorme, outros avançam nos mercados que, teoricamente, seriam mais propícios à produção brasileira, os dos vizinhos. As exportações brasileiras para a América Latina caíram 9,4% no ano passado, mais do que o retrocesso nas vendas em geral ao mundo (5,3%).

Comenta o sítio Infolatam, rico em informações sobre a América Latina: "Ao Brasil está ocorrendo algo que, pouco tempo atrás, era difícil de imaginar: seus negócios com o resto da América Latina parecem estancados ou, inclusive, em retrocesso. Com problemas para recuperar um ritmo de crescimento robusto, o gigante sul-americano enfrenta cada vez mais desafios em matéria de comércio e investimento em sua própria região".

De fato, os desembolsos do BNDES para projetos de companhias brasileiras na América Latina caíram 34% no ano passado (somaram US$ 1,070 bilhão).

Nesse ponto, dá-se um cruzamento perfeito entre sucessivos "pibinhos" e o sono diplomático, como comentou para a BBC Oliver Stuenkel, especialista da Fundação Getúlio Vargas em relações internacionais: "A capacidade de um país de exercer liderança é influenciada também por sua capacidade de crescer economicamente. Se tivermos um PIB fraco por alguns anos mais, veremos o projeto brasileiro debilitado".

A porta de saída - SUELY CALDAS

O Estado de S.Paulo - 02/06

A corrida desesperada de milhares de pessoas às agências da Caixa Econômica Federal para sacar dinheiro do Bolsa Família escancara uma realidade que parecia, pelo menos, atenuada com a ascensão de 30 milhões de pobres para a classe média: o grau de dependência financeira desse programa social para a população pobre é certamente maior do que têm avaliado estudiosos dos dilemas sociais do Brasil. Os números frios das pesquisas que realmente comprovam a redução da pobreza, desde o Plano Real, contrastam com cenas dramáticas, em 13 dos Estados mais pobres do País, de pessoas se atropelando, aos empurrões, para chegar a um caixa eletrônico, com pavor de perder R$ 70 da mesada do Bolsa Família.

A Polícia Federal apura a origem dos boatos que propagaram o cancelamento do programa pelo governo. Porém a cada dia fica mais claro que os boatos se espalharam, como um rastro de pólvora, a partir da atabalhoada decisão da Caixa Econômica Federal de antecipar a liberação dos pagamentos do programa sem esclarecer os motivos às famílias cadastradas.

Depois de 13 anos de sua criação, o Bolsa Família ampliou em valor e número de beneficiados, mas sofre de uma fatigada paralisação na sua concepção. É verdade que foi bem-sucedido como motor de distribuição de renda e ao exigir dos pais a contrapartida de manter seus filhos na escola e respeitar o calendário da carteira de vacinação. Mas parou por aí. Desde o início do governo Lula, especialistas reconhecem as limitações do programa e discutem o que chamam de "porta de saída". Ou seja, os governos (federal, estadual e municipal) oferecerem caminhos para os beneficiários buscarem e conseguirem seu próprio sustento financeiro.

Desde o ano 2000, quando o governo Fernando Henrique Cardoso o criou com o nome de Bolsa Escola, as primeiras crianças beneficiadas têm hoje entre 20 e 27 anos, com idade de inserção no mercado de trabalho. Mas o que foi feito delas? O que fazem hoje? Têm emprego garantido? Continuam cuidando da roça? Migraram para a cidade? Não se sabe, porque o governo não cuidou de fazer o básico de qualquer programa social: pesquisar seus resultados, mensurar sua eficácia, identificar falhas e acertos e avaliar se precisa ou não mudá-lo.

Com mais de 13 milhões de famílias cadastradas, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome tem as ferramentas e a estrutura para aplicar tal pesquisa, que seria de enorme utilidade para orientar e definir políticas públicas dirigidas a encontrar a "porta de saída" do programa. Ou até mesmo concluir que são dispensáveis porque a saída natural, o próximo passo, está em oferecer ao jovem um lugar no mercado de trabalho. Nesse caso a avaliação do programa seria útil para focalizar caminhos, estimular iniciativas localizadas de geração de empregos.

Grameen Bank. O economista e Prêmio Nobel da Paz Muhammad Yunus, criador e ex-presidente do Grameen Bank, formulou proposta interessante ao governo brasileiro que poderia funcionar como indutor de saída para o Bolsa Família. A exitosa experiência de quase 40 anos operando com microcrédito para pobres de Bangladesh credencia Yunus e suas ideias para aplicação em outros países.

"Por que não criar um programa de televisão que mostre cinco ou dez pessoas que recebem dinheiro do Bolsa Família tentando criar negócios sociais para deixar de receber verba do governo? Mesmo que nem todos consigam, certamente empreendedores irão ver isso na televisão e poderão se interessar em investir nessas ideias", propôs Yunus em São Paulo, onde fez palestra na sede da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Como na pobre Bangladesh de 130 milhões de habitantes não havia programa social equivalente ao Bolsa Família, Muhammad Yunus resolveu aliviar a pobreza ali por meio do microcrédito, emprestando reduzidíssimas quantias para famílias muito pobres de produtores rurais. No início, em 1976, usou seus próprios recursos, cobrando juros e parcelando o crédito, de forma a não reduzir seu capital, ao mesmo tempo que enquadrava o empréstimo na capacidade de pagamento do tomador. Foi esse sistema de microcrédito que originou o Grameen Bank, a primeira experiência no mundo de um banco com foco na população de baixíssima renda, o que valeu a Muhammad Yunus o Prêmio Nobel da Paz de 2006.

Ele deixou a presidência do banco em 2011, mas o Grameen Bank continua operando com o governo de Bangladesh, seu principal acionista. Como no Bolsa Família, 97% dos 6,6 milhões de beneficiários são mulheres, não há exigências de garantias nos créditos e o índice de inadimplência é de 1,2%, bem mais baixo do que o de grandes bancos internacionais.

Em 2011 Muhammad Yunus deixou o banco e partiu para outra experiência: criou o Yunus Social Business, organização internacional voltada para fomentar o conceito e a prática do "negócio social" e presente no Japão, Coreia, Itália, Alemanha, Estados Unidos, França e Turquia. Seu maior "negócio social" foi criar uma empresa em Bangladesh em parceria com a multinacional fabricante de iogurte Danone, que tem todo o retorno do capital investido, mas não se apropria do lucro, usado para reduzir o preço dos iogurtes enriquecidos vendidos de casa em casa para a população de baixa renda.

Yunus esteve no Brasil em 2008, conversou e tirou fotos com o ex-presidente Lula. Mas, aparentemente, suas ideias não sensibilizaram o interlocutor. Quem sabe a presidente Dilma Rousseff pensa diferente? E reconhece que os milhões de reais que seu governo gasta hoje com propaganda e autopromoção em TV gerariam resultados sociais importantes se aplicados em inserções na televisão - como sugeridas pelo bengalês - voltadas para incitar o instinto criativo e empreendedor do brasileiro comum.

O microcrédito ampliado e com capilaridade para alcançar regiões pobres constituiria o braço financeiro a apoiar iniciativas desses pequenos empreendedores. Sem paternalismos de vida curta, com empréstimos a juros baixos (como os do BNDES) e parcelamento da dívida, como fez Yunus em Bangladesh, seria um bom caminho para abrir uma porta de saída e dar continuidade ao Bolsa Família.

Lição chinesa para crescer - HENRIQUE MEIRELLES

FOLHA DE SP - 02/06

O crescimento do PIB brasileiro de 0,6% decepcionou analistas, empresários e trabalhadores. No momento em que discutimos o que fazer para crescer mais, é interessante olhar outros países.

Exemplo importante é o da China, onde a produção industrial caiu pela primeira vez em sete meses. O país, que dependia muito de EUA e Europa, enfrentou a contração das exportações pós-crise de 2008 com investimentos maciços em infraestrutura e estímulo a crédito e consumo.

Mas hoje as previsões de crescimento recuam, e cresce a preocupação com o alto endividamento do governo e do setor privado. A China enfrenta ainda questões estruturais, como o aumento do custo do trabalho, as limitações da moeda desvalorizada e o envelhecimento da população.

Analisando as causas do problema, verifica-se que fortes controles governamentais sobre preço da energia, câmbio e juros, entre outros, resultaram em má alocação de capital e crescimento desequilibrado.

Agora líderes chineses creem que maior despesa pública e intervenção governamental poderiam piorar a situação.

O novo premiê chinês, Li Keqiang, disse no mês passado que "o governo central reduzirá o papel do Estado na economia visando liberar a energia criativa da nação".

Há também esforços para reduzir controles e distorções de preços. "Se seguirmos dependendo excessivamente do direcionamento do governo nos mercados e de políticas econômicas para estimular o crescimento, será difícil criar crescimento sustentável, e isso pode produzir novos problemas e riscos", disse Li.

Numa frase surpreendente para um governo ainda formalmente comunista, Li afirmou: "O mercado é o criador da riqueza social e do desenvolvimento econômico autossustentável". Disse ainda que o governo deve tornar a administração menor e mais eficiente e delegar poderes ao setor privado para estimular investimento. E sugeriu que a intervenção governamental foi parcialmente responsável pela criação de excesso de capacidade produtiva e má alocação de capitais.

Pequim já sinaliza que, apesar da desaceleração, é improvável a adoção de mais estímulos como os de 2008. E que se preocupa com o aumento da dívida pública, principalmente nas províncias, e da inadimplência bancária.

Medidas têm sido tomadas para transferir poder de decisão à iniciativa privada, eliminando controles e burocracia para facilitar o desenvolvimento dos negócios. Se exitosas, transformarão a China em competidor ainda mais forte e inovador, com maior equilíbrio no investimento e no consumo.

Disse o premiê, finalmente: "Toda a sociedade aguarda ardentemente novas reformas fundamentais".