sábado, julho 06, 2019

Somos assim, fazer o quê? - BOLÍVAR LAMOUNIER

REVISTA ISTO É

Aplaudimos com ingênuo fervor o que nos destrói e, diante dos absurdos da vida prática, trocamos o mais básico dos planejamentos por uma esperança preguiçosa, prostrados de latinha gelada na mão


Brasileiro é assim. Se caírem cinco ou seis bombas atômicas sobre uma de nossas cidades, os sobreviventes, maravilhados com o espetáculo, o aplaudirão freneticamente, julgando terem assistido um show de fogos de artifício. Mas chega uma hora em que se lembram de um algo prático: precisam de um dinheirinho, afinal, sem comer não dá. Aí dizem que não há problema algum. É só montar um negócio, uma loja, um trem qualquer. Vai-se ao banco e pede-se um empréstimo, ora pois.

Conheci um que fez exatamente isso. Ficou lívido quando a simpática gerente fez as contas e lhe mostrou um papelzinho indicando quanto ele iria pagar em juros. Acabrunhado, saiu pela porta giratória, mas não se deu por achado. Ora, e sogra serve para quê? Ela certamente terá algum escondido no colchão. Acertou. Ela tinha mesmo. E lhe emprestou, afinal o rapaz estava querendo trabalhar. Ele ficou tão confiante que fez o que os microempresários geralmente fazem. Começou pelo fim.

Sem projeto, sem prospectar mercado, essas coisas. Foi logo comprando umas máquinas e mandando imprimir papel timbrado. Foi aí que o contador o alertou para certos detalhes: era preciso obter meia dúzia de registros, inscrições, alvarás, atas, livros disso e daquilo. “Ora, hoje em dia, em plena era da internet, isso se faz com um pé nas costas. Duas ou três horas de trabalho, no máximo”, meu amigo ponderou. Eu, só ouvindo, pensei com meus botões: “Ih! Amigão, agora você vai se ferrar”.

Mas lá foi ele. Abriu o site de uma repartição para fazer seu primeiro registro. Leu atentamente o regulamento e quase caiu duro. Constatou o que devia saber desde tempos imemoriais: que tais regulamentos em geral são redigidos por uma corriola, gente de dentro do negócio, nem um pouco interessada em admitir a entrada de outsiders. (O ministro da desburocratização parece ser um rapaz trabalhador, mas nessa parte ele ainda não chegou). Dessa vez meu amigo ficou abatido. Fechou o computador e resolveu comprar uma bomba atômica. Na Rua 24 de Maio encontraria uma, com certeza. E nada. “Artefatos nucleares estão em falta”, explicou um lojista, que tinha de tudo, menos bomba atômica. Nem usada. Aí meu amigo desistiu. Voltou para casa, pegou na geladeira uma cerveja estupidamente gelada, espichou bem as pernas e murmurou: “Não seja por isso. Deus é brasileiro”

Agendas em disputa - MURILLO DE ARAGÃO

REVISTA ISTO É

O Executivo alforriou o Legislativo, que agora pode exercer seus poderes. São tempos de falta de diálogo. Quem perde é a sociedade


Em seis meses de gestão, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) matou o presidencialismo de coalizão e agora busca o respaldo das ruas para impor sua pauta. Toda ação causa uma reação e, em política, obviamente, não existe espaço vazio. Ao repudiar o presidencialismo de coalizão o governo visa criar um presidencialismo de agenda. Mas o efeito pode ser outro.

Até aqui os resultados positivos foram discretos. O governo avançou pouco em suas prioridades e viu o Legislativo ficar no controle da pauta. Fora a perda do protagonismo de agenda, o governo tem permitido que conflitos permanentes em seu interior fragilizem a narrativa de suas propostas.

Na prática, o que começa a substituir o presidencialismo de coalizão é a gradual transferência do controle da agenda para o Parlamento. Historicamente, o poder do Legislativo vinha sendo anestesiado pelo presidencialismo de coalizão. Ao abandonar a fórmula, o Executivo alforriou o Legislativo, que pode então exercer a plenitude de seus poderes. São tempos novos.

O Brasil não está acostumado a ter o Legislativo no centro do palco da política. Tradicionalmente, esse tem sido o lugar do Executivo. A nova situação causa estranheza entre os que pensam que o Congresso Nacional deveria se submeter ao Executivo. Não é assim. Os dois poderes podem ter iniciativas, desde que dentro dos limites constitucionais. E ambos têm poder de deliberação.

O Congresso promulga emendas constitucionais sem a intervenção do Executivo, derruba vetos e revoga decretos do presidente. Assim, em última instância, a agenda será configurada pelo Legislativo, que, conforme a Constituição, tem um poder mais abrangente que o Executivo. A nova forma de fazer política apontada por Bolsonaro o libera de acordos políticos e das coalizões de outrora. Por outro lado, libera também o Congresso para construir sua própria pauta. Toda ação causa uma reação.

Nos últimos meses, contudo, os parlamentares deram mostra de uma nova realidade institucional. O Orçamento agora será impositivo. As medidas provisórias contarão com regras mais rígidas. O uso de decretos legislativos para revogar atos do Executivo já está sendo mais considerado. Outras medidas podem vir como parte de um pacote “autonomista”. O Legislativo quer fazer a sua Reforma Previdenciária e também a sua Reforma Tributária.

Na prática, estamos diante de conflitos de agenda e de visões políticas. Todavia, sem entendimento e diálogo, teremos uma situação indesejável para a cidadania. Qualquer que seja a política, ou a nova política, sem diálogo não irá funcionar.

Hoje! Brasil X Trocadilhos! - JOSÉ SIMÃO

FOLHA DE SP - 06/07

O país se chama Peru, o presidente era o Pepeka e o ponto turístico é Cuzco!


Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República!

Veja Jato! O Moro é quem devia vazar! Vaza, Moro! Rarará! “Moro pediu provas, negou delação de Cunha e driblou o STF”. Isso que é atacante! Tite, escala o Moro! Rarará!

E o tuiteiro Thiago Souza: “Eu sou do tempo em que Justiça com as próprias mãos era na Playboy, não na Veja!”.

Rarará!

Hoje! Brasil X Trocadilhos! O Peru não é um país, é um combo de trocadilhos: o país se chama Peru, o presidente que renunciou era o Pepeka e as cidades mais visitadas são Cuzco e Macho Picho! E o técnico do Peru se chama GARECA!

Rarará!

E o Guedes vai pro estádio contar os “aposentáveis” na torcida: esse vai pagar, esse já pagou, aquele vai se ferrar e aquele vai sonegar!

E o Bolsonaro? O Bolsonaro vai levar um golden shower do Peru! Rarará! E o Cebolinha vai encalar o Pelu! Rarará!

O juiz vai ser o Moro e o VAR vai ser o Greenwald, o Glenvaldo! O Investigaldo! Rarará!

E um leitor me mandou o email mais maldoso do século: “Chegamos na final, obrigado Najila”.

Rarará!

E a reforma da Previdência! Versículos da Previdência: “Muito Trabalharás e no Caneco Tomarás, Guedes 20.17”. “Deverei, mas Nunca Pagarei, Veio da Havan 20.19.”

E o casamento hétero entra em crise: Bolsonaro e Guedes se estranham por causa dos policiais. E o Bolsonaro é a favor do trabalho infantil pra dar tempo pra aposentar! E trabalho infantil é o Carlucho!

Rarará!

E a manchete do Super Notícia: “Brasil pega um Peru animado”. E uma amiga: “Aqui em casa o peru só fica animado com toque de mão”. Rarará!

Vídeo mostra Neymar abraçando Messi. “Nós não jogamos nessa Copa.” O Messi tem cara de suricato triste. E Van Gogh cortou a orelha pra não ouvir os gritos do Galvão!

Aliás, o Galvão tá mais rouco que a foca da Disney!

Se eu fosse o Tite, escalaria o time de peladeiros de Guanhães, Minas: Nem Cu de Frango, Zóio, Bafo e Três Peidim! Com Três Peidim o Peru não entra! Rarará! E no banco: Paçoca e Comi o Paçoca! Imbatíveis! Rarará!

Nóis sofre, mas nóis goza!

Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

José Simão
Jornalista, precursor do humor jornalístico.

A lei, o povo e o inimigo do povo - DEMÉTRIO MAGNOLI

FOLHA DE SP - 06/07

Tudo é anormal nas mensagens que evidenciam o conluio entre juiz e Estado

“Caim, que Brasil queremos?”. A indagação que encerra o artigo do procurador Edilson Bonfim (Folha, 3/7) evoca a mítica fonte do mal e da violência. É uma conclusão apropriada para um texto eivado de ódio, mas que funciona como síntese perfeita do discurso reativo de Sergio Moro e dos procuradores da Lava Jato.

Diante das revelações oferecidas pelo The Intercept Brasil, eles respondem com dois argumentos sucessivos, incongruentes entre si.

1) Os diálogos foram obtidos por hackers (“a flor do mal de mais um crime”), podem ter sofrido adulterações (“como saber da autenticidade, contexto ou conteúdo das mensagens?”) e sua publicação destina-se a caluniar as autoridades judiciárias, condenando-as à “morte moral”.

2) As mensagens não indicam nenhuma violação das leis e normas do processo penal (“o seu conteúdo é normal como diálogo de autoridades públicas”).

Um ou outro, senhores! Se é verdadeiro o segundo argumento, inexiste tentativa de calúnia. Nessa hipótese, Moro e os procuradores deveriam celebrar a publicação, que comprovaria de uma vez a lisura do processo. Mas, pelo contrário, como sinaliza a fúria santa do artigo de Bonfim, tudo é anormal nas mensagens que evidenciam o conluio entre juiz e Estado acusador na montagem de estratégias jurídicas e de comunicação midiática.

O segundo argumento é um medíocre exercício de contradição: a negação de um fato incontroverso. Já o primeiro orbita o planeta da especulação vazia. Qual é a prova de que as mensagens foram obtidas por hackers (e não por um procurador de facção rival, por exemplo)?

Há algum vestígio, por mínimo que seja, a sugerir falsificação dos diálogos?

“Ó crime sórdido! Caluniam-me ao dizer que escrevi essas coisas, que posso ou não ter escrito —mas, se de fato as escrevi, nada fiz de errado.” O cerne do discurso de Moro e dos procuradores emana do manual de advogados embrenhados na missão de produzir uma defesa para réus carentes de álibis verossímeis. O fato embaraçoso é que, postos diante de um caudal de diálogos referentes ao principal caso jurídico de suas vidas, não conseguem apontar uma única instância de falsificação.

A conjunção dos dois argumentos resulta em catástrofe lógica. Daí, o recurso a um terceiro, de tipo nuclear: a acusação de que os críticos de Moro e dos procuradores não passam de agentes de corruptos presos ou ainda soltos (“mais de uma centena de potentados acusados”). Aí, sim, nas palavras de Bonfim, identifica-se “o parto de uma calúnia”.

Na estante dos argumentos polêmicos, o ataque “ad hominem” ocupa a prateleira inferior: algo como virar a mesa, levar embora a bola do jogo, chamar o irmão mais velho. Mas, na esfera política, é ferramenta cotidiana dos espíritos autoritários. Sob esse aspecto, os fiéis de Moro emulam o procedimento padrão dos regimes comunistas. Critique Stálin (ou Castro, ou Maduro) e você será um agente da CIA. Critique as sagradas figuras da Lava Jato e será um comparsa dos corruptos.

Bonfim só menciona a Constituição, a lei, o Código de Processo Penal para circundar o tema da separação entre juiz e Estado acusador. No lugar disso, dedo em riste, fala do povo e do inimigo do povo, em alocuções condoreiras: a “grandeza bilionária das cifras da corrupção, abjeto monstro que produz exclusão social”, “mais uma tunga na história e no povo brasileiro nacional” (sic).

Seu discurso, que reproduz o utilizado por Moro na Câmara, pede tradução. Ele está dizendo que a lei deve se curvar ao interesse do povo, tal como interpretado por seus arautos. Todos os regimes autoritários do mundo dizem isso.

Lula é um detalhe, quase uma nota de pé de página, nessa história triste. Não é necessário acreditar na inocência do ex-presidente para desprezar juízes e procuradores que se pronunciam como políticos. Mais precisamente, como políticos populistas.

Demétrio Magnoli
Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Acordo Mercosul-UE terá agora de gerar consensos dentro dos países - ROBERTO SIMON

FOLHA DE SP - 06/07

Nessa nova fase, tecnocratas cedem suas cadeiras a políticos.


Há razões de sobra para celebrar o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia (UE). Juntos, os blocos somam 25% do PIB global e um mercado de 780 milhões de pessoas. Com uma das economias mais fechadas do mundo, o Brasil tem muito a ganhar —quando o acordo entrar em efeito.

Antes, ele precisa ser ratificado nas respectivas capitais. Nessa nova fase, os tecnocratas, que tocaram a negociação desde 1999, cedem suas cadeiras a políticos. O acordo vai do silêncio das chancelarias ao debate público nos Parlamentos.

Primeiro, o Conselho da UE terá de aprovar o texto, processo que tem levado de 7 meses a 3 anos. Depois, o Parlamento Europeu e os Congressos dos quatro membros do Mercosul —Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai— devem ratificá-lo. Sua parte econômica (a mais importante) passará, então, a valer. A entrada em vigor do componente político, que cobre temas como meio ambiente e corrupção, requer aprovação nos países-membros da UE.

O governo brasileiro acredita que, em dois anos, o percurso até a parte econômica terá sido percorrido. É um cenário otimista. Há riscos no caminho, e os pessimistas lembrarão que a última crise institucional do Mercosul envolveu precisamente um processo de ratificação.

Em 2006, o bloco assinou um tratado para incorporar a Venezuela. A maré de esquerda no Cone Sul, com Lula no Brasil e Néstor Kirchner na Argentina, impulsionara o convite ao presidente Hugo Chávez. Mas a ideia contava com apoio de setores empresariais, incluindo parte da Fiesp. Um de seus maiores entusiastas era o então presidente paraguaio, Nicanor Duarte, do conservador Partido Colorado.

O tratado foi ratificado sem problemas no Brasil, na Argentina e no Uruguai. Mas, no percurso, o esquerdista Fernando Lugo foi eleito presidente do Paraguai. Subitamente, em Assunção, o acordo virou “prova” da submissão de Lugo ao chavismo. A oposição, que controlava o Senado, travou o avanço.

A Venezuela, ao final, entrou no bloco numa gambiarra diplomática, em 2012. Lugo caiu em um controverso processo de impeachment de 48 horas e, em reação, os demais membros do Mercosul suspenderam o Paraguai. Cinicamente, as presidentes Dilma Rousseff e Cristina Kirchner decidiram, então, que não havia mais impedimento à entrada de Caracas.

Em 2016, o caso deu sua última reviravolta: com o Paraguai reincorporado, os governos Michel Temer e Mauricio Macri suspenderam a Venezuela.

Félix Peña, especialista argentino em comércio exterior, alertou nesta semana sobre o risco de a Argentina fracassar em “produzir os consensos” para ratificar o acordo Mercosul-UE. A esquerda peronista —incluindo o ex-ministro da Economia de Cristina e atual pré-candidato ao governo da província de Buenos Aires, Axel Kicillof— já está atacando o tratado.

Peña prevê que um enrosco no nível doméstico ameaçaria a própria viabilidade do Mercosul, com os demais países a trocar o bloco por soluções bilaterais.

O caso da entrada da Venezuela tinha uma diferença-chave: era, desde o início, uma má ideia. Mas ele guarda uma lição. Sectarismo e guerra ideológica ampliam riscos de atrasos —e fracassos— na ratificação de instrumentos internacionais. Um recado tanto ao kirchnerismo quanto à ala antiglobalista do bolsonarismo.

Roberto Simon
É diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.

Reforma Tributária: a vida continua - MARCUS PESTANA

O Tempo - MG - 06/07

A Câmara dos Deputados deu alguns passos na direção da aprovação da reestruturação parcial do nosso sistema previdenciário. Pontos essenciais ainda serão definidos. Muitas concessões poderão ser feitas e tendem a desidratar o conteúdo, diminuir a equidade e tornar mais ralo o impacto fiscal. A mudança previdenciária é condição necessária, mas não suficiente para a reversão da crise. As projeções são de uma década perdida entre 2011 e 2020. Neste período, enquanto a Ásia emergente crescerá 93,0%, os EUA 24,5% e a União Europeia 18,5%, amargaremos uma marca que revela a paralisia do desenvolvimento brasileiro, 10,6%.

Outras medidas têm que ser tomadas para aumentar a produtividade, estimular o comércio exterior, diminuir os incentivos fiscais, abordar a agenda de reformas microeconômicas, privatizar estatais, conceder serviços públicos, construir parcerias público-privadas, dar eficiência a um Estado mais enxuto.

Mas de todas as ações necessárias no “day after” da reforma da previdência nenhuma tem a importância da mudança radical de nosso sistema tributário. Nossa carga tributária é alta para um país emergente e o perfil do nosso sistema é impressionantemente confuso, injusto, regressivo, ineficiente, burocrático, estimulando a sonegação, a elisão excessiva, a corrupção, a concentração de renda e obstaculizando o crescimento econômico e a modernização da economia. Como disse o ex-deputado Luiz Carlos Hauly, autor do relatório aprovado da reforma em 2018: “O sistema é anárquico e caótico, quem pode mais chora menos”, ou como gostava de caracterizar nas reuniões é “um verdadeiro manicômio tributário”.

Não é nada fácil viabilizar politicamente uma verdadeira reforma que mereça o nome. Sobre redistribuição de renda é bom falar e difícil de fazer. Quem tem não quer perder, que não tem quer ganhar. E essa regra vale para a disputa entre os segmentos sociais, os setores econômicos e os três níveis de governo. Não sei por que algumas pessoas ficam assustadas ao saberem que o Brasil é um dos países mais desigual do mundo. Os dois grandes sistemas institucionais (previdenciário e fiscal), que poderiam operar para diminuir desigualdades sociais, são concentradores e injustos. A carga tributária daqueles que têm até dois salários de renda familiar é superior a 50% e de quem tem mais de 30 salários mínimos menos de 30%. Isso reflete o predomínio de impostos indiretos, e não sobre a propriedade, a renda e a riqueza.

Mas, além disso, o sistema é ineficiente e prejudica o desempenho da economia. São impostos encavalados em cascata e com legislação descentralizada e confusamente complexa. Custo Brasil na veia.

Ou fazemos uma mudança estrutural profunda – previdência, tributos, orçamento, abertura da economia, reforma do Estado – ou não teremos futuro promissor. Isto depende de clareza de ideias e objetivos, liderança, capacidade política de construir consensos e participação ativa e consciente da sociedade. Não são ativos abundantes na atual conjuntura nacional.

Mas quem acha que vamos sair do circulo vicioso de nossa armadilha do crescimento para darmos respostas aos treze milhões de desempregados e cinco milhões de desalentados e também às novas gerações, sem coragem, atitude, e alguma dose da receita de Churchill (“Sangue, suor e lágrimas”), lastimo dizer: “chance zero”!

Ruptura, para quê? - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 06/07

Bolsonaro foi eleito por circunstâncias que não lhe dão carta branca para governar só para seguidores originais


Uma ação disruptiva pressupõe substituição de processos ou procedimentos em direção ao futuro. Num momento em que a democracia representativa está em xeque no mundo ocidental, temos um governo de ruptura que sabe o que quer mudar ou destruir, mas não sabe o que colocar no lugar.

Bolsonaro foi eleito por um conjunto de circunstâncias que não lhe dá carta branca para governar apenas para os seus seguidores originais. Não há estelionato eleitoral, é verdade, mas também não é razoável que o presidente eleito possa fazer o que lhe dá na cabeça.

Apesar de continuar insistindo em temas polêmicos, como, desta vez, o trabalho infantil, pelo menos ele já sabe que há limites para suas idiossincrasias. Por isso, advertiu que não pretende apresentar nenhuma mudança na legislação brasileira, que o proíbe. O Congresso, o Judiciário e a opinião pública seriam obstáculos intransponíveis.

O presidente talvez tenha tido o seu primeiro mês de sucessos com a assinatura do acordo Mercosul-União Européia e aprovação da proposta de emenda constitucional da reforma da Previdência na Comissão Especial. Atos, no entanto, que foram limitados pelo protagonismo da Câmara, no caso da reforma, ou pelas regras internacionais a que o governo tem que se submeter, quando adere ao acordo com os países europeus.

Um governo que pretende se unir cada vez mais ao Ocidente, contra o que considera uma conspiração internacionalista de esquerda, terá que respeitar regras desse mesmo globalismo, seja com relação ao clima, seja à própria democracia.

A simples menção ao trabalho infantil, por exemplo, cria um mal entendido desnecessário. Mais uma vez Bolsonaro demonstra que não entende o peso de suas palavras. O aumento de produtividade na agricultura é dos maiores sucessos econômicos mundiais, à base de muito investimento em tecnologia e criatividade. Não pode ser colocado em dúvida devido ao pensamento retrógrado e extemporâneo do presidente da República.

Um governo que quer parear-se às democracias ocidentais não pode normalizar, pela boca de seu presidente, uma ação criminosa que dá vantagem competitiva no comércio internacional, fortemente questionada, à China, capitalismo de Estado que está sendo obrigado a abrir mão dessas más práticas por ter aderido à organizado internacionais como a Organização Mundial do Comércio. (OMC).

O que o presidente passou na infância, colhendo milho e carregando cachos de bananas nas costas aos 10 anos, é uma triste realidade ainda hoje no Brasil, e ele, como presidente, deveria dedicar-se a mudar essa situação de carência extrema, e não transformá-la em uma situação normal.

O trabalho enobrece, diz Bolsonaro. Mas, o trabalho infantil avilta. A proteção à criança e aos direitos humanos deveria vir em primeiro lugar para o presidente.
A visão do presidente a respeito de certas questões da democracia é simplificadora, quando não perigosa. Ao anunciar que levará o ministro Sérgio Moro à final da Copa América amanhã, disse que o povo mostrará quem tem razão, referindo-se à divulgação dos diálogos do hoje ministro da Justiça com os procuradores da Lava Jato.

Provavelmente o presidente e seu ministro serão aplaudidos. Bolsonaro transforma o Maracanã num moderno Coliseu, onde o povo decide a sorte do gladiador. A consulta direta ao povo, com que sonha Bolsonaro, é dos aspectos mais distorcidos da democracia.

O que parece ser uma atitude democrática, transforma-se em manipulação populista. Da mesma forma, plebiscitos podem ser utilizados com objetivos políticos, dependendo de quando forem convocados e organizados.

Não há nada de estranho que a chamada “democracia direta” tenha sido o principal mecanismo político de atuação dos governos bolivarianos da região, que Bolsonaro combate tanto. Os populismos se aproximam.

O fim das intermediações do Congresso, próprias dos sistemas democráticos, é sonho de consumo de presidentes autoritários, de direita ou de esquerda. Este é o tipo de ação basicamente antidemocrática, pois uma coisa é criticar a atuação do Congresso e exigir mudanças na sua ação política para aproximar-se de seus representados, o povo.

Outra muito diferente é querer ultrapassar o Poder Legislativo e outras instituições fazendo uma ligação direta com o eleitorado através de um governo plebiscitário.

Bendita insubordinação - JULIANNA SOFIA

FOLHA DE SP - 06/07

Guedes e articulação do Planalto ignoraram apelo de Bolsonaro por policiais na Previdência


A turma da polícia está danada da vida com Jair Bolsonaro. Policiais federais, rodoviários federais e legislativos, além de guardas municipais não conseguiram regras mais brandas de aposentadoria na votação da reforma da Previdência na comissão especial. Mesmo com todo o lobby, gente do Palácio do Planalto e da área econômica atuou para derrubar a investida.

“A relação fica muito ruim porque os compromissos não estão sendo honrados. A gente até acredita que haja uma boa vontade do presidente da República para resolver a questão, só que isso não se reverte em uma ordem a seus subordinados no Ministério da Economia e junto à articulação política no Congresso”, afirma o presidente da ADPF (entidade dos delegados da PF), Edvandir Paiva. “Em outras épocas, a gente falava com o presidente da República, ele dava uma ordem, e ela era cumprida.”

Operou contra o corporativismo estatal um “deep state brasilis” —versão tupiniquim do estado profundo americano, em que a ação da máquina burocrática busca frear despautérios de governantes voluntaristas. Neste caso, bem pouco profundo inclusive: entre os artífices da desobediência estão o secretário Rogério Marinho (Previdência) e o ministro Paulo Guedes (Economia).

O presidente fez apelos públicos a favor dos policiais nos últimos dias. Disse até que o governo havia errado ao enviar ao Congresso uma reforma sem beneficiar a categoria. Guedes deu de ombros (Bolsonaro tem “uma ingenuidade ou outra” ao tratar da Previdência). Marinho, idem (“é evidente que ele [presidente] tem direito de ter sua opinião”).

Até agora, Bolsonaro esteve mais fora que dentro da articulação pela aprovação da PEC previdenciária. Jogou como adversário nas raras vezes em que negociou. Nesta sexta (5), voltou a insistir que ainda há tempo e espaço para mudar o texto. “Olha… tem equívoco, tem mal-entendido. (...) Não acabou a reforma da Previdência. Mais que isso, depois da Câmara terá o Senado.”

Bendita seja toda insubordinação.

Julianna Sofia
Jornalista, secretária de Redação da Sucursal de Brasília.

As outras batalhas da Previdência - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 06/07

Previdência gastou R$ 92 bilhões em 2017 por decisões judiciais. Governo também quer reduzir esse risco jurídico para as contas públicas

O Ministério da Economia está iniciando outra batalha para reduzir o custo da Previdência, o da excessiva judicialização. Em 2017, a Previdência pagou R$ 92 bi de benefícios cumprindo decisões judiciais, isso foi 15% de todo o gasto previdenciário. Não foram ações concedidas naquele ano, mas pagas naquele ano e concedidas ao longo do tempo. Os dados de 2018 que serão conhecidos em breve mostrarão um crescimento do custo dos benefícios pagos por decisões da Justiça. O governo tem conversado com o STJ para saber onde estão as falhas que têm provocado o crescimento das decisões.

A ideia, segundo me explicaram no governo, é reduzir erros, ou fechar brechas, que possam redundar em novas decisões judiciais contrárias. Em algumas áreas, 70% das ações são de pessoas que requerem aposentadorias especiais. O governo está estudando particularmente as ações provenientes das perícias médicas do INSS.

Uma das fontes de decisões judiciais é o Benefício de Prestação Continuada (BPC), porque, apesar de a lei estabelecer que deve ser concedido a quem tem uma renda familiar per capita de um quarto de salário mínimo, existem ações civis públicas em cinco estados considerando que o INSS deve conceder administrativamente para quem tem renda de meio salário mínimo. Há juízes estabelecendo outros critérios. Tudo começou quando, há três anos, o STF decidiu que o critério que estava na lei ordinária que criou o BPC estava em conflito com o artigo 203 da Constituição.

Foi por isso que o relatório do deputado Samuel Moreira constitucionalizou o critério do BPC. Mas, na última versão, ele fez um adendo cuidadoso. Estabeleceu que uma lei ordinária definirá depois o critério de vulnerabilidade, isso porque pessoas portadoras de deficiência têm direito ao benefício mesmo que tenham renda maior. O problema é que pelos dados atuais da Previdência, consultados pelo economista Fábio Giambiagi, há mais portadores de deficiência recebendo o BPC, 2,7 milhões, do que idosos em condição de miserabilidade, 2 milhões. Isso pode indicar uma tendência à fraude ou uma visão benevolente na concessão porque, na opinião dele, o Brasil não deve ter mais deficientes impossibilitados de trabalhar do que idosos em condições de miserabilidade. O governo calcula que, em dez anos, com a constitucionalização do critério de renda do BPC, pode ser gerada uma economia de R$ 33 bilhões.

Um dos pontos que os técnicos do Ministério da Economia acham que pode ajudar a reduzir o número de ações judiciais que o INSS perde é o da perícia medica. A MP 871 levou os peritos do INSS para uma carreira própria na Secretaria de Previdência. E o esforço é para que o Judiciário use os servidores na perícia judicial, independentemente de requererem, quando quiserem, uma perícia externa.

Quem no governo acompanhou a discussão da reforma está convencido de que a questão da aposentadoria rural, que foi retirada do projeto na Câmara, terá que ser analisada em algum momento, por razões demográficas. Está sendo reduzida a diferença de expectativa de vida entre os moradores urbanos e rurais. Há 20 anos, a diferença era de praticamente sete anos. Isso pelos dados do INSS, nas estatísticas de morte do beneficiário. Em 2017, essa diferença caiu para 1,7 ano.

Politicamente foi impossível mexer com o rural agora, mas os técnicos acham que com a queda dessa distância na expectativa de vida isso terá que ser analisado para evitar o estímulo a que pessoas que vivem nas cidades se aposentem como trabalhadores rurais. É bem verdade que a MP 871 vai reduzir o crescimento da aposentadoria rural, porque a comprovação do trabalho não será mais dada pelo sindicato, mas sim por um cadastro do governo. O problema fiscal tende a diminuir, mas a mudança, na opinião dos técnicos da Previdência, terá que ser feita por uma questão de lógica no sistema: pessoas se aposentando numa idade menor, quando isso não se justifica demograficamente.

A reforma da Previdência é um assunto inesgotável. Mesmo que essa proposta que saiu esta semana da Comissão Especial seja aprovada na íntegra o país continuará com um grande déficit no sistema apesar de ser pequena a proporção de idosos. O Brasil ainda é de jovens, mas com um ritmo de envelhecimento muito rápido. Outro dia, para fazer uma coluna sobre o Plano Real, eu registrei aqui um dado do IBGE: 38% dos brasileiros têm 25 anos ou menos. A Previdência precisará mudar várias vezes, não pelos velhos, mas pelos jovens de hoje.


Bolsonaro não compreende que tempo dos césares passou - CARLOS MELO

ESTADÃO - 06/07

Seu achado da vez consiste em submeter a si e ao seu ministro da Justiça ao julgamento das multidões nos estádios de futebol - como se ali estivesse toda a sociedade


A maior e a mais aparente aflição dos brasileiros se dá em torno da retomada do desenvolvimento econômico. Sem ele, continuam elevados os índices de desemprego e a crise social. Mas, desenvolvimento econômico depende da solidez de instituições que evitem incertezas; capazes de estabelecer pactos entre os mais distintos setores de uma sociedade naturalmente diversificada.

Instituições são impessoais, perenes, estáveis e estabelecem procedimentos gerais. São avessas ao personalismo, ao apelo populista, à tentação do diálogo direto que políticos pretensamente carismáticos busquem estabelecer com as massas - como na Venezuela, por exemplo. A sociedade moderna é democrática e não pode prescindir de instituições.

Infelizmente, o presidente Jair Bolsonaro parece não compreender isso. Não se "dobra" à realidade de instituições democráticas - baseadas na Constituição que, por sinal, eleito, prometeu defender. Insiste no voluntarismo de recorrer diretamente ao que entende como "o povo", desqualificando instituições. Seu achado da vez consiste em submeter a si e ao seu ministro da Justiça ao julgamento das multidões nos estádios de futebol - como se ali estivesse toda a sociedade.

O tempo dos césares passou. De lá para cá, a humanidade viveu avanços: aperfeiçoou o convívio do poder com os cidadãos, estabeleceu regras e métodos por meio da "democracia representativa", estabilizou relações. É isso que traz segurança, investimento, bem-estar. Fora disso, não há democracia; apenas a deturpação de seu conceito e o aprofundamento da crise.

CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DO INSPER

Como terminar uma amizade - LAUREN MECHLING

GAZETA DO POVO - PR/The New York Times 06/07

Eu soube que era ela mesmo a quase um quarteirão de distância. Quando minha antiga amiga se moveu no meio da multidão, vi que estava com o telefone perto da orelha e senti uma sensação familiar de perda. Nós duas conversávamos o tempo todo, de casa e das nossas mesas minúsculas do primeiro emprego, em ruas movimentadas em momentos como esse. Mais de uma década se passou desde aquele tempo, e não tenho a mínima ideia de quem me substituiu do outro lado da linha. "Alô!", gritávamos, e engatávamos diálogos cheios de carinho. Nem ela nem eu parávamos de andar.

Nós nos conhecemos durante o ensino médio, em Nova York, e continuamos próximas ao longo da faculdade, mandando cartas para o dormitório uma da outra e, nos feriados, saíamos para comer dim sum na Pell Street ou espiar as araras da Canal Jeans. Quando voltamos para casa, depois de formadas, viramos um par inseparável, falando a linguagem de antigas piadas internas e uma levando a outra para todo lugar. Saíamos juntas com nossas mães, apresentávamos os pretendentes uma da outra para uma avaliação minuciosa, saíamos de férias juntas.

Foi em um telefonema que nossa amizade acabou, embora eu tenha levado algumas semanas para me tocar de que ela me abandonara. Estávamos batendo papo, a caminho do trabalho, quando ela disse que tinha de atender outra ligação e que me telefonaria de volta. E desapareceu. Deixei recados de voz, mandei torpedos. Chorei as pitangas para os amigos em comum. E me senti abandonada e desnorteada.


Amizade é coisa frágil, e a maioria não foi feita para durar para sempre. As circunstâncias mudam, os elos se enfraquecem

Quem sabe ela não tenha me dado uma explicação porque não tivesse nenhuma. O fato de não estar mais a fim talvez fosse razão mais que suficiente.

Amizade é coisa frágil, e a maioria não foi feita para durar para sempre. As circunstâncias mudam, os elos se enfraquecem. O fato de termos durado quase uma década foi uma façanha. Em 1999 e 2000, o sociólogo holandês Gerald Mollenhorst e seus colegas entrevistaram 1.007 pessoas, com idades entre 18 e 65 anos, sobre aqueles com quem conversavam regularmente e passavam algum tempo; quando procuraram os participantes para acompanhamento, sete anos depois, apenas metade das amizades ainda existia.

As regras que regem o amor romântico são mais claras. Com exceção dos mais aventureiros (ou adúlteros), vivemos nossos relacionamentos em uma sucessão distinta, como as contas de um colar. Encontramos um novo parceiro e nos tornamos íntimos até que um dos dois, ou ambos, termine a relação e prossiga para encontrar "a pessoa certa".

Para o filósofo francês do século 16, Michel de Montaigne, a amizade deveria funcionar de forma semelhante, uma companhia por vez, pois "na amizade perfeita cada um se dá ao outro tão integralmente que não sobra nada para dividir com outras pessoas", escreveu ele.

Hoje em dia, a amizade é mais parecida com o poliamor: começamos a nos relacionar com as pessoas na tenra infância e, a partir daí, o número só faz aumentar. Conforme a vida segue, fazemos amigos para todas as ocasiões – faculdade, trabalho, mães, academia, divórcio. Somos aconselhados, inclusive, a manter as relações antigas – talvez principalmente – quando formamos novas, para "estarmos presentes", por mais ocupados ou desinteressados que estejamos.

Acontece que nossa vida social nunca para, e mesmo as relações baseadas naquela ligação rara e profunda, como a que me sustentou no início da vida adulta, estão fadadas a enfraquecer. Novos parceiros românticos entram em cena, como também filhos, mudanças geográficas, vitórias e catástrofes não previstas. As prioridades pendem para novas direções.

E surgem novas amizades. Somos programados para buscá-las; segundo alguns estudos, ao lado de nossas companhias favoritas, o cérebro libera dopamina e oxitocina. Os primeiros estágios são como os de um romance; quando meu marido me vê ao telefone, absorvida em uma troca rápida de mensagens, sabe que a pessoa do outro lado invariavelmente é uma mulher fascinante que ainda estou conhecendo.

Há transgressões escandalosas e traições que podem acabar com a amizade, é verdade, mas, no geral, não há como especificar seu fim. É só o clima que muda; começa a surgir o senso de obrigação. Conversas que antes eram espontâneas passam para um território menos agradável, o de "pôr as novidades em dia". E dali para perceber que as redes sociais são a única coisa que mantém viva a relação é um pulo.

Graças ao milagre do Instagram, pude saber que minha antiga amiga tem uma família linda e continua uma cozinheira de mão cheia e apaixonada por fotos. O que não aparece no meu feed é o olhar vulnerável que lhe subia aos olhos quando andávamos de braços dados pela cidade, tarde da noite, ou o som de sua risada quando passávamos as tardes de domingo comendo queijos fedidos e assistindo às reprises de Seinfeld. Essas coisas não recuperarei jamais.

Minha antiga amiga finalmente me procurou, vários meses depois de ter desaparecido, afirmando não saber bem por quê, mas percebera que precisava de espaço, e que sentia muito. Fui honesta e disse que ficara magoada, mas que compreendia. Nós nos vimos algumas vezes depois disso, mas a coisa já estava diferente; tínhamos nos afastado.

Em respeito à santidade da amizade, quando a mágica diminui ou acaba, o melhor a fazer é se afastar. Quando vi minha antiga amiga da última vez, de relance na rua movimentada, não quis um relatório das novidades de dois minutos, nem a troca de promessas vazias de "nos vermos em breve". Nossa história gloriosa, e as jovens que éramos, merecem mais que isso. Passar batido uma pela outra foi mais instinto que decisão, mas foi a única maneira de honrar nossa amizade, que Deus a tenha.

Lauren Mechling é a autora do romance ainda inédito "How Could She"."

Itamaraty, STF e a ideologia de gênero - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

Gazeta do Povo - PR 06/07

Consolidando uma mudança política que começou em março deste ano, o Itamaraty está orientando os diplomatas brasileiros a afirmar que o país entende as menções a “gênero” em documentos internacionais na concepção tradicional de “sexo biológico”. A posição reflete crescentes questionamentos à disseminação da ideologia de gênero em fóruns internacionais, nos últimos 30 anos, e também a inflexão que as urnas ditaram ao rumo do Brasil em vários campos. Ainda assim, nos bastidores, já há quem se prepare para questionar as medidas do Ministério das Relações Exteriores perante o Supremo Tribunal Federal (STF), com base no recente julgamento que criminalizou a “homotransfobia”.

O tema é delicado tanto pela dificuldade que alguns têm de compreender – até cremos que de boa fé – que o combate à ideologia de gênero não significa ser a favor da violência ou da discriminação contra quem quer que seja, quanto pela tentativa de controle judicial da política externa, que envolve discussões técnicas pouco usuais no Brasil. Em relação ao primeiro ponto, é preciso destacar, mais uma vez, que a ideologia de gênero é um conjunto de ideias, sem lastro científico, que busca dissociar por completo a expressão de gênero dos seres humanos de seu substrato biológico. De acordo com essa visão, que surge na obra de feministas radicais no final da década de 1940 e se espalha pelos fóruns internacionais a partir da década de 1980, o desejo e a vontade individuais passam a ser soberanos para definir a “identidade de gênero” dos indivíduos.


Diante desse quadro, é mais que razoável, e plenamente democrático, que um governo eleito possa executar um giro na política externa.

Opor-se a esse conjunto de ideias, como fazem filósofos e cientistas respeitáveis em todo o mundo, não significa, de forma nenhuma, compactuar com a violência, o preconceito e a discriminação contra pessoas transgênero, que devem ser protegidas de acordo com a dignidade inerente a todos os seres humanos. Da mesma maneira, não é possível aceitar a narrativa que ativistas querem vender a qualquer custo: a de que essas ideias seriam o único instrumental possível para orientar políticas de combate à discriminação, especialmente de mulheres, ao redor do mundo. Não é preciso aderir a esta ou aquela visão de “gênero” para condenar violações de direitos de mulheres e meninas em fóruns internacionais, nem para conceber ações para melhorar a vida dessas pessoas. Afinal, entre 1945 e 1995, quando a ONU falava apenas em sexo, e não em gênero, nem por isso deixava de se preocupar com esses temas.

Ocorre que já se argumenta que a decisão do STF que criminalizou a “homotransfobia” entendeu que o conceito de discriminação na Constituição Federal abrange também a população “LGBTI+”, de modo que o novo posicionamento do Itamaraty seria inconstitucional. Essa posição, porém, além de ignorar o que foi exposto acima e as dificuldades próprias do controle de constitucionalidade da política externa, ignora que as linhas mestras da ideologia de gênero nunca foram transformadas em direito internacional. É verdade que o Brasil aderiu com força ao vocabulário de “gênero” no passado, mas nunca houve consenso sobre o tema devido à oposição de vários países.

Diante desse quadro, é mais que razoável, e plenamente democrático, que um governo eleito possa executar um giro na política externa nesse campo. Embora o acórdão do STF ainda não tenha sido publicado e não se saiba com exatidão qual fundamentação, com poder vinculante, o tribunal adotará, é espantoso que um ministro como Celso de Mello, que capitaneou o julgamento, aceite um conjunto de conceitos filosóficos altamente discutíveis como determinante e normativo. Revela um pendor autoritário que alguns grupos já pensem em se mover contra o Itamaraty com base nessa decisão. Mas ainda mais espantoso e autoritário seria se, com base nisso, o STF decidisse manietar as relações exteriores do Brasil.

A reforma avança - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 06/07


Se o governo não atrapalhar, é provável que o projeto com as mudanças na Previdência seja finalmente implementado, para que o País possa afinal mudar de assunto.


A despeito das trapalhadas do governo, o texto-base da reforma da Previdência foi aprovado na quinta-feira por 36 votos a 13 na Comissão Especial da Câmara, passando com folga por seu primeiro grande teste político. A expectativa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), é levar a matéria para o plenário já na semana que vem, manifestando confiança na aprovação.

Para aquilatar o tamanho da vitória dos reformistas, basta lembrar que o projeto apresentado em 2017 pelo então presidente Michel Temer foi aprovado por 23 votos a 14, uma margem muito mais estreita do que a obtida agora. Acrescente-se a isso o fato de que o projeto do governo Temer previa uma economia próxima a R$ 600 bilhões em dez anos, enquanto o atual projeto, do modo como está, acarretará um impacto fiscal da ordem de R$ 1 trilhão no mesmo período. Esse contexto mostra que se ampliou entre os parlamentares a consciência não só sobre a necessidade de reformar a Previdência, mas também de que essa reforma tem de ser significativa, ante a desafiadora situação fiscal do País.

Esse caminho não foi percorrido sem percalços, e não se pode imaginar que não haverá entraves nas próximas etapas do processo, com risco nada desprezível de desidratação do projeto. Convém lembrar que a reforma já poderia ter sido aprovada há mais de um mês, não fossem as confusões protagonizadas pelos governistas, que tiveram peso muito mais significativo no atraso do que as obstruções patrocinadas pela oposição.

Acrescente-se a isso o fato de que o presidente Jair Bolsonaro, a quem caberia a liderança do esforço para obter apoio político à reforma, decidiu deliberadamente ficar fora das negociações com o Congresso, como se esse diálogo fosse necessariamente corrupto. Bolsonaro, ademais, designou interlocutores muito despreparados para fazer esse contato com os parlamentares, o que ampliou a certeza de que o Executivo não dava importância para a negociação. O vácuo criado pela ausência do presidente da República em tema tão relevante foi rapidamente ocupado por lideranças do Congresso, que, numa espécie de “parlamentarismo branco”, assumiram a tarefa de conduzir as negociações para aprovar a reforma.

O projeto prevê que os homens só poderão se aposentar aos 65 anos, e as mulheres, aos 62 anos, com um tempo mínimo de contribuição de 20 anos para homens e 15 anos para mulheres. Extingue-se a possibilidade de aposentadoria por tempo de contribuição. Haverá regras de transição para quem já está trabalhando e contribuindo para o INSS ou o setor público – em todos os casos, os trabalhadores terão de ficar um pouco mais na ativa para se aposentar. Já os trabalhadores rurais poderão continuar a se aposentar aos 55 anos, se mulheres, e aos 60 anos, se homens, com pelo menos 15 anos de contribuição.

Houve derrotas importantes para o governo. Defendido com vigor pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, o regime de capitalização, em que as contribuições do trabalhador vão para uma conta que banca a aposentadoria no futuro, foi retirado do texto. Além disso, Estados e municípios foram deixados de fora da reforma, o que a deixa pendente de aprovação das Assembleias estaduais e Câmaras municipais – tornando muito mais difícil sanear essa relevante fonte de desequilíbrio fiscal.

Mas o governo não tem do que se queixar. Os deputados responsáveis pela articulação do projeto na Câmara trataram de manter o mesmo nível de economia pretendido pelo ministro Paulo Guedes. Além disso, há genuíno interesse em liquidar a votação o mais rápido possível, para que outras reformas sejam apreciadas. O próximo projeto a ser examinado deverá ser o da reforma tributária.

Portanto, se o governo não atrapalhar – isto é, se nenhum ministro ou filho do presidente tuitar mais alguma ofensa contra o Congresso, se o presidente não voltar a agir como se fosse representante sindical de corporações e se os deputados do partido do presidente entenderem que sua missão não é sabotar as reformas encaminhadas pelo Executivo –, é provável que o projeto com as mudanças na Previdência atravesse sem sustos toda a longa tramitação que tem pela frente e seja finalmente implementado, para que o País possa afinal mudar de assunto.

Passo previdente - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 06/07

Sob pressão, comissão da Câmara preserva o essencial da reforma da aposentadoria


A despeito da dissonância do presidente Jair Bolsonaro (PSL), que na última hora retomou suas referências corporativistas na tentativa de defender mais vantagens para policiais, a comissão especial da Câmara dos Deputados resistiu às pressões e aprovou uma boa versão da reforma da Previdência Social.

Aprovado com ampla maioria, de 36 votos a 13, o relatório preserva a espinha dorsal da proposta original, com impacto estimado nas contas públicas em torno de R$ 1 trilhão ao longo de dez anos, perto do que queria a equipe econômica.

Como esperado, caiu o dispositivo que previa um regime de capitalização, ideia controversa, mal explicada e que não encontrou amparo político. Ficou o mais importante para o momento —idade mínima, equiparação entre regimes dos servidores e da iniciativa privada e uma transição não muito longa para os trabalhadores já na ativa.

A rendição de Bolsonaro aos policiais federais —depois de ser chamado de traidor pela categoria— quase impediu a votação nesta semana, o que teria praticamente inviabilizado a apreciação pelo plenário antes do recesso.

Desta vez, a responsabilidade por evitar a perda de controle para os grupos de pressão coube aos parlamentares favoráveis à reforma.

Os pontos negativos foram a retirada de estados e municípios do texto, embora ainda haja chance de reparo nas próximas etapas da tramitação, e a perda de contribuições rurais de R$ 80 bilhões em uma década, mostra da força da bancada ruralista —que continua a defender isenções descabidas.

O próximo passo é a votação no plenário da Câmara, o que, segundo promessas das lideranças partidárias, deve ocorrer na próxima semana. Espera-se uma dura batalha, sempre com risco de diluição maior da proposta.

Entretanto há sinais de apoio político expressivo —e a esta altura já parece realista contar com uma reforma suficientemente robusta para reduzir o risco de descontrole nas contas públicas, ainda que outras medidas sejam necessárias.

A mudança do sistema de aposentadorias não bastará, decerto, para tirar a economia do país da estagnação atual, mas se mostra imprescindível para estabelecer um ambiente de maior confiança. De imediato, abre caminho para a redução dos juros do Banco Central, hoje de 6,5% ao ano.

Ao longo do tempo, desde que haja avanços em áreas como tributação e regulação, pode-se esperar um aumento na disposição do setor privado para investimentos. Setores ligados à infraestrutura e à construção civil despontam como os mais promissores, com elevado potencial de geração de empregos.

Para apressar o processo, é fundamental que governo e Congresso resistam às demandas corporativas e preservem o vigor da reforma. Concessões significam mais déficit orçamentário e dívida pública que, cedo ou tarde, implicará custos para todos os brasileiros.

Deve-se apressar a votação em plenário - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 06/07

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, tem razão ao desejar que a Casa vote a reforma até o recesso


No balanço de lucros e perdas da aprovação do projeto de reforma da Previdência na Comissão Especial, por uma margem de votos confortável — 36 a 13 —, destaca-se a efetividade do trabalho de condução da tramitação do assunto na Câmara feito pelo presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Consciente da importância da reforma para o país, Maia teve de ocupar espaços deixados por um governo inapetente, e até mesmo trapalhão, para liderar politicamente a viabilização da empreitada.

Não houve alternativa a não ser afinar-se com o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o competente secretário da Previdência, o ex-deputado Rogério Marinho, para dividirem um trabalho de que precisava, e precisa, ter a participação do presidente Jair Bolsonaro.

Este terminou atuando nos contatos com parlamentares, mas não a favor das melhores causas. Antes da votação do relatório do deputado Samuel Moreira (PSDB-SP) na Comissão Especial, Bolsonaro mobilizou-se apenas para garantir privilégios de castas policiais.

Antes, procurou manter distância do Congresso, demonstrando uma compreensão tosca do que é fazer política, entendendo-a como praticar o fisiologismo.

A luta continua, porque faltam as duas votações no plenário da Câmara, em que serão necessários no mínimo 308 votos a favor da reforma, e outras duas no Senado, também com o mesmo quórum qualificado de três quintos dos votos — 49 senadores.

Espera-se não apenas que Bolsonaro trabalhe para viabilizar a reforma, sem se dedicar a lobbies de corporações, e que o ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, empossado na quinta — experiente no trato com o Congresso, por ter sido o interlocutor do Exército com o Parlamento — consiga construir um canal desobstruído com deputados e senadores. Sem confundir política com o toma lá dá cá do fisiologismo, como fez Bolsonaro no início do governo.

Vencida a etapa da Comissão Especial, é importante apressar as votações do primeiro e segundo turnos no plenário da Câmara, como deseja Rodrigo Maia, para antes do início do recesso parlamentar, na quinta-feira 18. Em entrevista ontem à rádio Jovem Pan, o presidente da Câmara disse que já se reunirá hoje com líderes de partidos, para articulações com vistas aos dois turnos de votação em plenário.

Deve-se aproveitar logo o efeito positivo da vitória na Comissão, para consolidar apoios, atraindo indecisos, que poderão perder votos nas eleições de 2020 por não terem apoiado uma reforma essencial para tirar a economia do atoleiro fiscal. É estratégico aproveitar o bom momento, sem menosprezar a capacidade de o lobby de servidores defender no Congresso suas vantagens na aposentadoria.