quarta-feira, agosto 12, 2020

Com debandada, Guedes assume condição de corpo estranho no governo - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP - 12/08

Ministro corre risco de se tornar bibelô liberal, na contramão de interesses do presidente



Paulo Guedes nem tentou pintar com tons pastéis a demissão simultânea de dois secretários de sua equipe. Ao anunciar a saída dos auxiliares, o ministro foi obrigado a admitir que duas das propostas mais emblemáticas de sua agenda liberal estão politicamente interditadas.

O chefe da equipe econômica quis distribuir a culpa e lançou dúvidas sobre as motivações do que chamou de “debandada”, mas foi obrigado a reconhecer uma das razões desse bloqueio tem as chaves do Palácio do Planalto.

A demissão dos secretários responsáveis pelo programa de privatizações (Salim Mattar) e pela reforma da máquina administrativa (Paulo Uebel) atira Guedes na condição de corpo estranho no governo de um presidente que se livra das vestes que usou como figurino de campanha.


Em 2018, Jair Bolsonaro (sem partido) recitou os sonetos liberais sussurrados pelo economista e conquistou a boa vontade de investidores e empresários. Guedes foi recompensado com superpoderes na montagem do governo, mas jamais recebeu do chefe um apoio genuíno aos projetos que pretendia implantar.

No primeiro ano de mandato, o ministro precisou arrancar do presidente um compromisso pela reforma da Previdência. Bolsonaro cedeu, mas vetou a proposta inicial de Guedes para estabelecer uma idade mínima de aposentadoria igual para homens e mulheres.

A vitória suada deu ilusões de grandeza à equipe do ministro, que preferiu não enxergar a cara feia do presidente para o remédio amargo das reformas econômicas. Embalado pela mudança na Previdência, Guedes orientou seu time a preparar uma reforma ousada da máquina estatal, com regras novas e austeras para o serviço público.

Ainda em novembro, veio o primeiro baile. Bolsonaro foi à portaria do Palácio da Alvorada, anunciou que o projeto estava em elaboração, mas pisou no freio: disse que a proposta seria “a mais suave possível”. O texto foi prometido meia dúzia de vezes para a “semana que vem”. Em junho, o presidente avisou que a ideia estava engavetada até 2021.

Paulo Uebel levou dois meses para perceber que sua razão de permanecer no cargo não existia mais. O secretário pediu demissão, segundo Guedes, em sinal de “insatisfação” com o comportamento do próprio governo.

“Se o presidente da República quiser mandar uma reforma, ela é mandada. Se ele não quiser, não é mandada”, disse o ministro, nesta terça (11). “O outro [o presidente] está dizendo: ‘Vai no ritmo que eu quiser. Eu sou o presidente da República, eu tive o voto. Se você quiser, você sai.”

O secretário decidiu sair, explicitando um projeto econômico cada vez mais desgastado. Bolsonaro resiste à reforma administrativa para evitar problemas com a bancada do funcionalismo no Congresso. Guedes, por outro lado, é o economista ultraliberal que chegou a comparar servidores a “parasitas”.

As resistências ao programa de privatizações também ficam na conta de Bolsonaro. Guedes gostava de anunciar que venderia mais de R$ 1 trilhão em ativos, mas nunca recebeu apoio político para engordar o caixa do governo.

O ministro pode ter acreditado que havia conseguido instalar um verdadeiro apologista dessa agenda na Presidência da República, mas todos os sinais em contrário estavam visíveis.

Em janeiro deste ano, ao falar sobre a proposta de venda dos Correios, Bolsonaro mostrou o que pensava sobre o assunto. “A gente pretende [privatizar ainda em 2020]. Se pudesse privatizar hoje, privatizaria, mas não posso prejudicar o servidor dos Correios”, declarou.

Quando anunciou a saída de Salim Mattar do cargo, nesta terça, Guedes disse que o ex-auxiliar atribuiu sua demissão à dificuldade de tocar esse plano. “O establishment não deixa haver a privatização”, afirmou.

Guedes queria jogar a responsabilidade para a classe política de maneira geral, mas cometeu um excesso de sinceridade e incluiu o governo no bolo.

“O secretário especial vai dizer: ‘Olha, o governo não está me ajudando’. O governo pode dizer: ‘Olha, você tem que se empenhar mais’. Os dois juntos podem reclamar e dizer: ‘Puxa, o Congresso pode nos ajudar mais’. São narrativas, cada um vai ter uma”, justificou.

O ministro que emprestava credenciais econômicas para um presidente sem planos claros nessa área corre o risco de se transformar num bibelô, um objeto decorativo de valor simbólico.

Bolsonaro nunca absorveu a agenda vendida por Guedes e passou se sentir cada vez mais confortável para definir suas posições de acordo com interesses políticos. Em pouco tempo, ele percebeu que a pauta impopular defendida pelo ministro poderia criar embaraços para a reeleição e para sua própria preservação no cargo.

Já a sobrevivência de Guedes será um produto dessas pressões. Além das privatizações e da reforma administrativa, o ministro trava uma batalha pela conservação do limite de despesas públicas, na contramão de outros auxiliares de Bolsonaro.

Antes de confirmar a debandada na pasta, ele avisou que jamais apoiará a flexibilização do teto de gastos. “Se tiver ministro fura-teto, eu vou brigar com ministro fura-teto”, afirmou. O aviso tem cara de ultimato. O próprio Bolsonaro, afinal, sonha em arrumar mais dinheiro para financiar seus planos políticos.

Liberalismo é uma loja de conveniência do governo, não um posto Ipiranga - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 12/08

Debandada é sintoma de que Guedes e reformas fraquejam sob Bolsonaro


A debandada no ministério da Economia vai dar a impressão de que Paulo Guedes está se desmilinguindo, pelo menos em um primeiro momento. Pode ser que, a seguir, o governo dê algum indício de que o ministro está firme, a fim de evitar salseiro imediato no mercado financeiro. Afinal, donos do dinheiro acreditam que, mal e mal, Guedes é por ora a garantia de que Jair Bolsonaro não vai rasgar o contrato do produto que compraram na eleição: o teto de gastos e algumas “reformas”.

Talvez até seja assim. Talvez o ministro venha a ser “prestigiado” nos próximos dias, mas o pessoal do dinheiro vai ter de fazer algumas provisões extras para perdas, para um calote, embora um estelionato eleitoral pareça ainda fora do radar, no caso do programa econômico. Mas Guedes se enfraquece.

No fundo, fundo raso, Bolsonaro é indiferente ou avesso à ideia de reformas liberais ou a qualquer ideia propriamente dita, por falar nisso. Guedes é uma conveniência. Se outro valor mais alto se alevantar, como um plano amalucado para dar sobrevida a Bolsonaro, o ministro pode até ser rifado, embora o mais provável é que seja levado na conversa, amaciado, podado; que continue largado à própria sorte.

Boa parte do ministério de Bolsonaro e vários de seus velhos e renovados amigos do centrão querem dar uma furada no teto de gastos, como tem ficado cada vez mais claro. Parte do centrão não gosta de privatizações em geral e menos ainda quando se pode cavar uma boquinha em estatais. Bolsonaro não quer bulir com servidores públicos. Desgosta de qualquer ideia de Guedes que possa lhe dar dor de cabeça política, tanto faz a relevância (ou não) do plano.

Ameaças ao teto, às privatizações e à reforma administrativa foram alguns dos motivos da debandada no ministério da Economia, embora não apenas. Alguns desses assessores de Guedes que vêm se demitindo desde julho dizem que o ministério é uma confusão, que é muito grande, que falta coordenação e que tem muita fofoca, “tem gente se matando lá dentro”.

O próprio ministro comentou a saída de alguns de seus principais auxiliares como se não soubesse o que se passa na sua cozinha. Algo na linha “ah, eles dizem que estão com dificuldades para privatizar”; “ah, tem de perguntar para eles o motivo da demissão”. Guedes parece de resto desorientado, perdido em negociações “ad hoc”, de varejo, meio maníacas (como a CPMF), sem um plano geral organizado. Começa a cair na boca do povo, como o ministro do “vem aí”, do ministro da “semana que vem”, da piada do “imposto Ipiranga”.

Mais importante, no entanto, é notar que o ministério da Economia sobrevive como um corpo algo estranho no governo, um protetorado provisório de Guedes, uma repartição que trata de assuntos de que Bolsonaro não entende e dos quais em geral não quer saber. Sustenta-se em parte devido ao interesse da atual liderança da Câmara de tocar as “reformas”, ao apoio de Rodrigo Maia. O programa do “parlamentarismo branco”, ora meio encardido e moribundo, é o das “reformas”. Quanto vai durar?

Sim, caso Guedes caísse ou se tornasse um dois de paus, o sururu econômico-financeiro poderia colocar em risco o mandato de Bolsonaro. Logo, o ministro não pode ser rifado sem mais. Pelo menos em tese, de uma perspectiva racional interesseira, não pode ser posto para fora enquanto o governo se reorganiza (isto é, faz a campanha da reeleição) e a economia está ainda entre o buraco e o pântano. Mas o bolsonarismo não frequenta o universo da razão, talvez nem mesmo a interesseira.

Quando Sérgio Moro foi expelido do ministério da Justiça, em abril, muita gente escreveu que o governo perdia um pilar e que estaria meio arruinado. Hum. Como ficou mais claro deste então, Moro era um outdoor da campanha eleitoral, agora apenas um cartaz desbotado e rasgado. No mais, o expurgo do lavajatismo foi uma decorrência de Jair Bolsonaro, de seu plano real de governo, de seu desejo de interferir em órgãos de controle, do Coaf à Procuradoria-Geral da República, passando pela Polícia Federal e pela reorganização de serviços de espionagem.

Guedes e “as reformas” são algo mais do que mera fantasia econômica liberal do governo, pois rebuliços nessa área podem ter consequências materiais muito imediatas. Mas são também uma conveniência, como Moro, na verdade uma loja de conveniência no posto Ipiranga. O combustível do governo Bolsonaro é outro, é a guerra cultural autoritária. O resto é acessório.

Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).