Folha de SP - 07/02
Circula na praça do mercado uma versão da velha piada tétrica sobre a diferença entre recessão e depressão. Na recessão, seu vizinho perde o emprego. Na depressão, você também perde o emprego. Recuperação é quando a Dilma perde o emprego.
A aversão a Dilma Rousseff entre gente graúda de empresa e finança não é novidade, embora nem sempre tenha sido assim. A alergia grave espraiou-se de modo fulminante entre 2012 e 2013, ano em que o país quase inteiro descobriria que "era infeliz e não sabia", na frase do cientista político André Singer.
Nova é a conversa sobre depressão, espécie teratológica de recessão, que nem é o caso do Brasil, embora não exista definição geral desse desastre econômico. Mas a depressão dos ânimos de consumir e investir é profunda, se prolonga de modo raro e dificulta muito a saída do atoleiro. A desesperança abissal deve ser agravada neste 2016, em que a dor maior da crise vai chegar ao cidadão comum.
Os diversos índices que medem a confiança do consumidor divergem quanto ao registro de quando começou a tendência de baixa contínua dos ânimos: abril de 2012, fevereiro de 2013. Não há dúvida sobre a derrocada sem fim que começou com o choque da virada para 2015, quando, em palavras e atos, a presidente reeleita demonstrou que mentira na campanha (vieram alta de juros, notícia de arrocho, golpe da conta de luz etc.). Qualquer que seja a medida, é uma longa desesperança.
O empresário demonstra seu desânimo no fato de que o investimento produtivo recua desde a metade de 2013. São dois anos e meio de declínio, provavelmente três anos e meio ao fim de 2016, raridade histórica.
As estimativas de crescimento continuam a piorar rápido. No início de dezembro, previa-se recessão de 2% em 2016. No fim de janeiro, de 3%. Na sexta, os economistas do Itaú previam queda de 4% em 2016.
Caso se confirmem tais previsões, pode se estimar baixa de 10% no PIB per capita no triênio 2014-16, desastre menor apenas que o da ditadura, 1981-83. Pior que isso, agora a baixa do PIB vai escorrer pelas ruas, ressalte-se: maior desemprego em uma década, queda dolorosa da renda média, piora dos serviços públicos, de saúde em particular. O sofrimento ainda será maior por causa dos preços.
O aumento da inflação está associado às variações de ânimo do consumidor. Pouco antes de junho de 2013, a inflação de comida e bebida chegou a 14% (a inflação média, geral, era de 6,5%), derrubando a confiança, marcando o começo do fim da pacificação dos anos petistas. A inflação da comida em janeiro deste 2016 foi a quase 13%, embora a média geral seja agora de 11%, pressionada por itens mais essenciais, como energia e transporte.
Inflação, os indícios de colapso da atividade econômica em janeiro e a baixa do número de pessoas empregadas, que começou em outubro, nos assustam ainda mais.
O Brasil padece de doença econômica rara e muito grave, uma combinação de inflação alta, recessão profunda e descontrole da dívida pública, agravada por desprestígio presidencial de duração e tamanho recordes e falta de rumo de governo. Difícil chamar de depressão econômica. É certo que há depressão da esperança.
domingo, fevereiro 07, 2016
O tesouro da memória da CIA - ELIO GASPARI
O GLOBO - 07/02
Agência americana publicou cerca de 2.500 documentos que foram entregues a presidentes americanos
Em setembro do ano passado, a Central Intelligence Agency colocou na rede um tesouro com cerca de 2.500 documentos com as sinopses diárias que eram entregues de manhã ao presidente dos Estados Unidos entre 1961 e 1969. Coisa que só a democracia americana é capaz de fazer, pois a brasileira até hoje escamoteia análises que eram mandadas semanalmente pelo Serviço Nacional de Informações aos generais-presidentes.
As sinopses da CIA enviadas ao presidente John Kennedy entre 1961 e 1963 têm um máximo de cinco páginas, com 20 tópicos. Com a posse de Lyndon Johnson, que não gostava de lê-las, elas encolheram e às vezes cabiam numa só folha. No material liberado ainda há trechos embargados, escondendo uns 10% do conjunto.
Lendo esses papéis, vai-se à alma do governo americano durante a Guerra Fria, sobretudo com o Vietnã. As sinopses não refletem tudo o que a CIA informava, mas apenas o que dizia ao presidente naquela hora. Em relação ao Brasil, tomando-se como amostra apenas essas sinopses, a CIA forçava a barra e, num caso, mentiu.
Em 1961, diante da inesperada renúncia do presidente Jânio Quadros, ela deu de barato que o vice-presidente João Goulart, “fortemente esquerdista”, deveria ser o sucessor de Jânio. Três dias depois da renúncia, com o país correndo o risco de ter uma guerra civil, ela informou a Kennedy que os dispositivos da Constituição eram “complicados”. Não podiam ser mais claros: assumiria o vice. Na primeira hora a CIA parecia torcer para que o veto dos ministros militares a Jango prevalecesse.
Os tópicos são secos, com pouquíssimos momentos de humor. Um deles, do dia 2 de março de 1967, conta em 15 linhas o encontro do general Vernon Walters, adido militar no Brasil, com o presidente Castello Branco, que deixaria o governo duas semanas depois. Castello elogiou o marechal Arthur da Costa e Silva, seu sucessor, e Walters contou-lhe algumas piadas que rondavam a figura de “seu” Arthur. O cabeça-chata Castello riu de uma delas, segundo a qual, depois de ter sido presidido por três anos por um presidente sem pescoço, o Brasil seria governado por outro, sem cabeça. A CIA sempre temeu que Costa e Silva levasse a vaca para o brejo (outra piada dizia que o marechal mobilizara o Exército para descobrir quem roubara sua biblioteca, pois não acabara de colorir o segundo volume).
Às vezes a CIA errava no curto prazo, mas era profética. Em fevereiro de 1966, numa rara análise alentada, listou três dirigentes chineses com possibilidades de vir a governar a China depois de Mao Zedong. O primeiro era o presidente Liu Shao Shi. Depois vinha o primeiro-ministro Zhou Enlai. Estourou a Revolução Cultural, Liu foi para a cadeia e morreu em circunstâncias lastimáveis, Zhou foi escanteado, e o terceiro viu-se transformado em operário numa pequena cidade. Seu filho, jogado de uma janela, ficou paralítico.
Chamava-se Deng Xiao Ping, deu a volta por cima e, depois da morte de Mao, em 1976, construiu a nova China.
• Serviço: “The Collection of Presidential Briefing Products from 1961 to 1969” está na rede.
CUNHA PODE AJUDAR
O deputado Eduardo Cunha autorizou a instalação de uma segunda CPI para investigar as maracutaias ocorridas no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda. Na sua origem, a Operação Zelotes pegou os larápios do Carf em casos de venda de sentenças para proteger sonegadores. Passou o tempo, e ela mirou na salsicharia de medidas provisórias.
Eduardo Cunha poderá abrir uma frente de investigações se ajudar a descobrir o nome do procurador do Banco Central que recorreu ao ex-ministro Márcio Thomaz Bastos para enfrentar a MP 517, também conhecida como Frankenstein. Nela, um embutido permitia que instituições financeiras liquidadas pelo Banco Central usassem fundos do FCVS para pagar suas contas.
O procurador tomara um aperto claro, pessoal e direto. Márcio foi à doutora Dilma e ouviu o seguinte:
“Diga a ele para não ceder, porque será o primeiro a ir para a cadeia”.
Ele não cedeu, o jabuti foi aprovado, e a doutora vetou o dispositivo.
Se Eduardo Cunha ajudar a achar esse procurador, fará um serviço ao país, ajudando a Polícia Federal a povoar sua carceragem.
O MICRO-ONDAS DE ALCKMIN
O governador Geraldo Alckmin está fritando seus adversários no PSDB paulista num forno de micro-ondas, sem barulho.
Para o bem e para o mal, a frieza de Alckmin entrará para a História política nacional. Ele se tornou o brasileiro que, pelo voto, por mais tempo ocupou o governo de São Paulo, mas faz de conta que chegou ontem de Pindamonhangaba.
OS NÚMEROS DA SAÚDE NÃO SÃO OUVIDOS
Em 2015, o Ministério da Saúde sabia que os casos de dengue haviam chegado a 1,6 milhão. O estrago provocado pelo mosquito crescera em todas as regiões do país e dobrara no Centro-Oeste. Deu no que deu.
Os números da Saúde falam claro, mas quando são colocados em planilhas não são ouvidos, ou as respostas do governo vêm sob a forma de projeto marqueteiro. Sem ter nada a ver com o mosquito, sabe-se que o sistema de saúde privado brasileiro padece dos males de uma contabilidade de padaria, e a quebra dos planos Unimed está aí para expor o risco dessa conduta. Elas devem R$ 1,2 bilhão à Viúva porque cobraram dos associados, mas não pagaram seus impostos. Os médicos receitam, os hospitais gastam, os planos pagam, e a conta explode no bolso do freguês.
Segundo estatísticas de 2013, a taxa de exames de ressonância magnética na rede do SUS é de 4,9 para cada 100 mil habitantes. No sistema de saúde privado é de 89,1. Tudo bem, SUS é coisa de pobre, quem tem plano privado deve ter melhor atendimento. A porca torce o rabo quando se vê que a taxa brasileira só perde para a da medicina americana (97,7). Nos Estados Unidos os custos hospitalares são um dos principais itens da agenda nacional. No Brasil os burocratas fazem de conta que esse problema não existe. As ressonâncias estão na faixa dos exames caros e lucrativos do sistema.
A taxa de exames de ressonância do sistema privado brasileiro bate as dos 36 países membros da OCDE (46,3), do Canadá (46,7) e da Austrália (23,9).
Alguns fornecedores de aparelhos de ressonância vendem suas máquinas oferecendo aos hospitais plantéis de pacientes obtidos com operadoras que se comprometem a remetê-los para lá quando o médico credenciado achar necessário. Nisso não há só desperdício, há também roubalheiras.
Desse jeito, um dia os hospitais farão exames de ressonância nos familiares dos pacientes.
Agência americana publicou cerca de 2.500 documentos que foram entregues a presidentes americanos
Em setembro do ano passado, a Central Intelligence Agency colocou na rede um tesouro com cerca de 2.500 documentos com as sinopses diárias que eram entregues de manhã ao presidente dos Estados Unidos entre 1961 e 1969. Coisa que só a democracia americana é capaz de fazer, pois a brasileira até hoje escamoteia análises que eram mandadas semanalmente pelo Serviço Nacional de Informações aos generais-presidentes.
As sinopses da CIA enviadas ao presidente John Kennedy entre 1961 e 1963 têm um máximo de cinco páginas, com 20 tópicos. Com a posse de Lyndon Johnson, que não gostava de lê-las, elas encolheram e às vezes cabiam numa só folha. No material liberado ainda há trechos embargados, escondendo uns 10% do conjunto.
Lendo esses papéis, vai-se à alma do governo americano durante a Guerra Fria, sobretudo com o Vietnã. As sinopses não refletem tudo o que a CIA informava, mas apenas o que dizia ao presidente naquela hora. Em relação ao Brasil, tomando-se como amostra apenas essas sinopses, a CIA forçava a barra e, num caso, mentiu.
Em 1961, diante da inesperada renúncia do presidente Jânio Quadros, ela deu de barato que o vice-presidente João Goulart, “fortemente esquerdista”, deveria ser o sucessor de Jânio. Três dias depois da renúncia, com o país correndo o risco de ter uma guerra civil, ela informou a Kennedy que os dispositivos da Constituição eram “complicados”. Não podiam ser mais claros: assumiria o vice. Na primeira hora a CIA parecia torcer para que o veto dos ministros militares a Jango prevalecesse.
Os tópicos são secos, com pouquíssimos momentos de humor. Um deles, do dia 2 de março de 1967, conta em 15 linhas o encontro do general Vernon Walters, adido militar no Brasil, com o presidente Castello Branco, que deixaria o governo duas semanas depois. Castello elogiou o marechal Arthur da Costa e Silva, seu sucessor, e Walters contou-lhe algumas piadas que rondavam a figura de “seu” Arthur. O cabeça-chata Castello riu de uma delas, segundo a qual, depois de ter sido presidido por três anos por um presidente sem pescoço, o Brasil seria governado por outro, sem cabeça. A CIA sempre temeu que Costa e Silva levasse a vaca para o brejo (outra piada dizia que o marechal mobilizara o Exército para descobrir quem roubara sua biblioteca, pois não acabara de colorir o segundo volume).
Às vezes a CIA errava no curto prazo, mas era profética. Em fevereiro de 1966, numa rara análise alentada, listou três dirigentes chineses com possibilidades de vir a governar a China depois de Mao Zedong. O primeiro era o presidente Liu Shao Shi. Depois vinha o primeiro-ministro Zhou Enlai. Estourou a Revolução Cultural, Liu foi para a cadeia e morreu em circunstâncias lastimáveis, Zhou foi escanteado, e o terceiro viu-se transformado em operário numa pequena cidade. Seu filho, jogado de uma janela, ficou paralítico.
Chamava-se Deng Xiao Ping, deu a volta por cima e, depois da morte de Mao, em 1976, construiu a nova China.
• Serviço: “The Collection of Presidential Briefing Products from 1961 to 1969” está na rede.
CUNHA PODE AJUDAR
O deputado Eduardo Cunha autorizou a instalação de uma segunda CPI para investigar as maracutaias ocorridas no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda. Na sua origem, a Operação Zelotes pegou os larápios do Carf em casos de venda de sentenças para proteger sonegadores. Passou o tempo, e ela mirou na salsicharia de medidas provisórias.
Eduardo Cunha poderá abrir uma frente de investigações se ajudar a descobrir o nome do procurador do Banco Central que recorreu ao ex-ministro Márcio Thomaz Bastos para enfrentar a MP 517, também conhecida como Frankenstein. Nela, um embutido permitia que instituições financeiras liquidadas pelo Banco Central usassem fundos do FCVS para pagar suas contas.
O procurador tomara um aperto claro, pessoal e direto. Márcio foi à doutora Dilma e ouviu o seguinte:
“Diga a ele para não ceder, porque será o primeiro a ir para a cadeia”.
Ele não cedeu, o jabuti foi aprovado, e a doutora vetou o dispositivo.
Se Eduardo Cunha ajudar a achar esse procurador, fará um serviço ao país, ajudando a Polícia Federal a povoar sua carceragem.
O MICRO-ONDAS DE ALCKMIN
O governador Geraldo Alckmin está fritando seus adversários no PSDB paulista num forno de micro-ondas, sem barulho.
Para o bem e para o mal, a frieza de Alckmin entrará para a História política nacional. Ele se tornou o brasileiro que, pelo voto, por mais tempo ocupou o governo de São Paulo, mas faz de conta que chegou ontem de Pindamonhangaba.
OS NÚMEROS DA SAÚDE NÃO SÃO OUVIDOS
Em 2015, o Ministério da Saúde sabia que os casos de dengue haviam chegado a 1,6 milhão. O estrago provocado pelo mosquito crescera em todas as regiões do país e dobrara no Centro-Oeste. Deu no que deu.
Os números da Saúde falam claro, mas quando são colocados em planilhas não são ouvidos, ou as respostas do governo vêm sob a forma de projeto marqueteiro. Sem ter nada a ver com o mosquito, sabe-se que o sistema de saúde privado brasileiro padece dos males de uma contabilidade de padaria, e a quebra dos planos Unimed está aí para expor o risco dessa conduta. Elas devem R$ 1,2 bilhão à Viúva porque cobraram dos associados, mas não pagaram seus impostos. Os médicos receitam, os hospitais gastam, os planos pagam, e a conta explode no bolso do freguês.
Segundo estatísticas de 2013, a taxa de exames de ressonância magnética na rede do SUS é de 4,9 para cada 100 mil habitantes. No sistema de saúde privado é de 89,1. Tudo bem, SUS é coisa de pobre, quem tem plano privado deve ter melhor atendimento. A porca torce o rabo quando se vê que a taxa brasileira só perde para a da medicina americana (97,7). Nos Estados Unidos os custos hospitalares são um dos principais itens da agenda nacional. No Brasil os burocratas fazem de conta que esse problema não existe. As ressonâncias estão na faixa dos exames caros e lucrativos do sistema.
A taxa de exames de ressonância do sistema privado brasileiro bate as dos 36 países membros da OCDE (46,3), do Canadá (46,7) e da Austrália (23,9).
Alguns fornecedores de aparelhos de ressonância vendem suas máquinas oferecendo aos hospitais plantéis de pacientes obtidos com operadoras que se comprometem a remetê-los para lá quando o médico credenciado achar necessário. Nisso não há só desperdício, há também roubalheiras.
Desse jeito, um dia os hospitais farão exames de ressonância nos familiares dos pacientes.
As novas criações - MÍRIAM LEITÃO
O GLOBO - 07/02
Na economia, há ideias simples que servem para famílias, firmas e governos. Uma delas é que quem está com dívidas e déficit tem que demostrar compromisso com o pagamento das dívidas e redução do déficit. E há ideias que tentam contornar essa realidade. Do segundo grupo faz parte a proposta de ter metas fiscais flexíveis, que está saindo da mesa do ministro da Fazenda, Nelson Barbosa.
O ministro está formulando duas propostas. A de estabelecer limites de gastos e a de ter metas que podem ser ou podem não ser. A primeira parece boa, mas tem algumas complicações. O governo está indicando que quer incluí-la na Lei de Responsabilidade Fiscal. E aí mora o perigo. Hoje, a LRF é vista como uma camisa de força por todos os gestores públicos. Reabri-la pode ser perigoso em temporada de jabutis soltos no Congresso.
Nelson Barbosa sabe bem o que um jabuti e uma base parlamentar fragmentada e sem liderança podem fazer em um projeto com boas intenções. Foi dele a decisão de propor a MP 664. Ela iria reduzir o gasto da Previdência pelas bordas, diminuindo o benefício das viúvas e viúvos muito jovens. Economizaria pouco, mas seria a mudança de um princípio, segundo dizia o ministro. Acabou se transformando no maior vetor de aumento dos gastos da Previdência, ao derrubar o fator previdenciário. Melhor seria se tivesse feito a proposta óbvia: a de reforma da Previdência, da qual agora se fala.
Em época de dificuldades fiscais nos estados e no governo federal, qualquer ideia que for ao Congresso tem que ser blindada contra os projetos que ficam nas gavetas e que são pendurados no que está tramitando. Se ele tem segurança de que não haverá jabutis a bordo do seu projeto de limites dos gastos dentro da lei fiscal, deve ir em frente. Antes, contudo, tem que se certificar se dá para fazer, diante da rigidez orçamentária do Brasil. Já a ideia de metas flexíveis — que poderão ser descumpridas caso haja queda de receita — essa será muito bem-vinda pelos governos, já que significa ter uma desculpa oficial e automática para não cumprir a meta.
O problema é que o compromisso firme com uma meta fixa é a forma de reduzir temores dos credores e desconfiança de investidores. E eles não são os estrangeiros de sobrecasaca. A dívida pública é sustentada por milhões de brasileiros que aplicam as suas economias em produtos financeiros lastreados por títulos do Tesouro.
O ministro tem, no passado, registro de apoio a muitas ideias criativas. Estavam erradas. Em março de 2010, publicou um artigo neste jornal dizendo assim: “Esta resposta bem sucedida deve-se sobretudo ao novo tripé que orienta a política econômica dos últimos anos: crescimento econômico, inclusão social e redução da vulnerabilidade a choques internacionais.” Era o auge da nova matriz macroeconômica que trouxe o país ao mais longo período recessivo da história. A nova matriz tentou substituir o tripé tradicional que garantiu ao Brasil a estabilidade monetária: superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação. A nova tese era que pelo crescimento tudo poderia ser feito, inclusive a agressiva política de desonerações e isenções para setores, que provocou rombos enormes nas contas públicas. Esses rombos, a antiga equipe econômica tentou esconder com as pedaladas.
O princípio incluído na Lei de Responsabilidade Fiscal é simples: bancos públicos não podem financiar o Tesouro. As pedaladas tentaram contornar isso criando fórmulas complexas, alquimias, contabilidade criativa. Tudo foi desmascarado pelo TCU, e o governo foi obrigado a pagar as pedaladas. Agora, economistas se debruçam sobre as operações para tentar entender o mecanismo financeiro usado para pagar as pedaladas. A suspeita é que tenha sido feita uma triangulação para contornar a proibição de que o Banco Central financie o pagamento, pelo Tesouro, de despesas correntes. Em nota, o BC negou.
O Brasil está numa situação fiscal de extrema delicadeza. A dívida bruta e o déficit nominal tiveram aumentos explosivos nos últimos anos. O resultado primário que era positivo virou um déficit de 2% do PIB. O que se espera do ministro da Fazenda é que ele tenha uma fórmula crível de enfrentar esse problema. De preferência, uma ideia universalmente aceita.
Na economia, há ideias simples que servem para famílias, firmas e governos. Uma delas é que quem está com dívidas e déficit tem que demostrar compromisso com o pagamento das dívidas e redução do déficit. E há ideias que tentam contornar essa realidade. Do segundo grupo faz parte a proposta de ter metas fiscais flexíveis, que está saindo da mesa do ministro da Fazenda, Nelson Barbosa.
O ministro está formulando duas propostas. A de estabelecer limites de gastos e a de ter metas que podem ser ou podem não ser. A primeira parece boa, mas tem algumas complicações. O governo está indicando que quer incluí-la na Lei de Responsabilidade Fiscal. E aí mora o perigo. Hoje, a LRF é vista como uma camisa de força por todos os gestores públicos. Reabri-la pode ser perigoso em temporada de jabutis soltos no Congresso.
Nelson Barbosa sabe bem o que um jabuti e uma base parlamentar fragmentada e sem liderança podem fazer em um projeto com boas intenções. Foi dele a decisão de propor a MP 664. Ela iria reduzir o gasto da Previdência pelas bordas, diminuindo o benefício das viúvas e viúvos muito jovens. Economizaria pouco, mas seria a mudança de um princípio, segundo dizia o ministro. Acabou se transformando no maior vetor de aumento dos gastos da Previdência, ao derrubar o fator previdenciário. Melhor seria se tivesse feito a proposta óbvia: a de reforma da Previdência, da qual agora se fala.
Em época de dificuldades fiscais nos estados e no governo federal, qualquer ideia que for ao Congresso tem que ser blindada contra os projetos que ficam nas gavetas e que são pendurados no que está tramitando. Se ele tem segurança de que não haverá jabutis a bordo do seu projeto de limites dos gastos dentro da lei fiscal, deve ir em frente. Antes, contudo, tem que se certificar se dá para fazer, diante da rigidez orçamentária do Brasil. Já a ideia de metas flexíveis — que poderão ser descumpridas caso haja queda de receita — essa será muito bem-vinda pelos governos, já que significa ter uma desculpa oficial e automática para não cumprir a meta.
O problema é que o compromisso firme com uma meta fixa é a forma de reduzir temores dos credores e desconfiança de investidores. E eles não são os estrangeiros de sobrecasaca. A dívida pública é sustentada por milhões de brasileiros que aplicam as suas economias em produtos financeiros lastreados por títulos do Tesouro.
O ministro tem, no passado, registro de apoio a muitas ideias criativas. Estavam erradas. Em março de 2010, publicou um artigo neste jornal dizendo assim: “Esta resposta bem sucedida deve-se sobretudo ao novo tripé que orienta a política econômica dos últimos anos: crescimento econômico, inclusão social e redução da vulnerabilidade a choques internacionais.” Era o auge da nova matriz macroeconômica que trouxe o país ao mais longo período recessivo da história. A nova matriz tentou substituir o tripé tradicional que garantiu ao Brasil a estabilidade monetária: superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação. A nova tese era que pelo crescimento tudo poderia ser feito, inclusive a agressiva política de desonerações e isenções para setores, que provocou rombos enormes nas contas públicas. Esses rombos, a antiga equipe econômica tentou esconder com as pedaladas.
O princípio incluído na Lei de Responsabilidade Fiscal é simples: bancos públicos não podem financiar o Tesouro. As pedaladas tentaram contornar isso criando fórmulas complexas, alquimias, contabilidade criativa. Tudo foi desmascarado pelo TCU, e o governo foi obrigado a pagar as pedaladas. Agora, economistas se debruçam sobre as operações para tentar entender o mecanismo financeiro usado para pagar as pedaladas. A suspeita é que tenha sido feita uma triangulação para contornar a proibição de que o Banco Central financie o pagamento, pelo Tesouro, de despesas correntes. Em nota, o BC negou.
O Brasil está numa situação fiscal de extrema delicadeza. A dívida bruta e o déficit nominal tiveram aumentos explosivos nos últimos anos. O resultado primário que era positivo virou um déficit de 2% do PIB. O que se espera do ministro da Fazenda é que ele tenha uma fórmula crível de enfrentar esse problema. De preferência, uma ideia universalmente aceita.
O certo e o errado - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
O GLOBO - 07/02
O castelo de areia das grandezas do lulopetismo está desabando ao sopro da crise econômica e da Lava-Jato, como tantas vezes escrevi. Em meio ao desmoronamento, o lulopetismo procura embaçar a vista de quem assiste à sua queda dizendo que tudo não passa de uma trama “da direita” para desacreditá-lo por ser “de esquerda”.
Para desmontar a farsa, vale a pena ler a entrevista dada às páginas amarelas da “Veja”, na semana passada, por José de Sousa Martins, importante sociólogo e insuspeito de ser “de direita”. Martins diz que, no caso do PT, a dicotomia direita/esquerda provém da metamorfose do pensamento católico, que separa os bons dos maus, os fiéis dos que não creem. Há na matriz do petismo um reducionismo que transforma os adversários em inimigos e tem dificuldade de lidar com nuances de opinião. É a essa matriz que o lulopetismo busca retornar, agora como farsa.
Sobre a “esquerda” e a “direita” no Brasil, há anos eu repito a frase que ouvi do historiador Sergio Buarque de Holanda quando examinava uma tese de livre-docência sobre a política brasileira no Império. No trabalho, o autor confrontava o pensamento liberal, conservador e progressista. Sergio, referindo-se a um personagem simbólico de nossos conservadores naquele período, perguntou com certa ironia ao candidato: “você acredita que Bernardo Pereira de Vasconcelos lia Edmund Burke (um clássico do conservadorismo inglês, que via com maus olhos a Revolução Francesa)”? “Não”, respondeu o próprio Sergio, ele não era um verdadeiro conservador, não defendia ideias; ele era apenas um “atrasado”. Boa parte dos atuais lulopetistas tampouco é de esquerda, defende ou crê apenas em noções atrasadas.
Mas a disputa política não é uma batalha para ver quem são os mais bem informados. Ela sempre envolve percepções. Assim, o chavão dos “pobres versus ricos”, por mais que seja tosco, pode funcionar. Do mesmo modo pode aliciar muita gente o embuste de que a Lava-Jato seja uma manobra para perseguir os deserdados da fortuna em favor dos poderosos, como se os poderosos nos últimos 13 anos não tenham sido eles, em ligação corrupta com parte da elite econômica e política.
Por isso, cabe aos políticos de oposição, na luta ideológica, continuar a desmantelar as fortalezas do atraso. Além de desmontar o argumento da “armação jurídica”, é preciso reduzir ao ridículo a ladainha de que a crise atual decorre de fatores externos: vejam só, dizem eles, estávamos certos, foram as ondas externas (não mais marolas, mas tsunamis) que nos afetaram. Tão certos pensam que estavam que, ao derrubar o ministro Levy, renasceu a esperança do “mais do mesmo”, ou seja, mais crédito e mais consumo (por quem já está endividado e muitas vezes com menos renda e não raro sem emprego).
O que está claro para quem tem alguma noção das coisas e da História pode ser turvo para o cidadão comum. Por isso a repetição petista de uma argumentação descabelada pode parecer inútil, mas não é; é uma tentativa de preservar a imagem de que só o PT defende os pobres e só ele se opõe ao capitalismo desumano. Convém persistir em mostrar que o que foi feito na política econômica petista não foi obra do inevitável, mas produto de erros crassos.
Erros que não remetem à divisão esquerda/direita, mas se explicam pelo atraso na compreensão da política econômica e pelo interesse em manter o poder e os bolsos dos partidos e de alguns de seus dirigentes recheados com dinheiro alheio, dinheiro do povo. Que medida no presente pode ser mais “de esquerda”, mais progressista, do que recuperar o emprego e o poder de compra da maioria da população? E como fazer isso sem debelar a inflação? E como debelar a inflação sem ajuste fiscal? E como garantir o emprego futuro sem reconquistar a confiança do setor privado, já que o Estado sem os capitais privados não pode assegurar a retomada do investimento?
Qual a alternativa “de esquerda” a essas medidas? O novo “pacote de crédito público”, versão envergonhada da política que pedalou a ilusão da prosperidade em 2013 e 2014 rumo à reeleição, e que resultou em mais dívida para as famílias e mais desarranjo das finanças públicas, esta preocupação “de direita”, que obceca os “neoliberais”?
Houve quem escrevesse, e o fez em inglês, que às vezes há uma confusão no senso comum entre os conceitos políticos de esquerda e direita (right) e as noções corriqueiras de certo (right) e errado. As políticas de crescimento econômico do lulopetismo não foram “de esquerda”, mas certamente foram erradas.
É importante repisar isso para mostrar que as políticas de distribuição de renda precisam ser sustentáveis para produzir resultados duradouros. Muito do que foi conquistado desde o Plano Real está hoje ameaçado. Para amenizar o drama da terrível crise atual, é preciso manter a rede de proteção social que foi tecida em meu governo e reforçada no governo Lula. Mas é urgente corrigir os desatinos fiscais do lulopetismo, desaparelhar o Estado, reconquistar a confiança da sociedade e retomar a agenda de reformas que o lulopetismo abandonou em favor de anabolizantes pró-crescimento que produziram medonhos efeitos colaterais para o país. Só assim será possível retomar a trajetória que corresponde às aspirações da Constituição de 1988, contra a qual o PT votou, por julgá-la conservadora: um Brasil democrático, não apenas mais desenvolvido, mas so
Há forças capazes de corrigir os desatinos cometidos. Para isso, é preciso que lideranças não comprometidas com o lulopetismo, apoiadas pelos grupos sociais que nunca se deixaram ou não se deixam mais seduzir pelo seu falso encanto, assumam a sua responsabilidade histórica, dentro da Constituição, para fazer o certo em benefício do povo e do país.
O castelo de areia das grandezas do lulopetismo está desabando ao sopro da crise econômica e da Lava-Jato, como tantas vezes escrevi. Em meio ao desmoronamento, o lulopetismo procura embaçar a vista de quem assiste à sua queda dizendo que tudo não passa de uma trama “da direita” para desacreditá-lo por ser “de esquerda”.
Para desmontar a farsa, vale a pena ler a entrevista dada às páginas amarelas da “Veja”, na semana passada, por José de Sousa Martins, importante sociólogo e insuspeito de ser “de direita”. Martins diz que, no caso do PT, a dicotomia direita/esquerda provém da metamorfose do pensamento católico, que separa os bons dos maus, os fiéis dos que não creem. Há na matriz do petismo um reducionismo que transforma os adversários em inimigos e tem dificuldade de lidar com nuances de opinião. É a essa matriz que o lulopetismo busca retornar, agora como farsa.
Sobre a “esquerda” e a “direita” no Brasil, há anos eu repito a frase que ouvi do historiador Sergio Buarque de Holanda quando examinava uma tese de livre-docência sobre a política brasileira no Império. No trabalho, o autor confrontava o pensamento liberal, conservador e progressista. Sergio, referindo-se a um personagem simbólico de nossos conservadores naquele período, perguntou com certa ironia ao candidato: “você acredita que Bernardo Pereira de Vasconcelos lia Edmund Burke (um clássico do conservadorismo inglês, que via com maus olhos a Revolução Francesa)”? “Não”, respondeu o próprio Sergio, ele não era um verdadeiro conservador, não defendia ideias; ele era apenas um “atrasado”. Boa parte dos atuais lulopetistas tampouco é de esquerda, defende ou crê apenas em noções atrasadas.
Mas a disputa política não é uma batalha para ver quem são os mais bem informados. Ela sempre envolve percepções. Assim, o chavão dos “pobres versus ricos”, por mais que seja tosco, pode funcionar. Do mesmo modo pode aliciar muita gente o embuste de que a Lava-Jato seja uma manobra para perseguir os deserdados da fortuna em favor dos poderosos, como se os poderosos nos últimos 13 anos não tenham sido eles, em ligação corrupta com parte da elite econômica e política.
Por isso, cabe aos políticos de oposição, na luta ideológica, continuar a desmantelar as fortalezas do atraso. Além de desmontar o argumento da “armação jurídica”, é preciso reduzir ao ridículo a ladainha de que a crise atual decorre de fatores externos: vejam só, dizem eles, estávamos certos, foram as ondas externas (não mais marolas, mas tsunamis) que nos afetaram. Tão certos pensam que estavam que, ao derrubar o ministro Levy, renasceu a esperança do “mais do mesmo”, ou seja, mais crédito e mais consumo (por quem já está endividado e muitas vezes com menos renda e não raro sem emprego).
O que está claro para quem tem alguma noção das coisas e da História pode ser turvo para o cidadão comum. Por isso a repetição petista de uma argumentação descabelada pode parecer inútil, mas não é; é uma tentativa de preservar a imagem de que só o PT defende os pobres e só ele se opõe ao capitalismo desumano. Convém persistir em mostrar que o que foi feito na política econômica petista não foi obra do inevitável, mas produto de erros crassos.
Erros que não remetem à divisão esquerda/direita, mas se explicam pelo atraso na compreensão da política econômica e pelo interesse em manter o poder e os bolsos dos partidos e de alguns de seus dirigentes recheados com dinheiro alheio, dinheiro do povo. Que medida no presente pode ser mais “de esquerda”, mais progressista, do que recuperar o emprego e o poder de compra da maioria da população? E como fazer isso sem debelar a inflação? E como debelar a inflação sem ajuste fiscal? E como garantir o emprego futuro sem reconquistar a confiança do setor privado, já que o Estado sem os capitais privados não pode assegurar a retomada do investimento?
Qual a alternativa “de esquerda” a essas medidas? O novo “pacote de crédito público”, versão envergonhada da política que pedalou a ilusão da prosperidade em 2013 e 2014 rumo à reeleição, e que resultou em mais dívida para as famílias e mais desarranjo das finanças públicas, esta preocupação “de direita”, que obceca os “neoliberais”?
Houve quem escrevesse, e o fez em inglês, que às vezes há uma confusão no senso comum entre os conceitos políticos de esquerda e direita (right) e as noções corriqueiras de certo (right) e errado. As políticas de crescimento econômico do lulopetismo não foram “de esquerda”, mas certamente foram erradas.
É importante repisar isso para mostrar que as políticas de distribuição de renda precisam ser sustentáveis para produzir resultados duradouros. Muito do que foi conquistado desde o Plano Real está hoje ameaçado. Para amenizar o drama da terrível crise atual, é preciso manter a rede de proteção social que foi tecida em meu governo e reforçada no governo Lula. Mas é urgente corrigir os desatinos fiscais do lulopetismo, desaparelhar o Estado, reconquistar a confiança da sociedade e retomar a agenda de reformas que o lulopetismo abandonou em favor de anabolizantes pró-crescimento que produziram medonhos efeitos colaterais para o país. Só assim será possível retomar a trajetória que corresponde às aspirações da Constituição de 1988, contra a qual o PT votou, por julgá-la conservadora: um Brasil democrático, não apenas mais desenvolvido, mas so
Há forças capazes de corrigir os desatinos cometidos. Para isso, é preciso que lideranças não comprometidas com o lulopetismo, apoiadas pelos grupos sociais que nunca se deixaram ou não se deixam mais seduzir pelo seu falso encanto, assumam a sua responsabilidade histórica, dentro da Constituição, para fazer o certo em benefício do povo e do país.
Assinar:
Postagens (Atom)