FOLHA DE SP - 26/01
São muitos os sinais de desatino na República, não apenas no Planalto
Causou preocupação o ex-secretário da Cultura ter mimetizado um discurso de Goebbels, ministro da propaganda de Hitler. Parece que muitos desconhecem a história e a lenta construção do desatino.
Resta o consolo de que, mesmo em tempos atrozes, a arte sobrevive de forma inesperada.
Tadeusz Borowski foi prisioneiro em Auschwitz. A ordem era executá-lo em Dachau, campo igualmente malfadado. Entretanto, o avanço soviético, de um lado, e a chegada dos americanos, de outro, salvaram sua vida e sua literatura.
Em 1946, Borowski publicou uma coletânea de contos em que descreve sem complacência o comportamento dos prisioneiros em um campo de concentração.
Primo Levi era italiano e estudava química nos anos 1930. As leis raciais proibiam sua gente de frequentar escolas públicas. Conseguiu se formar, mas o diploma registrou sua "raça judia". Acabou prisioneiro em Auschwitz.
Levi sobreviveu e contou sua história com perturbadora serenidade, apesar de saber que por pouco não fora exterminado. "A Trégua" descreve sua longa odisseia depois de ser liberado em meio a uma Europa devastada pela guerra.
Bruno Schulz nasceu na Polônia, dominava a prosa como poucos e desenhava admiravelmente. Foi assassinado, durante a ocupação nazista, ao sair de casa para buscar comida.
Ismail Kadare sofreu as agruras do totalitarismo na Albânia. Sua novela "O Palácio dos Sonhos" conta a história de um jovem que trabalha na repartição encarregada de vigiar os sonhos dos súditos do Império Otomano. Os delírios de quem dorme revelariam as intenções de Deus e as ameaças ao Sultão.
Cabia aos servidores do palácio identificar inimigos e torturar possíveis conspiradores. A brutalidade era considerada aceitável, afinal tratava-se de punir o malfeito, mesmo que fosse obra de sonhos.
Por aqui, os intelectuais se dividem entre os assustados com as estocadas autoritárias dos fanfarrões e os que acreditam que a nossa democracia segue normal.
Comparar o atual governo aos regimes totalitários é disparate. Mas isso não significa que tudo anda bem.
São muitos os sinais de desatino na República, não apenas no Planalto.
Investigações sobre os indícios de crime dos condestáveis são seguidamente interrompidas. O Ministério Público denuncia um jornalista que obteve de hackers gravações que indicam possíveis malfeitos de servidores do Estado.
Executivos são indiciados ou presos com base em evidências dignas de Simão Bacamarte. Juízes do Supremo afastam leis democraticamente aprovadas, decidem sobre salários de professores universitários e interferem em contratos que respeitam a Constituição.
Gotas em demasia transbordam qualquer copo.
Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.
domingo, janeiro 26, 2020
Elegia para um monstro insepulto - BOLÍVAR LAMOUNIER
O Estado de S.Paulo - 26/01
Fazemos de tudo para evitar o conceito de patrimonialismo, mas é disso que se trata
Ideologias morrem, mas nem todas são sepultadas. E as insepultas são as mais perigosas.
No Brasil, faz tempo que o “nacional-desenvolvimentismo” está morto, mas, até agora, são poucos os que se preocupam em proporcionar-lhe o merecido sepultamento. A maioria, parece, prefere esperar uma improvável ressurreição.
“Nacional-desenvolvimentismo”, como sabemos, é o modo mais sonoro que encontramos para designar um modelo de crescimento baseado em ampla intervenção estatal. Uma aversão a tudo o que saiba a liberalismo ou economia de mercado e, correlativamente, uma quase santificação do Estado. Uma crença virtualmente indestrutível em que os burocratas planaltinos farão o que precisar ser feito com uma diligência a que empresários privados não podem aspirar.
O pilar mais importante da crença nacional-estatizante é a rapidez do crescimento econômico. Uma engrenagem de poder concentrada, unitária, gerida por tecnocratas altruístas e esclarecidos nos livraria (livrará) do subdesenvolvimento num ritmo muito superior ao de qualquer modelo privado de organização econômica.
Justiça seja feita, essa suposição era razoável enquanto estávamos falando da chamada “fase fácil da industrialização”. Nos primórdios, o crescimento é movido muito mais pela incorporação de mão de obra (problema que a migração do campo para as cidades resolveu facilmente), num nível técnico extremamente baixo, do que por investimentos de maior porte, pelo avanço tecnológico e pelo aumento da produtividade, o que pressupõe uma acentuada elevação do nível médio de educação na sociedade.
Findo o referido ciclo inicial, todo país tem de se precaver para não ficar com os pés metidos no que se tem chamado de “armadilha do baixo crescimento”. Nessa altura, o que se constata é que o buraco é mais embaixo, e nós, brasileiros, teríamos constatado isso mesmo se a dra. Dilma Rousseff não tivesse baixado as suas asas sobre nós. As previsões de crescimento divulgados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) durante a recente conferência de Davos trouxeram-nos uma fresta de esperança, mas nem de longe um real alívio. O crescimento do PIB brasileiro projetado para 2020 é de 2,2%, bem melhor que o 1.0% de 2019, e melhor até que o 1,6% previsto para a totalidade da América Latina. Mas inferior aos 3,3% projetados para a economia mundial considerada em conjunto e apenas metade dos 4,4% esperados para os países ditos “emergentes”.
Outro problema a considerar é que o nacional-estatismo pressupõe, como é óbvio, que o governo arrecadará muito mais do que gasta. Sem um superávit substancial não tem como investir e muito menos como transferir ao florão de grupos de interesse que habitam seu intestino os nacos orçamentários sobre os quais julgam ter “direitos adquiridos”. A luta que estamos travando é para repor a máquina de governo num nível em que ela possa pelo menos fechar o orçamento anual. Justiça seja feita à atual equipe econômica, que não tem medido esforços para nos tirar da beira de precipício na qual estamos dependurados há vários anos.
E lamento dizer que ainda não cheguei à questão que considero mais complicada. “D’abord la politique”, dizia o marechal De Gaulle. Primeiro, a política. De fato, no Brasil, quando falamos em ajustar as contas públicas, em modernizar o Estado, em submeter a administração pública a um rigoroso sistema de mérito, etc., etc., estamos, na verdade, recorrendo a eufemismos para evitar a expressão que realmente machuca. Fazemos de tudo para evitar o arcaico conceito de patrimonialismo, mas, gostemos ou não, é disso que se trata. Em 1958, quando o mestre Raymundo Faoro martelou esse termo em seu clássico Os Donos do Poder, ainda podíamos imaginar o monstro como o ápice relativamente pequeno da estrutura nacional do poder. Para abreviar a explicação do conceito de patrimonialismo, dizíamos que era um sistema montado para benefício dos “amigos do rei”. Para uma pequena oligarquia, em suma. Em comparação com nossa frágil sociedade, ele parecia um Leviatã manso, que cedo ou tarde domaríamos, à medida que a base da democracia se alargasse, que uma elite com real espírito público se constituísse e as grandes máquinas indutoras do crescimento – como o BNDES – se mantivessem estritamente fiéis à sua missão.
O quadro que hoje nos é dado contemplar é bem diferente. O Leviatã se agigantou, isso é óbvio. E ao mesmo tempo se democratizou. Democratizou-se não em benefício dos partidos políticos e dos legislativos, que ele devorou sem a menor cerimônia, mas de uma infinidade de grupos corporativos que de bobos não têm nada; cada um entrincheirou na legislação, nos três níveis da Federação, todos os “direitos adquiridos” que queriam garantir. Democratizou-se – e aqui peço perdão ao leitor por certa ponta de perversidade – em benefício de grandes empreiteiras, grandes frigoríficos e grandes sabe Deus o que mais, que aí estão, mancomunados com grande parte do Congresso e com a cúpula do Judiciário a fim de dar férreo combate ao combate à corrupção.
Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Fazemos de tudo para evitar o conceito de patrimonialismo, mas é disso que se trata
Ideologias morrem, mas nem todas são sepultadas. E as insepultas são as mais perigosas.
No Brasil, faz tempo que o “nacional-desenvolvimentismo” está morto, mas, até agora, são poucos os que se preocupam em proporcionar-lhe o merecido sepultamento. A maioria, parece, prefere esperar uma improvável ressurreição.
“Nacional-desenvolvimentismo”, como sabemos, é o modo mais sonoro que encontramos para designar um modelo de crescimento baseado em ampla intervenção estatal. Uma aversão a tudo o que saiba a liberalismo ou economia de mercado e, correlativamente, uma quase santificação do Estado. Uma crença virtualmente indestrutível em que os burocratas planaltinos farão o que precisar ser feito com uma diligência a que empresários privados não podem aspirar.
O pilar mais importante da crença nacional-estatizante é a rapidez do crescimento econômico. Uma engrenagem de poder concentrada, unitária, gerida por tecnocratas altruístas e esclarecidos nos livraria (livrará) do subdesenvolvimento num ritmo muito superior ao de qualquer modelo privado de organização econômica.
Justiça seja feita, essa suposição era razoável enquanto estávamos falando da chamada “fase fácil da industrialização”. Nos primórdios, o crescimento é movido muito mais pela incorporação de mão de obra (problema que a migração do campo para as cidades resolveu facilmente), num nível técnico extremamente baixo, do que por investimentos de maior porte, pelo avanço tecnológico e pelo aumento da produtividade, o que pressupõe uma acentuada elevação do nível médio de educação na sociedade.
Findo o referido ciclo inicial, todo país tem de se precaver para não ficar com os pés metidos no que se tem chamado de “armadilha do baixo crescimento”. Nessa altura, o que se constata é que o buraco é mais embaixo, e nós, brasileiros, teríamos constatado isso mesmo se a dra. Dilma Rousseff não tivesse baixado as suas asas sobre nós. As previsões de crescimento divulgados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) durante a recente conferência de Davos trouxeram-nos uma fresta de esperança, mas nem de longe um real alívio. O crescimento do PIB brasileiro projetado para 2020 é de 2,2%, bem melhor que o 1.0% de 2019, e melhor até que o 1,6% previsto para a totalidade da América Latina. Mas inferior aos 3,3% projetados para a economia mundial considerada em conjunto e apenas metade dos 4,4% esperados para os países ditos “emergentes”.
Outro problema a considerar é que o nacional-estatismo pressupõe, como é óbvio, que o governo arrecadará muito mais do que gasta. Sem um superávit substancial não tem como investir e muito menos como transferir ao florão de grupos de interesse que habitam seu intestino os nacos orçamentários sobre os quais julgam ter “direitos adquiridos”. A luta que estamos travando é para repor a máquina de governo num nível em que ela possa pelo menos fechar o orçamento anual. Justiça seja feita à atual equipe econômica, que não tem medido esforços para nos tirar da beira de precipício na qual estamos dependurados há vários anos.
E lamento dizer que ainda não cheguei à questão que considero mais complicada. “D’abord la politique”, dizia o marechal De Gaulle. Primeiro, a política. De fato, no Brasil, quando falamos em ajustar as contas públicas, em modernizar o Estado, em submeter a administração pública a um rigoroso sistema de mérito, etc., etc., estamos, na verdade, recorrendo a eufemismos para evitar a expressão que realmente machuca. Fazemos de tudo para evitar o arcaico conceito de patrimonialismo, mas, gostemos ou não, é disso que se trata. Em 1958, quando o mestre Raymundo Faoro martelou esse termo em seu clássico Os Donos do Poder, ainda podíamos imaginar o monstro como o ápice relativamente pequeno da estrutura nacional do poder. Para abreviar a explicação do conceito de patrimonialismo, dizíamos que era um sistema montado para benefício dos “amigos do rei”. Para uma pequena oligarquia, em suma. Em comparação com nossa frágil sociedade, ele parecia um Leviatã manso, que cedo ou tarde domaríamos, à medida que a base da democracia se alargasse, que uma elite com real espírito público se constituísse e as grandes máquinas indutoras do crescimento – como o BNDES – se mantivessem estritamente fiéis à sua missão.
O quadro que hoje nos é dado contemplar é bem diferente. O Leviatã se agigantou, isso é óbvio. E ao mesmo tempo se democratizou. Democratizou-se não em benefício dos partidos políticos e dos legislativos, que ele devorou sem a menor cerimônia, mas de uma infinidade de grupos corporativos que de bobos não têm nada; cada um entrincheirou na legislação, nos três níveis da Federação, todos os “direitos adquiridos” que queriam garantir. Democratizou-se – e aqui peço perdão ao leitor por certa ponta de perversidade – em benefício de grandes empreiteiras, grandes frigoríficos e grandes sabe Deus o que mais, que aí estão, mancomunados com grande parte do Congresso e com a cúpula do Judiciário a fim de dar férreo combate ao combate à corrupção.
Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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