Um amigo planejou as férias dos sonhos com a família na Nova Zelândia. Contratou um motor home e rodou suas duas gigantescas ilhas por quase um mês.
Antes da partida, prestei-lhe uma visita.
Enquanto suava para fechar as numerosas malas da epopeia, meu compadre admitiu que o melhor momento da viagem aconteceria quando ele abrisse a porta de casa, sentasse no sofá e lembrasse o que passou.
Quem sua em bicas agora sou eu, organizando as malas de roupa, de mão e de equipamentos, a de sapatos e de livros, a bolsa dos passaportes e as autorizações do juizado.
Meu cônjuge está de serviço nestas férias.
O Ano-Novo no Nordeste eu enfrentei sozinha. Fui bem. No dia da volta, li errado o horário do voo e fomos obrigados a sair desabalados, socando o que podíamos no carro alugado, que ainda tive de devolver no aeroporto.
Mais de uma vez, olhei para o lado na ilusão de que alguém se responsabilizaria pela tarefa de guiar os Torres, mas a fila acabava em mim. Com a ajuda de dois santos da agência de viagem de Salvador, fiz o check-in, dei almoço para a tropa, organizei a passagem pelo raio X, acomodei todo mundo na aeronave e, já no Rio, dormi radiante por estar no meu colchão.
Meu pai panicava na entrega do imposto de renda e nos trâmites de viagem. Ia agarrado a uma bolsa pesada, com os documentos e os dólares, como se fosse a própria vida. E olha que naquele tempo o terrorismo ainda estava engatinhando. Hoje, ele teria uma síncope.
Viajar piorou muito. Além das revistas rigorosas, existe sempre o perigo da deportação e da humilhação étnica. As normas de segurança aumentaram os casos de complexo de porteiro nas alfândegas do planeta. A princípio, ninguém é querido.
João Ubaldo Ribeiro diz que sempre confundem a sua nacionalidade. O bigode e a morenice o tornam turco na Alemanha, argelino na França e árabe nos Estados Unidos. O acadêmico chega sempre quatro horas antes do embarque, já sabe que vai ser difícil. O cúmulo da humilhação aconteceu no dia em que um cachorro lhe cheirou as partes íntimas na entrada do avião. Senhoras e crianças aguardavam na fila da prioridade enquanto o animal cumpria seu dever de policial.
Em Berlim, na penúltima Copa, fui visitar meu marido, que dirigia um documentário na concentração da seleção de Parreira. Eu só podia ficar três dias e o bilhete aéreo assinalava cash award, uma passagem de milhas que torrei no apagar das luzes da Varig.
Já na saída do tubo, eu nunca tinha visto aquilo, soldados de verde-oliva selecionavam quem ficaria no pente-fino. Eu fui detida aos 10 do primeiro tempo. A passagem havia sido emitida dois dias antes, em cash, ou seja, dinheiro, eu passaria pouco tempo na cidade e retornaria imediatamente para o Brasil. Era o pacote “vapor” por excelência. O oficial estava certo de que eu trazia drogas comigo.
Apesar das minhas explicações de que cash award significava milhas e de uma comissária da Varig dizer que eu era atriz, a sua convicção de que havia pego uma mula sul-americana não se abalava. Sem nada contra mim, levaram-me até o controle de passageiros para enfrentar uma segunda dura. Finalmente aceita na Germânia, fui recebida pelo carro da produção. No estacionamento, dois policiais à paisana nos abordaram para dar o bote final. Esses, finalmente, se convenceram da minha inocência.
No verão passado eu abri mão de ir ao Egito com a família toda. Achei que não teria capacidade de liderar minha parte da trupe, com um pré-adolescente, uma criança de 3 anos e a babá. O trajeto era digno de Alexandre, o Grande: Rio-Roma, Roma- Cairo, Cairo-Abu Simbel, Abu Simbel-Nasser, de lá um barco até Luxor e finalmente Luxor-Cairo-Roma-Rio. No retorno à capital egípcia, a primavera árabe eclodiu. Meus parentes viram as pirâmides como puderam e saíram em fuga, desviando-se das barricadas para chegar ao aeroporto. Pousaram em Roma no último voo a decolar antes do fechamento total do espaço aéreo do Cairo.
Recordar é viver. Mas é preciso viver para recordar.