FOLHA DE SP 26/08
Ministro fala dos custos de vida da população como se fossem detalhes desprezíveis
Paulo Guedes tem um plano para enfrentar as incertezas que levantaram a ameaça de um apagão e fizeram disparar a conta de luz. As tarifas já pressionam o orçamento da população mais pobre, mas o ministro avisou que o preço vai subir ainda mais. "Temos de enfrentar a crise de frente", resumiu. "Não adianta ficar sentado chorando."
O chefe da equipe econômica fala dos custos de vida da população como se fossem detalhes desprezíveis. Guedes já afirmou que a alta do preço do arroz era só um efeito da melhora na vida dos brasileiros de baixa renda. Na semana passada, ele disse que uma inflação de 8% neste ano não seria nenhum descontrole e que o país estava "dentro do jogo".
A demofobia do ministro é um elemento tradicional da política econômica do governo Jair Bolsonaro. Guedes fez pouco caso de empregadas domésticas que aproveitaram o dólar baixo para viajar ao exterior e dos porteiros que mandaram filhos para a universidade com financiamento público. Agora, ele diz que é preciso engolir o choro e pagar as contas.
No meio da semana, Guedes afirmou que não era preciso ter medo de encarar a crise. "Qual é o problema agora que a energia vai ficar um pouco mais cara?", indagou, insinuando que o cenário era inflado por uma antecipação do ambiente eleitoral. Ele poderia refazer a pergunta às famílias pobres que já enfrentam uma inflação acumulada de mais de 10%, puxada pelo custo da energia.
O desdém do ministro entra em choque com as aflições políticas de Bolsonaro. O presidente já identificou a inflação como um dos maiores riscos à sua campanha pela reeleição. Guedes pode fingir que o problema não existe, mas a bomba vai explodir no colo de seu chefe.
O ministro deve mesmo achar que a inflação de 8% não é o fim do mundo e que o aumento da conta de luz é razoável, mas ignorar essas pressões atrapalha os planos eleitorais de Bolsonaro. Se o presidente realizar o sonho de dar um golpe para continuar no poder, Guedes não precisará mais se preocupar com o povo.
FOLHA DE SP - 26/08
Um apanhado parcial do que ele terá a comemorar, capaz de lhe render 300 anos de cadeia
O Brasil de Jair Bolsonaro terá muito a comemorar a sete de setembro: pobreza, corrupção, violência, crime organizado, tráfico de drogas, racismo, homofobia, feminicídios, massacres de indígenas, ocupação de terras demarcadas, desmatamento, queimadas, destruição da natureza, desprezo pelo patrimônio histórico, políticos repulsivos, pastores evangélicos idem e uma certeza geral de impunidade. Sim, são males seculares, endógenos, do Brasil. Apenas, ultimamente, pioraram muito.
Mas há outros intransferíveis, exclusivos do governo Bolsonaro: negacionismo, 600 mil mortes pela pandemia, absoluta falta de compaixão, estímulo ao contágio, sabotagem das medidas de prevenção, venda criminosa de remédios inócuos, falta de programa para o controle da doença e, ao contrário, campanha nacional contra a vacina e a máscara —seguida da descoberta de que a compra de vacinas poderia, quem diria, enriquecer aliados, empresários, políticos, atravessadores e coronéis. Isso só no quesito saúde.
Bolsonaro nos brindou com ainda mais contribuições: prostituição das Forças Armadas, anarquia da PM, aparelhamento da Justiça, desconfiança no processo eleitoral, afrontas ao STF, indústria de fake news com dinheiro público, milícias digitais, súbito prestígio de boçais profissionais (à paisana ou fardados, com ou sem chapéu de caubói), dissolução da cultura, estrangulamento da educação (com a grave possibilidade do fechamento de colégios e universidades), aviltamento do Itamaraty e desmoralização internacional do Brasil.
Em consequência do abandono completo da administração, temos colapso de investimentos, alta do dólar, inflação sem controle, disparada dos juros, crise hídrica como se não existisse e benesses bilionárias ao centrão. Isso é que é trair seus eleitores, não?
Claro que, para se safar de, com sorte, 300 anos de cadeia, só resta a Bolsonaro —e a seus filhos calculistas e perigosos— o golpe.
O Globo - 26/08
A crise no setor de energia se agravou nos últimos dois meses, mas os especialistas já haviam alertado que isso iria acontecer. Ontem o governo convocou a imprensa para anunciar que haverá três programas para redução de consumo. Um para as grandes empresas, um para os consumidores residenciais e outro para os órgãos federais. A coletiva foi marcada pelo improviso e pela falta de informações sobre o funcionamento e os custos dessas medidas. O ministro Bento Albuquerque continua errando na comunicação, ao afirmar que não trabalha com a hipótese de racionamento. Na prática, isso já começa a acontecer para os órgãos federais. O governo está atrasado porque é negacionista também nesse assunto e tem medo da queda da popularidade do presidente Bolsonaro.
Os programas de redução de consumo só foram apresentados agora, no oitavo mês do ano. As empresas dizem que levará tempo até que haja confiança para uma adesão expressiva. Os órgãos federais que descumprirem as metas não serão punidos. E o consumidor residencial não sabe quem pagará pelo seu bônus. O risco é que seja ele mesmo, com aumento de bandeira tarifária. Ganha-se um desconto de um lado, paga-se mais via encargos de outro. Os especialistas são unânimes em afirmar que não há uma campanha de comunicação que mostre a gravidade desta crise elétrica.
O nível de água dos reservatórios das hidrelétricas do Sudeste e do Centro-Oeste está em 22,7%, o menor patamar para agosto dos últimos 20 anos, superando inclusive 2001. Essas duas regiões representam 70% da capacidade de armazenagem do sistema. A situação é crítica. Circula a informação no setor de que o presidente Bolsonaro vetou um pronunciamento que seria feito pelo ministro Albuquerque em rede nacional na última segunda-feira. Bolsonaro não quer notícia ruim às vésperas das manifestações do 7 de Setembro. Trocou-se isso por uma coletiva transmitida pelo canal oficial do ministério nas redes sociais.
As grandes indústrias dizem que é cedo para avaliar a eficácia do programa de racionamento voluntário. O consumidor cativo pagará os custos da medida sob a forma de Encargo de Serviços do Sistema. Esse é o mesmo encargo que contabiliza os gastos com as termelétricas, que continuarão operando em carga máxima. Ou seja, um custo irá se somar ao outro. As indústrias temem que o voluntário vire compulsório.
— Como o governo é pouco confiável, se você entrar nisso ele pode te obrigar depois. É o risco de o governo forçar a mão caso a situação se agrave. Ainda não houve uma postura de real conversa com a sociedade, com abertura dos dados para todos os agentes sobre esta crise. Como confiar? — diz o representante de um setor industrial.
O ex-diretor-geral da ANP David Zylbersztajn, especialista em setor elétrico, afirma que o risco de faltar energia em horários de pico no final do ano tem aumentado. No passado, houve governantes que contaram com a sorte e a chuva os salvou, mas não se deve apostar nisso.
— Bolsonaro precisa entender que há um risco de 30% de faltar energia. É um percentual muito alto. Ele está apostando nos 70%. O Lula fez isso em 2008 e deu certo. A Dilma fez isso em 2014 e empurrou a crise para 2015. Mas é papel do governo pensar no pior cenário. Se ele acontecer, será dramático para a economia — afirmou.
O consultor Luiz Augusto Barroso, da PSR, diz que o cenário piorou muito em relação às suas análises anteriores e as previsões de chuvas para o mês de setembro não estão boas. Com o baixo nível de água, o sistema elétrico já está operando no limite, o que aumenta o risco de falhas nos sistemas de geração e transmissão. Ele acha que algumas medidas do governo têm dado certo, como a flexibilização dos limites de armazenamento e vazão de água das hidrelétricas e o aumento de importação de energia de países vizinhos. Sobre o programa de redução de consumo das residências, diz que é fundamental, mas ainda faltam detalhes.
— Disseram que o dinheiro não virá do Tesouro, mas da tarifa. Ainda está pouco claro sobre como isso vai funcionar — afirmou.
Itaipu está hoje gerando 39% da sua capacidade. Se não fosse a energia dos ventos e do sol, que não havia na crise de 2001, o Brasil já poderia estar em colapso. A eólica em agosto gerou 166% mais energia do que Itaipu no Brasil, e o sol chegou a 10 GW de potência instalada.
A crise hídrica impacta a economia dramaticamente e já está afetando as famílias pela inflação da energia. O governo ao atuar do lado da oferta — e só agora ter medidas para conter a demanda — está contratando aumentos futuros e elevando os riscos do país.
Com Alvaro Gribel (de São Paulo)
ESTADÃO 26/08
O medo é da tragédia que o presidente parece empenhado em provocar
De tanto se atormentar com fantasmas, Jair Bolsonaro está conseguindo que eles se tornem realidade. Cristaliza-se em círculos do Judiciário, Congresso e também entre oficiais-generais a ideia de que o arruaceiro institucional precisaria no mínimo ser declarado inelegível. E o caminho seria através dos tribunais superiores.
Esse perigo (não poder disputar as eleições) para Bolsonaro é real, mas não imediato. A “conspiração” não passa, por enquanto, de um desejo amplamente compartilhado nas instâncias mencionadas acima. Generalizou-se nesses círculos de elite política, judicial e militar a convicção de que Bolsonaro provocou um impasse institucional para o qual não há saída aparente, e ele nem parece interessado em buscá-la.
A “conspiração” carece, contudo, de coordenação central e efetiva articulação. Setores do Congresso, do STF e das Forças Armadas estão conversando informalmente, e já se falou no Alto Comando do Exército em atribuir ao comandante dessa arma a missão de “pôr uma coleira” em Bolsonaro. Dois personagens políticos de peso nessa paisagem – os caciques do Centrão Arthur Lira e Ciro Nogueira – têm dito a jornalistas que desistiram disso.
Quem conversa quase que diariamente com o presidente o descreve como possuído de um quadro mental para lá de preocupante. Bolsonaro está totalmente convencido de que a “conspiração” contra seu mandato começou já no primeiro dia do governo, e é conduzida por uma difusa e ao mesmo tempo bem entrincheirada coligação de corruptos no Congresso, corporativistas na administração pública, empresários que perderam dinheiro, esquerdistas treinados em Cuba, governadores gananciosos e todos unidos em torno de alguns ministros do STF.
Dois aspectos tornam o absurdistão que é a cabeça de Bolsonaro num problema real, pois ele age a partir dessa percepção de mundo. O primeiro é a “legitimação jurídica” que ele julga ter encontrado para ir ao que chama de contragolpe contra os usurpadores do poder do presidente. A interpretação que adotou do artigo 142 da Constituição é espúria, mas lhe confere um ar de certeza no campo do Direito para, eventualmente, chamar forças militares a intervir – no mínimo para garantir lei e ordem num cenário conturbado que Bolsonaro se empenha em piorar.
O segundo aspecto que faz do desequilíbrio presidencial um perigo real é a crença de que disporia de instrumentos de poder tais como irresistível quantidade de “povo nas ruas”, “adesão de setores das Forças Armadas” além de PMs amotinados, insubordinados e levados às ruas por lideranças corporativistas. Em outras palavras, ele acha que estaria em posição de superioridade em se tratando da relação das forças treinadas para exercer violência – um cenário implícito nas posturas do presidente.
O problema para Bolsonaro é que tanto no plano político-jurídico como no plano das “forças das ruas” ele está isolado. É completamente refém de um conjunto fisiológico de caciques políticos cínicos que o espremem deixando aberta a possibilidade de decidir quando jogam fora o bagaço. O cerco judicial ao presidente, no STF e no TSE, é um fator que tornou inclusive irrelevante se o PGR estaria (não está) disposto a denunciá-lo.
Sem ter criado uma organização política capilarizada e sem ter a adesão das cadeias de comando das Forças Armadas, Bolsonaro acha que manda, mas não comanda nada a não ser fanáticos imbecilizados em redes sociais que não sabem até agora muito bem onde está o “Palácio de Inverno” a ser tomado e ocupado. Eles são contra um monte de coisas, mas ainda aguardam uma ordem específica do “mito” sobre em qual direção marchar e qual inimigo precisam aniquilar.
Em outras palavras, Bolsonaro não dispõe de sólidos argumentos jurídicos, de amplas forças políticas, de nutridos contingentes militares, do domínio das ruas, da adesão das principais elites econômicas e é rejeitado pela maioria dos eleitores, pela quase unanimidade do mundo intelectual e cultural e visto como um estorvo passageiro pelas grandes potências. Ninguém tem medo dele como dirigente político.
O que se teme é a tragédia que ele parece empenhado em provocar.
JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN