segunda-feira, setembro 25, 2017

Não faltaram poder real e simbólico ao Rio, que tem a nata do establishment; faltou vergonha - REINALDO AZEVEDO

REDE TV/UOL

A tragédia a que se assiste na capital fluminense não tem precedentes. E foi criada com dedicação, com desvelo. Que coisa, né? Ideias estúpidas acabam em desastres... Quem diria!?


Não é só segurança pública que entrou em falência no Rio. O Estado também quebrou. Refiro-me às contas públicas mesmo. É curioso! Não é que tenha faltado à cidade e ao Estado representantes a transitar nas altas esferas. Ao contrário. Os fluminenses, em especial os cariocas, herança talvez dos tempos de capital federal, têm uma influência na vida pública que não guarda intimidade com o tamanho de sua economia ou de sua população. Querem ver? No Supremo, por exemplo, estão Marco Aurélio Mello, Roberto Barroso e Luiz Fux. A alta burocracia nacional está coalhada de fluminenses, de cariocas em particular.

Peguem uma instituição que não tem importância prática, mas que não deixa de ser uma medida de prestígio: a Academia Brasileira de Letras. São 40 membros. Sabem quantos nasceram no Rio? Nada menos de 21: 52,5%. E olhem que FHC está fora da minha conta. Afinal, fez carreira política em São Paulo. Mas atenção! O critério que fez excluir FHC da lista de fluminenses-cariocas me obrigaria a incluir, deixem-me ver, mais uns 10 entre os “cariocas de formação”. Que coisa, não? O Estado do Rio tem mais ou menos 8,5% da população, mas 52,5% da nata que pretende representar a inteligência nacional — ou 80% caso se levem em conta os cariocas por adoção.

Por que destaco esses números? “Paulista tem mania de fazer conta”. Não acho que seja vocação geográfica ou cultural. Até porque, infelizmente, nem sempre isso é verdade. Também não estou aqui a estabelecer relação de causa e efeito, claro! “Ah, como o Rio domina a academia, é super-representado no Supremo e na burocracia federal, entrou em colapso”. Claro, não foi por isso. Mas tem a ver com isso.

A cidade também é sede do maior grupo de comunicação do país, que atua em todas as pontas. A Hollywood caipira, hoje um bastião da diversidade — logo haverá quem reivindique que os que sentem um certo “crush” por rinocerontes também tenham seu lugar na novela… Faço uma referência coberta a um clássico da literatura progressista de esquerda: “Porcos com Asas”, de Marco Lombardo Radice e Lidia Rivera. Corrijo-me: o livro é do fim dos anos 70 e já ironiza as esquerdas. Com humor e inteligência, coisa que a esquerda de hoje perdeu e que a direita nunca encontrou. Mas volto: a única diversidade pouco explorada na Globo é o sotaque. Todas as sexualidades estão lá. Mas quase todas são do Rio. Todas as ideologias estão lá. Mas quase todas são do Rio. Todas as esquisitices estão lá, mas quase todas são do Rio.

Preconceito contra o Estado e a cidade? Uma ova! O Rio é a cidade mais linda do mundo. A geografia do interior do Rio é um encanto. O que demonstro aqui é que não faltou aos cariocas e fluminenses poder real e poder simbólico para responder aos desafios que se impunham. A desordem de agora é fruto direto da proteção dispensada ao senhor Sérgio Cabral, em conluio com o petismo, sim — o partido nem quis se meter no bantustão do seu amigão do peito. Ali, o homem fez e desfez: com as contas do Estado, com as empreiteiras, com a segurança pública.

E foi saudado como herói. Oh, não, não é culpa da Globo, mas a emissora sabe como tratou o senhor governador no primeiro mandato e em parte do segundo. Parecia que o Estado tinha governo pela primeira vez na República. Sim, Copa do Mundo e Olimpíada pela frente não combinavam com crítica, parece. Quem sabe se ganharia em negócios o que se perdia em realismo, né? Recorram aos arquivos para saber o tratamento que foi dispensado às UPPs, as tais Unidades de Polícia Pacificado, que já traz no nome a expressão da má consciência.

Aponto isso agora? Não! Vejam o que escrevi no dia 12 de setembro de 2011.

Muitos leitores me perguntam por que me meto em certos assuntos, especialmente quando estou na contramão da metafísica influente, e indagam se vale a pena brigar etc. e tal. Eu nunca me faço essa pergunta porque não escrevo uma bendita vírgula pensando no efeito que aquilo possa causar. Escrevo porque acho necessário e pronto. E o faço especialmente quando noto que a lógica está sendo afrontada, pouco importa o assunto. Não preciso ser especialista em física, química, matemática, economia ou segurança pública para detectar um raciocínio fraudulento.

Volto às UPPs do Rio, o “milagre” desses dois santos da lógica oca, chamados José Mariano Beltrame e Sérgio Cabral. O Centro de Justiça e Sociedade da Escola de Direito da FGV-Rio fez uma pesquisa com os moradores da favela Cantagalo, em Copacabana. Boa parte dos cariocas chama hoje favela de “comunidade” ou prefere substituir a palavra pelo acidente geográfico: “morro”. Daqui a pouco, só existirão favelas em outras cidades. O Rio terá extinguido as suas — será a cidade com 1.200… comunidades! Mas sigamos.

A FGV constatou — da próxima vez, podem encomendar a pesquisa pra mim, que faço aqui de casa, sem sair da cadeira… — que 70% dos moradores avaliam que a segurança melhorou com a presença da UPP! Depois da Nossa Senhora de Forma Geral, a santa de devoção de Dilma Rousseff (falo sobre sua entrevista ao Fantástico em outro post), temos a Nossa Senhora do Óbvio, padroeira da pesquisa. Imaginem se o contrário seria possível: “Para 70%, a segurança piorou…”

Ah, qual é??? A UPP significa levar uma unidade de polícia onde não havia. É claro que melhora. A questão é saber por que se chama uma ação com características de “polícia comunitária” (uma invenção que tem uns dois séculos) de “pacificadora”. Pacifica quem? Já chego lá. Por definição, a menos que o estado estivesse enviando bandidos fardados para as favelas, a segurança melhora. A pesquisa também aponta que 47% já passaram por revista policial ou tiveram alguém da família que passou. Corto o mindinho se isso não vai ser visto aqui e ali como o “lado negativo” da presença policial. Por quê? Reclamam de violência policial 29%. Isso, claro!, tem de ser apurado. Mas com cuidado. O narcotráfico, é óbvio como o dia que sucede a noite, tem interesse em satanizar a presença policial na área.

Agora vamos ao que interessa. É evidente que a polícia tem de estar presente nas favelas, ora essa! O estado tem de oferecer segurança onde o povo está. E, se a polícia faz direito o seu trabalho, vai ser aplaudida. O lado ruim da política de segurança do Rio, de que a instalação do posto policial é um aspecto, é deixar a bandidagem solta. Lamento: sem prender ninguém, em paz mesmo fica a bandidagem!

A FGV também fez a pesquisa na favela do Vidigal, onde não há o UPP, e o tráfico é comandado pela facção Amigo dos Amigos. A Nossa Senhora do Óbvio se fez presente: ali, a nota média da polícia foi 4,7; no Cantagalo, 6,2. Em ambas, disseram se sentir seguros mais de 50% dos entrevistados. A santinha, de todo modo, me diz que uma pesquisa num grupo dominado pelo terror do narcotráfico tende a não revelar um retrato muito fiel da realidade. Quem respondeu foi o medo.

Para encerrar: é claro que a polícia tem de chegar a todos os moradores do Rio. Se e quando acontecer, havendo um trabalho honesto, a população aprovará. Eu só não abro mão de continuar a afirmar o que me inspira a Nossa Senhora do Óbvio: com bandidos presos, em vez de flanando pelas belezas do Rio, a população estaria mais segura — muito especialmente aquela das áreas aonde as UPPs ainda não chegaram.

Encerro
Não! Nem os meus colegas da imprensa queriam prosa com esse negócio de criticar UPP. Era uma das minhas “loucuras”, né? Anos depois, eu viria a ser voz isolada nas críticas a uma outra sigla: o MPF.

Engraçado… O católico meio carola sou eu. Mas são eles a acreditar em milagres.

Idiotas que creem na salvação pela tecnologia ignoram essência humana - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 25/09

A fenomenologia científica da idiotia contemporânea ocupará muito tempo nos anais dos congressos de antropologia e etnopsiquiatria nos próximos mil anos. Isso se esses mil anos não forem tomados por esses tipos sofisticados de idiotas que dominam, em grande parte, o mundo "rico" atual.

Você não sabe o que é um idiota da tecnologia? Veja o filme "O Círculo", com Emma Watson e Tom Hanks. A personagem interpretada por ela é o exemplo típico de um idiota da tecnologia. O personagem interpretado por ele, o vilão, é mais saudável do que ela, a "santinha" da história.

Eis uma primeira característica desse tipo de comportamento: o idiota da tecnologia é alguém que vê o avanço da tecnologia como fato evidente de que o mundo será melhor e de que, retirando de circulação os poucos vilões (como o personagem do Hanks no filme em questão), o resto da humanidade (a maioria soberana) caminhará em direção a um futuro de "uso responsável" da ferramenta.

A ferramenta de redes sociais do filme é simples: todos veem todos o tempo todo. Como diz a personagem da Watson: "Every secret is a lie" (todo segredo é uma mentira).

Ao longo do filme, algo de terrível acontece com ela e um amigo seu, mas, diante do horror da destruição da privacidade, ela opta por comparar os riscos dessa ferramenta com aviões que raramente caem, mas que nem por isso deixamos de voar.

Nessa comparação reside a identidade do idiota da tecnologia. Ele é um incapaz de apreender que o ser humano, quando exposto a demasiada luz, dissolve. Torna-se um monstro. É na sombra que a alma sobrevive. Na ausência de informação plena. Numa certa tensão com a impossibilidade, com o fracasso. Só idiotas "creem" no sucesso como redenção do humano -ou quem nunca teve sucesso na vida.

Num dado momento, ao ser entrevistada para entrar no "Círculo", a empresa em questão, ela diz que o pior que pode acontecer à humanidade é "ter potencialidades não realizadas". Outro traço do idiota da tecnologia. Não entende que a realização da potencialidade absoluta é a "demonização" do humano. E que os inteligentinhos da tecnologia não me venham com seu mimimi. É um descrente que aqui vos escreve. Quem defende o humano pleno (o "pós-humano" como dizem por aí), ou o faz por ignorância ou por má-fé.

No filme, nossa idiota, após levar seu melhor amigo à morte por conta do assédio de um bando de pessoas, que como um enxame de abelhas o localizam e o acossam por meio de seus celulares e da ferramenta de localização do "Círculo", chega à conclusão de que eliminando o dono da empresa (o capitalista egoísta interpretado por Hanks) e abrindo a ferramenta para o mundo inteiro, todo o risco acabará.

Na última cena, todo mundo vê todo mundo no mundo todo, em tempo real. Quem não percebe a distopia nessa sequência é um idiota da tecnologia.

A ideia de transparência absoluta da vida é uma monstruosidade em que, infelizmente, muitos creem. A democracia plena.

O fato de que a falta de transparência pode levar à corrupção faz com que os idiotas da tecnologia achem que instalando a transparência plena (todos veem todos o tempo todo em tempo real) acontecerá a pureza absoluta no mundo.

Não. Levará a outro tipo de corrupção: aquela já descrita, ainda de forma "fascista", na obra "1984" de George Orwell. Não há tirano maior do que o controle de todos por todos. A soberania absoluta do "povo" sobre as pessoas é pior do que a tirania de Lênin ou Stálin. O maior fascismo é a democracia de todos contra o indivíduo. Não há onde se esconder.

Fiodor Dostoiévski (1821-1881), o maior profeta desse tipo de horror moderno (entre outros profetizados por ele), viu o sonho da "democracia das redes sociais plena" em 1851 no Hyde Park em Londres: o Palácio de Cristal, a casa do futuro (fato ao qual o autor alude em seu livro "Memórias do Subsolo").

Diante do delírio dos que viam nessa casa transparente a beleza das tecnologias do progresso, em que todos seriam "objetos da informação", Dostoiévski fez o diagnóstico que vale para esses idiotas das tecnologias da informação hoje: só o homem escondido no subsolo sobreviverá.

Única alternativa - EDITORIAL O GLOBO

O Globo - 25/09

Combalida, a Eletrobras não consegue arcar com os investimentos em energia de que o país precisa


O sufoco fiscal em que se encontra o governo — o déficit primário continua acima dos 2% do PIB, desde a saída de Dilma Rousseff, responsável pela crise — é forte mola propulsora para levá-lo a programar a privatização da Eletrobras, bem como acelerar a licitação de concessões (estradas, aeroportos, por exemplo), entre outras medidas.

A questão é que não se trata apenas de uma oportunidade de o Tesouro obter, estima-se, algo entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões. Para efeito de comparação, a meta para este ano e o que vem é de déficits de R$ 159 bilhões. Uma ajuda nada desprezível. Até mais do que isso, privatizar a Eletrobras é essencial para preservar o setor elétrico e garantir os investimentos necessários a fim de garantir o fornecimento de energia que sustente o crescimento da economia, sem risco de apagões.

Também é fato que a barbeiragem cometida pela ainda presidente Dilma Rousseff, tida como competente conhecedora do sistema elétrico brasileiro, desestabilizou de tal forma a estatal que, por ironia, ajudou a inviabilizá-la de vez como estatal.

Ao baixar a Medida Provisória 579, em 2012, para reduzir na base do voluntarismo a tarifa de luz em 20% — com evidente objetivo político-eleitoral —, o equilíbrio do sistema foi rompido. Com ideia fixa na “modicidade” tarifária — fez o mesmo no pedágio em estradas licitadas, e obras não foram feitas —, o governo Dilma, por aquela MP, estabeleceu regras para antecipar a renovação de concessões ainda a vencer. O princípio era que usinas amortizadas poderiam cobrar tarifas mais baixas.

A filosofia intervencionista, porém, nunca consegue manejar com todas as variáveis. E assim, elétricas públicas de estados (Cesp, de São Paulo; Cemig, de Minas; Copel, do Paraná) não aceitaram as condições da MP, enquanto as estatais federais foram obrigadas a aderir ao novo regime. O autoritarismo é intrínseco ao dirigismo. Veio um longo período de seca, e desmontou de vez o sistema de Dilma.

Nem toda a energia passou a ser produzida sob a regras que queria o governo, que enquadrou as usinas incluídas nas novas regras num sistema de cotas, em que a energia era vendida a preços baixos. Sem considerar variações de custos das hidrelétricas, por exemplo. Um modelo típico do planeamento centralizado.

O longo período de seca na hidrologia desmontou o castelo de cartas, montado bem no estilo lulopetista. O parque de termelétricas, principalmente a gás e óleo, de custo mais elevado, foi acionado e pulverizou a “modicidade”. Dilma continuou tentando, e o Tesouro foi convocado a subsidiar parte do aumento de custo. No fim, restou um tarifaço, para equilibrar o sistema no lado financeiro. Sem considerar rombos em empresas, com a volta dos “esqueletos”.

Os estragos do dirigismo deixaram heranças, uma delas, a impossibilidade de uma Eletrobras combalida arcar com os investimentos em energia de que o país necessita. Vendê-la é a única alternativa sensata. Também para melhorar a gestão do setor e livrá-lo de delírios de poderosos de turno. Como aconteceu no lulopetismo.


Desafios do Brasil - CARLOS ALBERTO DI FRANCO

ESTADÃO - 25/09

O Brasil do Estado ineficiente e da corrupção desenfreada está na berlinda

A série especial de reportagens sobre os desafios do Brasil para alcançar o desenvolvimento sustentável, a estabilidade política e o bem-estar social, pós-impeachment, virou livro. A Reconstrução do Brasil foi lançado pelo jornal O Estado de S. Paulo na terça-feira, dia 19 – o e-book estará disponível a partir de outubro. A obra reúne as 15 reportagens produzidas pelo jornalista José Fucs, repórter especial do jornal, e os 10 editoriais correlatos publicados entre setembro de 2016 e janeiro deste ano.

Cada tema apresentado ao leitor ao longo da série, como reforma da Previdência, ajuste fiscal, cerco à corrupção, desestatização e novo pacto federativo, traz soluções propostas por especialistas da área – Fucs fez mais de 50 entrevistas. A lista reúne nomes de peso, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, autor do prefácio; o economista Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura; os juristas Célio Borja e Nelson Jobim, ambos ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF); e o cientista político Luiz Felipe d’Avila, presidente do Centro de Liderança Política.

O texto, agradável e elegante, é um magnífico waze jornalístico. Contorna os engarrafamentos provocados pela superficialidade informativa, evita a crescente poluição causada pela praga das fake news – cerca de 12 milhões de pessoas difundem notícias falsas sobre política no Brasil, de acordo com levantamento do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai) da Universidade de São Paulo (USP) – e ajuda o leitor a contextualizar e separar informação verdadeira do lixo declaratório.

O livro mostra a importância do jornalismo para a construção da democracia. Na verdade, não há um único assunto relevante que não tenha nascido numa pauta do jornalismo de qualidade. Os temas das nossas conversas são, frequentemente, determinados pelo noticiário e pela opinião dos jornais. A imprensa é, de fato, o oxigênio da sociedade. As redes sociais reverberam, multiplicam, agitam. Mas o pontapé inicial é sempre das empresas de conteúdo independentes. Sem elas a democracia não funciona.

O jornalismo não é antinada. Mas também não é neutro. É um espaço de contraponto. Seu compromisso não está vinculado aos ventos passageiros da política e dos partidarismos. Sua agenda é, ou deveria ser, determinada por valores perenes: liberdade, dignidade humana, respeito às minorias, promoção da livre-iniciativa, abertura ao contraditório. Por isso os jornais são fustigados pelos que desenham projetos autoritários de poder. O jornalismo sustenta a democracia não com engajamentos espúrios, mas com a força informativa da reportagem e com o farol de uma opinião firme, mas equilibrada e magnânima.

O bom jornalista ilumina a cena, o repórter manipulador constrói a história. A distorção, no entanto, escapa à perspicácia do leitor médio. Daí a gravidade do dolo. Na verdade, a batalha da isenção enfrenta a sabotagem da manipulação deliberada, da preguiça profissional e da incompetência arrogante. Todos os manuais de redação consagram a necessidade de ouvir os dois lados de um mesmo assunto. Mas alguns procedimentos, próprios de opções ideológicas invencíveis, transformam um princípio irretocável num jogo de aparências.

A apuração de mentira representa uma das mais graves agressões à ética e à qualidade informativa. Matérias previamente decididas em ambientes sectários buscam a cumplicidade da imparcialidade aparente. A decisão de ouvir o outro lado não é honesta, não se apoia na busca da verdade, mas num artifício que transmite uma máscara de isenção, uma ficção de imparcialidade. O assalto à verdade culmina com uma estratégia exemplar: repercussão seletiva. O pluralismo de fachada convoca pretensos especialistas para declararem o que o repórter quer ouvir. Mata-se a notícia. Cria-se a versão.

Certos setores da imprensa, vez por outra, têm caído nessa tentação antijornalística. Trata-se de uma prática que, certamente, acaba arranhando a credibilidade. O leitor não é tonto. A verdade, cedo ou tarde, acaba se impondo. O brilho da pauta construída com os ingredientes da fraude é fogo de artifício. Não é ético e não vale a pena. Ainda não conseguimos, infelizmente, superar a síndrome dos rótulos. Insistimos, teimosamente, em reduzir a vida à pobreza de quatro clichês: direita, esquerda, conservador, progressista. Tais epítetos, estrategicamente pendurados, têm dupla finalidade: exaltar ou afundar, gerar simpatias exemplares ou antipatias gratuitas.

A precipitação e a falta de rigor são outros vírus que ameaçam a qualidade. A incompetência foge dos bancos de dados. Na falta de pergunta inteligente, a ditadura das aspas ocupa o lugar da informação. O jornalismo de registro, burocrático e insosso, é o resultado acabado de uma perversa patologia: o despreparo de repórteres e o descuido com a edição. Quando editores não formam os seus repórteres, quando a qualidade é negligenciada, quando as pautas não nascem da vida real, mas de pauteiros que não sentem a vibração da vida, é preciso ter a coragem de repensar todos os processos.

A revalorização da reportagem, pautas próprias e o revigoramento do jornalismo analítico devem estar entre as prioridades estratégicas. É preciso atiçar o leitor com matérias que rompam a monotonia do jornalismo de registro. Menos aspas e mais apuração. Menos Brasília e mais País real. O leitor quer menos show político e mais informação de qualidade. A Reconstrução do Brasil é um excelente roteiro para entender os desafios e as contradições do País.

O Brasil do Estado ineficiente e da corrupção desenfreada está na berlinda. Como diz Fucs, precisamos construir o Brasil que “valoriza a meritocracia, o esforço individual e o sucesso alcançado sem pixulecos nem favores oficiais”. Vale a leitura.

Estatismo aéreo - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 25/09

Até junho, circulava pelo governo a ideia de privatizar a Infraero, estatal do setor aeroportuário. Autoridades da área econômica planejavam vender os 56 terminais da empresa e extingui-la até 2018.

Os aeroportos seriam licitados em seis blocos, com operações lucrativas e deficitárias em cada um deles. As vencedoras dos leilões, em um primeiro momento, absorveriam os funcionários atuais.

Entretanto a ideia foi bombardeada por aliados do Palácio do Planalto, em particular pelo PR do ministro dos Transportes, Maurício Quintella. Em audiências e depoimentos no Congresso, em agosto e setembro, o ministro reiterou que a privatização não está nos planos.

Como se aproxima o fim deste 2017 –e, a seguir, o ano eleitoral encurtará, na prática, a vida útil do presidente Michel Temer (PMDB)–, o fim da Infraero parece ter sido adiado "sine die".

Segundo o ministro, seriam concedidos à gestão privada alguns terminais, e o capital da empresa seria aberto. Já a pasta do Planejamento pretende avançar na desestatização, a começar por Congonhas, com o qual se pretende obter R$ 6 bilhões.

Há, decerto, questões estratégicas em qualquer setor da infraestrutura. É preciso, por exemplo, que o poder público mantenha agências de regulação e de planejamento da expansão da rede nacional de aeroportos.

Há que zelar, ademais, pelo provimento dos serviços em localidades nas quais não se observem perspectivas de lucro imediato, mas que mereçam o investimento por motivos socioeconômicos de outra natureza.

São tarefas cruciais, sem dúvida. Para que sejam levadas a cabo, no entanto, não é necessário que o Estado permaneça na atividade empresarial, na qual tem mostrado escandalosa ineficiência, quando não pendor à corrupção –ocioso mencionar os casos notórios de Petrobras, Eletrobras e Correios.

Os desmandos nessas companhias contribuíram de forma decisiva para levar o país a uma recessão de três anos e à ruína orçamentária. Tal histórico, porém, não intimida os defensores do estatismo; ao contrário.

A proposta de privatizar a Eletrobras, por exemplo, enfrenta oposição na esquerda, na corporação de funcionários e, não menos importante, na coalizão governista.

Não se faz segredo de que a gigante estatal e suas 38 subsidiárias compõem um manancial de cargos, verbas e influência a alimentar máquinas partidárias associadas ao Planalto.

Ao que parece, o que se pretende é basicamente manter o statu quo, no qual políticos demonstram poder onde não deveriam exercê-lo: no mundo das empresas, que deveria ser o da eficiência.

É motivo bastante para ao menos retomar os planos de privatização da Infraero, deixando-os prontos para o próximo governo.

Realidade paralela - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 25/09

Cerca de 12 milhões de pessoas difundem notícias falsas no Brasil – as chamadas fake news –, principalmente as de conteúdo político


O progresso tecnológico e a reorganização das sociedades em torno de uma grande rede global têm embaralhado os outrora bem delineados papéis de emissor e receptor como polos opostos no processo de comunicação. Em um ambiente de ininterrupta e multifacetada interação é difícil, hoje, estabelecer quem é quem nesse processo.

A porosidade dos conceitos de quem gera e de quem consome informação, no entanto, não é necessariamente ruim. Quanto mais vozes possam ser ouvidas, especialmente quando têm algo a dizer, e quanto mais amplo e democrático é o debate sobre as questões de interesse geral, melhor.

O problema começa quando a salutar liberdade que permite que qualquer um possa se fazer ouvir por meio das plataformas digitais não vem acompanhada pela correspondente responsabilidade na veiculação das informações. Pior, muitos se valem da frouxidão de controles no ambiente virtual não só para repassar informações falsas, mas também para produzi-las.

De acordo com um levantamento do Grupo de Pesquisas em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai) da Universidade de São Paulo (USP), cerca de 12 milhões de pessoas difundem notícias falsas no Brasil – as chamadas fake news –, principalmente as de conteúdo político.

O número representa cerca de 6% da população brasileira, mas ao considerar que cada usuário das redes sociais tem, em média, 200 conexões, os autores do levantamento acreditam que quase todos os brasileiros tomam contato diariamente com notícias falsas por meio da internet. A conclusão dos analistas da USP é resultado de um trabalho de monitoramento de 500 páginas de conteúdo político falso ou distorcido realizado durante o mês de junho deste ano.

Especialistas de diversas áreas do conhecimento, das Ciências da Computação às Ciências Sociais, convergem no diagnóstico segundo o qual o meio digital – sobretudo as redes sociais – terá especial importância nos rumos das eleições de 2018. Alguns chegam a afirmar que as fake news tendem a ter mais repercussão do que as notícias produzidas e veiculadas por fontes sabidamente confiáveis.

“No atual momento, a polarização ideológica coincidiu com o consumo de notícias sobre política pelas redes sociais. Quanto mais manchetes se prestam a essa informação de combate, maior é a performance delas, poluindo o debate político”, avalia o cientista político Pablo Ortellado, um dos coordenadores do Gpopai.

O estudo Robôs, redes sociais e política no Brasil, realizado pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), destaca outro ponto igualmente preocupante para a saúde do debate político no País. Tem sido cada vez mais frequente o recurso a contas automatizadas nas redes sociais – os chamados robôs – para massificar postagens que manipulam e direcionam o debate político no ambiente virtual, dando ares de verdade a notícias falsas ou descontextualizadas e amplificando artificialmente a representatividade social que os emissores ou beneficiários dessas fake newsessencialmente não têm.

Por um meio sub-reptício, cria-se no seio da sociedade uma falsa sensação de apoio a um determinado candidato ou a uma determinada proposta.

O estudo mostrou que durante a eleição presidencial de 2014, vencida por uma estreitíssima margem de votos pela presidente cassada Dilma Rousseff, os tais robôs foram responsáveis – sozinhos – por cerca de 10% do engajamento no debate de conteúdo político nas redes.

Não é razoável afirmar que as redes sociais, isoladamente, tenham o poder de definir o resultado final de uma eleição, seja no Brasil ou em qualquer outro país, tão somente por servirem como plataforma livre para a propagação das fake news. Contudo, é inegável o papel que a tecnologia vem desempenhando na transformação das formas como se produz e se consome informação.

Em águas turvas, o jornalismo sério ganha mais importância como mediador do debate público, trazendo à luz tanto a informação confiável de interesse geral como desmascarando uma realidade paralela que apenas a alguns interessa difundir com fins obscuros.