O Estado de S.Paulo - 01/03
O tema sempre volta no carnaval, mas este ano ele se antecipou na esteira de uma brutalidade sofrida no último fim de semana. O professor de educação física Lucas Lopes Xavier, de 27 anos, pagou pela própria indignação ao se dirigir a dois rapazes que, não contendo a micção depois de longa bebedeira, urinavam do lado de fora dos toaletes de um shopping center em Brasília. Mas os moços se sentiram incomodados com a bronca de Lucas. Resultado: convocaram outros grandalhões e juntos deram uma coça no reclamante. Mais uma cena da cordialidade brasileira. A cultura do "pau nele".
Os agressores terão que responder pelos três coágulos no cérebro e a mandíbula quebrada de Lucas - escrevo de olho no boletim médico da UTI do Hospital Santa Helena, na capital federal, segundo o qual o quadro continua grave. Como podem também ser enquadrados no artigo 233 do Código Penal. Diz a lei: "Praticar ato obsceno em lugar público, aberto ou exposto ao público. Pena: Detenção de três meses a um ano. Ou multa". Ou seja, além da violência, tem-se aqui um crime bastante comum no Brasil: urinar em local público, classificado no rol dos atos obscenos, o que gera certa polêmica. Afinal, seria a micção um ato natural ou um atentado ao pudor e à ordem pública?
Discussões contornam a dúvida sobre o "caráter lascivo ou não da exibição do órgão sexual masculino aos olhos da coletividade". Outra polêmica é se existe ato obsceno à falta de dolo. E assim, de tese em tese, o palavreado jurídico vai agregando todo um floreado a uma situação que é velha conhecida nossa: urina-se muito nas ruas, nas avenidas, nas ladeiras, nas praças, nos parques e nos becos das cidades brasileiras. Ou, como diz um amigo arquiteto, lembrando-se de quando escalava aos saltos a escadaria do Viaduto de Santa Ifigênia, em São Paulo, para se esquivar do mau cheiro: "O xixi urbano sempre foi um problema e sempre foi fedido".
Em termos históricos, o xixi urbano já se fazia notar no período colonial. Debret, no Rio de Janeiro do começo do século 19, produziu uma famosa gravura onde se vê o oficial da Corte derramando suas necessidades no Paço, observado por um escravo. Normal num tempo em que urinóis eram despejados fora das casas, nas ruas. Também se tem razoável literatura sobre o Entrudo, folguedo carnavalesco importado de Portugal, no qual o desafio inicialmente era jogar água de cheiro, depois frutas podres e, por fim, urina e fezes nos foliões. Como se pode notar, os brasileiros se esmeram na arte de passar do ponto. Coisa nossa.
Com o crescimento das cidades, o xixi urbano foi ganhando adeptos. E virou um fenômeno caudaloso, que hoje demanda políticas públicas. Policiais têm flagrado os desaguadores em várias partes. No Rio, instituiu-se a multa. Em Salvador, a prefeitura precisou investir em obras num viaduto cujas bases estavam minadas pelo acúmulo excretado. E os xixódromos, eleitos por transeuntes supostamente em situação de aperto, proliferam no País.
Há dois mitos nessa história. Primeiro: só homens fazem em público. Segundo: este é um problema brasileiro, nascido numa terra onde índios, negros e brancos uma dia se aliviaram sob o mesmo chafariz. Pois, ao que se sabe, mulheres liberam também, não são só as velhinhas ou as grávidas. E hoje a geografia do xixi urbano extrapola fronteiras nacionais. É fenômeno global que mereceria ser estudado até do ponto de vista antropológico. Afinal, haveria uma compulsão territorial demarcatória a aproximar indivíduos de diferentes culturas e latitudes?
Na bela Paris, a polícia está autorizada a multar e até recolher o infrator em sua incontinência. No Reino Unido, o problema existe e vem desafiando legisladores. Há um divertido pôster inglês em que se vê um grupo de homens tomando cerveja na calçada de um pub, tendo ao lado da mesa uma privada, aquela bem básica, linha branca. Acompanha a imagem os seguintes dizeres: A toilet. Don't leave home without one. Ou seja, não saia de casa sem o troninho. A cultura cervejeira, tão germânica, deixou recordações olfativas e estomacais nos torcedores que foram à Copa da Alemanha, em 2006. Lembro de um colega meu, aqui do jornal, que voltou da cobertura estarrecido com o odor encontrado nas cidades-sede dos jogos.
Pois passaremos não só pelo carnaval, mas pela Copa, dois momentos de êxtase fisiológico, digamos assim. Sabemos que a falta de atendimento sanitário tornou-se um clássico no país. Banheiros públicos estão sumindo do mapa. Já os químicos, armados para atender grandes concentrações, ou são insuficientes ou tão emporcalhados que muita gente se arrisca a céu aberto. E sempre tem aquele tipo bronco, o chamado "sem noção", que faz onde quer que seja, diante de quem for, na hora que lhe convier. Diante desse quadro, chegou a hora de oferecer à população equipamento sanitário decente, campanhas de esclarecimento de bom nível e a possibilidade de um amplo debate sobre o tema na rede escolar, com finalidade educativa que vá além da Copa. E assim quem sabe, graças ao xixi, aprenderemos a viver a cidade como um território de mediações e consenso, e não de exclusão ou transbordamento.
Tempos atrás os jornais noticiaram o flagrante de um universitário carioca, que mandou ver na muvuca de um bloco carnavalesco de Ipanema. O jovem contratou bons advogados, que o defenderam com o argumento de que o cliente liberou, sim, mas havia se esquivado do olhar público. Tanto que, escondido, acabou regando o pé de um arbusto. Processo arquivado. Já um vendedor detido na Lapa, ao ouvir do delegado que é crime urinar na rua, defendeu-se simplesmente com o óbvio: "Xii, doutor, então vai faltar cadeia".
sábado, março 01, 2014
Em pessoa - RUY CASTRO
FOLHA DE SP - 01/03
RIO DE JANEIRO - Em 1964 ou 65, o trombonista Raul de Souza --hoje, às vésperas dos 80 anos e ainda em grande forma-- era a estrela de uma geração que estava fazendo do samba-jazz brasileiro a melhor música instrumental do mundo. Entre seus colegas havia saxofonistas como Paulo Moura, Aurino e Meirelles, pianistas como Luiz Eça, Sergio Mendes e Tenório Jr., bateristas como Milton Banana, Edison Machado e Dom Um, todos trabalhando na mesma cidade, na mesma noite, quase nos mesmos lugares.
Com esse cacife, Raul podia tirar o Carnaval para descansar. Não que não gostasse de Carnaval --sua formação era a da gafieira, onde os trombonistas também tinham de tocar a todo pano, no maior volume e sem parar, durante horas, ou enquanto o beiço aguentasse. E, certamente, não que não precisasse do dinheiro --no Carnaval, os bailes e festas eram diários e pagavam bem. Mas ele preferia parar por uns dias e relaxar a embocadura exigida por coisas difíceis como "Estamos Aí", "Você e Eu" e "Jor-Du", que tocava no resto do ano.
Assim, quando um amigo o convidou a tocar com ele numa festa de grã-finos em Ipanema no sábado de Carnaval, Raul declinou: "Obrigado, Fulano, mas não estou a fim de Carnaval". O outro insistiu: "Mas que Carnaval, Raul? O cara é seu fã, gosta de jazz e bossa nova, só tem intelectual entre os convidados. E a grana é boa". Raul tentou ser firme: "Não dá. E se, de repente, alguém pede Mamãe Eu Quero'? Não vou, não".
O amigo garantiu que não havia essa possibilidade. Só iam tocar de "Fly Me to the Moon" para cima. E a grana era mesmo boa. Apreensivo e relutante, Raul se deixou convencer. Na noite marcada, pegou seu trombone e foi trabalhar. Nas ruas, só se ouvia "Olha a Cabeleira do Zezé". Subiu ao 20º andar do prédio e tocou a campainha. E quem abriu a porta?
O Rei Momo em pessoa.
RIO DE JANEIRO - Em 1964 ou 65, o trombonista Raul de Souza --hoje, às vésperas dos 80 anos e ainda em grande forma-- era a estrela de uma geração que estava fazendo do samba-jazz brasileiro a melhor música instrumental do mundo. Entre seus colegas havia saxofonistas como Paulo Moura, Aurino e Meirelles, pianistas como Luiz Eça, Sergio Mendes e Tenório Jr., bateristas como Milton Banana, Edison Machado e Dom Um, todos trabalhando na mesma cidade, na mesma noite, quase nos mesmos lugares.
Com esse cacife, Raul podia tirar o Carnaval para descansar. Não que não gostasse de Carnaval --sua formação era a da gafieira, onde os trombonistas também tinham de tocar a todo pano, no maior volume e sem parar, durante horas, ou enquanto o beiço aguentasse. E, certamente, não que não precisasse do dinheiro --no Carnaval, os bailes e festas eram diários e pagavam bem. Mas ele preferia parar por uns dias e relaxar a embocadura exigida por coisas difíceis como "Estamos Aí", "Você e Eu" e "Jor-Du", que tocava no resto do ano.
Assim, quando um amigo o convidou a tocar com ele numa festa de grã-finos em Ipanema no sábado de Carnaval, Raul declinou: "Obrigado, Fulano, mas não estou a fim de Carnaval". O outro insistiu: "Mas que Carnaval, Raul? O cara é seu fã, gosta de jazz e bossa nova, só tem intelectual entre os convidados. E a grana é boa". Raul tentou ser firme: "Não dá. E se, de repente, alguém pede Mamãe Eu Quero'? Não vou, não".
O amigo garantiu que não havia essa possibilidade. Só iam tocar de "Fly Me to the Moon" para cima. E a grana era mesmo boa. Apreensivo e relutante, Raul se deixou convencer. Na noite marcada, pegou seu trombone e foi trabalhar. Nas ruas, só se ouvia "Olha a Cabeleira do Zezé". Subiu ao 20º andar do prédio e tocou a campainha. E quem abriu a porta?
O Rei Momo em pessoa.
Baile de máscaras - ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
O GLOBO - 01/03
Mulheres se fantasiam de mulheres. Uma, fantasiada dela mesma quando era jovem, outra, lipoaspirada, de quando era magra
Que se abstenham os cientistas sociais que explicam, os caretas que julgam, os crentes que proíbem. Só os carnavalescos entendem o carnaval, ouvem seu silêncio estridente e conhecem as cinzas da quarta feira. É graça dada a eles a pele colorida dos arlequins que, vestida na infância, cola para sempre e resiste à banalidade dos dias. Os carnavalescos conhecem a divina liberdade de transformar-se no que bem lhes aprouver e desvendam o segredo das máscaras.
Crescemos neste país de loucos, passamos o ano chorando os tantos lutos e lutas que escurecem nossas vidas e, de repente, eis que se abre o pano, se acende uma cena luminosa, um demônio ancestral solto nas ruas. É carnaval.
Esse mundo de pernas pro ar diz muito sobre a vida. Sabe que ninguém é totalmente autêntico quando fala em primeira pessoa, mas quando escolhe uma máscara se revela. Sabe com Oscar Wilde que a escolha das máscaras é mais verdadeira do que as autobiografias. Com Fernando Pessoa que “cada um é muitos”. E com Chico que “seja você quem for, seja o que Deus quiser”. Vestir fantasias e máscaras é uma aventura mais arriscada do que qualquer second life virtual.
Os homens desde os velhos carnavais sempre gostaram de sair de mulher — “sair de” é expressão do carnavalês castiço — talvez porque vestir a pele e as formas das senhoras fosse uma transgressão absolvida pela impunidade desses quatro dias. Havia nas pernas cabeludas amassadas na meia arrastão e na boca pintada de batom muito mais desafio do que o exibicionismo de vir nu, sacudindo um corpo malhado no luxo dos carros alegóricos.
Hoje, no que o carnaval desnuda, são as mulheres que se fantasiam de mulheres. Uma, fantasiada dela mesma quando era jovem, outra, lipoaspirada, de quando era magra, uma terceira, que a natureza não favoreceu, passada a limpo, exibe a fantasia de mulher bonita. Costumam vestir, ou melhor, despir essa fantasia de Eva as esquálidas ou as rechonchudas, todas fantasiadas da Globeleza que sonham ser. Toda Eva malha na academia, toma tarja preta para baixar a ansiedade e janta uma folha de alface. É a máscara mais usada no carnaval do Rio.
Há uma insuspeita sabedoria no carnaval, que ninguém percebe em meio ao burburinho das escolas que desfilam hipermodernas, dos blocos resistentes que, pra consolo da lua, entoam as saudades de um amor que se acabou. Atenção, pois, às máscaras: no ano em que Dilma foi eleita sua máscara foi a mais vendida. No ano passado sofreu a concorrência de Joaquim Barbosa. Ao que dizem, este ano voltará a ser a mais procurada. Surgirão máscaras novas? O itinerário das máscaras contribui para entender em que passo está dançando o Brasil.
Na história milenar dessas caixas de ressonância com que o teatro grego ampliava a voz dos atores, que a Commedia dell’Arte incorporou como caricatura de cada um, que o nosso carnaval adotou para multiplicar as identidades individuais, as máscaras conheceram recentemente um triste capítulo que perverte seu sentido, invertendo-o. As máscaras do Anonymous, que há tempos vêm assombrando as ruas do mundo, dizem o contrário: não somos ninguém, somos legião, somos todos um só, o vingador.
A identidade individual, que o espírito das máscaras recria de maneira original na fantasia de cada um, aqui faz o caminho inverso: anula-se, dissolve-se em uma sombria identidade coletiva, um rosto único — e não existe máscara mais perigosa do que a que se quer única — que representaria todos unidos por um mesmo desejo de vingança. Um bloco de encapuzados desfila produzindo uma espécie de anticarnaval. Armados de paus e pedras, com o passo e gestos de primatas, são poucos e trazem uma mensagem de ódio que é o contrário mesmo da alegria.
No baile de máscaras que o Brasil sempre foi, convidou-se agora mais esse cordão do bota pra quebrar, dissonante e estrangeiro em uma cultura que até então não temia os mascarados porque os associava à alegria. Indomável alegria que os brasileiros nunca perderam apesar de todas as privações que corroem seu dia a dia e das injustiças infames com que convivem. E continuam a desfilar sua ainda irrealizada vocação para a felicidade no irreverente Cordão do Bola Preta, ou da Preta, em blocos populares que, Brasil afora, arrastam multidões. Bons carnavalescos preferem a alegria ao ódio.
Manda o código de honra dos bailes de máscaras que elas sejam retiradas à meia-noite. Passado o carnaval viveremos esse momento que, em todos os bailes, é o das surpresas. Quando todas as máscaras caírem, terá chegado a hora da verdade.
Mulheres se fantasiam de mulheres. Uma, fantasiada dela mesma quando era jovem, outra, lipoaspirada, de quando era magra
Que se abstenham os cientistas sociais que explicam, os caretas que julgam, os crentes que proíbem. Só os carnavalescos entendem o carnaval, ouvem seu silêncio estridente e conhecem as cinzas da quarta feira. É graça dada a eles a pele colorida dos arlequins que, vestida na infância, cola para sempre e resiste à banalidade dos dias. Os carnavalescos conhecem a divina liberdade de transformar-se no que bem lhes aprouver e desvendam o segredo das máscaras.
Crescemos neste país de loucos, passamos o ano chorando os tantos lutos e lutas que escurecem nossas vidas e, de repente, eis que se abre o pano, se acende uma cena luminosa, um demônio ancestral solto nas ruas. É carnaval.
Esse mundo de pernas pro ar diz muito sobre a vida. Sabe que ninguém é totalmente autêntico quando fala em primeira pessoa, mas quando escolhe uma máscara se revela. Sabe com Oscar Wilde que a escolha das máscaras é mais verdadeira do que as autobiografias. Com Fernando Pessoa que “cada um é muitos”. E com Chico que “seja você quem for, seja o que Deus quiser”. Vestir fantasias e máscaras é uma aventura mais arriscada do que qualquer second life virtual.
Os homens desde os velhos carnavais sempre gostaram de sair de mulher — “sair de” é expressão do carnavalês castiço — talvez porque vestir a pele e as formas das senhoras fosse uma transgressão absolvida pela impunidade desses quatro dias. Havia nas pernas cabeludas amassadas na meia arrastão e na boca pintada de batom muito mais desafio do que o exibicionismo de vir nu, sacudindo um corpo malhado no luxo dos carros alegóricos.
Hoje, no que o carnaval desnuda, são as mulheres que se fantasiam de mulheres. Uma, fantasiada dela mesma quando era jovem, outra, lipoaspirada, de quando era magra, uma terceira, que a natureza não favoreceu, passada a limpo, exibe a fantasia de mulher bonita. Costumam vestir, ou melhor, despir essa fantasia de Eva as esquálidas ou as rechonchudas, todas fantasiadas da Globeleza que sonham ser. Toda Eva malha na academia, toma tarja preta para baixar a ansiedade e janta uma folha de alface. É a máscara mais usada no carnaval do Rio.
Há uma insuspeita sabedoria no carnaval, que ninguém percebe em meio ao burburinho das escolas que desfilam hipermodernas, dos blocos resistentes que, pra consolo da lua, entoam as saudades de um amor que se acabou. Atenção, pois, às máscaras: no ano em que Dilma foi eleita sua máscara foi a mais vendida. No ano passado sofreu a concorrência de Joaquim Barbosa. Ao que dizem, este ano voltará a ser a mais procurada. Surgirão máscaras novas? O itinerário das máscaras contribui para entender em que passo está dançando o Brasil.
Na história milenar dessas caixas de ressonância com que o teatro grego ampliava a voz dos atores, que a Commedia dell’Arte incorporou como caricatura de cada um, que o nosso carnaval adotou para multiplicar as identidades individuais, as máscaras conheceram recentemente um triste capítulo que perverte seu sentido, invertendo-o. As máscaras do Anonymous, que há tempos vêm assombrando as ruas do mundo, dizem o contrário: não somos ninguém, somos legião, somos todos um só, o vingador.
A identidade individual, que o espírito das máscaras recria de maneira original na fantasia de cada um, aqui faz o caminho inverso: anula-se, dissolve-se em uma sombria identidade coletiva, um rosto único — e não existe máscara mais perigosa do que a que se quer única — que representaria todos unidos por um mesmo desejo de vingança. Um bloco de encapuzados desfila produzindo uma espécie de anticarnaval. Armados de paus e pedras, com o passo e gestos de primatas, são poucos e trazem uma mensagem de ódio que é o contrário mesmo da alegria.
No baile de máscaras que o Brasil sempre foi, convidou-se agora mais esse cordão do bota pra quebrar, dissonante e estrangeiro em uma cultura que até então não temia os mascarados porque os associava à alegria. Indomável alegria que os brasileiros nunca perderam apesar de todas as privações que corroem seu dia a dia e das injustiças infames com que convivem. E continuam a desfilar sua ainda irrealizada vocação para a felicidade no irreverente Cordão do Bola Preta, ou da Preta, em blocos populares que, Brasil afora, arrastam multidões. Bons carnavalescos preferem a alegria ao ódio.
Manda o código de honra dos bailes de máscaras que elas sejam retiradas à meia-noite. Passado o carnaval viveremos esse momento que, em todos os bailes, é o das surpresas. Quando todas as máscaras caírem, terá chegado a hora da verdade.
A paternidade postergada - FERNANDO REINACH
O Estado de S.Paulo - 01/03
Mulheres que engravidam tarde correm o risco de gerar filhos com síndrome de Down. Faz anos que se suspeita que homens mais velhos correm o risco de gerar filhos com distúrbios mentais. Mas os estudos eram inconclusivos e sujeitos a críticas. Agora, um estudo envolvendo toda a população da Suécia parece ter colocado um ponto final na questão.
Foram estudadas crianças nascidas na Suécia entre 1973 e 2001, um total de 2.917.399 pessoas. Para cada uma dessas crianças foram determinados sexo, idade do pai na data de nascimento e se a criança era o primeiro, o segundo ou o terceiro filho.
Além disso, foi possível determinar se cada criança havia sido diagnosticada ou tratada para diversos distúrbios psiquiátricos, como autismo, déficit de atenção ou hiperatividade, psicoses, distúrbio bipolar e tentativas de suicídio. Estes dados constam nos bancos de dados do sistema de saúde sueco. O envolvimento com drogas também foi analisado usando o banco de dados da polícia sueca.
Usando os bancos de dados do sistema educacional foi possível determinar o desempenho acadêmico das crianças, se foram reprovadas, a avaliação acadêmica feita aos 10 anos de idade e se cursaram ensino superior.
Em seguida, foram excluídas da amostra crianças cujas datas de nascimento eram incertas, cuja gestação foi longa ou curta, ou que haviam passado uma parte da vida fora da Suécia. A amostra final foi de 2.615.081 crianças.
As crianças foram classificadas em sete grupos. Se, no dia do nascimento, o pai tinha menos de 20 anos, a criança era colocada no primeiro grupo, se a idade do pai estava entre 20 e 24, ela era colocada no segundo grupo, e assim por diante, até o grupo em que os pais tinham entre 40 e 44 anos. Num último grupo estavam as crianças com pais de mais de 45 anos. Em cada um desses grupos foi avaliada a frequência dos diversos distúrbios psiquiátricos e cognitivos. Finalmente foram feitos gráficos em que o risco de a criança desenvolver uma dada doença era colocado no eixo vertical e a idade do pai no dia do nascimento, no eixo horizontal.
Os resultados mostram que para alguns tipos de distúrbios mentais e educacionais o risco de a criança apresentar o problema aumenta à medida que a idade do pai aumenta. Comparando o grupo de crianças nascidas de pais que tinham entre 20 e 24 anos ao grupo com mais de 45 anos, não fica dúvida de que a incidência de autismo, déficit de atenção e hiperatividade, psicoses, desordem bipolar, tentativa de suicídio, uso de drogas, notas baixas na escola e não progressão para o ensino superior são significativamente maiores no grupo de pais mais velhos. No caso do autismo, o aumento do risco é de 3,5 vezes (350%). Esses riscos crescem gradativamente com o aumento da idade do pai a partir dos 25 anos.
A conclusão é que homens idosos (com mais de 45 anos) têm uma chance muito maior de ter filhos com problemas psiquiátricos e cognitivos (pelo menos na Suécia).
Apesar de assustadora, a conclusão está de acordo com a história natural do ser humano. Até recentemente, os seres humanos reproduziam logo após a puberdade e viviam 40 ou 50 anos. Como fomos selecionados durante centenas de milhares de anos para reproduzir antes dos 30 anos, não é de espantar que a reprodução tardia traga problemas. O intrigante é que, conforme nossa sociedade "progride", vivemos mais e temos uma vida sexual mais longa (Viagra). Nossa estrutura econômica e social também incentiva a reproduzir cada vez mais tarde (carreira antes dos filhos). A consequência é o aumento do risco de gerarmos filhos com problemas cognitivos, mentais e psiquiátricos. É mais um dos custos do que chamamos de progresso.
Mulheres que engravidam tarde correm o risco de gerar filhos com síndrome de Down. Faz anos que se suspeita que homens mais velhos correm o risco de gerar filhos com distúrbios mentais. Mas os estudos eram inconclusivos e sujeitos a críticas. Agora, um estudo envolvendo toda a população da Suécia parece ter colocado um ponto final na questão.
Foram estudadas crianças nascidas na Suécia entre 1973 e 2001, um total de 2.917.399 pessoas. Para cada uma dessas crianças foram determinados sexo, idade do pai na data de nascimento e se a criança era o primeiro, o segundo ou o terceiro filho.
Além disso, foi possível determinar se cada criança havia sido diagnosticada ou tratada para diversos distúrbios psiquiátricos, como autismo, déficit de atenção ou hiperatividade, psicoses, distúrbio bipolar e tentativas de suicídio. Estes dados constam nos bancos de dados do sistema de saúde sueco. O envolvimento com drogas também foi analisado usando o banco de dados da polícia sueca.
Usando os bancos de dados do sistema educacional foi possível determinar o desempenho acadêmico das crianças, se foram reprovadas, a avaliação acadêmica feita aos 10 anos de idade e se cursaram ensino superior.
Em seguida, foram excluídas da amostra crianças cujas datas de nascimento eram incertas, cuja gestação foi longa ou curta, ou que haviam passado uma parte da vida fora da Suécia. A amostra final foi de 2.615.081 crianças.
As crianças foram classificadas em sete grupos. Se, no dia do nascimento, o pai tinha menos de 20 anos, a criança era colocada no primeiro grupo, se a idade do pai estava entre 20 e 24, ela era colocada no segundo grupo, e assim por diante, até o grupo em que os pais tinham entre 40 e 44 anos. Num último grupo estavam as crianças com pais de mais de 45 anos. Em cada um desses grupos foi avaliada a frequência dos diversos distúrbios psiquiátricos e cognitivos. Finalmente foram feitos gráficos em que o risco de a criança desenvolver uma dada doença era colocado no eixo vertical e a idade do pai no dia do nascimento, no eixo horizontal.
Os resultados mostram que para alguns tipos de distúrbios mentais e educacionais o risco de a criança apresentar o problema aumenta à medida que a idade do pai aumenta. Comparando o grupo de crianças nascidas de pais que tinham entre 20 e 24 anos ao grupo com mais de 45 anos, não fica dúvida de que a incidência de autismo, déficit de atenção e hiperatividade, psicoses, desordem bipolar, tentativa de suicídio, uso de drogas, notas baixas na escola e não progressão para o ensino superior são significativamente maiores no grupo de pais mais velhos. No caso do autismo, o aumento do risco é de 3,5 vezes (350%). Esses riscos crescem gradativamente com o aumento da idade do pai a partir dos 25 anos.
A conclusão é que homens idosos (com mais de 45 anos) têm uma chance muito maior de ter filhos com problemas psiquiátricos e cognitivos (pelo menos na Suécia).
Apesar de assustadora, a conclusão está de acordo com a história natural do ser humano. Até recentemente, os seres humanos reproduziam logo após a puberdade e viviam 40 ou 50 anos. Como fomos selecionados durante centenas de milhares de anos para reproduzir antes dos 30 anos, não é de espantar que a reprodução tardia traga problemas. O intrigante é que, conforme nossa sociedade "progride", vivemos mais e temos uma vida sexual mais longa (Viagra). Nossa estrutura econômica e social também incentiva a reproduzir cada vez mais tarde (carreira antes dos filhos). A consequência é o aumento do risco de gerarmos filhos com problemas cognitivos, mentais e psiquiátricos. É mais um dos custos do que chamamos de progresso.
Rito de passagem - JOSÉ HORTA MANZANO
CORREIO BRAZILIENSE - 01/03
O senso comum enxerga a evolução como um percurso contínuo, retilíneo e, em princípio, ascendente. A tecnologia, os indivíduos, as ideias, os conceitos progridem. Países e civilizações também. Mas as coisas nem sempre são simples. O mais das vezes, o caminho é lento, as pedras são muitas, há altos e baixos, retrocessos e avanços. Há momentos em que precisa recuar para melhor saltar.
Desenvolvimento não costuma fluir em reta ascendente ? Está mais para escadaria que para rampa. Desde tempos imemoriais, os humanos intuíram que a evolução se dá por patamares. Estabeleceram ritos de passagem. Tradições religiosas e leis seculares definem o momento em que o indivíduo é considerado apto a galgar mais um degrau.
Na impossibilidade de aferir o grau de desenvolvimento de cada fiel, o legado judaico-cristão fixou uma idade a partir da qual é permitido passar a estágio superior. A lei retomou a mesma noção de avanço por patamares. Estabeleceu-se que certas idades são mais significativas que outras. É o caso dos 7 anos, dos 14, dos 18, dos 21. A cada um desses degraus, corresponde o abandono de um estágio e o acesso a grau mais elevado.
Mas toda mudança implica momento de transição. Em alguns casos, a passagem ao novo estatuto é rápida, fluida, indolor, imperceptível. Já em outros, a metamorfose é lenta, hesitante, penosa. Isso tanto vale para indivíduos quanto para sociedades, países e civilizações.
Os gregos antigos valeram-se do radical kríno para referir-se a essas fases agudas em que é preciso retroceder para avançar melhor. Da raiz grega, herdamos um vocábulo já quase gasto de tanto uso: a crise.
Embora se atribua hoje sentido negativo ao termo, a crise, no sentido originário, é o momento que separa duas maneiras de ser ? uma antiga e uma nova. Quando uma pessoa ou uma instituição passa por uma crise, temos tendência a prestar mais atenção aos sintomas do que ao horizonte novo que se está descortinando. É postura compreensível, mas pouco perspicaz.
Psicólogos estão familiarizados com a crise da adolescência. Astrólogos conhecem os solavancos que o returno de Saturno causa a quem passa pela crise de seus 28-29 anos. No entanto, quando um país inteiro atravessa um momento de crise, temos mais dificuldade em analisá-la racionalmente. Conceda-se o desconto: crises de adolescência e eventos estelares são mais frequentes que transformações nacionais.
Acredito que nós, brasileiros, andamos exagerando no pessimismo. Anda muito difundida a percepção de que a ladeira que estamos descendo nos conduzirá a uma inevitável catástrofe. Não é sentimento produtivo.
É verdade que os tempos atuais são estranhos. É verdade que a violência se tornou tão banal que já deixou de ser notícia ? só aparece no jornal se o falecido tiver sido pessoa importante, se não, nem nota de rodapé vai merecer. É verdade que a corrupção, que levava vidinha recatada e discreta desde 1500, passou a se exibir, despudorada, como se instituição nacional fosse.
É verdade que não é mais necessário ser doutor em ciências políticas para se dar conta de que a governança anda errática, que promessas não se cumprem, que se aplicam emplastros em perna de pau. É verdade que protestos de rua se avolumam, cada vez mais descontrolados. É verdade que barbáries que nenhum filme de horror ousaria imaginar ocorrem dentro de cadeias. É verdade que autoridades de alta patente se desafiam, com gestos vulgares, diante de câmeras de tevê ? e que tudo fica por isso mesmo.
É assustador? Sem dúvida. A percepção de caos tem-se acentuado? Tem. É sinal do fim dos tempos? Depende. Se por fim dos tempos nos referimos ao fim de uma era, a resposta é afirmativa. Mas temos de aguentar mais um pouco, que não chegamos ao fim da ladeira. Para erguer um futuro mais civilizado, há que esconjurar o passado e consumi-lo até a última gota. Nosso país está atravessando, aos trancos, uma crise. Fazemos mal em passar nosso tempo a nos lamuriar. Mais vale olhar para a frente e preparar um futuro menos nevoento.
Se já atingimos o paroxismo? Se já tocamos o fundo do poço? Ninguém sabe. Talvez ainda falte um bocado, pouco importa. Sobre os erros do passado, constrói-se a sabedoria do futuro. Vamos dar aos acontecimentos a relevância que têm. O importante não é a crise atual ? Dela sairemos qualquer dia destes. Fundamental é entender que esse rito de passagem nos está fazendo subir um degrau na escala da civilização. Ânimo, minha gente!
Uma lição de história - GILLES LAPOUGE
O Estado de S.Paulo - 01/03
Na ópera trágica que assistimos na Ucrânia, é difícil entender as frases, acompanhar as peripécias. Durante três meses, jornalistas e políticos nos dizem que toda a Ucrânia "está com fome da Europa" e os revoltosos heroicos, pró-europeus e democráticos da Praça Maidan não tinham outros rivais a não ser os policiais e soldados do regime do presidente Viktor Yanukovich.
Dois dias após o triunfo dos democratas de Maidan, porém, eis que em algumas regiões da Ucrânia a revolta de Kiev é denunciada como "fascista" e multidões esperam a luz de Moscou. Assim, mais uma vez, observamos que a história, quando a política a expulsa pela porta, ela entra pela janela. Na realidade, a Rússia é filha da Ucrânia. No século 9.º, Kiev forjou um Estado povoado de tribos da estepe eslava que ameaçavam os nômades da Ásia Central. Esse Estado, chamado "Rus", aproxima-se da Europa. É cristão de rito bizantino e tem um intercâmbio comercial com Bizâncio e com a Europa. Três séculos mais tarde, em 1240, essa primeira Ucrânia, ao mesmo tempo russa e europeia, é aniquilada pelos mongóis. Kiev desaparece.
A região se fragmenta em três grupos etnolinguísticos. A noroeste. os russos brancos. Ao sul, os ucranianos. Esses dois grupos ficam na esfera de influência da Lituânia, reunida à Polônia no século 14 sob a monarquia dos Jaguelões. O terceiro grupo, a nordeste de Kiev, reúne os grandes russos atraídos para o Principado de Moscou, que inicialmente era um feudo dos mongóis, mas que pouco a pouco se separou deles.
Nesse momento, a Ucrânia desmembrada adquire forma: de um lado, a oeste, reina a monarquia dos Jaguelões, que respeita as minorias e as aristocracias locais. Do outro lado, a leste, um principado ligado a Moscou e subjugado por czares violentos, entre os quais o mais célebre foi Ivã, o Terrível.
E, como nesses tempos obscuros a religião é a base das comunidades, em breve, haverá no espaço ucraniano duas igrejas. De um lado, a ortodoxa, de tradição eslava e russa, a religião das massas. De outro, nascida em 1596, uma igreja que pratica o rito ortodoxo, mas reconhece Roma e a autoridade do papa. Em outros termos, uma igreja nas mãos de Moscou, outra voltada para o Ocidente.
Na mesma ocasião surge um novo ator no drama: os cossacos, guerreiros que detestam qualquer autoridade. Eles mesmos adotam um comportamento ao mesmo tempo democrático, militar e libertário. Detestam o absolutismo dos czares e não querem ser servos. No entanto, não estão próximos da Ucrânia polonesa, que estabelecerá para eles um tipo de autonomia.
Em 1648, ocorre uma revolta na Ucrânia sob o impulso de um cossaco exaltado, Bogdan Khmelnitski, que foi obrigado a se aliar com Moscou. Seis anos depois, a Ucrânia tem de decidir seu futuro, ou seja, volta-se para a Rússia, liga-se à Polônia ou é absorvida pelo Império Otomano. Os ucranianos juram fidelidade à Rússia, mas a lua de mel é breve.
Foi preciso demarcar uma linha ao longo do Rio Dnieper. A oeste, a Polônia. A leste, o império dos czares. Essas fronteiras são cicatrizes na carne de um país e jamais se apagam completamente. Concluindo o percurso cossaco. A grande Catarina, no século 17, conquista a Crimeia, que hoje é o principal foco explosivo da Ucrânia. Depois, vem a Revolução Bolchevique e, em 1932, a fome que alguns afirmam ter sido organizada por Stalin. Balanço: 4 milhões de mortos.
Enfim, quando a União Soviética naufraga nas águas mortas da história, em 1991, a Ucrânia conquista sua independência. Na verdade, este é um artigo severo, um pouco universitário, mas me parece útil ter a energia de lê-lo para compreender melhor as figuras que se defrontam numa das mais perigosas crises da era pós-soviética. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
Na ópera trágica que assistimos na Ucrânia, é difícil entender as frases, acompanhar as peripécias. Durante três meses, jornalistas e políticos nos dizem que toda a Ucrânia "está com fome da Europa" e os revoltosos heroicos, pró-europeus e democráticos da Praça Maidan não tinham outros rivais a não ser os policiais e soldados do regime do presidente Viktor Yanukovich.
Dois dias após o triunfo dos democratas de Maidan, porém, eis que em algumas regiões da Ucrânia a revolta de Kiev é denunciada como "fascista" e multidões esperam a luz de Moscou. Assim, mais uma vez, observamos que a história, quando a política a expulsa pela porta, ela entra pela janela. Na realidade, a Rússia é filha da Ucrânia. No século 9.º, Kiev forjou um Estado povoado de tribos da estepe eslava que ameaçavam os nômades da Ásia Central. Esse Estado, chamado "Rus", aproxima-se da Europa. É cristão de rito bizantino e tem um intercâmbio comercial com Bizâncio e com a Europa. Três séculos mais tarde, em 1240, essa primeira Ucrânia, ao mesmo tempo russa e europeia, é aniquilada pelos mongóis. Kiev desaparece.
A região se fragmenta em três grupos etnolinguísticos. A noroeste. os russos brancos. Ao sul, os ucranianos. Esses dois grupos ficam na esfera de influência da Lituânia, reunida à Polônia no século 14 sob a monarquia dos Jaguelões. O terceiro grupo, a nordeste de Kiev, reúne os grandes russos atraídos para o Principado de Moscou, que inicialmente era um feudo dos mongóis, mas que pouco a pouco se separou deles.
Nesse momento, a Ucrânia desmembrada adquire forma: de um lado, a oeste, reina a monarquia dos Jaguelões, que respeita as minorias e as aristocracias locais. Do outro lado, a leste, um principado ligado a Moscou e subjugado por czares violentos, entre os quais o mais célebre foi Ivã, o Terrível.
E, como nesses tempos obscuros a religião é a base das comunidades, em breve, haverá no espaço ucraniano duas igrejas. De um lado, a ortodoxa, de tradição eslava e russa, a religião das massas. De outro, nascida em 1596, uma igreja que pratica o rito ortodoxo, mas reconhece Roma e a autoridade do papa. Em outros termos, uma igreja nas mãos de Moscou, outra voltada para o Ocidente.
Na mesma ocasião surge um novo ator no drama: os cossacos, guerreiros que detestam qualquer autoridade. Eles mesmos adotam um comportamento ao mesmo tempo democrático, militar e libertário. Detestam o absolutismo dos czares e não querem ser servos. No entanto, não estão próximos da Ucrânia polonesa, que estabelecerá para eles um tipo de autonomia.
Em 1648, ocorre uma revolta na Ucrânia sob o impulso de um cossaco exaltado, Bogdan Khmelnitski, que foi obrigado a se aliar com Moscou. Seis anos depois, a Ucrânia tem de decidir seu futuro, ou seja, volta-se para a Rússia, liga-se à Polônia ou é absorvida pelo Império Otomano. Os ucranianos juram fidelidade à Rússia, mas a lua de mel é breve.
Foi preciso demarcar uma linha ao longo do Rio Dnieper. A oeste, a Polônia. A leste, o império dos czares. Essas fronteiras são cicatrizes na carne de um país e jamais se apagam completamente. Concluindo o percurso cossaco. A grande Catarina, no século 17, conquista a Crimeia, que hoje é o principal foco explosivo da Ucrânia. Depois, vem a Revolução Bolchevique e, em 1932, a fome que alguns afirmam ter sido organizada por Stalin. Balanço: 4 milhões de mortos.
Enfim, quando a União Soviética naufraga nas águas mortas da história, em 1991, a Ucrânia conquista sua independência. Na verdade, este é um artigo severo, um pouco universitário, mas me parece útil ter a energia de lê-lo para compreender melhor as figuras que se defrontam numa das mais perigosas crises da era pós-soviética. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
Know-how - LEONARDO PADURA
FOLHA DE SP - 01/03
Desde que a devastação haitiana converteu Cuba no 'açucareiro' do mundo, o país foi obra do açúcar
O slogan patenteado até 1940 garantia que em Cuba não havia país sem açúcar. A validade da frase carregava o peso da história. O açúcar foi, durante séculos, a produção que decidia a vida do país e seu destino econômico e até influiu sobre a fisionomia de sua cultura e sua composição étnica.
Desde que a devastação haitiana converteu Cuba no "açucareiro" do mundo, o país foi obra do açúcar, mais que qualquer outro componente político ou econômico. E, se os cubanos se orgulhavam de alguma coisa, era de saberem tudo sobre o açúcar.
A independência nacional foi atrasada devido ao açúcar: havia africanos demais nos canaviais para que se arriscasse a procura de uma emancipação que pudesse replicar o exemplo do Haiti. A prosperidade cubana dependia do açúcar: os mais suntuosos palácios, as estradas, os edifícios públicos e os teatros mais elegantes exalavam o aroma do melado --e o bafo do suor de escravos e braseiros. Em 1970, se projetou o grande salto econômico socialista em cima da realização de uma safra de 10 milhões de toneladas de açúcar.
Mas, em 2002, as crises que foram asfixiando esse setor ao longo de décadas chegaram ao fundo do poço. Diante da decadência da produção, dos baixos preços internacionais e da baixa eficiência industrial decorrente de tecnologias atrasadas e métodos obsoletos, o governo decidiu reduzir pela metade a capacidade industrial instalada. Foi decretado o fechamento e desmonte de centrais, e a ilha ficou como que mutilada.
Em 2010, a ilha do açúcar teve sua pior safra desde o distante ano de 1905. Havia país, sem açúcar, mas também sem riquezas.
Foi quando se manifestaram as trapaças do destino e do mercado: o preço do açúcar subiu, e Cuba teve pouco açúcar para oferecer.
Recentemente, um grupo de empresários brasileiros dedicados à produção de açúcar e outros derivados da cana chegou a Cuba com projetos de cooperação para arrancar do marasmo a indústria que foi o motor da economia da ilha.
A "administração produtiva" de uma fábrica foi entregue à empresa Odebrecht, que vai controlar o ciclo produtivo e modernizar as instalações da central açucareira. Um crédito de US$ 120 milhões do banco de desenvolvimento do Brasil vai contribuir para a empreitada.
Com a ajuda brasileira, Cuba quer aumentar sua produção. Embora para este ano se prevejam menos de 2 milhões de toneladas, deve haver aumentos para o futuro. Com novo maquinário, que Cuba não poderia adquirir com facilidade, os produtores de açúcar cubanos esperam beneficiar-se também com a aquisição do know-how dos sul-americanos, maiores produtores mundiais.
E, se a questão da tecnologia e dos equipamentos se entende, devido ao atraso da infraestrutura cubana, o que chama a atenção é o bendito know-how. O país que não existia sem açúcar terá que reaprender a melhor maneira de produzir esses cristais doces aos quais deve boa parte de sua história e muito da prosperidade que já desfrutou?
Tradução de CLARA ALLAIN
Desde que a devastação haitiana converteu Cuba no 'açucareiro' do mundo, o país foi obra do açúcar
O slogan patenteado até 1940 garantia que em Cuba não havia país sem açúcar. A validade da frase carregava o peso da história. O açúcar foi, durante séculos, a produção que decidia a vida do país e seu destino econômico e até influiu sobre a fisionomia de sua cultura e sua composição étnica.
Desde que a devastação haitiana converteu Cuba no "açucareiro" do mundo, o país foi obra do açúcar, mais que qualquer outro componente político ou econômico. E, se os cubanos se orgulhavam de alguma coisa, era de saberem tudo sobre o açúcar.
A independência nacional foi atrasada devido ao açúcar: havia africanos demais nos canaviais para que se arriscasse a procura de uma emancipação que pudesse replicar o exemplo do Haiti. A prosperidade cubana dependia do açúcar: os mais suntuosos palácios, as estradas, os edifícios públicos e os teatros mais elegantes exalavam o aroma do melado --e o bafo do suor de escravos e braseiros. Em 1970, se projetou o grande salto econômico socialista em cima da realização de uma safra de 10 milhões de toneladas de açúcar.
Mas, em 2002, as crises que foram asfixiando esse setor ao longo de décadas chegaram ao fundo do poço. Diante da decadência da produção, dos baixos preços internacionais e da baixa eficiência industrial decorrente de tecnologias atrasadas e métodos obsoletos, o governo decidiu reduzir pela metade a capacidade industrial instalada. Foi decretado o fechamento e desmonte de centrais, e a ilha ficou como que mutilada.
Em 2010, a ilha do açúcar teve sua pior safra desde o distante ano de 1905. Havia país, sem açúcar, mas também sem riquezas.
Foi quando se manifestaram as trapaças do destino e do mercado: o preço do açúcar subiu, e Cuba teve pouco açúcar para oferecer.
Recentemente, um grupo de empresários brasileiros dedicados à produção de açúcar e outros derivados da cana chegou a Cuba com projetos de cooperação para arrancar do marasmo a indústria que foi o motor da economia da ilha.
A "administração produtiva" de uma fábrica foi entregue à empresa Odebrecht, que vai controlar o ciclo produtivo e modernizar as instalações da central açucareira. Um crédito de US$ 120 milhões do banco de desenvolvimento do Brasil vai contribuir para a empreitada.
Com a ajuda brasileira, Cuba quer aumentar sua produção. Embora para este ano se prevejam menos de 2 milhões de toneladas, deve haver aumentos para o futuro. Com novo maquinário, que Cuba não poderia adquirir com facilidade, os produtores de açúcar cubanos esperam beneficiar-se também com a aquisição do know-how dos sul-americanos, maiores produtores mundiais.
E, se a questão da tecnologia e dos equipamentos se entende, devido ao atraso da infraestrutura cubana, o que chama a atenção é o bendito know-how. O país que não existia sem açúcar terá que reaprender a melhor maneira de produzir esses cristais doces aos quais deve boa parte de sua história e muito da prosperidade que já desfrutou?
Tradução de CLARA ALLAIN
A missão Lula - ILIMAR FRANCO
O GLOBO - 01/03
PT fatura. Aliados chupam o dedo
Os deputados da base aliada têm razão quando ficam possessos com o privilégio dos petistas no acesso à informação. O vice-presidente da Câmara, André Vargas (PT-PR), assumiu a linha de frente e anunciou ontem nas redes sociais crédito extraordinário de R$ 2,5 bilhões para o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Coube ao deputado José Guimarães (PT-CE) divulgar viagem da presidente Dilma ao Ceará, que deverá ocorrer na semana seguinte ao feriado de carnaval, para anunciar recursos para a construção de adutoras. Os dois se anteciparam ao Ministério da Educação e à assessoria do Planalto, que não haviam divulgado nada.
“Os empresários brasileiros estão convencidos da necessidade de uma terceira via. Muitos não identificam Aécio Neves como alternativa”
Roberto Amaral
Vice-presidente do PSB
Especialista em mensalão
O advogado Castelar Modesto Guimarães, que defende Cristiano Paz no mensalão do PT, também atua na defesa de Eduardo Azeredo no mensalão tucano. Estuda a jurisprudência do STF em caso de renúncia de mandato parlamentar.
Rumo ao altar
A presidente Dilma e seu vice, Michel Temer, fizeram um pente-fino da aliança na quinta-feira. Concluíram que há ampla maioria para aprovar, na convenção do PMDB, o apoio à reeleição. Sobre as disputas entre PT e PMDB nos estados, avaliam que só duas delas, a do Rio de Janeiro e a da Bahia, têm potencial para tumultuar e criar marolas na relação dos aliados.
Me dá um dinheiro aí
O Ministério das Cidades foi o caso mais grave do não cumprimento da execução das emendas parlamentares de 2013. Mas não foi o único. O Planejamento também relata problemas nas pastas da Saúde, do Turismo e do Esporte.
Todo poder ao Judiciário
O juiz Julier Sebastião da Silva pode abandonar o Judiciário em 5 de abril. Ele tem convite do PT para concorrer ao governo do Mato Grosso. Fez a fama nas Operações “Rio Pardo” (grilagem de terras) e “Curupira” (crimes ambientais). E já havia atuado no desmonte da organização do bicheiro “comendador” João Arcanjo Ribeiro.
Assim assim
O vice Michel Temer tem se queixado da atitude do presidente da Câmara, Henrique Alves, e do líder do PMDB, Eduardo Cunha. Seus amigos dizem que eles o estão deixando numa situação de constrangimento com a presidente Dilma.
Romaria
Grandes empresários, entre eles, Jorge Gerdau, estão fazendo romaria no Senado preocupados com a MP 627, que altera regras contábeis e tributárias de empresas com sede no exterior. O governo quer endurecer o jogo e arrecadar mais.
O SENADOR AÉCIO NEVES (PSDB) e o vereador Cesar Maia ( DEM) combinaram ontem encontro depois do carnaval sobre a eleição para o governo do Rio.
Da rua às grades - VERA MAGALHÃES - PAINEL
FOLHA DE SP - 01/03
Cara limpa O Planalto também estuda punir manifestantes que usarem máscaras, mas ainda não conseguiu elaborar um modelo de atuação das polícias para identificar participantes dos atos.
Em frente O presidente do STF, Joaquim Barbosa, não aceitou a pressão da área econômica do governo, além da AGU, e remarcou o julgamento do processo dos planos econômicos para o dia 12.
Não deu Para o advogado dos poupadores, Luiz Fernando Pereira, "os bancos, com a significativa ajuda da área econômica do governo, queriam, com o adiamento do julgamento, operar a prescrição do processo no STF".
#tamojunto Do vice-presidente da Câmara, André Vargas (PT-PR), ironizando as críticas da oposição à decisão do STF que reviu a condenação dos mensaleiros por formação de quadrilha: "Os tucanos deveriam respirar aliviados. Agora, Azeredo tem chance maior de não ser condenado injustamente".
Sem voz Senadores da base aliada notam que o líder do governo, Eduardo Braga (AM), não tem ido à tribuna para defender Dilma. Colegas interpretam a ausência como outro sinal de distanciamento entre PMDB e governo.
Ciúme Há quem veja, ainda, retaliação de Braga ao protagonismo assumido pela ex-ministra Gleisi Hoffmann (PT-PR) na condução dos interesses do governo na Casa.
Amarelo Apesar de operários estarem trabalhando 24 horas nas obras da linha 15-Prata do Metrô para que sejam concluídas a tempo de Geraldo Alckmin (PSDB) participar da inauguração dentro do limite da lei eleitoral, parte do governo paulista está preocupada com o prazo.
Vermelho Funcionários do consórcio que realiza as obras iniciaram greve nesta semana. Pedem vale-refeição para trabalhadores de todos os turnos e extensão de benefícios a familiares. Reservadamente, tucanos acusam o PT de ter provocado a paralisação por motivos eleitorais.
Geladeira Apesar do discurso de Alexandre Padilha de que vai defender a gestão Fernando Haddad, dirigentes do PT nacional querem que, caso pesquisas detectem que a má avaliação do prefeito pode contaminar a campanha, ele seja isolado.
Sabático Vence segunda-feira a licença de 90 dias de Paulo Maluf da presidência do PP paulista. A direção nacional do partido quer mantê-lo afastado do comando.
Inflação Tucanos e petistas concordam em uma coisa: a negociação com os novos responsáveis pelo PP é mais sinuosa que nos tempos do antigo cacique.
Panela velha Defensor da aliança do PSB com Alckmin, o prefeito de Campinas, Jonas Donizette, alfinetou a Rede ontem ao lado do tucano: "No momento em que pedem nova política, temos de valorizar homens públicos que lutam há muito tempo".
Socorro A Secretaria Nacional de Defesa Civil deve liberar na próxima semana mais R$ 15 milhões para o governo de Rondônia e três municípios afetados pelas enchentes no Estado.
com BRUNO BOGHOSSIAN e PAULO GAMA
tiroteio
"Pobre quando se junta para cometer crime é quadrilha. Quando ricos e poderosos se juntam para atos ilícitos é reunião de lazer."
DO DEPUTADO DOMINGOS DUTRA (SDD-MA), sobre a decisão do STF que absolveu os condenados do mensalão do crime de formação de quadrilha.
contraponto
Território inimigo
O petista Alexandre Padilha visitava a cidade de Pariquera-Açu, no vale do Ribeira, em uma das etapas da caravana Horizonte Paulista na semana passada. Na série de compromissos agendados estava uma entrevista a uma rádio da cidade, de 19 mil habitantes.
Ainda do lado de fora, o ex-ministro olhou desconfiado para a casa, inteira pintada de azul e amarelo, mas não perdeu a pose.
--Agora meus assessores me trouxeram aqui, para fazer uma visita ao comitê municipal do PSDB --brincou, sobre as cores do partido rival.
Munição para a guerra fiscal - DENISE ROTHENBURG
CORREIO BRAZILIENSE - 01/03
Duas propostas legislativas — uma já aprovada pelo Senado e que precisa ser apreciada pela Câmara, e outra em estudo pelos deputados — poderão gerar uma nova guerra federativa. A primeira é a definição de que o ICMS arrecadado pelo comércio eletrônico será cobrado no estado onde a compra foi efetuada e não naquele em que fica a sede da fabricante do produto. Segundo o senador Eduardo Lopes (PRB-RJ), que acompanha o debate, somente com essa mudança, o Rio perde cerca de R$ 400 milhões de receitas.
A outra proposta, ainda em análise, sugere que o ISS derivado das operações de cartões de crédito também entre na contabilidade do município em que a compra foi realizada, não naquele onde estão sediadas as respectivas bandeiras das operadoras de cartão. Como elas normalmente têm filiais no Rio e em São Paulo, seria mais uma derrota para os grandes centros econômicos.
O governo não quer nem ouvir falar de bolas divididas como essa. Não deseja aumentar o desequilíbrio federativo nem tampouco promover mudanças que passem a imagem de afrouxamento na questão fiscal. Com as agências de rating acompanhando o Brasil com lupa, a equipe econômica tenta fugir de qualquer marola.
Ele disse não
O técnico da seleção masculina de vôlei, Bernardinho, avisou ontem ao senador Aécio Neves (PSDB-MG) que não vai concorrer ao governo do Rio, como os tucanos queriam. Ele topa subir em palanques e até gravar propagandas eleitorais. Mas, no momento, só pretende disputar as Olimpíadas de 2016 no Rio.
Ele quer dizer sim
Já o presidente do PMDB fluminense, Jorge Picciani, falou, em entrevista que vai ao ar amanhã, na CNT, que o partido defenderá o apoio a Aécio nas eleições de outubro e o rompimento com a aliança nacional entre petistas e peemedebistas. Tudo por conta da insistência do PT em lançar candidato próprio ao governo estadual: o senador Lindbergh Farias.
Cabeça a cabeça
Um cacique do PMDB aposta que Luiz Fernando Pezão, atual vice-governador do Rio, disputará o segundo turno nas eleições de outubro. Pelos cálculos dessa liderança, Anthony Garotinho (PR) chegaria em primeiro, e Pezão superaria, “no olho mecânico”, o petista Lindbergh Farias.
E eu como fico?
Já o presidente do PRB do Rio, senador Eduardo Lopes, jura que é Marcelo Crivella — aliás, o atual líder nas pesquisas de intenção de voto — quem disputará o segundo turno. E afirma que, independentemente dos adversários, Crivella é o que tem mais chances de agregar apoio caso a eleição não se resolva em primeiro turno.
Falso testemunho
Lopes também garante que Dilma prometeu a ele e a Crivella que subirá no palanque do pastor durante a disputa eleitoral. “Ela reconheceu que somos aliados de primeira hora”, disse o senador.
CURTIDAS
Cuidando… / A presidente Dilma Rousseff resolveu dar um toque dourado nos cabelos para enfrentar a maratona eleitoral deste ano. Aos 66 anos, ela quer parecer mais jovem para enfrentar Aécio Neves (54 anos) e Eduardo Campos (49 anos).
…do visual/ Já o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, divulgou no YouTube um vídeo (foto) no qual aparece correndo em torno da Casa Branca acompanhado do vice Joe Biden. É uma divulgação da programa Let’s move, patrocinado pela primeira-dama, Michelle Obama.
É mentira/ Um dia após o anúncio do PIB de 2,3% em 2013, os petistas continuam enaltecendo a gestão Dilma. “A presidente entregou as usinas de Jirau e Santo Antônio. Belo Monte está quase na metade, e os tucanos insistem em dizer que ela é má gestora”, reclamou o deputado Carlos Zarattini (PT-SP).
Ar quente - MIRIAM LEITÃO
O GLOBO - 01/03
Mais do que o risco de racionamento, o que preocupa as grandes empresas é a alta do custo da energia contratada para o ano que vem. O vice-presidente da Whirlpool, Armando Valle, faz cálculos que dão números espantosos de aumento desse custo em 2015. Ele acha que o preço pode subir no mínimo 40%, se todo o uso das térmicas for repassado para as empresas.
Por atuar nos segmentos de ventilador, geladeira e ar-condicionado, a Whirlpool monitora o clima com atenção. As pesquisas e sondagens com climatologistas são constantes, e, a partir daí, são feitas as estimativas da empresa. Neste ano, o calor está tórrido, e a companhia poderia estar se sentindo favorecida, mas há vários pontos de preocupação.
— A gente brinca que quando faz calor muito forte por dois dias, aumenta a venda de ventilador. Quando são três dias, crescem os ventiladores de teto, quando são quatro dias ou mais, vende-se ar condicionado — disse Armando Valle.
A empresa já esperava temperaturas elevadas, mas achava que elas aconteceriam em dezembro. Vieram em janeiro e fevereiro e com índice de chuvas abaixo do esperado. Mesmo assim, o executivo não teme racionamento. As previsões da empresa são de que os reservatórios vão chegar ao nível de 60% — hoje estão em 34% no sistema Sudeste/Centro-Oeste. Mesmo com esse percentual, as térmicas teriam que ficar ligadas o ano inteiro, e isso aumentaria o risco de energia mais cara.
— O aumento do preço é o que realmente preocupa e nossas estimativas são de que o custo da energia para a empresa pode saltar de 40% a 80% em 2015, com o repasse das termelétricas. Se os reservatórios subirem a 60%, o fornecimento está garantido, mas as chuvas no final do ano terão que vir fortes para que a ameaça não se repita no ano que vem — explicou.
Esse é um dilema complicado para o governo. Se o subsídio for alto, será mais difícil cumprir o superávit primário. Se
decidir pagar apenas uma parte da conta, os preços da energia começarão a subir este ano.
Valle acredita que o país passará por mais períodos secos daqui para frente e que é preciso pensar em racionalização do uso da energia. Diz que há pouca legislação para o segmento comercial, como os supermercados, que utilizam freezers abertos, com alto consumo de energia e pouquíssima eficiência:
— No setor comercial, o que acontece não faz sentido. É preciso pensar em racionalização, porque o clima pode não ajudar daqui para frente. Nossa fábrica em Santa Catarina já teve que parar a produção porque o calor está intenso mesmo em lugares onde sempre foi mais fresco.
A exemplo do que acontece com o setor automobilístico, a indústria de eletrodomésticos está cautelosa em relação aos efeitos da Copa do Mundo sobre as vendas. A expectativa é que o segmento de televisão vai ganhar um impulso, mas isso pode reduzir a venda de outros aparelhos. Por isso, a expectativa é de que o setor fique estagnado este ano, depois de cair 4% em 2013.
As empresas estrangeiras temem também o aumento do dólar. A Whirlpool, que possui custos em moeda americana, como o preço do aço, estima que o dólar pode chegar a R$ 2,60 este ano. O lucro fica menor em dólares quando a nossa moeda perde valor, e isso reduz os dividendos enviados à matriz. Isso alimenta o mau humor dos estrangeiros em relação à economia brasileira.
O mercado de trabalho aquecido garante o crescimento da renda — e das vendas — mas também eleva o custo trabalhista das empresas. Armando Valle acredita que é preciso rever a fórmula de indexação do salário mínimo porque a inflação de serviços tem crescido acima da produtividade.
Mais do que o risco de racionamento, o que preocupa as grandes empresas é a alta do custo da energia contratada para o ano que vem. O vice-presidente da Whirlpool, Armando Valle, faz cálculos que dão números espantosos de aumento desse custo em 2015. Ele acha que o preço pode subir no mínimo 40%, se todo o uso das térmicas for repassado para as empresas.
Por atuar nos segmentos de ventilador, geladeira e ar-condicionado, a Whirlpool monitora o clima com atenção. As pesquisas e sondagens com climatologistas são constantes, e, a partir daí, são feitas as estimativas da empresa. Neste ano, o calor está tórrido, e a companhia poderia estar se sentindo favorecida, mas há vários pontos de preocupação.
— A gente brinca que quando faz calor muito forte por dois dias, aumenta a venda de ventilador. Quando são três dias, crescem os ventiladores de teto, quando são quatro dias ou mais, vende-se ar condicionado — disse Armando Valle.
A empresa já esperava temperaturas elevadas, mas achava que elas aconteceriam em dezembro. Vieram em janeiro e fevereiro e com índice de chuvas abaixo do esperado. Mesmo assim, o executivo não teme racionamento. As previsões da empresa são de que os reservatórios vão chegar ao nível de 60% — hoje estão em 34% no sistema Sudeste/Centro-Oeste. Mesmo com esse percentual, as térmicas teriam que ficar ligadas o ano inteiro, e isso aumentaria o risco de energia mais cara.
— O aumento do preço é o que realmente preocupa e nossas estimativas são de que o custo da energia para a empresa pode saltar de 40% a 80% em 2015, com o repasse das termelétricas. Se os reservatórios subirem a 60%, o fornecimento está garantido, mas as chuvas no final do ano terão que vir fortes para que a ameaça não se repita no ano que vem — explicou.
Esse é um dilema complicado para o governo. Se o subsídio for alto, será mais difícil cumprir o superávit primário. Se
decidir pagar apenas uma parte da conta, os preços da energia começarão a subir este ano.
Valle acredita que o país passará por mais períodos secos daqui para frente e que é preciso pensar em racionalização do uso da energia. Diz que há pouca legislação para o segmento comercial, como os supermercados, que utilizam freezers abertos, com alto consumo de energia e pouquíssima eficiência:
— No setor comercial, o que acontece não faz sentido. É preciso pensar em racionalização, porque o clima pode não ajudar daqui para frente. Nossa fábrica em Santa Catarina já teve que parar a produção porque o calor está intenso mesmo em lugares onde sempre foi mais fresco.
A exemplo do que acontece com o setor automobilístico, a indústria de eletrodomésticos está cautelosa em relação aos efeitos da Copa do Mundo sobre as vendas. A expectativa é que o segmento de televisão vai ganhar um impulso, mas isso pode reduzir a venda de outros aparelhos. Por isso, a expectativa é de que o setor fique estagnado este ano, depois de cair 4% em 2013.
As empresas estrangeiras temem também o aumento do dólar. A Whirlpool, que possui custos em moeda americana, como o preço do aço, estima que o dólar pode chegar a R$ 2,60 este ano. O lucro fica menor em dólares quando a nossa moeda perde valor, e isso reduz os dividendos enviados à matriz. Isso alimenta o mau humor dos estrangeiros em relação à economia brasileira.
O mercado de trabalho aquecido garante o crescimento da renda — e das vendas — mas também eleva o custo trabalhista das empresas. Armando Valle acredita que é preciso rever a fórmula de indexação do salário mínimo porque a inflação de serviços tem crescido acima da produtividade.
A economia da hiena - ROLF KUNTZ
O Estado de S.Paulo - 01/03
De que se ri o animalzinho? - pergunta o cidadão, na velha piada, ao saber da parcimônia sexual e das preferências gastronômicas da hiena. A mesma perplexidade é inevitável diante da aparente alegria de tantos analistas ao conhecer os números da economia nacional em 2013. O miserável aumento de 2,3% do produto interno bruto (PIB) foi descrito como surpreendente. O crescimento de 0,7% no trimestre final quase foi celebrado como o início de uma era de expansão chinesa. Dois argumentos foram usados para justificar a comemoração. Projetado para um ano, aquele resultado trimestral equivale a 2,8%, lembrou o ministro da Fazenda, Guido Mantega. O outro argumento, um pouco mais complicado, aponta o esperado efeito de carry over, ou carregamento. Se a expansão econômica for nula nos primeiros três meses deste ano, será pelo menos mantido o patamar alcançado no trimestre anterior. Daí a necessidade, segundo os mais entusiasmados, de uma revisão das projeções para 2014. Na semana passada, a mediana das projeções coletadas para o boletim Focus, do Banco Central (BC), havia ficado em 1,87%.
Essa alegria é mais preocupante que os números ainda muito ruins das contas nacionais. Com um pouco de juízo e medidas certas pode-se fazer a produção crescer muito mais que nos últimos três anos, quando a média ficou em vergonhosos 2%. Mas o problema se complica sensivelmente quando as pessoas começam a encarar como normal um desempenho pífio, muito abaixo das possibilidades do País, e a festejar pequenas melhoras.
Quem aceita esse padrão de normalidade passa a raciocinar dentro dos limites da política econômica em vigor nos últimos anos. Passa a falar a linguagem do ministro da Fazenda e a aceitar como razoáveis seus critérios de avaliação. Uma coisa é destacar, por seu efeito estatístico, a expansão de 6,3% do investimento em capital fixo. Outra, muito diferente, é apontar esse número como algo extraordinário. Só se entusiasma quem esquece dois fatos bem conhecidos e, de toda forma, indicados com clareza nas contas publicadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nem um estrangeiro se enganaria ao ver esses números.
Em primeiro lugar, o investimento 6,3% maior que o de 2012 ocorreu depois de uma queda de 4%, detalhe aparentemente esquecido ou negligenciado por muita gente. Em termos de volume, ficou pouco acima, portanto, do registrado em 2011. Em outras palavras, a formação bruta de capital fixo ficou praticamente estagnada ao longo de dois anos.
Em segundo lugar, a taxa de investimento passou de 18,2% do PIB em 2012 para 18,4% em 2013, muito inferior aos padrões dos emergentes e ainda abaixo do pico de 19,5%, registrado em 2010. O nível de 24%, já alcançado por alguns sul-americanos, será atingido até 2020, prometeu o animado ministro da Fazenda.
A estagnação da indústria está refletida tanto no crescimento do setor, 1,3%, quanto nas contas externas. As exportações de bens e serviços aumentaram 2,5%, em termos reais, enquanto as importações cresceram 8,4%. A piora das contas externas já era conhecida. O déficit em conta corrente passou de US$ 54,25 bilhões em 2012 (2,41% do PIB) para US$ 81,37 bilhões em 2013 (3,66% do PIB). A deterioração do balanço de pagamentos é explicável principalmente pela erosão da conta de mercadorias. Essa conta continua em mau estado.
Entre o começo do ano e a terceira semana de fevereiro o País acumulou um déficit comercial de US$ 6,75 bilhões. As vendas ao exterior, US$ 26,91 bilhões, foram 3,7% menores que as de um ano antes, pela média diária, e as importações, US$ 33,65 bilhões, 0,6% maiores, pelo mesmo critério.
Mais uma vez, em 2014 o saldo comercial dependerá do amplo superávit obtido com as commodities, principalmente do agronegócio. A julgar pelos dados até agora conhecidos, dificilmente a indústria será muito mais competitiva, nos próximos meses, do que tem sido nos últimos cinco ou seis anos. As importações começaram a crescer mais velozmente que as exportações antes da crise de 2008. O problema, na época, já era o enfraquecimento da indústria diante dos concorrentes estrangeiros. Afinal, o famigerado custo Brasil já estava na pauta desde muitos anos e nada se havia feito para torná-lo mais suportável. Enquanto a discussão se prolongava sem resultado, o problema se tornava mais grave e a economia nacional ficava menos eficiente e menos capaz de produzir de forma competitiva.
O mau uso do dinheiro público, o desajuste fiscal e a inflação elevada são componentes desse quadro de baixa produtividade, mas há pouco estímulo para o governo cuidar seriamente de qualquer desses problemas. Há oposição à alta dos juros, apesar da inflação resistente e ainda muito elevada. Até a meta fiscal anunciada há poucos dias foi criticada, como se o governo estivesse empenhado, com sua modesta exibição de austeridade, em matar o crescimento.
Há alguns anos o economista Mohamed El-Erian, então um dos chefões do Pimco, um dos maiores fundos de investimento, criou, juntamente com seu colega Bill Gross, a expressão "novo normal", para descrever o padrão observado desde o começo da crise: crescimento baixo, desemprego alto e juros próximos de zero no mundo rico. No Brasil, a reação de muitos analistas aos números pífios de 2013 parece indicar a consolidação de uma nova normalidade econômica. Mas, neste caso, o crescimento baixo é combinado com inflação alta e resistente e contas públicas precárias. Junta-se a isso uma baixíssima disposição para cuidar de problemas bem conhecidos, mas nunca atacados para valer. Nesse quadro, incentivos parciais e de pouco efeito para o crescimento acabam valendo mais que mudanças de grande alcance. Reformas para tornar a economia mais eficiente são complicadas e tomam tempo. Para que esperar? Nesse novo normal, menos e menos pessoas, a cada dia, acharão estranha a satisfação da hiena.
De que se ri o animalzinho? - pergunta o cidadão, na velha piada, ao saber da parcimônia sexual e das preferências gastronômicas da hiena. A mesma perplexidade é inevitável diante da aparente alegria de tantos analistas ao conhecer os números da economia nacional em 2013. O miserável aumento de 2,3% do produto interno bruto (PIB) foi descrito como surpreendente. O crescimento de 0,7% no trimestre final quase foi celebrado como o início de uma era de expansão chinesa. Dois argumentos foram usados para justificar a comemoração. Projetado para um ano, aquele resultado trimestral equivale a 2,8%, lembrou o ministro da Fazenda, Guido Mantega. O outro argumento, um pouco mais complicado, aponta o esperado efeito de carry over, ou carregamento. Se a expansão econômica for nula nos primeiros três meses deste ano, será pelo menos mantido o patamar alcançado no trimestre anterior. Daí a necessidade, segundo os mais entusiasmados, de uma revisão das projeções para 2014. Na semana passada, a mediana das projeções coletadas para o boletim Focus, do Banco Central (BC), havia ficado em 1,87%.
Essa alegria é mais preocupante que os números ainda muito ruins das contas nacionais. Com um pouco de juízo e medidas certas pode-se fazer a produção crescer muito mais que nos últimos três anos, quando a média ficou em vergonhosos 2%. Mas o problema se complica sensivelmente quando as pessoas começam a encarar como normal um desempenho pífio, muito abaixo das possibilidades do País, e a festejar pequenas melhoras.
Quem aceita esse padrão de normalidade passa a raciocinar dentro dos limites da política econômica em vigor nos últimos anos. Passa a falar a linguagem do ministro da Fazenda e a aceitar como razoáveis seus critérios de avaliação. Uma coisa é destacar, por seu efeito estatístico, a expansão de 6,3% do investimento em capital fixo. Outra, muito diferente, é apontar esse número como algo extraordinário. Só se entusiasma quem esquece dois fatos bem conhecidos e, de toda forma, indicados com clareza nas contas publicadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nem um estrangeiro se enganaria ao ver esses números.
Em primeiro lugar, o investimento 6,3% maior que o de 2012 ocorreu depois de uma queda de 4%, detalhe aparentemente esquecido ou negligenciado por muita gente. Em termos de volume, ficou pouco acima, portanto, do registrado em 2011. Em outras palavras, a formação bruta de capital fixo ficou praticamente estagnada ao longo de dois anos.
Em segundo lugar, a taxa de investimento passou de 18,2% do PIB em 2012 para 18,4% em 2013, muito inferior aos padrões dos emergentes e ainda abaixo do pico de 19,5%, registrado em 2010. O nível de 24%, já alcançado por alguns sul-americanos, será atingido até 2020, prometeu o animado ministro da Fazenda.
A estagnação da indústria está refletida tanto no crescimento do setor, 1,3%, quanto nas contas externas. As exportações de bens e serviços aumentaram 2,5%, em termos reais, enquanto as importações cresceram 8,4%. A piora das contas externas já era conhecida. O déficit em conta corrente passou de US$ 54,25 bilhões em 2012 (2,41% do PIB) para US$ 81,37 bilhões em 2013 (3,66% do PIB). A deterioração do balanço de pagamentos é explicável principalmente pela erosão da conta de mercadorias. Essa conta continua em mau estado.
Entre o começo do ano e a terceira semana de fevereiro o País acumulou um déficit comercial de US$ 6,75 bilhões. As vendas ao exterior, US$ 26,91 bilhões, foram 3,7% menores que as de um ano antes, pela média diária, e as importações, US$ 33,65 bilhões, 0,6% maiores, pelo mesmo critério.
Mais uma vez, em 2014 o saldo comercial dependerá do amplo superávit obtido com as commodities, principalmente do agronegócio. A julgar pelos dados até agora conhecidos, dificilmente a indústria será muito mais competitiva, nos próximos meses, do que tem sido nos últimos cinco ou seis anos. As importações começaram a crescer mais velozmente que as exportações antes da crise de 2008. O problema, na época, já era o enfraquecimento da indústria diante dos concorrentes estrangeiros. Afinal, o famigerado custo Brasil já estava na pauta desde muitos anos e nada se havia feito para torná-lo mais suportável. Enquanto a discussão se prolongava sem resultado, o problema se tornava mais grave e a economia nacional ficava menos eficiente e menos capaz de produzir de forma competitiva.
O mau uso do dinheiro público, o desajuste fiscal e a inflação elevada são componentes desse quadro de baixa produtividade, mas há pouco estímulo para o governo cuidar seriamente de qualquer desses problemas. Há oposição à alta dos juros, apesar da inflação resistente e ainda muito elevada. Até a meta fiscal anunciada há poucos dias foi criticada, como se o governo estivesse empenhado, com sua modesta exibição de austeridade, em matar o crescimento.
Há alguns anos o economista Mohamed El-Erian, então um dos chefões do Pimco, um dos maiores fundos de investimento, criou, juntamente com seu colega Bill Gross, a expressão "novo normal", para descrever o padrão observado desde o começo da crise: crescimento baixo, desemprego alto e juros próximos de zero no mundo rico. No Brasil, a reação de muitos analistas aos números pífios de 2013 parece indicar a consolidação de uma nova normalidade econômica. Mas, neste caso, o crescimento baixo é combinado com inflação alta e resistente e contas públicas precárias. Junta-se a isso uma baixíssima disposição para cuidar de problemas bem conhecidos, mas nunca atacados para valer. Nesse quadro, incentivos parciais e de pouco efeito para o crescimento acabam valendo mais que mudanças de grande alcance. Reformas para tornar a economia mais eficiente são complicadas e tomam tempo. Para que esperar? Nesse novo normal, menos e menos pessoas, a cada dia, acharão estranha a satisfação da hiena.
Primeiro entre os grandes - KÁTIA ABREU
FOLHA DE SP - 01/03
Ou o Mercosul se une à União Europeia ou perderá sua última chance; e não sobreviverá a mais essa perda
Quando o mercado comum europeu nasceu, em 1993, o Mercosul, com dois anos de idade, já deveria estar falando e caminhando sozinho. Não foi o que se viu. Até hoje, engatinhamos com relação aos acordos comerciais, enquanto a União Europeia corre a passos cada vez mais largos, vencendo crises e se consolidando como o maior bloco econômico do mundo.
A União Europeia congrega 28 nações, 15 das quais compartilhando o euro. Em duas décadas, o bloco contabiliza acordos comerciais com 48 outros países, negociações com 84 futuros parceiros e estudos para abertura a mais cinco mercados.
Imaginem a complexidade de negociar em 24 línguas oficiais para fechar uma proposta única e que ainda precisa ser aceita pela contraparte!
Tudo fazia supor que, no Mercosul, seria mais fácil. Afinal, eram dois idiomas e apenas quatro vizinhos, antes do ingresso da Venezuela, em 2012. Ledo engano. O saldo desses 23 anos resume-se a três acordos de livre-comércio com Egito, Palestina e Israel, dos quais só o último está em vigor.
Durante esses anos, alguns setores da indústria temiam o livre mercado e o agronegócio se conten- tava com o crescente mercado interno. Ninguém pode esquecer que os acordos nascem de um gran- de consenso nacional. São obra de governo e iniciativa privada, em conjunto.
E o que nos anima agora é a unânime decisão da indústria, do agronegócio e do governo de não per- mitir que o Brasil opte, mais uma vez, pelo isolamento. Foi o que ficou muito claro na 7ª Cúpula Brasil - União Europeia, realizada no fim de semana passado em Bruxelas, na Bélgica.
Pela primeira vez, desde que teve início a discussão do acordo com a União Europeia, a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) e a CNI (Confederação Nacional da Indústria) reuniram-se com um presidente da República para reivindicar a urgente conclusão das negociações.
A presidente Dilma Rousseff recebeu o apoio dos empresários e mostrou-se determinada a encontrar solução rápida para os entraves existentes.
O Brasil vai buscar a adesão do Mercosul, mas sem ficar amarrado a ele. A data-limite para uma proposta comum é 7 de março próximo, quando saberemos se a Argentina se unirá ao Brasil, ao Paraguai e ao Uruguai, que já decidiram negociar em bloco com a União Europeia.
O mercado europeu representa 507 milhões de consumidores de elevada renda per capita, enquanto nosso único acordo vigente, com Israel, alcança uma população 98% menor.
Estima-se que o acordo da União Europeia com o Canadá, em fase de conclusão, vá aumentar em US$ 26 bilhões o comércio de bens entre eles. No caso do Brasil, calcula-se que o ganho seria em torno de US$ 30 bilhões já no primeiro ano de vigência do acordo.
As negociações do bloco europeu com os Estados Unidos, que começaram há menos de um ano, estão em estágio avançado. O mundo não será o mesmo depois da formação desse novo e poderoso bloco comercial. Estamos falando de 821 milhões de consumidores, 50% do PIB mundial e 30% das transações comerciais do planeta.
E as negociações não param aí. Somando o Acordo de Parceria Transpacífica, que reúne os EUA e mais 11 países, o livre-comércio terá tomado conta de dois terços da economia global.
Esse novo ambiente de negócios vai definir as novas regras do comércio mundial. Não pode um país, por mais forte que seja sua economia, concorrer com blocos. Sem acordos, não haverá mercados. Sem mercados, nossas exportações ficarão estagnadas. Nossos concorrentes estão se movimentando e ocupando espaços que poderiam ser nossos.
Se, por um lado, o livre-comércio nos desafia a buscar novas tecnologias para aumentar a competitividade, por outro só ele garante o acesso a um maior número de consumidores e a novas oportuni- dades de negócio, gerando emprego e renda.
Por tudo isso, a Cúpula de Bruxelas é um marco na condução da política comercial brasileira. O Brasil acordou. Agora, podemos acreditar na assinatura do primeiro acordo entre grandes. Ou o Mercosul se une ou perderá sua última chance. E não sobreviverá a mais essa perda.
Ou o Mercosul se une à União Europeia ou perderá sua última chance; e não sobreviverá a mais essa perda
Quando o mercado comum europeu nasceu, em 1993, o Mercosul, com dois anos de idade, já deveria estar falando e caminhando sozinho. Não foi o que se viu. Até hoje, engatinhamos com relação aos acordos comerciais, enquanto a União Europeia corre a passos cada vez mais largos, vencendo crises e se consolidando como o maior bloco econômico do mundo.
A União Europeia congrega 28 nações, 15 das quais compartilhando o euro. Em duas décadas, o bloco contabiliza acordos comerciais com 48 outros países, negociações com 84 futuros parceiros e estudos para abertura a mais cinco mercados.
Imaginem a complexidade de negociar em 24 línguas oficiais para fechar uma proposta única e que ainda precisa ser aceita pela contraparte!
Tudo fazia supor que, no Mercosul, seria mais fácil. Afinal, eram dois idiomas e apenas quatro vizinhos, antes do ingresso da Venezuela, em 2012. Ledo engano. O saldo desses 23 anos resume-se a três acordos de livre-comércio com Egito, Palestina e Israel, dos quais só o último está em vigor.
Durante esses anos, alguns setores da indústria temiam o livre mercado e o agronegócio se conten- tava com o crescente mercado interno. Ninguém pode esquecer que os acordos nascem de um gran- de consenso nacional. São obra de governo e iniciativa privada, em conjunto.
E o que nos anima agora é a unânime decisão da indústria, do agronegócio e do governo de não per- mitir que o Brasil opte, mais uma vez, pelo isolamento. Foi o que ficou muito claro na 7ª Cúpula Brasil - União Europeia, realizada no fim de semana passado em Bruxelas, na Bélgica.
Pela primeira vez, desde que teve início a discussão do acordo com a União Europeia, a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) e a CNI (Confederação Nacional da Indústria) reuniram-se com um presidente da República para reivindicar a urgente conclusão das negociações.
A presidente Dilma Rousseff recebeu o apoio dos empresários e mostrou-se determinada a encontrar solução rápida para os entraves existentes.
O Brasil vai buscar a adesão do Mercosul, mas sem ficar amarrado a ele. A data-limite para uma proposta comum é 7 de março próximo, quando saberemos se a Argentina se unirá ao Brasil, ao Paraguai e ao Uruguai, que já decidiram negociar em bloco com a União Europeia.
O mercado europeu representa 507 milhões de consumidores de elevada renda per capita, enquanto nosso único acordo vigente, com Israel, alcança uma população 98% menor.
Estima-se que o acordo da União Europeia com o Canadá, em fase de conclusão, vá aumentar em US$ 26 bilhões o comércio de bens entre eles. No caso do Brasil, calcula-se que o ganho seria em torno de US$ 30 bilhões já no primeiro ano de vigência do acordo.
As negociações do bloco europeu com os Estados Unidos, que começaram há menos de um ano, estão em estágio avançado. O mundo não será o mesmo depois da formação desse novo e poderoso bloco comercial. Estamos falando de 821 milhões de consumidores, 50% do PIB mundial e 30% das transações comerciais do planeta.
E as negociações não param aí. Somando o Acordo de Parceria Transpacífica, que reúne os EUA e mais 11 países, o livre-comércio terá tomado conta de dois terços da economia global.
Esse novo ambiente de negócios vai definir as novas regras do comércio mundial. Não pode um país, por mais forte que seja sua economia, concorrer com blocos. Sem acordos, não haverá mercados. Sem mercados, nossas exportações ficarão estagnadas. Nossos concorrentes estão se movimentando e ocupando espaços que poderiam ser nossos.
Se, por um lado, o livre-comércio nos desafia a buscar novas tecnologias para aumentar a competitividade, por outro só ele garante o acesso a um maior número de consumidores e a novas oportuni- dades de negócio, gerando emprego e renda.
Por tudo isso, a Cúpula de Bruxelas é um marco na condução da política comercial brasileira. O Brasil acordou. Agora, podemos acreditar na assinatura do primeiro acordo entre grandes. Ou o Mercosul se une ou perderá sua última chance. E não sobreviverá a mais essa perda.
A salvação da lavoura - CELSO MING
O Estado de S.Paulo - 01/03
No ano passado, com uma participação de apenas 5,7% na economia brasileira, a agropecuária sozinha foi responsável pela obtenção de 1,1 ponto porcentual nos 2,3 pontos de crescimento do PIB.
No dia 10 de fevereiro, em solenidade realizada em Lucas do Rio Verde (MT), a presidente Dilma reconheceu o excelente desempenho do agronegócio. Ela se referiu à "produtividade na veia" injetada na economia, graças ao aumento de 221% da produção de grãos em 20 anos com aumento da área plantada no mesmo período de apenas 41%.
Convém ter claras as diferenças entre conceitos. Agropecuária (como avalia o IBGE), agronegócio ou produção de grãos, por exemplo, não são rigorosamente a mesma coisa. Independentemente disso, a observação da presidente Dilma está correta. Apesar de tudo e contra tanta coisa, a agropecuária está dando show de produção e de produtividade, contribuindo decisivamente para o resultado da atividade econômica do País.
O setor soube aproveitar o salto de integração de camadas crescentes da população mundial ao mercado de consumo. Apenas na Ásia foram cerca de 30 milhões por ano ao longo dos últimos 15 anos. Foi o que aumentou substancialmente a demanda por alimentos, matérias-primas e energia, especialmente pela China. A agricultura brasileira surfou essa onda, faturou mais, mecanizou-se e passou a operar com tecnologia de ponta. Daí os resultados.
O governo brasileiro pouco contribuiu para isso. Ao contrário, mais atrapalhou do que ajudou. Basta levar em conta as dramáticas deficiências de transportes e rede de armazenamento e a desarticulação provocada no setor de açúcar e álcool pela desastrosa política de combustíveis adotada pelo governo Dilma.
Do ponto de vista macroeconômico, a forte contribuição do setor agropecuário aponta para nova vulnerabilidade. Não é possível sustentar esse desempenho para sempre, porque a agricultura enfrenta variáveis de difícil controle, como condições climáticas e, especialmente, preços internacionais, sempre sujeitos a volatilidades. Em 2012, por exemplo, o PIB da agropecuária caiu 2,1% (veja o gráfico).
Como a expansão do setor de serviços tende a se desacelerar e a indústria é de recuperação mais difícil, eventuais períodos de espigas chochas podem produzir fortes estragos no desempenho do PIB.
Essa é a principal razão pela qual novos ganhos de produtividade a serem obtidos com investimentos em transportes e maior emprego de tecnologia podem fazer a diferença.
Não dá para dizer que o governo esteja atento a essas novas demandas da política econômica. O xodó das administrações Lula e Dilma foram e continuam sendo as montadoras de veículos, que conseguem arrancar proteção alfandegária e reservas de mercado desta república sindicalista. E a tendência é de que a percepção corrente em Brasília é que a agricultura não precisa de cuidados porque se defende sozinha.
No ano passado, com uma participação de apenas 5,7% na economia brasileira, a agropecuária sozinha foi responsável pela obtenção de 1,1 ponto porcentual nos 2,3 pontos de crescimento do PIB.
No dia 10 de fevereiro, em solenidade realizada em Lucas do Rio Verde (MT), a presidente Dilma reconheceu o excelente desempenho do agronegócio. Ela se referiu à "produtividade na veia" injetada na economia, graças ao aumento de 221% da produção de grãos em 20 anos com aumento da área plantada no mesmo período de apenas 41%.
Convém ter claras as diferenças entre conceitos. Agropecuária (como avalia o IBGE), agronegócio ou produção de grãos, por exemplo, não são rigorosamente a mesma coisa. Independentemente disso, a observação da presidente Dilma está correta. Apesar de tudo e contra tanta coisa, a agropecuária está dando show de produção e de produtividade, contribuindo decisivamente para o resultado da atividade econômica do País.
O setor soube aproveitar o salto de integração de camadas crescentes da população mundial ao mercado de consumo. Apenas na Ásia foram cerca de 30 milhões por ano ao longo dos últimos 15 anos. Foi o que aumentou substancialmente a demanda por alimentos, matérias-primas e energia, especialmente pela China. A agricultura brasileira surfou essa onda, faturou mais, mecanizou-se e passou a operar com tecnologia de ponta. Daí os resultados.
O governo brasileiro pouco contribuiu para isso. Ao contrário, mais atrapalhou do que ajudou. Basta levar em conta as dramáticas deficiências de transportes e rede de armazenamento e a desarticulação provocada no setor de açúcar e álcool pela desastrosa política de combustíveis adotada pelo governo Dilma.
Do ponto de vista macroeconômico, a forte contribuição do setor agropecuário aponta para nova vulnerabilidade. Não é possível sustentar esse desempenho para sempre, porque a agricultura enfrenta variáveis de difícil controle, como condições climáticas e, especialmente, preços internacionais, sempre sujeitos a volatilidades. Em 2012, por exemplo, o PIB da agropecuária caiu 2,1% (veja o gráfico).
Como a expansão do setor de serviços tende a se desacelerar e a indústria é de recuperação mais difícil, eventuais períodos de espigas chochas podem produzir fortes estragos no desempenho do PIB.
Essa é a principal razão pela qual novos ganhos de produtividade a serem obtidos com investimentos em transportes e maior emprego de tecnologia podem fazer a diferença.
Não dá para dizer que o governo esteja atento a essas novas demandas da política econômica. O xodó das administrações Lula e Dilma foram e continuam sendo as montadoras de veículos, que conseguem arrancar proteção alfandegária e reservas de mercado desta república sindicalista. E a tendência é de que a percepção corrente em Brasília é que a agricultura não precisa de cuidados porque se defende sozinha.
Exportações do agronegócio em 2014 - ANDRÉ MELONI NASSAR
O Estado de S.Paulo - 01/03
Não quero engrossar o coro da turma do "quanto pior, melhor", até porque não estamos no período de ditadura militar, em que uma ruptura era necessária e o "mais pior" era uma das boas opções para quem queria o fim da era dos militares. Rupturas não são mais opções para o Brasil. Com governo de esquerda ou liberal, o País precisa entrar numa rota de longo prazo de melhorias incrementais. Mas, sobretudo em ano eleitoral, é preciso manter a capacidade crítica sobre quase tudo o que um governo em busca de continuidade fala. Se o "quanto pior, melhor" em nada ajuda, o "otimismo acima de tudo" deste governo deve ser criticado. Além disso, em assuntos ligados à economia, ainda mais diante da inegável deterioração dos indicadores macroeconômicos, é necessário ser muito preciso sobre o desempenho futuro de indicadores que quase nunca vão mal. Refiro-me às exportações do agronegócio para 2014.
Depois de visitar Lucas do Rio Verde (MT), Dilma Rousseff fez afirmações bastante arriscadas sobre o desempenho do agronegócio em 2014. Da minha parte, espero que o Ministério da Fazenda esteja guardando para si projeções mais realistas para este ano.
Já é "carne de vaca" falar que é o agronegócio que garante o saldo comercial brasileiro, variável tão importante diante de uma balança de pagamentos sob estresse. Em 2013 as exportações do setor atingiram US$ 99,9 bilhões, com uma sequência de quatro anos seguidos de crescimento. Em 2009 as exportações haviam sido de US$ 65 bilhões. É um crescimento impressionante, mas que não pode ser tomado como dado, sobretudo em 2014.
Segundo meus cálculos, ao contrário do que disse a presidente após a visita a Lucas do Rio Verde, o cenário de 2014 é de queda da receita em dólares das exportações do agronegócio. As projeções indicam redução de 5% a 7%.
Analisando as exportações do agronegócio, decompondo a contribuição dos volumes e dos preços na receita total, fica claro que a coincidência virtuosa de volumes e preços crescentes não tem ocorrido mais. De 2005 a 2011, com leve interrupção em 2009 por causa da crise financeira detonada no 2.º semestre de 2008, quantidades cresceram 66% e preços, 116%, acarretando um crescimento da receita de 120%. Analisando os produtos principais da pauta exportadora, que representam 85% do total, o crescimento da receita para este período vai para 152%!
Mas, se o governo tivesse mais cuidado em analisar as exportações do setor, veria que a contribuição positiva dos preços internacionais parou em 2011. Incluindo 2014 na análise, que reforça para a maioria dos produtos a tendência de preços internacionais menores, a queda estimada dos preços a partir de 2011 é de 19%. Já nos volumes, eles continuaram a crescer até 2013, mas, em produtos-chave como açúcar, milho, algodão e suco de laranja, eles deverão cair em 2014. Como a tendência é de queda de preços nesses produtos, mas também em outros igualmente importantes, como complexo soja, café, carne bovina, o efeito combinado é de menores exportações em 2014.
É claro que não estou advogando pelo "quanto pior, melhor". Com uma taxa de câmbio mais depreciada, o que leva exportações em dólares a crescentes receitas em reais, podemos assumir que a queda nos volumes exportados em alguns produtos em 2014 é conjuntural e associada a fatores que pertencem apenas a 2014, e não aos anos subsequentes. Tudo isso precisa ser monitorado por produto, mas o histórico desde 2005 mostra que um ano de queda nos volumes é sempre acompanhado de uma recuperação no ano posterior. Mas isso vai para 2015.
Menores receitas de exportação estão longe de significar que o agronegócio vai mal. Com exceção de setores que estão em grave crise, como o sucroalcooleiro, e aqueles que viram seus preços derreterem como o do café, o setor agropecuário crescerá em 2014. O ponto é que, para uma balança comercial em que cada bilhão é conquistado a duras ginásticas, com plataformas de petróleo, vai dar trabalho achar uma solução criativa para repor os US$ 5 bilhões a 7 bilhões de redução das exportações do agronegócio.
Não quero engrossar o coro da turma do "quanto pior, melhor", até porque não estamos no período de ditadura militar, em que uma ruptura era necessária e o "mais pior" era uma das boas opções para quem queria o fim da era dos militares. Rupturas não são mais opções para o Brasil. Com governo de esquerda ou liberal, o País precisa entrar numa rota de longo prazo de melhorias incrementais. Mas, sobretudo em ano eleitoral, é preciso manter a capacidade crítica sobre quase tudo o que um governo em busca de continuidade fala. Se o "quanto pior, melhor" em nada ajuda, o "otimismo acima de tudo" deste governo deve ser criticado. Além disso, em assuntos ligados à economia, ainda mais diante da inegável deterioração dos indicadores macroeconômicos, é necessário ser muito preciso sobre o desempenho futuro de indicadores que quase nunca vão mal. Refiro-me às exportações do agronegócio para 2014.
Depois de visitar Lucas do Rio Verde (MT), Dilma Rousseff fez afirmações bastante arriscadas sobre o desempenho do agronegócio em 2014. Da minha parte, espero que o Ministério da Fazenda esteja guardando para si projeções mais realistas para este ano.
Já é "carne de vaca" falar que é o agronegócio que garante o saldo comercial brasileiro, variável tão importante diante de uma balança de pagamentos sob estresse. Em 2013 as exportações do setor atingiram US$ 99,9 bilhões, com uma sequência de quatro anos seguidos de crescimento. Em 2009 as exportações haviam sido de US$ 65 bilhões. É um crescimento impressionante, mas que não pode ser tomado como dado, sobretudo em 2014.
Segundo meus cálculos, ao contrário do que disse a presidente após a visita a Lucas do Rio Verde, o cenário de 2014 é de queda da receita em dólares das exportações do agronegócio. As projeções indicam redução de 5% a 7%.
Analisando as exportações do agronegócio, decompondo a contribuição dos volumes e dos preços na receita total, fica claro que a coincidência virtuosa de volumes e preços crescentes não tem ocorrido mais. De 2005 a 2011, com leve interrupção em 2009 por causa da crise financeira detonada no 2.º semestre de 2008, quantidades cresceram 66% e preços, 116%, acarretando um crescimento da receita de 120%. Analisando os produtos principais da pauta exportadora, que representam 85% do total, o crescimento da receita para este período vai para 152%!
Mas, se o governo tivesse mais cuidado em analisar as exportações do setor, veria que a contribuição positiva dos preços internacionais parou em 2011. Incluindo 2014 na análise, que reforça para a maioria dos produtos a tendência de preços internacionais menores, a queda estimada dos preços a partir de 2011 é de 19%. Já nos volumes, eles continuaram a crescer até 2013, mas, em produtos-chave como açúcar, milho, algodão e suco de laranja, eles deverão cair em 2014. Como a tendência é de queda de preços nesses produtos, mas também em outros igualmente importantes, como complexo soja, café, carne bovina, o efeito combinado é de menores exportações em 2014.
É claro que não estou advogando pelo "quanto pior, melhor". Com uma taxa de câmbio mais depreciada, o que leva exportações em dólares a crescentes receitas em reais, podemos assumir que a queda nos volumes exportados em alguns produtos em 2014 é conjuntural e associada a fatores que pertencem apenas a 2014, e não aos anos subsequentes. Tudo isso precisa ser monitorado por produto, mas o histórico desde 2005 mostra que um ano de queda nos volumes é sempre acompanhado de uma recuperação no ano posterior. Mas isso vai para 2015.
Menores receitas de exportação estão longe de significar que o agronegócio vai mal. Com exceção de setores que estão em grave crise, como o sucroalcooleiro, e aqueles que viram seus preços derreterem como o do café, o setor agropecuário crescerá em 2014. O ponto é que, para uma balança comercial em que cada bilhão é conquistado a duras ginásticas, com plataformas de petróleo, vai dar trabalho achar uma solução criativa para repor os US$ 5 bilhões a 7 bilhões de redução das exportações do agronegócio.
'Morte aos gays!' - DEMÉTRIO MAGNOLI
FOLHA DE SP - 01/03
A noção de uma 'cultura africana' fornece às elites dirigentes o álibi de culpar o 'estrangeiro' pelos males
"Homossexuais são, no fundo, mercenários. Eles são heterossexuais mas, porque lhes pagam, dizem que são homossexuais." As sentenças do presidente Yoweri Museveni acompanharam a assinatura de uma das mais drásticas leis homofóbicas do mundo, conhecida no país como "lei da Morte aos gays!". Uganda radicalizou, mas está com a maioria: 38 dos 54 países da África criminalizam a homossexualidade. Segundo a narrativa dos dirigentes homofóbicos africanos, a homossexualidade é uma perversão cultural inoculada de fora para dentro na África. Segundo a narrativa de uma corrente de intelectuais "anti-imperialistas", a homofobia é uma perversão política inoculada de fora para dentro na África. As duas narrativas estão erradas --e por um mesmo motivo.
Museveni e seus colegas nos 38 países argumentam que os gays desembarcaram na África junto com os colonizadores europeus --isto é, que a homossexualidade é estranha à "cultura africana". Num paradoxo esclarecedor, agentes evangelizadores americanos que operam na África dizem o mesmo. Com a palavra, Stephen Phelan, da ONG católica Human Life International: "Achamos que é importante estarmos na África porque a investida contra os valores africanos naturais pró-vida e pró-família está vindo dos EUA. Então, nos sentimos na obrigação de ajudá-los a entender a ameaça e a reagir a ela com base em seus próprios valores e culturas."
A postulação de uma "cultura africana" nasceu fora da África, no ventre do pan-africanismo, uma doutrina elaborada por intelectuais americanos e caribenhos no anoitecer do século 19. O pan-africanismo "africanizou-se" no pós-guerra, quando foi adotado por jovens intelectuais africanos que estudavam na Europa e nos EUA. Aqueles intelectuais viriam a liderar os movimentos de independência, convertendo-se em "pais fundadores" das atuais nações africanas. O sonho da unidade política da África esvaiu-se, mas a doutrina pan-africana sobreviveu como discurso legitimador dos novos regimes africanos. Sua pedra-de-toque é a noção de "cultura africana". Ela proporciona às elites dirigentes o álibi de culpar o "estrangeiro" (o colonizador, no passado; os EUA ou a Europa, no presente) pelos males que afligem seus países.
"Cultura africana", assim no singular, é uma noção enraizada no pensamento racial. Os intelectuais "anti-imperialistas" também a adotam, eximindo os dirigentes africanos da responsabilidade pelas leis homofóbicas. Eles argumentam que o homossexualismo era tolerado em certos povos africanos antes da colonização. É uma verdade de escasso significado: os gays não sofreram discriminação em diversas sociedades tradicionais, nos mais diferentes lugares do mundo, ao longo da história. Eles registram, ainda, que as primeiras "leis anti-sodomia" foram introduzidas na África pelos impérios europeus. Contudo, não se atrevem a explicar por que tais leis são restauradas na África muito depois de sua anulação nas antigas metrópoles europeias.
O homossexualismo não é, evidentemente, "anti-africano" --assim como não é "anti-Ocidental". A homofobia não é "anti-africana" --nem, tampouco, "africana". Como os EUA seriam governados se Stephen Phelan ocupasse o lugar de Barack Obama? O que faria nosso Marcos Feliciano se dispusesse de um poder absoluto? A difusão das leis anti-gays na África só pode ser entendida se nos desvencilhamos da tese da "cultura africana", uma ideia patrocinada no Brasil pelos arautos das políticas de raça.
O grito de "Morte aos gays!" é um fruto do poder despótico de elites políticas não cerceadas pelas instituições da democracia, em sociedades traumatizadas por céleres processos de modernização. As campanhas homofóbicas na África são ferramentas de perseguição política e de cristalização de controle social. Essa abominação nada tem de especificamente "africano".
A noção de uma 'cultura africana' fornece às elites dirigentes o álibi de culpar o 'estrangeiro' pelos males
"Homossexuais são, no fundo, mercenários. Eles são heterossexuais mas, porque lhes pagam, dizem que são homossexuais." As sentenças do presidente Yoweri Museveni acompanharam a assinatura de uma das mais drásticas leis homofóbicas do mundo, conhecida no país como "lei da Morte aos gays!". Uganda radicalizou, mas está com a maioria: 38 dos 54 países da África criminalizam a homossexualidade. Segundo a narrativa dos dirigentes homofóbicos africanos, a homossexualidade é uma perversão cultural inoculada de fora para dentro na África. Segundo a narrativa de uma corrente de intelectuais "anti-imperialistas", a homofobia é uma perversão política inoculada de fora para dentro na África. As duas narrativas estão erradas --e por um mesmo motivo.
Museveni e seus colegas nos 38 países argumentam que os gays desembarcaram na África junto com os colonizadores europeus --isto é, que a homossexualidade é estranha à "cultura africana". Num paradoxo esclarecedor, agentes evangelizadores americanos que operam na África dizem o mesmo. Com a palavra, Stephen Phelan, da ONG católica Human Life International: "Achamos que é importante estarmos na África porque a investida contra os valores africanos naturais pró-vida e pró-família está vindo dos EUA. Então, nos sentimos na obrigação de ajudá-los a entender a ameaça e a reagir a ela com base em seus próprios valores e culturas."
A postulação de uma "cultura africana" nasceu fora da África, no ventre do pan-africanismo, uma doutrina elaborada por intelectuais americanos e caribenhos no anoitecer do século 19. O pan-africanismo "africanizou-se" no pós-guerra, quando foi adotado por jovens intelectuais africanos que estudavam na Europa e nos EUA. Aqueles intelectuais viriam a liderar os movimentos de independência, convertendo-se em "pais fundadores" das atuais nações africanas. O sonho da unidade política da África esvaiu-se, mas a doutrina pan-africana sobreviveu como discurso legitimador dos novos regimes africanos. Sua pedra-de-toque é a noção de "cultura africana". Ela proporciona às elites dirigentes o álibi de culpar o "estrangeiro" (o colonizador, no passado; os EUA ou a Europa, no presente) pelos males que afligem seus países.
"Cultura africana", assim no singular, é uma noção enraizada no pensamento racial. Os intelectuais "anti-imperialistas" também a adotam, eximindo os dirigentes africanos da responsabilidade pelas leis homofóbicas. Eles argumentam que o homossexualismo era tolerado em certos povos africanos antes da colonização. É uma verdade de escasso significado: os gays não sofreram discriminação em diversas sociedades tradicionais, nos mais diferentes lugares do mundo, ao longo da história. Eles registram, ainda, que as primeiras "leis anti-sodomia" foram introduzidas na África pelos impérios europeus. Contudo, não se atrevem a explicar por que tais leis são restauradas na África muito depois de sua anulação nas antigas metrópoles europeias.
O homossexualismo não é, evidentemente, "anti-africano" --assim como não é "anti-Ocidental". A homofobia não é "anti-africana" --nem, tampouco, "africana". Como os EUA seriam governados se Stephen Phelan ocupasse o lugar de Barack Obama? O que faria nosso Marcos Feliciano se dispusesse de um poder absoluto? A difusão das leis anti-gays na África só pode ser entendida se nos desvencilhamos da tese da "cultura africana", uma ideia patrocinada no Brasil pelos arautos das políticas de raça.
O grito de "Morte aos gays!" é um fruto do poder despótico de elites políticas não cerceadas pelas instituições da democracia, em sociedades traumatizadas por céleres processos de modernização. As campanhas homofóbicas na África são ferramentas de perseguição política e de cristalização de controle social. Essa abominação nada tem de especificamente "africano".
É bom prestar atenção - ZUENIR VENTURA
O GLOBO - 01/03
O bombardeio de informações produz entropia, confusão, já que o excesso delas é igual a ruído
Dizem os entendidos que só se dará bem neste século quem conseguir resolver dentro de si a luta entre o foco e a desatenção, isto é, entre a capacidade de se concentrar e a dispersão a que estamos sujeitos por causa das “distrações” que nos assediam diariamente através dos vários meios de comunicação. A velocidade e a insistência dessas mensagens estariam diminuindo nossa capacidade de fixá-las e de refletir sobre o que elas realmente significam. O bombardeio de informações produz entropia, confusão, já que o excesso delas é igual a ruído. Preocupado com o fenômeno, o psicólogo americano Daniel Goleman escreveu o livro “Foco — A atenção e seu papel fundamental para o sucesso”, que acaba de ser lançado no Brasil, onde a palavra do título virou moda. Já comentamos aqui mesmo que o termo passou a frequentar os mais variados ambientes. O governo Dilma não perdeu o rumo, “perdeu o foco”. Os partidos de oposição estão “desviando o foco”. A atriz prefere “focar no lado bom das coisas”. Um time venceu não porque jogou melhor, mas porque finalmente “encontrou o foco”.
Por meio de análises, depoimentos e pesquisas, Goleman mostra que essa recorrência é causada pela dificuldade de concentração, que se deve sobretudo à onipresença do celular e da internet em nossas vidas. “A tecnologia captura a nossa atenção e interrompe as nossas conexões”. Algumas empresas do Vale do Silício chegaram a banir das reuniões laptops, iPads, iPhones e outras ferramentas digitais. Um casal confessou ao autor que teve de fazer um pacto de boa convivência: “Em casa, guardamos os telefones numa gaveta.” Alguns anos atrás as pessoas ficavam indignadas quando alguém pegava o Blackberry para conversar com outra na nossa presença. “Hoje é a norma.” Estudos cerebrais revelam que a “recompensa neural” desses viciados é parecida com a dos dependentes de álcool e drogas. Um professor universitário admitiu que não consegue ler mais de duas páginas por vez. “Estou perdendo a capacidade de me concentrar em qualquer coisa séria.”
Ainda bem que o mal tem cura. Uma das lições do livro é que a atenção funciona como um músculo mental, que permite acompanhar uma história, concluir uma tarefa, aprender ou criar. “Pouco utilizada, ela definha; bem utilizada, ela melhora e se expande”, o que significa que é possível fortalecê-la e até mesmo reabilitar “cérebros carentes de foco”. Basta treiná-la. Um bom método é o exercício de memorização.
Mas, cuidado, foco não é ideia fixa, obsessão. Use com moderação. É preciso dar uma folga ao cérebro, deixar um tempo livre para a divagação. Muitas descobertas e invenções aconteceram durante momentos de “distração”. O espírito aberto e a imaginação solta permitem a entrada de boas ideias.
O bombardeio de informações produz entropia, confusão, já que o excesso delas é igual a ruído
Dizem os entendidos que só se dará bem neste século quem conseguir resolver dentro de si a luta entre o foco e a desatenção, isto é, entre a capacidade de se concentrar e a dispersão a que estamos sujeitos por causa das “distrações” que nos assediam diariamente através dos vários meios de comunicação. A velocidade e a insistência dessas mensagens estariam diminuindo nossa capacidade de fixá-las e de refletir sobre o que elas realmente significam. O bombardeio de informações produz entropia, confusão, já que o excesso delas é igual a ruído. Preocupado com o fenômeno, o psicólogo americano Daniel Goleman escreveu o livro “Foco — A atenção e seu papel fundamental para o sucesso”, que acaba de ser lançado no Brasil, onde a palavra do título virou moda. Já comentamos aqui mesmo que o termo passou a frequentar os mais variados ambientes. O governo Dilma não perdeu o rumo, “perdeu o foco”. Os partidos de oposição estão “desviando o foco”. A atriz prefere “focar no lado bom das coisas”. Um time venceu não porque jogou melhor, mas porque finalmente “encontrou o foco”.
Por meio de análises, depoimentos e pesquisas, Goleman mostra que essa recorrência é causada pela dificuldade de concentração, que se deve sobretudo à onipresença do celular e da internet em nossas vidas. “A tecnologia captura a nossa atenção e interrompe as nossas conexões”. Algumas empresas do Vale do Silício chegaram a banir das reuniões laptops, iPads, iPhones e outras ferramentas digitais. Um casal confessou ao autor que teve de fazer um pacto de boa convivência: “Em casa, guardamos os telefones numa gaveta.” Alguns anos atrás as pessoas ficavam indignadas quando alguém pegava o Blackberry para conversar com outra na nossa presença. “Hoje é a norma.” Estudos cerebrais revelam que a “recompensa neural” desses viciados é parecida com a dos dependentes de álcool e drogas. Um professor universitário admitiu que não consegue ler mais de duas páginas por vez. “Estou perdendo a capacidade de me concentrar em qualquer coisa séria.”
Ainda bem que o mal tem cura. Uma das lições do livro é que a atenção funciona como um músculo mental, que permite acompanhar uma história, concluir uma tarefa, aprender ou criar. “Pouco utilizada, ela definha; bem utilizada, ela melhora e se expande”, o que significa que é possível fortalecê-la e até mesmo reabilitar “cérebros carentes de foco”. Basta treiná-la. Um bom método é o exercício de memorização.
Mas, cuidado, foco não é ideia fixa, obsessão. Use com moderação. É preciso dar uma folga ao cérebro, deixar um tempo livre para a divagação. Muitas descobertas e invenções aconteceram durante momentos de “distração”. O espírito aberto e a imaginação solta permitem a entrada de boas ideias.
O mensalão e a retórica - FERNANDO RODRIGUES
FOLHA DE SP - 01/03
BRASÍLIA - O Supremo Tribunal Federal decidiu que os mensaleiros não praticaram o crime de formação de quadrilha. Com essa nova interpretação, quantos votos a mais o PT receberá no dia 5 de outubro? Nenhum. Antes da reviravolta, quando os petistas ainda eram quadrilheiros, quantos votos a mais ganhava a oposição? Nenhum.
É nulo o impacto eleitoral da decisão do Supremo. A imagem do PT já estava avariada. O ganho difuso (e mínimo) da oposição já foi contabilizado há muito tempo.
Persistirá a "luta política". O PT e os mensaleiros argumentam que agora foi feita justiça, antes solapada por interesses políticos. O PSDB e outros oposicionistas gritam que ocorreu uma grande politização e tudo está armado para, em breve, todas as penas serem anuladas.
Trata-se de uma guerra retórica. Entrar no mérito da decisão do STF é mergulhar em areia movediça. Haverá sempre argumentos sustentando a posição de ambos os lados.
O fato é que a batalha está perdida para os mensaleiros. O Datafolha apurou em novembro passado que 86% dos brasileiros eram a favor da prisão dos condenados. Entre os simpatizantes do PT, o percentual registrado chegou a 87%.
Quando um político subtrai dinheiro público, todos desejam que o recurso seja devolvido, que o criminoso pague uma multa e passe um tempo na cadeia. No mensalão, já houve multa e prisão. A devolução da verba surrupiada ainda depende de cobrança na Justiça.
O defeito desse processo não foi a absolvição do crime por formação de quadrilha. O problema maior foi a demora. O caso é de 2005. Passaram-se nove anos e o julgamento continua aí. A responsabilidade é de todos. Da Justiça, por se acomodar, e do Congresso, que não altera a lei e permite tal tipo de morosidade incompatível com uma democracia consolidada. Fora isso, ninguém mais aguenta falar de mensalão.
BRASÍLIA - O Supremo Tribunal Federal decidiu que os mensaleiros não praticaram o crime de formação de quadrilha. Com essa nova interpretação, quantos votos a mais o PT receberá no dia 5 de outubro? Nenhum. Antes da reviravolta, quando os petistas ainda eram quadrilheiros, quantos votos a mais ganhava a oposição? Nenhum.
É nulo o impacto eleitoral da decisão do Supremo. A imagem do PT já estava avariada. O ganho difuso (e mínimo) da oposição já foi contabilizado há muito tempo.
Persistirá a "luta política". O PT e os mensaleiros argumentam que agora foi feita justiça, antes solapada por interesses políticos. O PSDB e outros oposicionistas gritam que ocorreu uma grande politização e tudo está armado para, em breve, todas as penas serem anuladas.
Trata-se de uma guerra retórica. Entrar no mérito da decisão do STF é mergulhar em areia movediça. Haverá sempre argumentos sustentando a posição de ambos os lados.
O fato é que a batalha está perdida para os mensaleiros. O Datafolha apurou em novembro passado que 86% dos brasileiros eram a favor da prisão dos condenados. Entre os simpatizantes do PT, o percentual registrado chegou a 87%.
Quando um político subtrai dinheiro público, todos desejam que o recurso seja devolvido, que o criminoso pague uma multa e passe um tempo na cadeia. No mensalão, já houve multa e prisão. A devolução da verba surrupiada ainda depende de cobrança na Justiça.
O defeito desse processo não foi a absolvição do crime por formação de quadrilha. O problema maior foi a demora. O caso é de 2005. Passaram-se nove anos e o julgamento continua aí. A responsabilidade é de todos. Da Justiça, por se acomodar, e do Congresso, que não altera a lei e permite tal tipo de morosidade incompatível com uma democracia consolidada. Fora isso, ninguém mais aguenta falar de mensalão.
A Premissa Mujica - ALBERTO DINES
GAZETA DO POVO - PR - 01/03
“Para pensar igual não é preciso uma democracia.” Quem o afirmou nesta quinta-feira não faz parte do governo nem da oposição. Não é jurista, nem sequer bacharel em Direito, não sabe exatamente em que consiste o crime de formação de quadrilha, não se encontrava em Brasília, nem em qualquer ponto do território nacional.
José “Pepe” Mujica, quase 79 anos, presidente do Uruguai, uma das figuras mais queridas da América Latina, quando ouvido pela repórter de O Globo Helena Celestino, estava em Montevidéu e referia-se à grave situação em que se encontra a Venezuela. “A democracia necessita da convivência entre os que pensam de maneira diferente.”
Óbvio, mas a essência da Premissa Mujica consiste justamente em levar a sério as obviedades. Joaquim Barbosa, presidente da nossa corte suprema, latino-americano como o líder uruguaio, teoricamente um passional como ele, deixou que as emoções falassem mais alto que o seu tirocínio. Além de constatar “uma tarde triste” para o STF ao ser vencido numa votação, ultrapassou os limites da decepção e do fair play ao alertar a nação “para essa maioria circunstancial que tem todo o tempo a seu favor para continuar a sua sanha reformadora”.
A advertência manifestada em plenário pelo chefe de um dos poderes da República, numa conjuntura excepcionalmente tensa, inflamável, adquire altíssimo teor incendiário. A contrariedade do presidente do tribunal e ministro relator da Ação Penal 470 é compreensível, considerando o esforço despendido ao longo de dois anos para reverter a crença de que as elites são impunes e os políticos podem tudo. Foi excessivo o calibre do petardo utilizado para expressar o seu desapontamento.
Situações-limite começam distendidas, terminam retesadas. A progressão torna-se perigosa quando se esquecem os fundamentos democráticos da Premissa Mujica. O paroxismo conduz inevitavelmente às rupturas. E isso fica nítido quando se examinam os antecedentes e desdobramentos do golpe de 1964 que em breve teremos a obrigação de relembrar.
A absolvição dos condenados do mensalão no item “formação de quadrilha” não os isentará dos demais ilícitos, nem a condição de coautores ou cúmplices diminui a gravidade dos atos praticados pelo “esquema” nas altas esferas da administração pública. As sucessivas revelações da polícia italiana sobre a privilegiada situação do foragido Henrique Pizzolato têm potencial para atingir todos os coautores e cúmplices do processo.
A violência que impregna o atual debate sobre a violência desvenda os riscos que corremos quando a radicalização substitui a racionalidade. A irresponsável exploração da insatisfação popular para abalar um compromisso internacional como a Copa do Mundo e assumido por um governo eleito democraticamente demonstra a atualidade e a relevância da Premissa Mujica. “Tio Pepe” pagou caro pelos arroubos daqueles que não levaram a sério a tolerância com as divergências e a substituíram pela impaciência.
“Para pensar igual não é preciso uma democracia.” Quem o afirmou nesta quinta-feira não faz parte do governo nem da oposição. Não é jurista, nem sequer bacharel em Direito, não sabe exatamente em que consiste o crime de formação de quadrilha, não se encontrava em Brasília, nem em qualquer ponto do território nacional.
José “Pepe” Mujica, quase 79 anos, presidente do Uruguai, uma das figuras mais queridas da América Latina, quando ouvido pela repórter de O Globo Helena Celestino, estava em Montevidéu e referia-se à grave situação em que se encontra a Venezuela. “A democracia necessita da convivência entre os que pensam de maneira diferente.”
Óbvio, mas a essência da Premissa Mujica consiste justamente em levar a sério as obviedades. Joaquim Barbosa, presidente da nossa corte suprema, latino-americano como o líder uruguaio, teoricamente um passional como ele, deixou que as emoções falassem mais alto que o seu tirocínio. Além de constatar “uma tarde triste” para o STF ao ser vencido numa votação, ultrapassou os limites da decepção e do fair play ao alertar a nação “para essa maioria circunstancial que tem todo o tempo a seu favor para continuar a sua sanha reformadora”.
A advertência manifestada em plenário pelo chefe de um dos poderes da República, numa conjuntura excepcionalmente tensa, inflamável, adquire altíssimo teor incendiário. A contrariedade do presidente do tribunal e ministro relator da Ação Penal 470 é compreensível, considerando o esforço despendido ao longo de dois anos para reverter a crença de que as elites são impunes e os políticos podem tudo. Foi excessivo o calibre do petardo utilizado para expressar o seu desapontamento.
Situações-limite começam distendidas, terminam retesadas. A progressão torna-se perigosa quando se esquecem os fundamentos democráticos da Premissa Mujica. O paroxismo conduz inevitavelmente às rupturas. E isso fica nítido quando se examinam os antecedentes e desdobramentos do golpe de 1964 que em breve teremos a obrigação de relembrar.
A absolvição dos condenados do mensalão no item “formação de quadrilha” não os isentará dos demais ilícitos, nem a condição de coautores ou cúmplices diminui a gravidade dos atos praticados pelo “esquema” nas altas esferas da administração pública. As sucessivas revelações da polícia italiana sobre a privilegiada situação do foragido Henrique Pizzolato têm potencial para atingir todos os coautores e cúmplices do processo.
A violência que impregna o atual debate sobre a violência desvenda os riscos que corremos quando a radicalização substitui a racionalidade. A irresponsável exploração da insatisfação popular para abalar um compromisso internacional como a Copa do Mundo e assumido por um governo eleito democraticamente demonstra a atualidade e a relevância da Premissa Mujica. “Tio Pepe” pagou caro pelos arroubos daqueles que não levaram a sério a tolerância com as divergências e a substituíram pela impaciência.
Anomia e mudança - MIGUEL REALE JÚNIOR
O Estado de S.Paulo - 01/03
Atos contra o regime militar, 30 anos atrás, não se assemelham às manifestações populares de hoje. Antes havia um objetivo central compartilhado por todos os participantes.
Fui secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo no segundo semestre de 1983 até março de 1984, do governo paulista de oposição ao do presidente Figueiredo. Vivia-se momento de carestia, com o arrocho decretado por Delfim Netto. Havia, também, ansiedade por vida democrática centrando-se as expectativas na aprovação de emenda constitucional que instituía eleições diretas para presidente. Era preciso fazer a ponte entre a liberdade de expressão e a ordem pública em plena ditadura.
A existência de ação organizada de reivindicação possibilitava a realização de acordo sobre o modo de fazer protesto e a tomada de medidas de prevenção a distúrbios. No governo Montoro foi dado início à prática de entendimento entre polícia e organizadores de atos reivindicatórios. Tal se deu em portas de fábricas com grevistas fazendo meetings e em manifestações de maior envergadura. Lembro três episódios: a Tarde da Oração organizada pela Cúria, a concentração promovida pelos metalúrgicos, ambas contra o arrocho salarial, e o comício pelas Diretas-Já, todos realizados na Praça da Sé. Não ocorreu nenhum incidente nesses três atos.
A polícia deve ter como função assegurar a realização da manifestação pública e, ao mesmo tempo, a manutenção da ordem, prevenindo atos de vandalismo. Esta é uma tarefa árdua, a ser alcançada por meio de planejamento, em conjunto com os líderes dos atos, de forma a garantir liberdade de expressão sem grave conturbação da vida dos demais cidadãos, com preservação do patrimônio público e privado.
Diferentemente do que ocorria há 30 anos, nos acontecimentos de junho e, especialmente, nos mais recentes é difícil identificar lideranças, os acordos não são mantidos, com desrespeito ao trajeto combinado, e por vezes não há o menor interesse na interlocução com a polícia, até porque se busca a depredação e a pichação de próprios públicos e privados, bem como ataques a policiais, que, por sua vez, agem sem orientação, com excesso, tratando todos como vândalos.
As manifestações de junho já davam sinal de anomia, pois as razões de ir à rua protestar eram as mais desconexas: contra o aumento da passagem, contra a Copa, contra a falta de moradia, contra a inflação, pela reforma política. Percebia-se um clima de insatisfação com a situação moral e econômica do País que facilitava a convocação pelas redes sociais, reunindo descontentes sem propósitos idênticos, apenas próximos no inconformismo.
Mais grave, todavia, é a situação atual. Preocupante a invasão do Centro de Treinamento do Corinthians, quando torcedores revoltados com os resultados negativos pretendiam bater em jogadores, que, assustados, se refugiaram nos vestiários, tendo havido furtos e depredação. Cerca de um ônibus por dia é queimado em São Paulo por questões alheias ao transporte urbano, como no caso da moça ferida por tiro perdido, que levou pessoas indignadas a despejar a frustração pondo fogo no coletivo. Jovens delinquentes são amarrados a postes com se fossem pelourinhos. Pessoas são executadas em plena rua por justiceiro. Jovens fazem rolezinho em shoppings, descendo por escada rolante que sobe.
Há agudo estado de anomia, estudado por Durkheim e Merton, que surge quando os controles sociais informais (como família, escola, sindicato, igreja) perdem força, e instala-se também a desconfiança na autoridade, firmando-se a convicção de o governante visar apenas seu próprio proveito.
De um lado, não mais se compartilham valores e, de outro, há desrespeito à autoridade constituída e à lei. Buscam-se soluções com as próprias mãos, já que não há quem resolva problemas nem quem dite normas de comportamento a serem consentidamente cumpridas.
O quadro de injustiça social, mormente nas grandes cidades, avulta. Falaciosa a crença de que tenha havido ascensão significativa de parte das classes C e D. Houve, sim, esperança de fruição de bens pela concessão de crédito e graças ao aumento salarial, alimentando desejos já exasperados pela propaganda, mas surgiu a impossibilidade de atendimento contínuo dessa expectativa por causa da inflação e do endividamento, do ritmo lendo da economia, somando-se o não atendimento de serviços básicos, como transporte de qualidade. Prometeu-se democracia com correção visando ao bem comum e surgiram o mensalão e outras denúncias de corrupção e peculato. Ocorre, então, o divórcio entre as aspirações prevalecentes no meio social e os caminhos "socialmente estruturados para se atingir estas aspirações", como diz Merton, gerando, consequentemente, frustração.
O anseio por mudanças é evidente. Resta saber qual o caminho a ser seguido na sua implementação, isto é, o procedimento a ser seguido para efetivá-las. Podem ser visualizadas várias modificações, a começar pela forma de fazer política, sem o aparelhamento do Estado, como hoje, com ocupação de cargos por apaniguados, mesmo em posições técnicas. A atuação governamental deve seguir um projeto de País, não de poder, com os atores honestamente envolvidos num plano de ação. Um efetivo federalismo exigirá cooperação, independente de partidos, entre União, Estados e municípios para garantia de eficácia de programas em áreas sensíveis. Como comunicar essa seriedade de propósitos?
Primeiramente, é necessário revelar autoridade moral que assegure confiança, o único remédio contra a anomia. Eis o desafio dos candidatos à Presidência. O candidato que souber inspirar credibilidade, representar essa mudança de atitude e empalmar propósitos de dedicação ao bem comum, significando o novo, poderá ganhar a eleição e dar estabilidade à democracia brasileira.
Atos contra o regime militar, 30 anos atrás, não se assemelham às manifestações populares de hoje. Antes havia um objetivo central compartilhado por todos os participantes.
Fui secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo no segundo semestre de 1983 até março de 1984, do governo paulista de oposição ao do presidente Figueiredo. Vivia-se momento de carestia, com o arrocho decretado por Delfim Netto. Havia, também, ansiedade por vida democrática centrando-se as expectativas na aprovação de emenda constitucional que instituía eleições diretas para presidente. Era preciso fazer a ponte entre a liberdade de expressão e a ordem pública em plena ditadura.
A existência de ação organizada de reivindicação possibilitava a realização de acordo sobre o modo de fazer protesto e a tomada de medidas de prevenção a distúrbios. No governo Montoro foi dado início à prática de entendimento entre polícia e organizadores de atos reivindicatórios. Tal se deu em portas de fábricas com grevistas fazendo meetings e em manifestações de maior envergadura. Lembro três episódios: a Tarde da Oração organizada pela Cúria, a concentração promovida pelos metalúrgicos, ambas contra o arrocho salarial, e o comício pelas Diretas-Já, todos realizados na Praça da Sé. Não ocorreu nenhum incidente nesses três atos.
A polícia deve ter como função assegurar a realização da manifestação pública e, ao mesmo tempo, a manutenção da ordem, prevenindo atos de vandalismo. Esta é uma tarefa árdua, a ser alcançada por meio de planejamento, em conjunto com os líderes dos atos, de forma a garantir liberdade de expressão sem grave conturbação da vida dos demais cidadãos, com preservação do patrimônio público e privado.
Diferentemente do que ocorria há 30 anos, nos acontecimentos de junho e, especialmente, nos mais recentes é difícil identificar lideranças, os acordos não são mantidos, com desrespeito ao trajeto combinado, e por vezes não há o menor interesse na interlocução com a polícia, até porque se busca a depredação e a pichação de próprios públicos e privados, bem como ataques a policiais, que, por sua vez, agem sem orientação, com excesso, tratando todos como vândalos.
As manifestações de junho já davam sinal de anomia, pois as razões de ir à rua protestar eram as mais desconexas: contra o aumento da passagem, contra a Copa, contra a falta de moradia, contra a inflação, pela reforma política. Percebia-se um clima de insatisfação com a situação moral e econômica do País que facilitava a convocação pelas redes sociais, reunindo descontentes sem propósitos idênticos, apenas próximos no inconformismo.
Mais grave, todavia, é a situação atual. Preocupante a invasão do Centro de Treinamento do Corinthians, quando torcedores revoltados com os resultados negativos pretendiam bater em jogadores, que, assustados, se refugiaram nos vestiários, tendo havido furtos e depredação. Cerca de um ônibus por dia é queimado em São Paulo por questões alheias ao transporte urbano, como no caso da moça ferida por tiro perdido, que levou pessoas indignadas a despejar a frustração pondo fogo no coletivo. Jovens delinquentes são amarrados a postes com se fossem pelourinhos. Pessoas são executadas em plena rua por justiceiro. Jovens fazem rolezinho em shoppings, descendo por escada rolante que sobe.
Há agudo estado de anomia, estudado por Durkheim e Merton, que surge quando os controles sociais informais (como família, escola, sindicato, igreja) perdem força, e instala-se também a desconfiança na autoridade, firmando-se a convicção de o governante visar apenas seu próprio proveito.
De um lado, não mais se compartilham valores e, de outro, há desrespeito à autoridade constituída e à lei. Buscam-se soluções com as próprias mãos, já que não há quem resolva problemas nem quem dite normas de comportamento a serem consentidamente cumpridas.
O quadro de injustiça social, mormente nas grandes cidades, avulta. Falaciosa a crença de que tenha havido ascensão significativa de parte das classes C e D. Houve, sim, esperança de fruição de bens pela concessão de crédito e graças ao aumento salarial, alimentando desejos já exasperados pela propaganda, mas surgiu a impossibilidade de atendimento contínuo dessa expectativa por causa da inflação e do endividamento, do ritmo lendo da economia, somando-se o não atendimento de serviços básicos, como transporte de qualidade. Prometeu-se democracia com correção visando ao bem comum e surgiram o mensalão e outras denúncias de corrupção e peculato. Ocorre, então, o divórcio entre as aspirações prevalecentes no meio social e os caminhos "socialmente estruturados para se atingir estas aspirações", como diz Merton, gerando, consequentemente, frustração.
O anseio por mudanças é evidente. Resta saber qual o caminho a ser seguido na sua implementação, isto é, o procedimento a ser seguido para efetivá-las. Podem ser visualizadas várias modificações, a começar pela forma de fazer política, sem o aparelhamento do Estado, como hoje, com ocupação de cargos por apaniguados, mesmo em posições técnicas. A atuação governamental deve seguir um projeto de País, não de poder, com os atores honestamente envolvidos num plano de ação. Um efetivo federalismo exigirá cooperação, independente de partidos, entre União, Estados e municípios para garantia de eficácia de programas em áreas sensíveis. Como comunicar essa seriedade de propósitos?
Primeiramente, é necessário revelar autoridade moral que assegure confiança, o único remédio contra a anomia. Eis o desafio dos candidatos à Presidência. O candidato que souber inspirar credibilidade, representar essa mudança de atitude e empalmar propósitos de dedicação ao bem comum, significando o novo, poderá ganhar a eleição e dar estabilidade à democracia brasileira.
O PIB da anemia - EDITORIAL O ESTADÃO
O ESTADO DE S. PAULO - 01/03
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, revelou-se um economista com olhar de águia, ao encontrar motivos de otimismo nos minúsculos e pífios números do desempenho econômico em 2013. O crescimento de 2,3% foi muito menor que o da maioria dos países em desenvolvimento e confirmou, para as pessoas de visão comum, o mau estado da economia brasileira. Mas, segundo o ministro, foi uma expansão "de qualidade", por ter sido puxada pelo investimento. Ele também ressaltou - e nisso foi acompanhado por vários analistas de visão igualmente aguda - a "boa surpresa" do último trimestre, quando o Produto Interno Bruto (PIB) foi 0,7% maior que nos três meses anteriores. Esse ritmo, lembrou Mantega, equivale a 2,8% em termos anualizados. Uma pessoa de olhar menos sensível perguntará: e daí? É esse um ritmo satisfatório, quando se consideram o tamanho e as possibilidades do País?
Também no mercado financeiro houve comentários sobre o trimestre final de 2013 e sobre como o desempenho nesse período poderá afetar a economia em 2014. Notável perda de tempo. Em primeiro lugar, o crescimento de 2,3% havia sido projetado pelo Banco Central (BC) e também por economistas do mercado no fim do ano. Esse número aparece no boletim Focus de 27 de dezembro. É meio estranho, portanto, o falatório sobre "surpresa". Mas o mais importante para a avaliação do quadro e das perspectivas é verificar o estado de saúde do sistema produtivo.
Para começar, o investimento mencionado pelo ministro da Fazenda continua ridículo, pelos padrões mais comuns de visão e de julgamento. O investimento em capital fixo -máquinas, equipamentos, instalações empresariais e infraestrutura -foi 6,3% maior que o do ano anterior. De fato, isso puxou o resultado geral. Mas esse investimento havia diminuído 4% em 2012 e, portanto, houve pouco mais que a compensação de uma queda. Além disso, o valor investido passou de 18,1% do PIB para pífios 18,4%.
A proporção mais alta dos últimos 14 anos (19,5%) foi alcançada em 2010 e nunca se repetiu. O Brasil investe menos que vários de seus vizinhos e muito menos que os países emergentes da Ásia. Segundo o ministro da Fazenda, a taxa de 24% será alcançada até 2020. Outros sul-americanos já alcançaram e até ultrapassaram esse nível.
A mísera expansão do investimento só foi possível com a captação de recursos externos, porque a poupança interna, já muito baixa, diminuiu de 14,6% para 13,9% do PIB. Isso é um reflexo da expansão do consumo tanto privado quanto do governo. O setor público, apesar de todo o palavrório sobre o Programa de Aceleração do Crescimento, o fracassado PAC, continua investindo pouco e desperdiçando muito dinheiro com um custeio muito mal administrado.
É igualmente estranho falar sobre crescimento "de qualidade" quando se examina o tenebroso desempenho da indústria. O produto industrial, incluídos todos os segmentos, cresceu apenas 1,3%, pouco mais que o suficiente para repor a perda de 0,8% no ano anterior. Há, no entanto, detalhes mais feios que o panorama geral.
A indústria de transformação produziu 1,9% mais que no ano anterior. Mas a produção em 2012 havia sido 2,4% menor que em 2011. A expansão em 2013 foi insuficiente, portanto, para o mero retorno ao nível de dois anos antes. Só a percepção de detalhes muito especiais e invisíveis para a maioria das pessoas deve permitir ao ministro, portanto, a fala otimista sobre a qualidade da expansão em 2013.
Para o julgamento comum, os números do ano passado confirmam o fracasso econômico da política baseada no estímulo ao consumo e nas desonerações fiscais concedidas a setores selecionados. O consumo das famílias aumentou 2,3% no ano passado. Foi o décimo crescimento anual consecutivo. Mas a oferta industrial continuou emperrada e insuficiente.
Muitos economistas têm projetado para 2014 um crescimento inferior ao de 2013. Poderão até elevar suas projeções, mas a mudança será irrelevante. Apesar de algumas concessões em infraestrutura, há poucos sinais - exceto, talvez, para olhos de águia - de melhora no potencial da economia.
Também no mercado financeiro houve comentários sobre o trimestre final de 2013 e sobre como o desempenho nesse período poderá afetar a economia em 2014. Notável perda de tempo. Em primeiro lugar, o crescimento de 2,3% havia sido projetado pelo Banco Central (BC) e também por economistas do mercado no fim do ano. Esse número aparece no boletim Focus de 27 de dezembro. É meio estranho, portanto, o falatório sobre "surpresa". Mas o mais importante para a avaliação do quadro e das perspectivas é verificar o estado de saúde do sistema produtivo.
Para começar, o investimento mencionado pelo ministro da Fazenda continua ridículo, pelos padrões mais comuns de visão e de julgamento. O investimento em capital fixo -máquinas, equipamentos, instalações empresariais e infraestrutura -foi 6,3% maior que o do ano anterior. De fato, isso puxou o resultado geral. Mas esse investimento havia diminuído 4% em 2012 e, portanto, houve pouco mais que a compensação de uma queda. Além disso, o valor investido passou de 18,1% do PIB para pífios 18,4%.
A proporção mais alta dos últimos 14 anos (19,5%) foi alcançada em 2010 e nunca se repetiu. O Brasil investe menos que vários de seus vizinhos e muito menos que os países emergentes da Ásia. Segundo o ministro da Fazenda, a taxa de 24% será alcançada até 2020. Outros sul-americanos já alcançaram e até ultrapassaram esse nível.
A mísera expansão do investimento só foi possível com a captação de recursos externos, porque a poupança interna, já muito baixa, diminuiu de 14,6% para 13,9% do PIB. Isso é um reflexo da expansão do consumo tanto privado quanto do governo. O setor público, apesar de todo o palavrório sobre o Programa de Aceleração do Crescimento, o fracassado PAC, continua investindo pouco e desperdiçando muito dinheiro com um custeio muito mal administrado.
É igualmente estranho falar sobre crescimento "de qualidade" quando se examina o tenebroso desempenho da indústria. O produto industrial, incluídos todos os segmentos, cresceu apenas 1,3%, pouco mais que o suficiente para repor a perda de 0,8% no ano anterior. Há, no entanto, detalhes mais feios que o panorama geral.
A indústria de transformação produziu 1,9% mais que no ano anterior. Mas a produção em 2012 havia sido 2,4% menor que em 2011. A expansão em 2013 foi insuficiente, portanto, para o mero retorno ao nível de dois anos antes. Só a percepção de detalhes muito especiais e invisíveis para a maioria das pessoas deve permitir ao ministro, portanto, a fala otimista sobre a qualidade da expansão em 2013.
Para o julgamento comum, os números do ano passado confirmam o fracasso econômico da política baseada no estímulo ao consumo e nas desonerações fiscais concedidas a setores selecionados. O consumo das famílias aumentou 2,3% no ano passado. Foi o décimo crescimento anual consecutivo. Mas a oferta industrial continuou emperrada e insuficiente.
Muitos economistas têm projetado para 2014 um crescimento inferior ao de 2013. Poderão até elevar suas projeções, mas a mudança será irrelevante. Apesar de algumas concessões em infraestrutura, há poucos sinais - exceto, talvez, para olhos de águia - de melhora no potencial da economia.
Comunidade esportiva pelos direitos humanos - EDITORIAL CORREIO BRAZILIENSE
CORREIO BRAZILIENSE - 01/03
Ante dramas que afetam o mundo, apela-se, com frequência, à comunidade internacional. É o caso, no momento, da crise da Ucrânia e da guerra civil na Síria. A abrangência do termo, porém, impede cobrança de resposta efetiva deste ou daquele ente que se abriga sob o generoso guarda-chuva. Quando todos estão convocados, nenhum se sente singularmente comprometido.
A observação vem a propósito de decisão tomada pela governadora do Arizona, nos Estados Unidos. Jan Brewer vetou Projeto de Lei constrangedoramente discriminatório. Aprovada pelo Legislativo estadual, de maioria republicana (mesmo partido de Brewer), a medida autorizava donos de estabelecimentos comerciais a negar atendimento a gays e lésbicas. Na prática, criava cidadãos de duas categorias - de primeira e segunda classe.
Erra quem supuser que a iniciativa se deveu ao espírito democrático da governadora. Longe disso. Ela barrou o passo antigay depois que as principais ligas esportivas profissionais do país (futebol e basquete) tomaram posição contrária à controversa proposição. Elas ameaçaram o bolso - a parte mais sensível do corpo e também do estado: cortariam milhões de dólares que engordam a economia local.
O recado, embora velado, acendeu o alerta vermelho. A Liga Nacional de Futebol Americano (NFL), que programou o Superbowl de fevereiro de 2015 para o Arizona, reveria a decisão. Não há necessidade de muito esforço nem de exercícios matemáticos sofisticados para calcular o prejuízo se a intimidação fosse concretizada. Estima-se que o Superbowl de 2014 rendeu entre US$ 550 milhões e US$ 600 milhões em impactos econômicos para a região de Nova York.
É alentador tomar conhecimento do desenlace do projeto que igualava o estado americano a Uganda. O país africano ampliou a abrangência da lei de 2009 que criminaliza a homossexualidade. A partir de agora, a punição inclui prisão perpétua. Kampala não está só. No continente negro, nada menos de 36 Estados consideram ilegais as relações entre pessoas do mesmo sexo. Em alguns, condenam-se gays e lésbicas à pena de morte.
Arizona e Uganda ganharam espaço no noticiário internacional em momento simbólico para o esporte. No ano passado, pela primeira vez no meio esportivo estadunidense, o jogador de basquete Jason Collins declarou publicamente ser homossexual. Há oito dias, entrou na quadra como o primeiro gay assumido a disputar partida da liga profissional. Recebeu aplausos.
Segmentos conservadores existem em todas as sociedades. Nada mais natural. O inaceitável é a presunção de superioridade de uns em relação a outros. É inaceitável também, em pleno século 21, que o Estado crie leis que reforçam a discriminação. O caminho aponta para a direção contrária.
A observação vem a propósito de decisão tomada pela governadora do Arizona, nos Estados Unidos. Jan Brewer vetou Projeto de Lei constrangedoramente discriminatório. Aprovada pelo Legislativo estadual, de maioria republicana (mesmo partido de Brewer), a medida autorizava donos de estabelecimentos comerciais a negar atendimento a gays e lésbicas. Na prática, criava cidadãos de duas categorias - de primeira e segunda classe.
Erra quem supuser que a iniciativa se deveu ao espírito democrático da governadora. Longe disso. Ela barrou o passo antigay depois que as principais ligas esportivas profissionais do país (futebol e basquete) tomaram posição contrária à controversa proposição. Elas ameaçaram o bolso - a parte mais sensível do corpo e também do estado: cortariam milhões de dólares que engordam a economia local.
O recado, embora velado, acendeu o alerta vermelho. A Liga Nacional de Futebol Americano (NFL), que programou o Superbowl de fevereiro de 2015 para o Arizona, reveria a decisão. Não há necessidade de muito esforço nem de exercícios matemáticos sofisticados para calcular o prejuízo se a intimidação fosse concretizada. Estima-se que o Superbowl de 2014 rendeu entre US$ 550 milhões e US$ 600 milhões em impactos econômicos para a região de Nova York.
É alentador tomar conhecimento do desenlace do projeto que igualava o estado americano a Uganda. O país africano ampliou a abrangência da lei de 2009 que criminaliza a homossexualidade. A partir de agora, a punição inclui prisão perpétua. Kampala não está só. No continente negro, nada menos de 36 Estados consideram ilegais as relações entre pessoas do mesmo sexo. Em alguns, condenam-se gays e lésbicas à pena de morte.
Arizona e Uganda ganharam espaço no noticiário internacional em momento simbólico para o esporte. No ano passado, pela primeira vez no meio esportivo estadunidense, o jogador de basquete Jason Collins declarou publicamente ser homossexual. Há oito dias, entrou na quadra como o primeiro gay assumido a disputar partida da liga profissional. Recebeu aplausos.
Segmentos conservadores existem em todas as sociedades. Nada mais natural. O inaceitável é a presunção de superioridade de uns em relação a outros. É inaceitável também, em pleno século 21, que o Estado crie leis que reforçam a discriminação. O caminho aponta para a direção contrária.
Economia brasileira cresce com dificuldade - EDITORIAL O GLOBO
O GLOBO - 01/03
O PIB de 2013 surpreendeu positivamente no último trimestre, mas investimentos perderam força e mesmo desempenho poderá não se repetir em 2014
O desempenho da economia brasileira no último trimestre de 2013 acabou surpreendendo positivamente, pois o IBGE registrou um crescimento de 0,7%, enquanto muitas estimativas apontavam até mesmo para um recuo, o que poderia caracterizar recessão (retração da produção por dois trimestres consecutivos). O desempenho do último trimestre fez com que o Produto Interno Bruto (PIB) do ano passado se expandisse em 2,3%, segundo este levantamento preliminar. Os destaques foram a agropecuário e os serviços, pois a indústria evoluiu apenas 1,3% no ano.
O IBGE assinalou que essa expansão do PIB foi o terceiro maior crescimento entre as principais economias do mundo (atrás de China e Coreia do Sul), fazendo com que o PIB do Brasil se mantivesse na sétima colocação, superado por cinco países desenvolvidos (Estados Unidos, Japão, Alemanha, França e Reino Unido) e pela emergente China, hoje a número dois do planeta.
Diante do ambiente pessimista que se formou em torno da conjuntura econômica brasileira, o PIB de 2013 de fato trouxe uma sensação de alívio, pois o país deu mostras que, apesar dos problemas, tem algum fôlego para crescer. Entretanto, os números do PIB não removeram os sinais de alerta que tanto preocupam os que acompanham mais de perto a trajetória da economia brasileira. Os investimentos reagiram em 2013, mas não sustentaram o mesmo ritmo no último trimestre. Além disso, a recuperação foi pontual, pelo incremento na produção de caminhões com motores mais modernos, adaptados ao consumo de óleo diesel menos poluente, e também na de tratores e implementos agrícolas. Ambos os casos impulsionados por uma safra recorde. Não foram máquinas para fábricas que puxaram a expansão.
Embora esteja prevista mais uma boa safra, talvez esse desempenho não se repita em 2014. É possível também que os investimentos atrelados aos novos contratos de concessão nas áreas de transporte e petróleo somente se reflitam mais para o fim do ano. Como o consumo das famílias está desacelerando, em parte por efeito da elevação das taxas básicas de juros, a economia praticamente só contaria com a alavanca das exportações, cujo desempenho no início de 2014 não foi dos melhores.
Desse modo, a sensação de alívio trazida pelos resultados do PIB em 2013 não permite que o governo afrouxe as rédeas. O Brasil continua dependendo de uma melhora nos fundamentos macroeconômicos, decorrentes de uma política fiscal mais responsável, que contribua para queda da inflação e da necessidade de financiamentos externos.
2014 será o ano que o Brasil precisará provar que não merece ser considerado um dos “frágeis” no mundo. O PIB de 2013 ajudará a mudar a sensação de que o país está condenado ao baixo crescimento. Mas isso só não basta para que se chegue a um bom resultado este ano.
O PIB de 2013 surpreendeu positivamente no último trimestre, mas investimentos perderam força e mesmo desempenho poderá não se repetir em 2014
O desempenho da economia brasileira no último trimestre de 2013 acabou surpreendendo positivamente, pois o IBGE registrou um crescimento de 0,7%, enquanto muitas estimativas apontavam até mesmo para um recuo, o que poderia caracterizar recessão (retração da produção por dois trimestres consecutivos). O desempenho do último trimestre fez com que o Produto Interno Bruto (PIB) do ano passado se expandisse em 2,3%, segundo este levantamento preliminar. Os destaques foram a agropecuário e os serviços, pois a indústria evoluiu apenas 1,3% no ano.
O IBGE assinalou que essa expansão do PIB foi o terceiro maior crescimento entre as principais economias do mundo (atrás de China e Coreia do Sul), fazendo com que o PIB do Brasil se mantivesse na sétima colocação, superado por cinco países desenvolvidos (Estados Unidos, Japão, Alemanha, França e Reino Unido) e pela emergente China, hoje a número dois do planeta.
Diante do ambiente pessimista que se formou em torno da conjuntura econômica brasileira, o PIB de 2013 de fato trouxe uma sensação de alívio, pois o país deu mostras que, apesar dos problemas, tem algum fôlego para crescer. Entretanto, os números do PIB não removeram os sinais de alerta que tanto preocupam os que acompanham mais de perto a trajetória da economia brasileira. Os investimentos reagiram em 2013, mas não sustentaram o mesmo ritmo no último trimestre. Além disso, a recuperação foi pontual, pelo incremento na produção de caminhões com motores mais modernos, adaptados ao consumo de óleo diesel menos poluente, e também na de tratores e implementos agrícolas. Ambos os casos impulsionados por uma safra recorde. Não foram máquinas para fábricas que puxaram a expansão.
Embora esteja prevista mais uma boa safra, talvez esse desempenho não se repita em 2014. É possível também que os investimentos atrelados aos novos contratos de concessão nas áreas de transporte e petróleo somente se reflitam mais para o fim do ano. Como o consumo das famílias está desacelerando, em parte por efeito da elevação das taxas básicas de juros, a economia praticamente só contaria com a alavanca das exportações, cujo desempenho no início de 2014 não foi dos melhores.
Desse modo, a sensação de alívio trazida pelos resultados do PIB em 2013 não permite que o governo afrouxe as rédeas. O Brasil continua dependendo de uma melhora nos fundamentos macroeconômicos, decorrentes de uma política fiscal mais responsável, que contribua para queda da inflação e da necessidade de financiamentos externos.
2014 será o ano que o Brasil precisará provar que não merece ser considerado um dos “frágeis” no mundo. O PIB de 2013 ajudará a mudar a sensação de que o país está condenado ao baixo crescimento. Mas isso só não basta para que se chegue a um bom resultado este ano.
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