O Estado de S.Paulo - 01/03
O tema sempre volta no carnaval, mas este ano ele se antecipou na esteira de uma brutalidade sofrida no último fim de semana. O professor de educação física Lucas Lopes Xavier, de 27 anos, pagou pela própria indignação ao se dirigir a dois rapazes que, não contendo a micção depois de longa bebedeira, urinavam do lado de fora dos toaletes de um shopping center em Brasília. Mas os moços se sentiram incomodados com a bronca de Lucas. Resultado: convocaram outros grandalhões e juntos deram uma coça no reclamante. Mais uma cena da cordialidade brasileira. A cultura do "pau nele".
Os agressores terão que responder pelos três coágulos no cérebro e a mandíbula quebrada de Lucas - escrevo de olho no boletim médico da UTI do Hospital Santa Helena, na capital federal, segundo o qual o quadro continua grave. Como podem também ser enquadrados no artigo 233 do Código Penal. Diz a lei: "Praticar ato obsceno em lugar público, aberto ou exposto ao público. Pena: Detenção de três meses a um ano. Ou multa". Ou seja, além da violência, tem-se aqui um crime bastante comum no Brasil: urinar em local público, classificado no rol dos atos obscenos, o que gera certa polêmica. Afinal, seria a micção um ato natural ou um atentado ao pudor e à ordem pública?
Discussões contornam a dúvida sobre o "caráter lascivo ou não da exibição do órgão sexual masculino aos olhos da coletividade". Outra polêmica é se existe ato obsceno à falta de dolo. E assim, de tese em tese, o palavreado jurídico vai agregando todo um floreado a uma situação que é velha conhecida nossa: urina-se muito nas ruas, nas avenidas, nas ladeiras, nas praças, nos parques e nos becos das cidades brasileiras. Ou, como diz um amigo arquiteto, lembrando-se de quando escalava aos saltos a escadaria do Viaduto de Santa Ifigênia, em São Paulo, para se esquivar do mau cheiro: "O xixi urbano sempre foi um problema e sempre foi fedido".
Em termos históricos, o xixi urbano já se fazia notar no período colonial. Debret, no Rio de Janeiro do começo do século 19, produziu uma famosa gravura onde se vê o oficial da Corte derramando suas necessidades no Paço, observado por um escravo. Normal num tempo em que urinóis eram despejados fora das casas, nas ruas. Também se tem razoável literatura sobre o Entrudo, folguedo carnavalesco importado de Portugal, no qual o desafio inicialmente era jogar água de cheiro, depois frutas podres e, por fim, urina e fezes nos foliões. Como se pode notar, os brasileiros se esmeram na arte de passar do ponto. Coisa nossa.
Com o crescimento das cidades, o xixi urbano foi ganhando adeptos. E virou um fenômeno caudaloso, que hoje demanda políticas públicas. Policiais têm flagrado os desaguadores em várias partes. No Rio, instituiu-se a multa. Em Salvador, a prefeitura precisou investir em obras num viaduto cujas bases estavam minadas pelo acúmulo excretado. E os xixódromos, eleitos por transeuntes supostamente em situação de aperto, proliferam no País.
Há dois mitos nessa história. Primeiro: só homens fazem em público. Segundo: este é um problema brasileiro, nascido numa terra onde índios, negros e brancos uma dia se aliviaram sob o mesmo chafariz. Pois, ao que se sabe, mulheres liberam também, não são só as velhinhas ou as grávidas. E hoje a geografia do xixi urbano extrapola fronteiras nacionais. É fenômeno global que mereceria ser estudado até do ponto de vista antropológico. Afinal, haveria uma compulsão territorial demarcatória a aproximar indivíduos de diferentes culturas e latitudes?
Na bela Paris, a polícia está autorizada a multar e até recolher o infrator em sua incontinência. No Reino Unido, o problema existe e vem desafiando legisladores. Há um divertido pôster inglês em que se vê um grupo de homens tomando cerveja na calçada de um pub, tendo ao lado da mesa uma privada, aquela bem básica, linha branca. Acompanha a imagem os seguintes dizeres: A toilet. Don't leave home without one. Ou seja, não saia de casa sem o troninho. A cultura cervejeira, tão germânica, deixou recordações olfativas e estomacais nos torcedores que foram à Copa da Alemanha, em 2006. Lembro de um colega meu, aqui do jornal, que voltou da cobertura estarrecido com o odor encontrado nas cidades-sede dos jogos.
Pois passaremos não só pelo carnaval, mas pela Copa, dois momentos de êxtase fisiológico, digamos assim. Sabemos que a falta de atendimento sanitário tornou-se um clássico no país. Banheiros públicos estão sumindo do mapa. Já os químicos, armados para atender grandes concentrações, ou são insuficientes ou tão emporcalhados que muita gente se arrisca a céu aberto. E sempre tem aquele tipo bronco, o chamado "sem noção", que faz onde quer que seja, diante de quem for, na hora que lhe convier. Diante desse quadro, chegou a hora de oferecer à população equipamento sanitário decente, campanhas de esclarecimento de bom nível e a possibilidade de um amplo debate sobre o tema na rede escolar, com finalidade educativa que vá além da Copa. E assim quem sabe, graças ao xixi, aprenderemos a viver a cidade como um território de mediações e consenso, e não de exclusão ou transbordamento.
Tempos atrás os jornais noticiaram o flagrante de um universitário carioca, que mandou ver na muvuca de um bloco carnavalesco de Ipanema. O jovem contratou bons advogados, que o defenderam com o argumento de que o cliente liberou, sim, mas havia se esquivado do olhar público. Tanto que, escondido, acabou regando o pé de um arbusto. Processo arquivado. Já um vendedor detido na Lapa, ao ouvir do delegado que é crime urinar na rua, defendeu-se simplesmente com o óbvio: "Xii, doutor, então vai faltar cadeia".
Nenhum comentário:
Postar um comentário