O Estado de S.Paulo - 01/03
Atos contra o regime militar, 30 anos atrás, não se assemelham às manifestações populares de hoje. Antes havia um objetivo central compartilhado por todos os participantes.
Fui secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo no segundo semestre de 1983 até março de 1984, do governo paulista de oposição ao do presidente Figueiredo. Vivia-se momento de carestia, com o arrocho decretado por Delfim Netto. Havia, também, ansiedade por vida democrática centrando-se as expectativas na aprovação de emenda constitucional que instituía eleições diretas para presidente. Era preciso fazer a ponte entre a liberdade de expressão e a ordem pública em plena ditadura.
A existência de ação organizada de reivindicação possibilitava a realização de acordo sobre o modo de fazer protesto e a tomada de medidas de prevenção a distúrbios. No governo Montoro foi dado início à prática de entendimento entre polícia e organizadores de atos reivindicatórios. Tal se deu em portas de fábricas com grevistas fazendo meetings e em manifestações de maior envergadura. Lembro três episódios: a Tarde da Oração organizada pela Cúria, a concentração promovida pelos metalúrgicos, ambas contra o arrocho salarial, e o comício pelas Diretas-Já, todos realizados na Praça da Sé. Não ocorreu nenhum incidente nesses três atos.
A polícia deve ter como função assegurar a realização da manifestação pública e, ao mesmo tempo, a manutenção da ordem, prevenindo atos de vandalismo. Esta é uma tarefa árdua, a ser alcançada por meio de planejamento, em conjunto com os líderes dos atos, de forma a garantir liberdade de expressão sem grave conturbação da vida dos demais cidadãos, com preservação do patrimônio público e privado.
Diferentemente do que ocorria há 30 anos, nos acontecimentos de junho e, especialmente, nos mais recentes é difícil identificar lideranças, os acordos não são mantidos, com desrespeito ao trajeto combinado, e por vezes não há o menor interesse na interlocução com a polícia, até porque se busca a depredação e a pichação de próprios públicos e privados, bem como ataques a policiais, que, por sua vez, agem sem orientação, com excesso, tratando todos como vândalos.
As manifestações de junho já davam sinal de anomia, pois as razões de ir à rua protestar eram as mais desconexas: contra o aumento da passagem, contra a Copa, contra a falta de moradia, contra a inflação, pela reforma política. Percebia-se um clima de insatisfação com a situação moral e econômica do País que facilitava a convocação pelas redes sociais, reunindo descontentes sem propósitos idênticos, apenas próximos no inconformismo.
Mais grave, todavia, é a situação atual. Preocupante a invasão do Centro de Treinamento do Corinthians, quando torcedores revoltados com os resultados negativos pretendiam bater em jogadores, que, assustados, se refugiaram nos vestiários, tendo havido furtos e depredação. Cerca de um ônibus por dia é queimado em São Paulo por questões alheias ao transporte urbano, como no caso da moça ferida por tiro perdido, que levou pessoas indignadas a despejar a frustração pondo fogo no coletivo. Jovens delinquentes são amarrados a postes com se fossem pelourinhos. Pessoas são executadas em plena rua por justiceiro. Jovens fazem rolezinho em shoppings, descendo por escada rolante que sobe.
Há agudo estado de anomia, estudado por Durkheim e Merton, que surge quando os controles sociais informais (como família, escola, sindicato, igreja) perdem força, e instala-se também a desconfiança na autoridade, firmando-se a convicção de o governante visar apenas seu próprio proveito.
De um lado, não mais se compartilham valores e, de outro, há desrespeito à autoridade constituída e à lei. Buscam-se soluções com as próprias mãos, já que não há quem resolva problemas nem quem dite normas de comportamento a serem consentidamente cumpridas.
O quadro de injustiça social, mormente nas grandes cidades, avulta. Falaciosa a crença de que tenha havido ascensão significativa de parte das classes C e D. Houve, sim, esperança de fruição de bens pela concessão de crédito e graças ao aumento salarial, alimentando desejos já exasperados pela propaganda, mas surgiu a impossibilidade de atendimento contínuo dessa expectativa por causa da inflação e do endividamento, do ritmo lendo da economia, somando-se o não atendimento de serviços básicos, como transporte de qualidade. Prometeu-se democracia com correção visando ao bem comum e surgiram o mensalão e outras denúncias de corrupção e peculato. Ocorre, então, o divórcio entre as aspirações prevalecentes no meio social e os caminhos "socialmente estruturados para se atingir estas aspirações", como diz Merton, gerando, consequentemente, frustração.
O anseio por mudanças é evidente. Resta saber qual o caminho a ser seguido na sua implementação, isto é, o procedimento a ser seguido para efetivá-las. Podem ser visualizadas várias modificações, a começar pela forma de fazer política, sem o aparelhamento do Estado, como hoje, com ocupação de cargos por apaniguados, mesmo em posições técnicas. A atuação governamental deve seguir um projeto de País, não de poder, com os atores honestamente envolvidos num plano de ação. Um efetivo federalismo exigirá cooperação, independente de partidos, entre União, Estados e municípios para garantia de eficácia de programas em áreas sensíveis. Como comunicar essa seriedade de propósitos?
Primeiramente, é necessário revelar autoridade moral que assegure confiança, o único remédio contra a anomia. Eis o desafio dos candidatos à Presidência. O candidato que souber inspirar credibilidade, representar essa mudança de atitude e empalmar propósitos de dedicação ao bem comum, significando o novo, poderá ganhar a eleição e dar estabilidade à democracia brasileira.
Um comentário:
PARABÉNS! Belo texto Dr. Reale, pena que os políticos de plantão não o entenda. Será que são, como se diz? Analfabetos funcionais ou são "déspotas funcionais"?
BRAZIL, PAÍS RICO...DE DÉSPOTAS!!!
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