domingo, dezembro 29, 2013

Ano de fartura na DisneyLula - GUILHERME FIUZA

REVISTA ÉPOCA

O ano de 2014 é um dos mais previsíveis dos últimos tempos. Dá até para começar a pensar em 2015. Como a opinião pública brasileira está cada vez mais anestesiada, vale lembrar aos distraídos o que, daqui a 12 meses, terá sido 2014.

Ano de eleição presidencial, portanto festa na DisneyLula. Cada rincão onde aterrissar a companheira Dilma será uma apoteose. Prefeitos e aliados por todo o território nacional, devidamente abastecidos com a dinheirama que arrombou os gastos federais em 2013, farão bonito para receber a presidente-candidata, retribuindo-lhe toda a sua bondade.

Dilma será reeleita com tranquilidade. A campanha será para evitar o aborrecimento de um segundo turno e liberar logo em outubro o Romanée-Conti para a companheirada. Quem preferir Dom Pérignon também poderá se servir à vontade. O governo popular é plural e não discrimina as minorias.

A oposição ganhará novamente o prêmio de melhor coadjuvante do petismo.

Os adversários de Dilma tentarão desesperadamente parecer humildes, amigos dos pobres e estatizantes. Tentarão, enfim, com seus modernos marqueteiros, reproduzir a demagogia do PT para ganhar o eleitorado - e darão com os burros nágua mais uma vez, porque o eleitor não é bobo e sabe distinguir um demagogo autêntico de um imitador.

Em 2014, o Brasil sofrerá mais ainda com a pressão inflacionária, fruto da orgia populista. Mas esse e outros problemas reais do país não entrarão no debate eleitoral. O que se discutirá na campanha será o programa Mais Médicos - um truque de marketing fajuto que, sabe-se lá por quê, os brasileiros resolveram achar que é uma genial solução humanitária. A oposição, que só lê pesquisa e não pensa, já viu que a jogada deu certo e aparecerá com alguma versão incrementada da tolice, talvez o programa Muito Mais Médicos (substituindo os doutores cubanos por haitianos).

Como todos sabem (mas já esqueceram), a última coisa séria feita no Brasil foi o Plano Real. De lá para cá, só remendo e esparadrapo. Por isso, um país de 200 milhões de pessoas acredita que precisa de funcionários de Fidel Castro para cuidar da saúde da população carente.

O Mais Médicos ajudará na reeleição de Dilma e, principalmente, na eleição do ministro da Saúde - que está há três anos em campanha - para o governo paulista. Depois de eleger prefeito um ex-Ministro da Educação que não sabia aplicar provas do ENEM, São Paulo não se deu por satisfeito e propiciará ao PT a tríplice coroa. Com o Palácio do Planalto, a prefeitura e o governo de São Paulo nas mãos, o PT mostrará ao país o que é bom para a tosse.

Lula terminará 2014 declarando - com mais ênfase do que nunca - que é preciso "democratizar os meios de comunicação". Com a tríplice coroa no papo, o PT vai com tudo para o controle da mídia - a plataforma chavista em que o governo popular está mais atrasado, já tendo sido ultrapassado de longe pela companheira Cristina K., a viúva-negra.

O mensalão não será o menor problema para o PT no ano eleitoral. Lula até já disse "estamos juntos" ao condenado José Dirceu. Continua aparecendo nas pesquisas como o único capaz de vencer Dilma. Não tem jeito, eles mentem como ninguém, e o povo adora. Possivelmente, o Brasil ainda termine 2014 com pena dos "presos políticos" do valerioduto. Se o mensaleiro João Paulo Cunha se comparou a Nelson Mandela e não caiu no ridículo definitivo, o caminho está livre para o heroísmo parasitário.

Um mês depois da Copa do Mundo -que terá passeatas de manifestantes lunáticos contra tudo, menos contra quem torra seus impostos para se eternizar no poder -, o PT sentirá que a fatura da reeleição de Dilma está liquidada. E partirá para resolver Minas Gerais. Lula e Dilma gastarão todo o querosene necessário sobrevoando a Serra da Mantiqueira e pousando em cada palanque do ministro Fernando Pimentel, o consultor fantasma.

E ainda será o caso de queimar algum querosene no Rio de Janeiro. Num cenário cheio de candidatos mal-assombrados, o aventureiro Lindbergh Farias será o azarão do PT. E, se essa turma da pesada fizer Rio, São Paulo e Minas, além do Planalto, a grande noite dos vampiros estará longe de terminar. Mas não reclame: duas décadas passam voando (de AeroDilma).


Boa entrada - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 29/12

Vou citar dois filmes antigos. Um é o inglês Mero Acaso, de 1999. Primeira cena: um rapaz bate na porta do vizinho, que é psiquiatra, e diz que precisa desabafar. São 6 horas da manhã, o vizinho ainda está de pijama, mas diante do inusitado da situação, convida-o para entrar e o acomoda numa poltrona.

O outro filme é o francês Confidências Muito Íntimas, de 2003. Um mulher está se separando e procura um psiquiatra pela primeira vez. Entra sala adentro e já começa a contar seu drama, sem dar tempo para o homem respirar. Ele fica absolutamente envolvido pela história dela.

Mesmo que você não tenha visto estes filmes, pode imaginar o que eles têm em comum. No filme inglês, o homem se enganou de porta e bateu na casa de um engenheiro, que ouve tudo quieto e só então avisa que o psiquiatra mora no apartamento ao lado.

Mesmíssima coisa no filme francês. A mulher se enganou de porta e invadiu o consultório de um contabilista. Mesmo depois do engano desfeito, os dois seguem se vendo para amenizar a solidão um do outro.

Ambos os filmes demonstram que terapia é, basicamente, uma via de desabafo, de investigação emocional, de elucidação de si mesmo, e tudo isso se dá quando estamos dispostos a falar.

Então qualquer amigo poderia substituir um profissional? Não. Conversar com amigos é ótimo, porém eles estão comprometidos afetivamente conosco. Conhecem a nossa história e já não prestam atenção nos detalhes. E tomam um tempo para falar deles mesmos, o que é natural. Além disso, estes papos são frequentemente interrompidos pela chegada do garçom, por um telefone que toca, por outras distrações. E, pra culminar, você não está pagando. Faz diferença. Você não é o centro das atenções. É um encontro, literalmente, gratuito. E, em terapia, o foco tem que estar todo em você. Vigilância total para você não fugir de si mesmo.

Longe de mim estimular alguém a bater na casa do vizinho para contar seus sonhos e fantasias secretas. Ele mandará você plantar batatas, com razão. O que interessa disso tudo é o crucial: o quanto é importante falar. E ser profundamente escutado. E, mais profundamente ainda, escutar a si mesmo. Não é fácil ouvir nossa própria voz verbalizando aquilo que sentimos de forma tão confusa e irregular. É quando passamos a reconhecer abertamente nossas inquietudes, medos, vergonhas. E a nos comprometer com o que está sendo dito. A verdade ganha legitimação. Deixa de habitar apenas o silêncio, onde tudo fica protegido demais.

Alguns não acreditam em terapia e dizem que não é qualquer um que merece ouvir nossas intimidades. Mas tem que ser qualquer um, no sentido de qualquer desconhecido, qualquer pessoa que não tenha nada contra e nada a favor de você, que não lhe conheça, para poder lhe ouvir sem uma opinião prévia sobre sua história. De preferência qualquer um com um diploma na parede e competência para ajudá-lo a se conhecer pra valer.

Que lhe faça descobrir os efeitos terapêuticos de ouvir a própria voz assumindo questões que até então não eram enfrentadas. Dá para fazer isso sozinho também, mas com um interlocutor é mais fácil. Ou menos difícil. Tente. Nada como bater na própria porta e entrar. Feliz 2014.

Alquimia na quitanda - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 29/12

A realidade é impermeável, enquanto a outra, feita de palavras, amolda-se a nossa insatisfação com o real


Pode ser que, no final das contas, isso que vou dizer aqui não interesse a ninguém, mas é que, numa crônica em que falava das poucas coisas que lembro, esqueci de mencionar uma das que mais me lembro: as bananas que, às vezes, ficavam sem vender e apodreciam na quitanda de meu pai.

Aliás, se bem me lembro, não era na quitanda dele e, sim, na de uma mulata gorda e simpática que, na rua de trás, vendia frutas: bananas, goiabas, tamarindo, atas, bagos de jaca e manga-rosa. Mas o que é verdade ou não, neste caso, pouco importa, porque o que vale é o momento lembrado (ou inventado) em que as bananas apodrecem. E mais que as bananas, o que importava mesmo era seu apodrecer, talvez porque o que conta, de fato, é que ele se torna poesia.

Essas bananas me vieram à lembrança quando escrevi o "Poema Sujo". Jamais havia pensado nelas ao longo daqueles últimos 30 anos. Mas, de repente, ao falar da quitanda de meu pai, me vieram à lembrança as bananas que, certo dia, vi dentro de um cesto, sobre o qual voejavam moscas varejeiras, zunindo.

Haverá coisa mais banal que bananas apodrecendo dentro de um cesto, certa tarde, na rua das Hortas, em São Luís do Maranhão? Pois é, não obstante entrei naquele barato e vi aquelas frutas enegrecidas pelo apodrecer, um fato fulgurante, quase cósmico, se se compara o chorume que pingava das frutas podres ao processo geral que muda as coisas, que faz da vida morte e vice-versa.

E essas bananas outras --não as da quitanda, mas as do poema-- inseriram-se em mim, integraram-se em minha memória, em minha carne, de tal modo que são agora parte do que sou.

Agora, se tivesse de dizer quem sou eu, diria que uma parte de mim são agora essas bananas que, no podre dourado da fantasia, me iluminaram, naquela tarde em Buenos Aires, inesperadamente, tornando-me dourados os olhos, as mãos, a pele de meu braço.

Entenderam agora por que costumo dizer que a arte não revela a realidade e, sim, a inventa? Pois é, as bananas de dona Margarida, apodrecendo num cesto, numa quitanda em São Luís --e que ela depois, se não as vendesse, as jogaria no lixo--, ganharam outra dimensão, outro significado nas palavras do poema e na existência do seu autor. Porque a banana real é pouca, já que a gente a torna mais rica de significados e beleza.

Veja bem, não é que a banana real não tenha ela mesma seu mistério, sua insondável significação. Tem, mas, embora tendo, não nos basta, porque nós, seres humanos, queremos sempre mais. Ou seria esse um modo de escapar da realidade inexplicável?

Se pensamos bem, a banana inventada pertence ao mundo humano, é mais nós do que a banana real. E não só isso: a realidade mesma é impermeável, enquanto a outra, feita de palavras, amolda-se a nossa irreparável insatisfação com o real.

Depois que as bananas podres surgiram no "Poema Sujo", numa situação de fato inventada por mim, e mais verdadeira que a verdadeira, incorporaram-se à memória do vivido, de modo que, mais tarde, elas voltaram, não como invenção poética, mas como parte da vida efetivamente vivida por mim.

Sim, porque criar um poema é viver e viver mais intensamente que no correr dos dias. Por isso, como se tornaram vida vivida, me fizeram escrever outros poemas, já que a memória inventada se junta à experiência real, quando novos momentos também se tornarão memória. Até esgotarem-se, e se esgotam.

Do mesmo modo que não sei explicar como a lembrança das bananas apodrecidas na rua das Hortas voltou inesperadamente naquela dia em Buenos Aires, nem por que, depois de cinco reincidências, a lembrança das bananas cessou, apagou-se, nenhum poema mais nasceu daquela experiência banal, vivida por um menino de uns dez anos de idade sob o calor do versão maranhense.

Foi o que pensei, mas o assunto não morrera. Ao ver uma folha de jornal suja de tinta, onde limpava os pincéis, pareceu-me ser a mesma cor das bananas podres. Recortei o papel em forma de bananas e fiz uma colagem. Logo me veio a ideia de fazer outras para ilustrar os poemas sobre elas. E disso resultou um livro de colagens, com os poemas que preferi escrever a mão.

Prata - Caetano Veloso

O GLOBO - 29/12

A forçada imitação de hábitos do Atlântico Norte na árvore de Natal e no Halloween


Minha irmã Clara me telefonou de Santo Amaro e terminamos falando sobre a inexistência da árvore de Natal na nossa infância. Clara é 10 anos mais velha do que eu, de modo que escrever “nossa infância” é esticar demais o sentido da expressão. Bethânia, que é mais nova do que eu 4 anos, deve lembrar-se de Natais com falsos pinheiros em sua meninice. Lembro que as mudanças foram se dando e se acelerando justamente entre o período escuro do começo da minha vida e as crescentes luzes que anunciavam a adolescência, o domínio do entendimento e a autonomia. Nosso natal era, no começo, feito de presépio, folhas de pitanga e areia da praia. Todas as casas de Santo Amaro (e, já nos anos 1960, mesmo os ônibus de Salvador) se enchiam de ramos de pitangueira ao aproximar-se o 25 de dezembro. O cheiro era celestial e telúrico. A areia da praia (areia branca retirada de dunas e areais, essas dunas baianas brancas como a neve) era espalhada sobre a lajota dos pisos internos das moradias. Folhas de pitanga salpicadas sobre isso. E galhos nos vasos. Depois foram surgindo árvores de Natal com algodão e bolas brilhantes, luzezinhas que piscavam etc. — tudo copiado, não tanto dos filmes americanos que víamos, mas das revistas “O Cruzeiro” e “Manchete”, que copiavam o que se via nesses filmes, trazendo tudo para mais perto de nós, em sugestões de decoração, com exemplos em casas cariocas habitadas por gente com cara de brasileira nas fotografias.

Eu estranhava. Clara me confirmou na quarta-feira (25) que todos estranhávamos. A comparação com o fenômeno mais recente da importação do Halloween, que aparece de modo engraçadíssimo na crônica de Antonio Prata intitulada “A árvore” (aliás, que beleza a capacidade redacional desse rapaz, que renascimento da crônica propriamente dita — mas carregada de energia como nunca antes — é o seu trabalho, revelado para mim por minha nora Clara, que, além de ler-me uma brilhantíssima peça chamada “Cliente paulista, garçom carioca”, me deu de presente de Natal o livro “Meio intelectual, meio de esquerda”, o que me levou a descobrir que aqui em casa eu já tinha “Nu, de botas”, que a Companhia das Letras me mandou, não tinha lido — do jovem Prata eu só conhecia comentários orais sobre texto escrito por ele ironizando ideias da direita que foi tomado a sério por leitores direitistas — mas vou ler, assim como o referido artigo reacionário), a comparação, como eu ia dizendo, é pertinente. As visões do Natal com pinheiros de palha ou de plástico, neve falsa e bolas espelhantes era percebida por nós, na Santo Amaro dos anos 1940/50, como uma forçada imitação de hábitos do Atlântico Norte, não menos alienado que o Halloween pode ser hoje.

Já contei aqui como fui me aproximando do “novo” Natal: pelo caminho do gosto arraigado pela festa pública, qualquer festa pública. As árvores anuais da Lagoa chegaram a me proporcionar alegria e, em alguns anos mais felizes, me pareceram consideravelmente elegantes. Este ano, numa ida a São Paulo para participar de um show ao lado de Emicida e Tom Zé, fiquei impressionado com o engarrafamento nos arredores da Avenida Paulista: milhares de pessoas (tanto turistas quanto paulistanos) saíam para ver as luzes e alegorias nos prédios das corporações. As ruas transversais que dão para os Jardins, numa das quais ficava meu hotel, esplendiam. Aquilo tudo me dava uma gota de excitação carnavalesca, mas a pletora de luzes (comparada com a qual toda a ornamentação do Rio, árvore da Lagoa incluída, parece muito acanhada) sugeria ostentação de riqueza, falava da força da grana. De todo modo, a reação crítica ao mau gosto que ronda o Natal quase sempre se sobrepõe, em mim, aos esboços de festejo íntimo.

Refugio-me nos livros. A leitura do “Getúlio” de Lira Neto, tão aconselhada por Jorge Mautner, me prendeu desde as primeiras páginas — e revelações como o discurso anticristão, de evidente inspiração nietzschiana, do jovem Vargas, além da oposição culta ao liberalismo em discursos na assembleia gaúcha, me dão vontade de ler logo as tantas páginas que restam (e as que ainda não foram publicadas). Interrompi essa aventura gauchesca para ler as crônicas do jovem Prata. E agora me dou conta de que volto a falar dele. Ah: dei uma parada aqui e fui conferir o artigo “Guinada à direita”: a frase “trocar as sístoles pela sinapses”, referente à famosa tirada atribuída a “Celmanceau, Bernard Shaw e Churchil”, que opõe socialismo/juventude/coração a maturidade/cérebro, é show de bola. Prata podia tirar 10 em redação sem ser nerd. Tem tudo do meu mundo (e do do pai dele) e do mundo de depois.

Quando o mundo conheceu o papa Francisco - JOAQUIM PARRON

GAZETA DO POVO - PR - 29/12

O mundo contemporâneo anda carente de referências éticas e às vezes se perde na onda do relativismo, sacrificando importantes elementos da própria vida humana. Neste contexto e no ambiente da renúncia do papa Bento XVI, surgiu um papa vindo da América Latina, mostrando que o mundo pode ser mais humano e mais sensível aos sofredores quando as pessoas têm fé. É o papa Francisco anunciando, com simplicidade, o Evangelho da esperança e do amor a todas as pessoas de boa vontade.

Papa Francisco – ou Jorge Mario Bergoglio –, formado em Engenharia, Filosofia e Teologia, tornou-se sacerdote jesuíta aos 32 anos, na Argentina. Como religioso, provincial dos jesuítas e bispo, mostrou uma sólida consciência social, evitando os palácios e vivendo uma vida simples, ao serviço dos pobres e de todo o povo. Foi nomeado cardeal pelo papa João Paulo II em 2001, quando a Argentina estava mergulhada numa terrível crise econômica. Ele pregou que o capitalismo selvagem empobrecia milhões de compatriotas e denunciou atitudes populistas e corruptas dos políticos profissionais. Atraiu o ódio dos políticos da família Kirchner, que não o perdoavam por denunciar os erros dos mandatários do poder – mesmo depois da eleição papal, esse grupo tentou inventar calúnias contra o seu compatriota argentino.

A trajetória de vida do papa Francisco mostra uma coerência a que o mundo atual sente-se atraído, por seu peso ético, moral e, acima de tudo, pela sua fé inabalável e simplicidade em tratar as coisas humanas e divinas. Trata as pessoas com profundo respeito e as coisas com simplicidade, mas sem perder-se no relativismo, afirmando que Deus se fez simples para habitar no meio de nós, encarnando-se no ventre de Maria de Nazaré e nascendo pobre em Belém.

Com suas atitudes de bondade e de respeito à pessoa humana, esse papa acolhe os peregrinos em Roma, visita os pobres em várias partes do mundo, participa de grandes concentrações. Nos meses de junho e julho, em que o Brasil vivia as ondas das manifestações por melhores condições de vida, quando as autoridades temiam pela segurança do papa, ele pede para ir ao encontro do povo na Jornada Mundial da Juventude, no Rio. Por sua vez, o povo ama o papa que se faz presente no meio da multidão. Diante do iminente ataque à Síria pelas forças ocidentais, este papa articulou com sua diplomacia a suspensão do ataque e convocou dias de jejum e oração pela paz no mundo. Também em suas audiências ele clama para que o mundo abandone as injustiças e dê espaço para a fraternidade.

Em 2013, o mundo conheceu esse homem de Deus, sucessor de São Pedro em Roma, que discerne as coisas não com a lógica do mercado, mas com o espírito de Deus que deseja a fraternidade, o amor, o perdão e a solidariedade entre as pessoas e entre os povos. Ele é amado não apenas pelos católicos, mas por milhões de pessoas de outras crenças e por todas as pessoas de boa vontade. A revista norte-americana Time, o jornal francês Le Monde e outras grandes revistas e jornais do mundo nomearam este papa a “Personalidade do Ano” de 2013. Os próprios meios de comunicação afirmam que não é questão de “papamania”, mas de alguém que recuperou a força da mensagem cristã e anuncia com coerência ética um mundo melhor. Sigamos o exemplo do papa Francisco!

As boas e as más notícias - JAIRO BOUER

O Estado de S.Paulo - 29/12

O ano de 2013 trouxe avanços importantes em termos de saúde no País, mas também revelou situações complexas, que devem se arrastar pelos próximos anos e vão exigir novas estratégias de ação.

Para começar, a partir de 2014 as garotas de 11 a 13 anos vão poder receber gratuitamente no SUS a vacina contra o HPV, vírus transmitido por via sexual, que causa verrugas na região genital (talvez a DST mais comum hoje) e está diretamente relacionado a alguns tipos de câncer, como o de colo de útero. São três doses para a maior proteção. Mas alguns estudos já mostram que, talvez, uma dose única já seja capaz de oferecer uma redução importante dos casos de HPV. O plano é que a cobertura seja ampliada, pouco a pouco, para outras faixas da população, que tem vida sexual ativa, até mesmo para os garotos. Especialistas acreditam que o vírus possa causar também câncer em borda anal, glande e orofaringe, outras áreas do corpo relacionadas à pratica de atividades sexuais.

Em 2014, ainda no campo das DSTs, testes rápidos e baratos para detecção do vírus HIV, causador da aids, vão estar disponíveis em farmácias de todo o País, na tentativa de ampliar o número de diagnósticos de soropositivos. Essas pessoas, com as novas diretrizes do Ministério da Saúde, estabelecidas neste ano, poderão receber medicamentos antivirais assim que souberem do seu status (antes era necessário que houvesse uma queda da imunidade para que o tratamento fosse iniciado). Essa medida, em teoria, diminui as chances de complicações e reduz muito o risco de transmissão do vírus. Assim, quanto mais gente souber e seguir o tratamento correto, menos vírus estarão circulando na população.

2013 também consolidou tendências importantes, já percebidas em pesquisas nos últimos anos. Assim, por exemplo, dados do IBGE divulgados na última semana mostram que a taxa de gravidez na adolescência (entre 15 e 19 anos) caiu de 20,4% do total das gestações no País, em 2002, para 17,7% em 2012. A queda foi maior na Região Sudeste e as taxas ainda são mais altas na Região Norte.

Outra redução que se consolidou foi a do número de fumantes no País, que caiu de mais de 30% no fim da década de 1980, para cerca de 12% em 2013 (dados do Vigitel divulgados neste ano). Nova pesquisa do fim de novembro, da Fiocruz, mostra, no entanto, que essa queda é menos significativa nas faixas da população menos escolarizadas e de baixa renda, o que revela a necessidade de agir nesse grupo social menos favorecido.

Mas não foram apenas as boas notícias que ganharam espaço no ano que está acabando. Os índices da aids, por exemplo, revelados no início de dezembro pelo Ministério da Saúde, mostram que há um número constante de casos novos nos últimos cinco anos. São, pelo menos, 40 mil novas notificações por ano. O que preocupa é que algumas populações, como a de homens jovens que fazem sexo com outros homens e a de profissionais do sexo, registram parte importante desses casos. Já as políticas de prevenção dirigidas a essas populações específicas patinaram em 2013, em parte por pressões existentes nos setores mais conservadores do Congresso. Várias campanhas foram barradas ou enxugadas. O desafio para os próximos anos é vencer essas resistências e trabalhar diretamente com foco na prevenção e nesses grupos.

2013 ainda foi um ano de muitas mortes de jovens ligadas a consumo de álcool e violência. Apesar da lei seca mais severa em vigor há alguns anos, na prática a associação bebida e direção continua a existir em boa parte do País. Não foi à toa que, semana após semana, os jornais noticiaram acidentes e tragédias. A violência social, muitas vezes ligada ao tráfico de drogas, também foi a causa de mortes e chacinas em vários momentos do ano.

Para terminar, a situação do crack continuou a causar preocupação em 2013. As Cracolândias se espalharam pelo País e as políticas públicas para lidar com a situação foram tímidas e ambíguas. Em 2014, aids em grupos específicos, álcool, tráfico, violência social e a questão do crack se colocam como desafios importantes. Aproveito a última coluna do ano para desejar um 2014 com muita saúde para todos e para o País.


Tática de guerrilha (para homens distraídos) - FABRÍCIO CARPINEJAR

ZERO HORA - 29/12

O que uma mulher mais reclama do homem é sua distração: esquece de observá-la, não valoriza os detalhes, não identifica surpresas e passa reto em datas importantes e comemorações amorosas.

Com objetivo de salvar casamentos e namoros, encontrei a saída do labirinto.

O homem deveria confessar que tem déficit de atenção já no primeiro encontro. Na verdade, déficit de atenção é um outro nome para egoísmo - ele só escuta o que quer e só faz o que deseja -, mas rebatizando o defeito terá uma nova vida sem atribulações e julgamento, sem críticas e implicâncias.

Tente, funciona perfeitamente.

Está começando uma relação, chame sua garota para perto, faça o olhar triste do Gato de Botas do Shrek, e puxe uma conversa séria:

— Antes de tudo, preciso expor algo, você tem o direito de não ficar comigo, eu entenderia, mas não desejo esconder nada: eu tenho déficit de atenção!

É óbvio que ela aceitará, todo mundo admite qualquer coisa que é dita na primeira semana de relacionamento (é a fase da tolerância e impunidade). Ela arregalará os olhos, lamentará a dificuldade, prometerá ajuda e não terá mais como cobrar absolutamente nada daqui por diante de seus lapsos e apagões. Será o paraíso fiscal, a redefinição mágica de sua rotina.

Você não reparou que ela cortou os cabelos, daí você diz:

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você não lembrou que completam um ano de relacionamento, não comprou presente e flores.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você saiu com os amigos para beber, e não avisou.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você não gravou quando ela avisou que não gostava de azeitonas e buscou servi-la.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você não reconheceu o sogro de sunga e a sogra de biquíni.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você troca risos e bocas com uma estranha.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você não notou que a casa está tomada de velas e que sua mulher dança sensualmente, e ligou a televisão no canal de esporte.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Mas, se ela se depilou e você não viu, por favor, não culpe o déficit de atenção, é o único caso que ele não pode ser usado. Vai voar um tabefe na sua orelha para voltar a ouvir. Ou para ensurdecê-lo de vez.

O que é bom dura pouco - DIANA LICHTENSTEIN CORSO

ZERO HORA -29/12

Mudamos o tempo todo, nem que seja pelo fato de que a cada dia vamos ficando mais velhos



Minha amiga fez uma reforma dentro de casa. Deviam incluir reformas, principalmente aquelas nas quais se permanece habitando um lar semidestruído, nos testes psicológicos. Se o morador do imóvel em escombros não enlouquecer, dificilmente perderá o equilíbrio em situações extremas: seria um caso de saúde mental comprovada. Um casal que sobrevive a uma reforma será feliz para sempre. Pois minha amiga, sua família e os dois gatos superaram isso e passam bem. Ninguém pediu a opinião felina do Quincas e da Frida, mas tenho certeza de que eles discordam da necessidade de ter feito tudo aquilo.
Quando fui visitá-la para ver as melhorias prontas, a casa estava tão bonita e agradável, que imediatamente instalou-se o sentimento de que sempre fora assim. Comentamos que é uma pena, mas o período em que comemoramos as novidades boas passa demasiado rápido. Também quando algo piora, estraga ou deteriora, aos poucos adotamos naturalmente os caminhos necessários para contornar o problema: a luminária queimada será evitada, a janela emperrada será menos utilizada, o liquidificador estragado decorrerá na eliminação das receitas que necessitem dele.
A vida é movimento e somos muito plásticos, adaptamo-nos às circunstâncias, expediente que permite a sobrevivência até em condições extremas. Mudamos o tempo todo, nem que seja pelo fato de que a cada dia vamos ficando mais velhos e carregamos a experiência, os temores e sucessos armazenados dos momentos anteriores. Por vezes, mudamos para muito melhor, por outras enfrentamos perdas ou mesmo a triste constatação de um esforço inútil, como diriam o Quincas e a Frida sobre as novidades na casa da minha amiga.
Mas nada é à toa, devo discordar dos gatos. Eles são uns ranzinzas e prefeririam que nada se alterasse nunca, tanto que existe a expressão “mais nervoso que gato em dia de faxina”. Queria lembrar àqueles dois gorduchos peludos que agora eles têm mais luz e espaço em vários cômodos da casa, mas eles vivem um eterno presente, assim como costuma acontecer conosco.
No fim do ano fazemos balanços. Até os que alardeiam que isso é ridículo, pois o primeiro de janeiro é exatamente igual ao trinta e um de dezembro, que nada recomeça, são atropelados pelas retrospectivas do ano na mídia, pelo ambiente de promessas e esperança.
O resultado dessa avaliação anual sempre é prejudicado pela dificuldade de perceber as mudanças e, principalmente, de comemorar as boas novas. Reagimos como um bebê: quando está com fome, berra como se nunca tivesse sido alimentado, e, ao ser bem cuidado, ronrona um prazer que parece contínuo. Quando a felicidade chega, olhamos para ela como certos pais que recebem as boas notas dos filhos e, em vez de elogiar, dizem que ele não fez mais do que a obrigação. Pobre felicidade, a mais incompreendida e maltratada dos sentimentos. Depois de amanhã, último dia do ano, pode dispensar a lentilha, os fogos, mas não abra mão da gratidão pelo que melhorou. Por outro lado, se algo piorou, acredite, de algum modo vai passar.

"Em 2014, eu gostaria..." - HUMBERTO WERNECK

O ESTADÃO - 29/12

Olha aí, só falta você. Também vai reclamar da Copa? O Guilherme Tauil quer encontrar Jesus: "Preciso aprender aquele truque de transformar água em vinho".

Um desejo para 2014? A Clara diz que precisa pensar - embora saiba que os melhores desejos não combinam com reflexão.

"Meu desejo", diz o Ale Staut, "é diminuir o recheio adiposo da barriga de forma inversamente proporcional aos algarismos da conta bancária. Sejamos magros e ricos em 2014!"

A Inês gostaria que todos os homens se dessem as mãos - mesmo com o risco "disto aqui ficar parecendo uma colossal parada gay".

O Villas quer saúde para chegar firme e forte a 3 de agosto, data que vai comemorar ao som de When I'm Sixty-Four, de Lennon e McCartney.

A enigmática Teresa pede "coragem para deixar vir à tona, com sua força talvez destruidora, o 'amor de risco' que tenho por aquela criatura, da qual o bom senso me recomenda guardar distância". (Depois conte pra gente, moça!).

Convencido de que dificilmente vai encontrar num só endereço um menu que seja campeão em todas as etapas do repasto, o Marco Antônio quer montar uma "antologia gourmet": na mesma noite, comer aqui a entrada, ali o prato principal e alhures a sobremesa, pouco importando se o perfeccionismo lhe vai custar três mordidas de valet service.

"Que tal", propõe a Cris Guerra, "se em 2014 diluíssemos o Natal pelos 12 meses e fôssemos presenteando aos poucos as pessoas, sem data marcada? Espalharíamos a alegria pelo ano e as lojas venderiam bem o tempo todo, o que melhoraria a qualidade do atendimento, sem jogar os preços lá em cima".

"Com meio século de serviço público completado", suspira o Jaime, "só desejo que o processo de Kafka a que nós funcionários respondemos seja enfim remetido à única instância competente para condenar todos os burocratas a cumprir pena no Inferno: o Juízo Final."

Envergonhada de seu inextirpável sotaque caipira, a Rosa gostaria de chegar ao fecho de 2014 podendo dizer, sem provocar risinhos, que "a perna da bermuda tá larga, tem que apertar".

"Em 2014, só quero distância da Copa", diz (em paz com o tal sotaque) o Eugênio Bucci.

Doze meses atrás, a Ana fazia planos de "andar descalça e tomar chuva", ela e "um príncipe que nem precisaria ser encantado, bastando ser encantador". Só a chuva deu certo. Um projeto para 2014? "Sumir enquanto for Copa."

A Isabel adoraria tomar uma chuvarada sem guarda-chuva, desde que as gotas sejam moedas de 1. "Problema não, tenho fama de cabeça dura..."

"No novo ano", diz às margens do Sena o Luiz Horta, "espero sentir menos calor, ter mais outonos e invernos e menos verões, sem poesia ou metáfora, estações mesmo - e estar o mais distante da Copa que um voo possa alcançar."

"Meu desejo para 2014", revela a Vanessa Barbara, "é que tudo corra bem durante a Olimpíada e eu consiga parar com essa mania irritante de trocar as palavras. Também queria acordar canhota, mas acho que não vai ser desta vez."

"Que as sutilezas sejam plenas em 2014!", pede o sutilíssimo poeta Ademir Assunção.

"Quero ser menos rabugento", propõe-se o não menos poeta Donizete Galvão, "para sobreviver à gritaria patriótica da Copa e aos debates sobre a eleição."

"Quando chegarem a Copa e as eleições", diz a Nísia, "eu queria dormir e só acordar em 2015. As duas coisas ficam cada vez mais chatas e dividem o mundo mais do que deveriam."

Cansado de camelar sobre duas pernas, o Arthur Victor quer fazê-lo também sobre duas rodas: vai aprender a bicicletar.

A Wanda não pede muito mas quer tudo: "Continuar perto dos amigos, beber bons vinhos, comer boas comidas, ver bons filmes, ler bons livros, viajar. Se puder ter isso acompanhada de uma boa parceria..."

O Edu espera que o Legislativo aprove a ideia do escritor Cyro dos Anjos e nos dê direito a dois votos - um a favor, outro contra: "Tô muito a fim de deseleger alguém!".

A Lia não vê a hora de estrear seu passaporte húngaro, para, quem sabe, viver na terra dos antepassados uma rapsódia igualmente húngara.

Quanto a este cronista, ele se dará por satisfeito se for implantado um rodízio para chatos. Motorizados ou não, eles só poderiam circular uma vez por semana, e sem direito a chatear quem não seja um de seus semelhantes.

Feliz ano todo - ADRIANA CALCANHOTTO

O GLOBO - 29/12

Feliz mergulho no Arpoador dia 31, feliz longa lista de metas para ser toda descumprida


Assisti ao monstro de olhos azuis chamado Tônia Carrero, perguntada em entrevista sobre se era feliz, responder calmamente: “sou feliz e infeliz várias vezes ao dia”. Bingo. A felicidade vai e vem o tempo todo. Ou, convenhamos, seria um tédio de matar. É então nesse espírito, de estar feliz, significando que se estará infeliz daqui a pouco e feliz de novo e infeliz, e assim por diante vida afora, que desejo aos compadres felicidades no ano que vem.

Feliz mergulho no pôr do sol no Arpoador dia 31, feliz longa lista de metas para o ano para ser descumprida inteira. Feliz virada de ano uma hora antes da meia-noite, pobres ouvidos dos bichos, feliz fogos de artifícios. Feliz volta de Copacabana de metrô, feliz carteira batida, feliz ressaca no primeiro dia do ano. Feliz garis achando moedas, celulares, joias, amuletos e calcinhas na areia. Feliz alagamentos causados por bueiros entupidos pelo lixo que devia ser jogado no lixo, não no chão. Feliz leitura de “Fim”, o romance de estreia da Fernanda Torres. Feliz deslizamentos nas encostas durante o verão e o estaremos providenciando. Feliz quaresmeiras floridas, feliz andorinhas voando em direção ao Norte. Feliz esquenta de carnaval, feliz grito de carnaval, feliz carnaval, feliz saltos quebrados no carnaval, feliz ar-condicionado para não ouvir o carnaval lá fora. Feliz crise no relacionamento por conta do carnaval, feliz desfile das campeãs. Feliz, então, acho que agora sim, ano novo.

Feliz volta às aulas, feliz primeira ida para a primeira aula. Feliz de quem tem aulas para ir. Feliz palmas para os guerreiros professores. Feliz fotos de servidores públicos com maços de dinheiro sob roupas de baixo. Feliz despedida de uma misógina enrustida do comando da comissão dos direitos humanos. Feliz psicodélicas previsões de crescimento da economia, feliz contas públicas mais mal maquiadas do que aquelas velhinhas inglesas que não enxergam mais nada e aplicam a sombra verde acima das sobrancelhas e o batom vermelho no buço.

Feliz outono no Rio. Feliz cheiro de jasmim à noite. Feliz páscoa, feliz dieta pós-páscoa, feliz construção do Pavilhão da Esdi, feliz deslumbrante luz de maio, feliz tucanos nas palmeiras, que comem os filhotes dos outros pássaros, mas apanham do bem-te-vi. Feliz macacos-prego levando seu bolo de fubá árvore acima. Feliz tigre na cabeça no botequim da esquina. Feliz branquinha no balcão. Feliz inaugurações de piscinões binários. Feliz inaugurações de construções em ruínas. Feliz noites dormidas na rua sob marquise estreita com chuva forte tendo papelão e jornal como cobertor. Feliz mês das noivas, feliz provas de vestido, feliz provas de amor, feliz provas de fidelid… Feliz dia das mães. Feliz luz nos morros de manhã bem cedinho, feliz pedras no meio do caminho. Feliz imbecis pichando a estátua do poeta. Feliz explosão de bueiros. Feliz muros grafitados. Feliz esperança de que a Rita Lee venha morar no Rio. Feliz anúncio de banco vendendo mais endividamentos a “você, a pessoa mais importante do mundo para nós”. Feliz carga tributária. Feliz estádios com obras atrasadas precisando de mais e mais dinheiro.

Feliz chopinho na esquina, feliz nada pra fazer. Feliz festa na laje, feliz baile funk. Feliz chão, chão, chão, chão. Feliz sorriso do Nelson Sargento. Feliz feijoada da tia Surica. Feliz coalizações lisérgicas para disputar a presidência da pobre República. Feliz alianças que dão vergonha na gente. Feliz promessas humanamente incumpríveis, feliz direito de votar. Feliz voto. Feliz melhor projeto para o Brasil. Feliz água de coco no calçadão. Feliz multa por jogar lixo no chão. Feliz compre seu carro novo, compre seu carro novo compre seu carro novo. Feliz paciência no trânsito. Feliz trens e ônibus atrasados, abarrotados, feliz vagões femininos. Feliz cadeias piores que o inferno. Feliz salve a seleção. Feliz compre sua TV, compre sua TV, compre sua TV, compre sua TV, compre sua TV. Feliz Copa “do Mundo da Fifa”. Feliz seja lá o que tiver de ser. Feliz Lei Maria da Penha. Feliz Flip. Feliz crianças atingidas por balas perdidas e sumiços de trabalhadores sem qualquer explicação. Feliz pelada, feliz pedalada, feliz futevôlei na praia. Feliz biscoito Globo, feliz mate gelado. Feliz possibilidade de ver o Ferreira Gullar zanzando por Copacabana.

Feliz sequência de ondas verdes parecendo esmeralda líquida. Feliz ondas, feliz vacas, feliz caldos. Feliz fale mais, fale mais, fale mais, fale mais, fale mais. Feliz “este número de telefone não existe”. Feliz parada gay. Feliz feriado de Zumbi dos Palmares. Feliz turistas na favela, feliz meninos jogando bola. Feliz bicicletas roubadas. Feliz juiz filho da puta. Feliz dicas de livros da Cora. Feliz topless em paz. Compadres queridos, um feliz ano todo.

Comida - FÁBIO PORCHAT

O Estado de S.Paulo - 29/12

Eu gosto de comer. Talvez seja a coisa que eu mais goste de fazer na vida. Todo mundo precisa comer e isso eu já acho bem democrático. Cada um gosta de uma coisa diferente e tem percepções diferentes em relação aos sabores, o que já torna qualquer comida muito interessante. E comer te coloca em contato direto com o lugar onde você está, o que é bem instigante.

Eu adoro viajar. Talvez seja a segunda coisa que eu mais goste de fazer na vida. Comer durante uma viagem então, é pra mim um acontecimento. É uma atração turística. Coliseu, Muralha da China, Pirâmides e um tutu à mineira em Belo Horizonte. Pra mim, é tudo a mesma coisa.

E quando eu digo comer, não é ir a um restaurante chique e importado. É ir onde a comida é mais gostosa. Na casa da minha mãe ou na Famiglia Mancini. No dogão do estádio ou naquele restaurante que serve leitão lá em Portugal. Comer envolve todos os sentidos. Se você é dos meus, sabe só pelo cheirinho vindo da área de serviço o que o seu vizinho tá preparando pro jantar. Consegue dizer que aquela coxinha da padoca é perfeita só de olhar ela deitadinha ali no papel toalha. Sabe que aquela fatia de bolo vale a pena desde o momento em que você pegou nela com a mão. Se você já foi a uma feira, sabe que aquele barulhinho da fritura do pastel é impagável. E, assim que você coloca uma comida na boca, não tem erro: ou é boa, ou não é. E quando é... Ah... E eu gosto de coletar dicas de restaurantes pelo Brasil e pelo mundo com conhecidos. Tento testar todos.

Todo mundo tem um restaurante que vai lembrar pelo resto da vida. E comida boa a gente não lembra, a gente descreve em detalhes pra pessoa que estiver ao lado. Ninguém come um polvo com arroz de brócolis inesquecível. Você come um polvo grelhado no azeite, puxado no alho e na manteiga até ele ficar tostadinho e depois você joga um limãozinho por cima pra acompanhar aquele arroz soltinho e verdinho de um brócolis que derrete na boca. Isso é um polvo com arroz de brócolis memorável.

Outra forma de descrever uma comida deliciosa é o adjetivo ser algum parente da sua família. Por exemplo: a farofa da minha mãe. Se é da sua mãe, eu não tenho a menor dúvida de que ela é a melhor farofa do mundo. O coquetel de camarão da Tia Dirce. Imbatível. O frango com quiabo do meu padrasto. Perfeito. Você sabe quando alguém não gostou muito do prato se quando você pergunta: gostou? A pessoa responde: gostei. Não gostou. Se tivesse gostado respondia: muito! Quem come sabe. Muito - é porque é muito. Gostei - é porque é o que tinha. Esse natal eu vou passar longe da minha família. Uma pena saber que perderei todas aquelas comidas maravilhosas que as minhas tias fazem. Mas com certeza alguém lá vai ficar feliz com isso. Porque vai sobrar mais! Bem mais, porque eu como. Eu gosto de comer. Muito.

Feliz ano-novo - SACHA CALMON

CORREIO BRAZILIENSE - 29/12

Boas-novas para todos em 2014, boa sorte para os viventes, boa morte para os moribundos. No Cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte, há uma frase latina no pórtico majestoso: morituri mortuis. Em vernáculo, longe do viés sintético da língua dos césares, em tradução expressiva, significa "dos que vão morrer aos mortos". É saudação amigável e profunda a nos unificar no que é radicalmente comum à condição humana: a morte.

Diante dela, cabe encará-la com a sensibilidade do poeta Manoel Bandeira, depois de uma vida honesta, no poema Consoada: "Quando a indesejada das gentes chegar (não sei se dura ou caroável), Talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga: - Alô, iniludível! O meu dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com seus sortilégios.) Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar".

Melhor imitarmos o filósofo grego Epicuro na carta a Meneceu: "A morte não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos". Dia a dia as gerações se sucedem desde que o mundo é mundo. Um belo espetáculo não isento de poesia e dor. Que nos venha o fim.

Depois dele, seja lá como for, sono perpétuo ou gozosa imortalidade na mente de Deus, nada temos a temer perante a sua grandeza. Deus não tem psicologia humana, não odeia, não julga, não pune, acolhe! Os temores estão nesse vale de lágrimas em que se desenrolam as nossas vicissitudes. Cada um sabe dos seus prazeres fugazes e de suas dores, ilusões e desilusões.

É aqui que devemos seguir as lições de Jesus ou de Maomé, de nos amarmos uns aos outros. Este ano - de Copa do Mundo no Brasil - deveríamos considerar que a paixão esportiva é coisa boa e lúdica, como a arte, o cinema, o teatro, os modos de bem viver e conviver, nunca o sucedâneo da guerra com sua carga de ódio e sectarismo. Em 2013 a violência em nossos estádios mostrou um povo bárbaro, sem rumo nem sabedoria, apenas com ódio no coração a se matarem e mutilarem em batalhas inglórias.

Inspirou a crônica o depoimento dos brasileiros que foram ao Marrocos esperando encontrar um povo belicoso e uma sociedade semibárbara. Mas os berberes - durante 780 anos - dominaram e criaram parte significativa da cultura ibérica, à qual, em parte, pertencemos e de modo superior aos dominantes visigodos, após a queda de Roma e, portanto, não poderiam ser o que deles se imaginava. Além disso, ganharam a partida de futebol dos brasileiros, com civilidade e até mesmo compaixão pela nossa tristeza.

Em sua coluna no Estado de Minas, Helvécio Carlos dá-nos depoimentos edificantes de torcedores que foram de um jeito e voltaram melhor. Escolhi um: Eduardo Coelho, que viajou para o Marrocos, revelou que os africanos, além da garra no futebol, têm muito a nos ensinar. "Nunca, em qualquer lugar ou situação da minha vida, encontrei pessoas tão gentis, educadas e cheias de verdadeiro espírito esportivo - o que deveria fazer parte de cada um de nós. Em todos esses dias em Marrakesh, cruzando com centenas de torcedores do Raja Casablanca, passando por eles nas ruas, nas praças e no estádio, não vi um único sinal de hostilidade, uma única demonstração de raiva ou violência nem mesmo depois da vitória deles. Não vi nenhuma criança ou adulto mandando dedão como quem xinga, ou tapinha na mão fechada como quem diz  "f...". Nada. Pelo contrário. O que vi por aqui foi alegria, foi celebração, foi preocupação com o próprio time e tratar com respeito e gigantesca educação e alegria todos os outros adversários. Pedidos de fotos, cumprimentos, abraços. Algo inimaginável por aí."

Fã dos marroquinos, Eduardo conclui: "Disputar um mundial é para quem já fez algo grande no ano, e perder não é vergonha. Vergonha é lembrar a violência absurda das torcidas no Brasil, o ódio gratuito que as pessoas sentem por outras apenas por usar uma camisa de outra cor, a covardia de quem chuta um cara caído no chão, a total falta de lei e respeito que contamina tudo em nosso país. Estamos tristes, claro! Mas futebol nada mais é que diversão. Valeu demais pela viagem e pela oportunidade de conhecer essa gente que nos deu uma verdadeira lição de comportamento".Tirem suas conclusões sobre educação, esporte, política e a difícil arte de viver e conviver respeitando o outro. Em tempo: os marroquinos são muçulmanos!

Pouca energia - RENATO CRUZ

O Estado de S.Paulo - 29/12

O poder de processamento dos eletrônicos dobra a cada dois anos. Sua capacidade de armazenamento cresce ainda mais rapidamente. O volume de dados transportados pelas redes móveis brasileiras quase dobra em um ano. A explosão dos tablets, smartphones e outros dispositivos móveis enfrenta, no entanto, um gargalo sério. Existe um componente importante cuja evolução não consegue acompanhar esse ritmo: as baterias.

Você compra o modelo mais recente de celular, contrata um plano caro da sua operadora e, no dia em que usa o aparelho de verdade, a bateria morre no meio da tarde. Os fabricantes de smartphones prometem oito, dez horas de uso, mas a prática não chega a alcançar essa promessa. Eles adaptam hardware e software para gastar menos energia. A própria tendência de se lançar aparelhos com telas cada vez maiores acaba criando mais espaço para baterias. Mas isso não é suficiente.

Como pode haver uma revolução móvel se estamos presos aos fios da tomada? As baterias de íon de lítio - usadas nos celulares, computadores portáteis e carros elétricos - são uma tecnologia que está há duas décadas no mercado. Sua capacidade tem aumentado, em média, somente 5% ao ano.

Existe bastante gente tentando melhorar isso. Por exemplo, o Laboratório Nacional Argonne, nos Estados Unidos, recebeu, no fim de 2012, US$ 120 milhões do Departamento de Energia do seu país para desenvolver novas formas de armazenar energia. O objetivo é desenvolver, em cinco anos, baterias cinco vezes mais poderosas, a um quinto do custo. Eles testam novos materiais, como magnésio e alumínio, e novas maneiras de construir as baterias.

Se a evolução das baterias é importante para os celulares, para os carros híbridos e elétricos ela é essencial. Atualmente, a gasolina armazena seis vezes mais energia por quilograma que as baterias de íon de lítio. A competitividade dos carros elétricos depende da redução dessa diferença.

A Tesla Motors - montadora criada por Elon Musk, que era o principal acionista do PayPal - tem conseguido avanços importantes nessa área. O Tesla Model S tem autonomia de mais de 400 quilômetros, sem precisar recarregar baterias, mais que o triplo dos concorrentes produzidos por grandes montadoras. Mas o Model S ainda é um carro de luxo, que custa entre US$ 70 mil e US$ 100 mil nos Estados Unidos.

Alguns postos criados pela Tesla, chamados "superchargers" (supercarregadores), conseguem recarregar as baterias de um carro em meia hora. Ainda não é a mesma coisa do que encher o tanque de gasolina ou etanol, mas é bem melhor que alternativas de concorrentes, que exigem horas para recompor a carga. No caso do Model S, toda a base do carro, das rodas dianteiras às traseiras, é formada por baterias.

O exemplo uruguaio - MARIO VARGAS LLOSA

O Estado de S.Paulo - 29/12

Foi muito feliz a revista The Economist ao declarar o Uruguai "o país do ano" e qualificar como admiráveis as duas reformas liberais mais radicais tomadas em 2013 pelo governo do presidente José Mujica: o casamento gay e a legalização e regulamentação da produção, venda e consumo de maconha.

É extraordinário que ambas as medidas, inspiradas na cultura da liberdade, tenham sido adotadas pelo governo de um movimento que, originalmente, não acreditava na democracia, mas na revolução marxista-leninista e no modelo cubano de autoritarismo vertical e de partido único. Desde que subiu ao poder, o presidente Mujica, que em sua juventude foi um guerrilheiro tupamaro, assaltou bancos e passou muitos anos na cadeia, onde foi torturado durante a ditadura militar, tem respeitado escrupulosamente as instituições democráticas - a liberdade da imprensa, a independência dos poderes, a coexistência de partidos políticos e eleições livres - assim como a economia de mercado, a propriedade privada, estimulando os investimentos estrangeiros.

A política desse simpático velhinho estadista, que fala com uma sinceridade insólita num governante, embora isso signifique equivocar-se de vez em quando, vive de maneira muito modesta em sua chácara nos arredores de Montevidéu, e viaja em classe econômica, conferiu ao Uruguai uma imagem de país estável, moderno, livre e seguro, o que lhe permitiu crescer economicamente e avançar na justiça social, estendendo os benefícios da liberdade em todos os campos, e vencendo as pressões de uma minoria recalcitrante da coalizão.

É preciso lembrar que o Uruguai, diferentemente da maior parte dos países latino-americanos, cultiva uma antiga e sólida tradição democrática, a ponto de, quando eu era criança, o pais oriental ser chamado de "a Suíça da América" em razão da força de sua sociedade civil, da firmeza da legalidade e de suas Forças Armadas respeitadoras de governos constitucionais. Além disso, principalmente depois das reformas do "battlismo", que reforçaram o secularismo e criaram uma poderosa classe média, a sociedade uruguaia tinha uma educação de primeiro nível, uma vida cultural muito rica e um civismo equilibrado e harmonioso, invejado por todo o continente.

Lembro de como fiquei impressionado ao conhecer o Uruguai em meados dos anos 60. Um país onde as diferenças econômicas e sociais eram muito menos cruas e extremas do que no restante da América Latina, e no qual a qualidade da imprensa escrita e radiofônica, seus teatros, livrarias, o alto nível do debate político, sua vida universitária, artistas e escritores - e principalmente, o punhado de críticos e a influência que eles exerciam - e a liberdade irrestrita que se respirava em toda parte o aproximavam muito mais aos países europeus mais avançados do que aos seus vizinhos, não parecia um dos nossos. Ali descobri o semanário Marcha, uma das melhores revistas que conheci, e que se tornou para mim desde então uma leitura obrigatória para me pôr a par do que acontecia em toda a América Latina.

Sombras. Entretanto, essa sociedade que dava ao forasteiro a impressão de estar se afastando cada vez mais do Terceiro Mundo e a se aproximar do Primeiro, já naquele tempo começava a deteriorar-se. Porque, apesar de tudo o que de bom acontecia ali, muitos jovens, e alguns não tão jovens, sucumbiam ao fascínio da utopia revolucionária e iniciavam, segundo o modelo cubano, as ações violentas que destruiriam a "democracia burguesa" para substituí-la, não pelo paraíso socialista, mas por uma ditadura militar de direita que lotou os presídios de presos políticos, praticou a tortura e obrigou muitos milhares a se exilar.

A fuga de talentos e dos melhores profissionais, artistas e intelectuais do Uruguai naqueles anos foi proporcionalmente uma das mais cruciais que um país latino-americano jamais experimentou ao longo da história. Entretanto, a tradição democrática e a cultura da legalidade e da liberdade não se eclipsou totalmente naqueles anos de terror. Com a queda da ditadura e o restabelecimento da vida democrática, floresceria novamente, com maior vigor e, diria até, com uma experiência acumulada que educou tanto a direita quanto a esquerda, vacinando-as contra as ilusões de violência do passado.

De outro modo, não teria sido possível que a esquerda radical, que com a Frente Ampla e os tupamaros chegasse ao poder, desse mostras, desde o primeiro momento, de um pragmatismo e espírito realista que permitiu a convivência na diversidade e aprofundou a democracia uruguaia em lugar de pervertê-la. Esse perfil democrático e liberal explica a valentia com que o governo do presidente Mujica autorizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e converteu o Uruguai no primeiro país do mundo a mudar radicalmente sua política frente ao problema da droga, crucial em toda parte, mas particularmente agudo na América Latina. Trata-se de duas reformas muito profundas e de amplo alcance que, segundo as palavras da Economist, "podem beneficiar o mundo inteiro".

O casamento entre pessoas do mesmo sexo tende a combater um preconceito estúpido e a reparar uma injustiça em razão da qual milhões de pessoas padeceram (e continuam padecendo na atualidade) injustiças e discriminação sistemática, desde a fogueira da inquisição até o cárcere, a perseguição, a marginalização social e violações de toda ordem.

Em relação às drogas, predomina ainda no mundo a ideia de que a repressão é a melhor maneira de enfrentar o problema, embora a experiência tenha demonstrado até o cansaço, que, apesar da enormidade de recursos e esforços investidos em reprimi-la, sua fabricação e consumo continuam aumentando em toda parte, engordando as máfias e a criminalidade associada ao narcotráfico. Nos nossos dias, esse é o principal fator da corrupção que ameaça as novas e antigas democracias e vai enchendo as cidades da América Latina de pistoleiros e cadáveres.

Será bem-sucedida a corajosa experiência uruguaia da legalização da produção e consumo da maconha? Seria muito mais, sem dúvida nenhuma, se a medida não fosse restrita a um único país (e não fosse tão estatista), mas compreendesse um acordo internacional do qual participassem tanto os países produtores como os consumidores. Mas, mesmo assim, a medida afetará os traficantes e portanto a criminalidade derivada do consumo ilegal, e demonstrará com o tempo que a legalização não aumenta notoriamente o consumo, apenas num primeiro momento, embora, desaparecido o tabu que costuma prestigiar a droga junto aos jovens, tenda a reduzi-lo.

O importante é que a legalização seja acompanhada de campanhas educativas - como as que combatem o tabagismo ou explicam os efeitos prejudiciais do álcool - e de reabilitação, de modo que quem fuma maconha o faça com perfeita consciência dos que fazem, como ocorre hoje em dia, os que fumam tabaco ou bebem álcool. A liberdade tem seus riscos, e os que creem nela devem estar dispostos a corrê-los em todos os campos, não apenas no cultural, no religioso e no político. Foi o que entendeu o governo uruguaio, e devemos aplaudi-lo por isto. Esperemos que outros aprendam a lição e sigam seu exemplo. / TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA

A grande derrota - PAULO VINÍCIUS COELHO

FOLHA DE SP - 29/12

Punir escalações irregulares com a perda de três pontos além dos conquistados é rigor exclusivo do Brasil


É provável que a queda da Portuguesa no STJD não fique como está. É de se imaginar guerra de liminares na Justiça Comum. Mais gols de advogados num assunto que deveria ser definido por centroavantes.

Mesmo quem tentou fazer valer a ideia de que só há uma verdade no caso Flu x Portuguesa sabe que é legítimo ter interpretações diferentes.

Se o Estatuto do Torcedor é soberano ou se o CBJD prevalece é tão discutível que houve posições dos dois tipos nas duas últimas semanas. De jornalistas, advogados, promotores, auditores...

Não pode ser assim.

É indispensável parar de punir os campeonatos. Se um torcedor fere, o próximo jogo acontecerá a 100 km de distância ou com portões fechados. E terá confusão de novo.

Punir escalações irregulares com a perda de três pontos além dos conquistados em campo é rigor exclusivo do Brasil. Que se percam os pontos ganhos no jogo irregular. Só!

A decisão pró-Fluminense é discutível, mas não é arbitrária. A Lusa vacilou. Ser rebaixada porque escalou Héverton é rigor excessivo e pode até ter sido sacanagem! Mas se Héverton não jogasse não haveria chance de mudar o resultado.

Para o Brasileiro, qualquer decisão agora é derrota. É preciso mudar o código. Chega de punir o campeonato por erros de clubes. Ou a cada dia haverá mais brasileiros torcedores do Barcelona e menos do Flamengo.

PRECISA-SE DE REFORÇOS

Lembro até hoje do meu velho avô Alexandrino relatar a agonia de sua juventude na entressafra do futebol. Contava que a saudade doía a partir de maio, quando o Campeonato Português terminava, até agosto, início da temporada seguinte.

Já no Brasil, quando seu neto de 13 anos disputava os jornais da casa para saber das contratações de dezembro, o velho Alexandrino fazia questão de diminuir a expectativa: "Daqui a umas semanas, vão estar todos a dizer que precisam de reforços."

Lembro disso no verão de 1983. São Paulo e Palmeiras disputavam Careca, do Guarani, o Santos comprava Chulapa, do São Paulo, e Paulo Isidoro, do Grêmio, o Atlético-MG contratava Everton, ex-São Paulo.

O velho Alexandrino parece premonitório quando se olha o mercado atual. Fala-se sobre reforços o ano inteiro e, diferente do futebol europeu, que contrata no verão e conserta o elenco no inverno, aqui há sempre um álibi para um novo nome.

O mercado de dezembro foi miúdo por isso e porque não há quem contratar. A novidade são os estrangeiros, até cinco por clube. Lembramos do sucesso de Tévez e Lugano, mas houve Gioino no Palmeiras, Henao no Santos, Acosta no Corinthians. O risco é diminuir o espaço para jovens brasileiros sem aumentar a qualidade dos sul-americanos.

Se você ouvir em março que seu clube precisa de reforços, lembre do trabalho mal feito no fim de dezembro. Eu vou me lembrar de meu avô.

Nada será como antes - TOSTÃO

FOLHA DE SP - 29/12

Nas últimas décadas, o futebol mudou muito, na maneira de jogar e nas transmissões pela TV


Nesta semana, vi dois jogos inesquecíveis, belíssimos, de altíssima qualidade coletiva, individual e de muita competitividade, mostrados pela ESPN Brasil. O primeiro, a derrota do Brasil para a Itália, na Copa de 1982. O segundo, entre Manchester City e Liverpool, pelo atual Campeonato Inglês. São nítidas as muitas mudanças na maneira de jogar das equipes, do passado e do presente. Nada será como antes.

Hoje, há mais disciplina tática, marcação, movimentação e velocidade. Os espaços entre os setores são menores, e existe mais pressão no jogador que está com a bola.

Predomina o passe, embora ainda existam grandes dribladores. O passe representa a técnica, o jogo coletivo e solidário. O drible, a habilidade, a improvisação e o talento individual. Os dois são essenciais.

Hoje, há mais preocupação em dar o passe correto, com a parte interna do pé, de chapa, para não perder a posse de bola.

No passado, era mais comum o passe de curva, de trivela, de rosca, fazendo a bola contornar o corpo do adversário, para cair nos pés do companheiro. Além de eficiente, era mais bonito. Os jogadores arriscavam mais o passe decisivo.

O grande passador é o que sabe o momento exato de dar o passe correto, para não perder a bola, e o momento de surpreender, de arriscar e de colocar a bola entre os defensores, para o companheiro fazer o gol.

Outra grande mudança no futebol foi nas transmissões da TV. No passado, a imagem era muito fechada. Quase só se via o lance e alguns jogadores em volta. Agora, a imagem é bem aberta. Isso é ótimo para ver o conjunto.

Se não fosse isso, teria de assistir a todos os jogos no estádio. Apenas alguns detalhes não consigo ver pela TV, como o posicionamento dos zagueiros quando o time está no ataque. Mas posso deduzir, quando a bola é perdida e o adversário contra-ataca. Os zagueiros brasileiros costumam ficar muito longe dos armadores que avançam, deixando grandes espaços para os meias e atacantes do outro time.

Por ter sido um atleta preocupado com o jogo coletivo, ter comentado durante anos jogos ao vivo, pela TV e no campo, poder ter hoje, pela televisão, uma ampla visão do conjunto, além de milhares de informações (muitas inúteis), saber a opinião do comentarista e ainda assistir às repetições por vários ângulos, tenho mais condições de fazer uma análise do jogo, em casa, do que se estivesse no estádio.

Melhor ainda do que ver o jogo pela TV ou no estádio é ver no estádio e com a TV na frente. Percebo, quando vou ao campo, que um grande número de jornalistas olha pouco para o gramado. Não dá tempo, pois não param de digitar. Precisam escrever seus textos, dar milhões de informações pela internet e ainda olhar para a tela do computador.

Assistem a outro jogo, talvez mais interessante.

Vô sério - LUIS FERNANDO VERISSIMO

O Estado de S.Paulo - 29/12

O vovô era um homem sério. Não carrancudo, mas sério. Tanto que os netos fizeram uma aposta: ganharia quem fizesse o vovô rir. O local da competição seria a mesa do almoço, aos domingos, quando toda a família se reunia, com a vovó numa cabeceira e o vovô na outra. Foram estabelecidas certas regras. Para ganhar, seria preciso provocar uma gargalhada no vovô. Um sorriso não bastaria. O objetivo era uma risada. Ou - para não haver duvida do que se buscava - uma BOA risada.

***

Algumas dúvidas tiveram que ser esclarecidas, antes de começar a disputa.

- Cócegas, vale?

Ninguém imaginava que o vovô sentisse cócegas, mas, de qualquer maneira, cócegas foram vetadas. E anedota? Se o vovô risse de uma anedota, a vitória seria do contador ou da anedota? Decidiram permitir anedotas. Quem soubesse contar uma anedota tão bem que fizesse o vovô dar uma risada, uma BOA risada, mesmo que não fosse seu autor, mereceria ganhar.

***

No primeiro domingo depois da aposta, o Marquinhos - segundo o consenso geral na família o mais palhaço dos netos - sentou-se à mesa fantasiado de mico, fazendo ruídos e gestos de mico e pedindo banana. Todos riram muito - menos o vovô. O vovô disse: "Muito engraçado, Marquinhos, agora tire essa roupa e coma direito". Mais tarde o Marquinhos argumentaria que o vovô dizer "Muito engraçado" equivalia a uma risada, mas seu protesto foi ignorado.

***

No domingo seguinte, o Eduardinho contou uma anedota.

- Sabem aquela do cara que tirou uma radiografia e o médico disse que ele precisava ser operado? O cara perguntou quanto custaria a operação e o médico deu o preço. O cara achou muito e perguntou quanto custaria um tratamento sem precisar operar. O médico deu o preço, que o cara também achou muito. Aí o médico disse: se o senhor preferir, pela metade do preço, eu retoco a radiografia.

Todos riram muito - menos o vovô. O vovô disse que aquela história envolvia questões muito sérias, como a saúde de um ser humano e a ética médica, e não era assunto para ser tratado na mesa, na frente das outras crianças. O Eduardinho protestou:

- Era uma anedota, vovô.

- Muito sem graça - disse o vovô.

***

Nas semanas seguintes, todos os netos tentaram, de um jeito ou de outro, fazer o vovô rir. Apelaram para mímica, imitações (o Tico fazia um Silvio Santos impagável), números musicais, concurso de quem chupava o espaguete mais ligeiro, tudo. E o vovô sério. Finalmente desistiram. E no último domingo aconteceu o seguinte: a vovó sentou-se na sua cadeira na cabeceira, depois de trazer a travessa de frangos da cozinha e colocá-la sobre a mesa - e caiu da cadeira. E o vovô explodiu numa gargalhada. Uma BOA risada que não parava mais, enquanto a vovó era atendida e dizia que estava bem, que não tinha se machucado, que não se incomodassem com ela.

***

Depois houve controvérsia. Uns netos achavam que a vovó cair da cadeira tinha sido mesmo um acidente, outros achavam que a vovó tinha caído de proposito. Depois de tantos anos sabia o que faria o vovô rir e dera uma mãozinha para os netos.


Do diário do coroa - JOÃO UBALDO RIBEIRO

O GLOBO - 29/12

Querido Diário,

Acabou o ano, o tempo passa cada vez mais depressa. Hoje vai aparecer ainda mais gente, lá no boteco. Já viraram tradição da casa os cumprimentos de fim de ano, bons desejos, muita paz, muita saúde, essas frescuras automáticas que todo mundo diz da boca para fora e em que ninguém presta atenção. Eu retribuo tudo o que me dizem, mas cada dia me exaspera mais a parte do “você está muito bem”. Só quem ouve essa conversa do “você está muito bem” é velho, ninguém diz isto a um jovem. É um saco, até porque muitos falam estas coisas somente para receber a retribuição e a gente tem de cumprir o ritual. Ôi, tudo bem, mas, cara, o tempo não passa para você, você está muito bem, em grande forma! Não, você é que está ótimo — e fica essa nênia ridícula de lá para cá, um bando de despencados caquéticos querendo engabelar o calendário, para mim é triste.

E também procuram empregar palavras mágicas, como se alguma palavra melhorasse a condição do velho ou de alguma maneira a homenageasse. Essas palavras e expressões são ofensivas, porque dão a entender que a velhice é uma condição tão vergonhosa que deve esconder-se por trás de eufemismos detestáveis. Idoso é a mãe, ancião é a mãe, vovozinho é a mãe, melhor idade, terceira idade, feliz idade, tudo isso é a mãe, não se discute. O certo é “velho”, no máximo “coroa”. Os que são contrários ao uso da palavra “velho” alegam que ela soa preconceituosa ou discriminatória. Mas é claro que soa, velhice é defeito. Ninguém diz em voz alta que é defeito, mas todo mundo acha que é. É semelhante ao que ocorre com “pobreza”. Pobreza também é defeito. Do contrário não se diria “pobre, porém honesto”. Por que o “porém”, por que a adversativa? Se ser pobre não fosse defeito, dir-se-ia “pobre e honesto”. Mas, claro, o que a frase afirma é que, apesar de pobre, o sujeito é honesto. “Velho” é a mesma coisa, gosta muito de ser seguido por uma adversativa, como, por exemplo, em “ele é velho, mas entende tudo o que a gente fala”.

Bem, o fato é que hoje deve aparecer no boteco um grande número de velhotes, de todos os estilos. Tem seu lado bom. Vamos reconhecer que a juventude impacienta um pouco os mais velhos e, como já se observou, conversar com jovem cansa muito, porque se tem que falar demais. Vão chegando os velhotes, todos invariavelmente cumprindo o ritual do “você está bem, você está muito bem”. Em seguida, a troca de novidades. Um tomou um porre de gim em agosto que o deixou torto até hoje, de maneira que não tem saído. Outro está usando fraldão, mas sai numa boa. Outros se foram definitivamente, ou estão com a partida mais ou menos marcada. Dois ficaram viúvos, três viajaram a Buenos Aires e seis deixaram de beber destilados. No mais, alguns relatórios de praxe, o animado cotejo de resultados de exames e remédios, papos acalorados sobre colesterol, triglicerídeos, PSA, glicose, antidepressivos, artrite, implantes dentários, pontes de safena, colonoscopia, esteatose hepática, função cognitiva, câncer de pele, ultrassonografia abdominal, cataratas, perda óssea, estatinas, próstata e o renomado exame da dedada. E, finalmente, todos professarão horror à ideia de ver os fogos do réveillon.

Quando eu era jovem, achava bonito ter nascido num primeiro de janeiro, começando a vida junto com o ano e fazendo aniversário num dia de festas e foguetes. Quem me viu, quem me vê, hoje é exatamente o contrário. E quanto mais velho fico, a sensação piora. Não gosto de confessar isto nem a meu diário, mas a verdade é que, todo dia 31 de dezembro, quando os fogos começam a estourar, eu acho que chegou minha hora, dali não passo. Já consultei até dois psiquiatras por causa dessa maluquice, mas o medo de estuporar no fim do ano não passou, só que agora eu tomo umas bolas que eles me receitaram e fico calmo. Cheguei a pensar em me encher dessas bolas e romper o ano dormindo, mas dormir achando que não vai acordar também não é uma boa, não tem jeito para minha situação.

Quem mais fez aniversário este ano? Às vezes parece que eu sou o único no boteco que fica mais velho. Bem, as mulheres mentem ou escondem. Nessa questão de idade, mulher não vale, elas diminuem a idade até para o IBGE. Mas os homens não ficam muito atrás. O Silveirinha nega a idade sem a menor dúvida, já o peguei em contradição mais de uma vez, ele não decorou direito o ano em que nasceu de mentirinha. O Afonso, o Geraldo e, com quase toda a certeza, o Mariano diminuem a idade. Para não falar no Macedinho, que não revela a idade, mas que todo mundo sabe que foi proeiro da arca de Noé. Um dia destes eu me aporrinho e corto uns dois anos também. Tenho mais cabelo que o Afonso, o Geraldo e o Silveirinha e a menor barriga da mesa.

Se fizer sol, vamos viver um começo de tarde animado, com as mulheres passando para a praia e a gente apreciando, na medida do possível. De modo geral, as damas despertam nostalgia e às vezes memórias talvez um tantinho fantasiosas. E há os rabugentos despeitados, como o Linhares e seu compadre Arnaldinho, que desdenham a mulher atual e proclamam a superioridade da mulher do tempo deles. Para eles, as mulheres daquele tempo eram melhores e não se barateavam, se exibindo e transando a torto e a direito, como as de hoje em dia. E os homens, claro, também eram melhores, não eram como esses meninões atuais, que vivem tomando anabolizantes e surfando, deixando o mulherio completamente desatendido. Eu fico assim olhando para o Linhares e o Arnaldinho falando besteira e sempre recordo o grande filósofo que disse que o verdadeiro mal da nova geração é que nós não pertencemos mais a ela. Bom domingo, querido Diário. Mais um, quantos mais ainda?

Você mataria o gordão? - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 29/12

SÃO PAULO - Para alguns, trata-se de uma praga que tomou de assalto a filosofia; para outros, é uma poderosa ferramenta que permite perscrutar os recônditos da psique humana. Falo da "trolleyology", o nome dado aos dilemas morais propostos por Philippa Foot nos anos 60 e desenvolvidos por outros autores.

Tomemos um exemplo. Uma locomotiva desembestada vai atropelar cinco pessoas que estão sobre a linha. Você tem a opção de acionar um dispositivo que faz com que o comboio mude de trilhos, e, neste caso, atinja um único passante. Você aciona a alavanca? Cerca de 90% das pessoas respondem que sim. É melhor perder uma vida do que cinco.

Vejamos agora uma variante do problema. Você está em cima de uma ponte e avista o trem desenfreado prestes a abalroar cinco caminhantes. A seu lado está um sujeito imenso, que, se lançado sobre os trilhos, teria massa para parar a locomotiva salvando os cinco. Você jogaria o gordão? Aqui, 90% respondem que não, embora, em termos puramente racionais, a situação seja a mesma: sacrificar uma vida para salvar cinco.

O filósofo David Edmonds acaba de lançar "Would You Kill the Fat Man?", em que analisa vários desses problemas e tenta pôr um pouco de ordem não só nas contradições da mente humana como também na cada vez mais volumosa (e às vezes tortuosa) literatura de dilemas morais.

Embora não traga nenhuma revolução interpretativa, o livro é divertido e informativo. Edmonds admite que esses experimentos mentais têm algo de "fake" --paradoxos de laboratório que não acontecem na vida real--, mas mostra que sua relevância está justamente nessa artificialidade. É ela que permite ao filósofo manipular as situações como um cientista e, assim, destrinchar as distinções morais relevantes para nossa espécie. Se há uma chance de a moral tornar-se uma ciência, na interface da filosofia, da psicologia e da biologia, é aí que vamos descobri-la.

Detalhes, detalhes - LUIS FERNANDO VERISSIMO

O GLOBO - 29/12

Diferença do status do negro nas sociedades americana e brasileira, uma racista e outra pretensamente não, pode ser encontrada na quantidade de pianistas negros



Há muitas maneiras de se medir progresso, ou pelo menos mudanças históricas, além dos frios números de uma economia ou além da sociologia convencional. Muitas vezes o detalhe que não é notado é o mais revelador. O Marshall McLuhan (lembra dele?) construiu uma tese inteira em cima da importância da invenção do estribo de cavalo na história do Ocidente. O estribo significou que o aristocrata também passasse a participar das batalhas junto com o pobre soldado a pé, com tudo que isso implicava de novo em questões como relações hierárquicas — e de mortandade entre aristocratas. A história das armas de guerra, que no fim é a história da civilização, pode ser medida em detalhes como o aumento da distância possível para se matar um inimigo, começando com o olho no olho e o tacape na mão do tempo das cavernas, passando pela espada, a lança, o arco e flecha, a catapulta, o mosquete, o fuzil, o canhão, o bombardeio aéreo, etc. e culminando no drone teleguiado, o mais longe que se pode chegar do inimigo sem precisar olhar no seu olho.

Ainda não foi tema de nenhum tratado sociológico, que eu saiba, mas a diferença entre o status do negro nas sociedades americana e brasileira, uma evidentemente racista e outra pretensamente não, pode ser encontrada em um detalhe, a quantidade de pianistas negros nos Estados Unidos em contraste com quase nenhum no Brasil. O jazz teve duas vertentes, três se você contar os blues: as bandas de rua, que desfilavam, obviamente, sem pianos, e o ragtime, que era jazz exclusivamente de piano, já tocado, lá nas origens, por músicos negros como Jelly Roll Morton. Pianistas negros pressupõem piano em casa, dinheiro para pagar as aulas, tempo para praticar — ou seja, pressupõem uma classe média. Em Nova Orleans e em outras capitais do Sul dos Estados Unidos, em meio ao apartheid oficial, à discriminação aberta, aos linchamentos e outros horrores, desenvolveu-se uma classe média negra, paralela à branca, com identidade e poder econômico próprios. No Brasil do racismo que não se reconhece como tal, e talvez por causa disto, não aconteceu nada parecido.

Claro, a história econômica dos dois países explica o contraste, mais do que racismo declarado ou disfarçado, mas neste detalhe a diferença fica clara. No Brasil, como nos Estados Unidos, existem grandes músicos saídos de todas as classes sociais. Mas ainda não produzimos pianistas negros em número suficiente para desmentir a nossa hipocrisia racial.

Naufrágio da Justiça - ANCELMO GOIS

O GLOBO - 29/12

Terça agora, completam-se 25 anos do naufrágio do Bateau Mouche, na Baía de Guanabara, um dos episódios mais tristes da história da cidade.
Na tragédia, morreram 55 dos 142 passageiros. Os processos contra os quatro réus — os espanhóis, donos do barco, a Itatiaia, que vendeu os ingressos, a União, responsável por fiscalizar os barcos, e a empresa do bufê — ainda se arrastam na Justiça.


Veja só...
Das 15 famílias representadas pelo advogado João Tancredo, dez receberam indenização. Mas ainda hoje há ação emperrada na primeira instância, na Justiça Federal.
Os dois filhos da atriz yara Amaral, na época com 10 e 11 anos, devem receber os precatórios em 2014.
"Este caso, pela demora no julgamento, é um naufrágio da Justiça', diz Tancredo.
É pena.


Recado do papa
Na mensagem que mandou a bispos e padres brasileiros que conheceu durante a Jornada Mundial da Juventude, Papa Francisco marcou data para voltar ao Brasil. Disse que estará por aqui em 2017 para as festas de Nossa Senhora Aparecida.

Deve ser terrível...
Um casal de brasileiros foi roubado dentro do hotel Courtyar Marriot Waikiki, no Havaí, na semana passada.
Felipe Figueiredo e Gabriela Vianna ficaram sem laptop, mala, roupas e US$ 1.200 em dinheiro. Gabriela calcula que o prejuízo foi de R$ 12 mil.
O casal deu queixa na polícia, mas o hotel, acredite, só devolveu o dinheiro das diárias.


Era de ouro
As radionovelas vão voltar ao ar pela Rádio Nacional AM, em março. O núcleo já foi até reativado.
As gravações começam em janeiro. Uma das diretoras será Daisy Lúcidi, apresentadora mais antiga da rádio que trabalhou em folhetins escritos por Janete Clair e Dias Gomes.
Aliás, os textos serão todos atualizados.


Como se sabe...
As radionovelas saíram do ar nos anos de 1960, com a decadência da Rádio Nacional. O diretor Chico Teixeira lembra que, nos anos de chumbo, a rádio foi fechada, e alguns artistas acabaram presos. Um deles foi Mário Lago.


Livro do ano
Veja que maravilha. "O filho eterno,' de Cristóvão Tezza, entrou na lista dos melhores livros do ano do "Financial Times'.
"The eternal son' ganhou elogios rasgados do jornalão inglês. Diz lá que ele é um "corajoso depoimento do pai de uma criança com síndrome de Down'.
O livro foi lançado no Brasil em 2007, pela Editora Record.


Segue...
A historiadora conta que algumas mulheres usaram o monoquíni na França, na Inglaterra e nos EUA. No Brasil, não há registros de uso do traje.
— Eram mulheres anônimas. A Gina Lollobrigida, por exemplo, ao ser perguntada se usaria a peça, negou.


Juntos no palco
Amigos de longa data, Miguel Falabella e Arlete Salles subirão ao palco juntos, pela primeira vez, na comédia "O que o mordomo viu'.
A estreia será em janeiro, em turnê pelo Nordeste.


Caminho fechado
A GeoRio fechou o acesso a caminhões na estrada que leva ao Sumaré, no trecho onde ficam as torres da TV Brasil e das rádios MEC e Roquette Pinto. Diz que há risco de deslizamento.
As emissoras temem problema na transmissão porque precisam fazer a manutenção no gerador.

Dona Inflação vai à praia
Veja só como deu a louca nos preços neste verão. O aluguel da barraca em frente ao Hotel Caesar Park, ali em Ipanema, no Rio, subiu para R$ 20.
Isto é cinco vezes mais do que o preço cobrado no resto da orla.


A origem do topless
Quem lembrou foi a historiadora de moda Maria do Carmo Rainho. Em 2014, faz 50 anos do monoquíni, aquele maio que deixava os seios de fora que, segundo ela, é a origem do topless.
Maria do Carmo fala sobre esta e outras histórias no livro "Moda e revolução nos anos 1960" que lança em março.

Segue...
A historiadora conta que algumas mulheres usaram o monoquíni na França, na Inglaterra e nos EUA. No Brasil, não há registros de uso do traje.
- Eram mulheres anônimas. A Gina Lollobrigida, por exemplo, ao ser perguntada se usaria a peça, negou.


Se fosse fácil... - MÔNICA BERGAMO

FOLHA DE SP - 29/12

...não teria graça, diz Nando Bolognesi nas palestras (ou "sit down tragedies") em que faz rir e chorar ao revelar como mantém o otimismo depois de abandonar as carreiras de ator e palhaço por ter esclerose múltipla

O Nando passou quatro meses dando carona para a Élida, uma das colegas com quem atuava em uma peça de teatro e que tentava conquistar imaginando estar diante do amor da sua vida. Para seduzi-la, ele seguia a receita do italiano Casanova: "Não há mulher que resista a assiduidade e atenção".

Naquela noite de 1994, os dois enfim "se pegaram" em uma festa. E Nando estava levando a jovem para a chácara de seu pai, em Itu. Já pensava em "abrir um vinhozinho, pegar uma sauninha", quando sentiu "vontade de fazer xixi". Se segurou o quanto pôde. Ao sair do carro, na porta da casa, sentiu "um líquido quente na perna". Tentou disfarçar. Mas os cães da família "vieram com o focinho no meio da minha perna". Arrasado, ele se desculpou. E foi para o chuveiro.

De repente, a porta do banheiro range. Era Élida: "Posso tomar banho com você?".

"E a gente tá tomando banho há 19 anos", diz Luiz Fernando Bolognesi, 45, ator, palhaço profissional, marido da Élida, pai do Leonardo, que vive essa e outras histórias tragicômicas desde que, em 1990, foi diagnosticado com esclerose múltipla. A doença, degenerativa, vem roubando os movimentos de seu corpo. E traz incômodos adicionais como incontinência urinária.

Em 2014, Nando pretende ganhar dinheiro revelando, no teatro, as cachaças que tomou e os tombos que já levou. É o que chama de "plano Z" profissional: por causa da doença, teve que abandonar a carreira de ator (caía no palco) e mais tarde a de palhaço (integrou os grupos Doutores da Alegria e Jogando no Quintal até quando conseguia andar apenas de bengala; hoje, usa muletas). Prestou concurso público. Passou. Mas foi reprovado na perícia médica.

Diante das portas que se fechavam, resolveu retomar projeto antigo: se apresentar sozinho no palco, falando dos percalços da própria vida. "Eu nunca gostei de stand-up comedy. Resolvi fazer a sit down tragedy'." As primeiras apresentações, na Faap e num teatro na Pompeia, lotaram com a divulgação entre amigos do Facebook. Prepara outras tantas para 2014.

Nelas, que terminam sempre entre choros e gargalhadas, Nando conta que, até os anos 80, era o típico jovem da classe média alta de SP: filho de executivo, era o caçula de dois irmãos (o mais velho é o cineasta Luiz Bolognesi, casado com a diretora Laís Bodanzky). Estudou no Colégio Santa Cruz. Entrou em economia na USP e em história na PUC. Vivia da mesada do pai.

Virou "um aluno bem medíocre", "deslumbrado com a liberdade" de que gozam os universitários de seu círculo social. Até queria mudar o mundo. Mas gostava mesmo era de jogar basquete no clube Paineiras, remar, correr e jogar futebol. "Me dedicava aos esportes e às noitadas."

Aos 21 anos, recém-formado, ganhou um presentão do pai: uma passagem para rodar a Europa e "espairecer" antes de pegar no batente.

"Foi uma coisa muito intensa, uma descoberta, um sonho", lembra. Arranjou emprego numa "relojoariazinha vagabunda no metrô", em Londres. Refletia, escrevia um diário. Começou a achar que a civilização "estava sendo escravizada". Decidiu que seria ator.

E, claro, encontrou logo um campo e amigos para jogar futebol. Foi então que deu o primeiro tropeço. "Joguei mal, chutei o chão." Num outro dia, ao correr para pegar o metrô, quase caiu da escada rolante. "Pensei: Que esquisito'. Mas a viagem estava tão incrível que eu não tinha tempo para ficar em crise."

Em Paris, caiu numa sarjeta e não conseguiu se levantar sozinho. Na Itália, teve dificuldades para preencher a ficha do hotel. Não conseguia apertar o frasco do desodorante. Procurou um hospital. Queriam interná-lo. Voltou ao Brasil. E teve o diagnóstico da esclerose múltipla.

O médico disse à família que, mesmo com a doença, ele poderia levar uma vida normal. Chegou a voltar para a Europa e a viajar com um amigo de bicicleta pela Holanda. Amarrava o pé que estava sem força no pedal. Levava tombo atrás de tombo. Mas a vida seguia, bela e intensa. E ele, "desencanado".

Só voltou a se preocupar num dia em que, na Bélgica, não conseguiu mexer um dos pés. "Senti então a mesma sensação de quando fui à boca do vulcão Stromboli, na Itália, e começou uma micro-erupção. Não era medo. E sim um grande respeito. Vi que me confrontava com uma coisa muito maior. Tive a mesma sensação de pequenez."

A segunda "ficha que caiu" foi quando soube que a incidência da esclerose era de um caso para cada grupo de 100 mil habitantes no Brasil. "Era como seu eu estivesse no Morumbi, na final do Corinthians e São Paulo, e anunciassem que alguém ali teria a doença. A gente sempre acha que as coisas acontecem com o outro. Aí seria alguém do setor amarelo. Da fila J... eu! Cara, eu sou o outro. Tá acontecendo comigo!"

"E não adianta eu ter pai bem relacionado, tio deputado, ser bom aluno. Nada disso vai resolver", segue ele. "As coisas são como elas são. Não tem merecimento, sentido da vida. As coisas são e pronto. A gente é que pendura os significados nelas. A vida tá aí, bicho. A vida tá aí e você não é diferente de ninguém. Eu sou eu só pra mim. Para os outros 6 bilhões de pessoas do mundo, eu sou o outro. E, se acontece com o outro, acontece comigo também." Virou o pior jogador do time de futebol. "De repente, eu era aquele cara com quem eu sempre tinha gritado. Foi um trabalho de humildade."

Parou de beber e passou a se alimentar melhor. Entrou na EAD (Escola de Artes Dramáticas) da USP. "Fiquei encantado. Como eu tinha vivido sem aquilo por tanto tempo?" Mas logo veio um novo tombo. Agora em público, na primeira peça em que atuou.

"Baita sucesso, casa cheia", lembra. Ele entra em cena. E se esborracha no chão: as sequelas da doença, que tiram a força das pernas, já se manifestavam de forma contundente. "Aí fiquei mal: Caramba, bicho. Será que a esclerose vai me impedir de ser ator?'." Seguiu na profissão com essa dúvida.

Chorava no quarto, e só se fortalecia ao ouvir "Maria, Maria", de Milton Nascimento e Fernando Brant, na voz de Elis Regina. "É isso aí, cara. Sou corintiano, é preciso ter força, é preciso ter gana'. Virou ritual: quando estava down', eu falava Elis, Elis, vamos lá'. E botava o disco."

No último semestre da EAD, a luz surgiu no fim do túnel: Nando fez oficina de palhaço. E se identificou com "aquela figura que tropeça, que faz a coisa errada, que é inapto, chega em último. Porque eu sempre fui inadequado. Na economia, usava brinco. Na história, era o burguesinho que tinha carro. Na EAD, o careta, que usava camisa por dentro da calça."

Nascia o palhaço Comendador Nelson. Na "pele" dele, Nando visitou hospitais com os Doutores da Alegria. Fez sucesso com a companhia Jogando no Quintal. Atuou em hospitais psiquiátricos na dupla Fantásticos Frenéticos. "Eu sempre falo: as soluções são simples e óbvias. A gente não as vê porque fica se martirizando." Uma das coisas que a profissão de palhaço ensina, diz, é a "desdramatizar o mundo". Fez vários tipos de terapia --antroposófica, xamânica, com um pai de santo.

Em 2005, começou a piorar. Passou da cortisona em comprimido para intravenosa. Em seguida, quimioterapia. Em 2009, se submeteu a um transplante de medula. Ficou 45 dias internado. Tinha "sonhos intensos, muito malucos, muito fortes".

A doença estacionou. Mas a fadiga crescia. Da bengala, passou a usar muletas. A profissão de palhaço também chegava ao fim. "Foi aí que falei: Bom, vou prestar concurso publico'." À euforia do sucesso nas provas para ser auditor fiscal sobreveio a reprovação na perícia médica, que o fez recorrer à Justiça contra a Prefeitura de SP.

E é por isso que agora Nando, que hoje vive em Itu, partiu para as palestras. Ansioso, mas achando que tudo vai dar certo.

E essa certeza ele tem desde que, numa viagem de avião, leu num livro da francesa Simone de Beauvoir: "É preciso saber aguardar a simplicidade dos fatos".

"Eu li aquilo e me lembrei imediatamente das provas de química da época do colegial. Eu passava dois meses assustadíssimo. Era um terror. E a prova durava só 50 minutos -- e era infinitamente mais simples do que os dois meses que eu passara sofrendo por causa dela. Realmente as coisas são mais simples do que parecem. A gente é que cria fantasia sobre elas."

Crise de representatividade - ILIMAR FRANCO

O GLOBO - 29/12

Cientistas políticos preveem o incremento da abstenção, dos votos branco e nulo em 2014. Os protestos de junho teriam revelado um crescente inconformismo com a política. Os eleitores não aceitam o comportamento e os privilégios dos políticos. Na eleição (2012) para prefeito de São Paulo, esses votos foram de 32%. Em 2010, no pleito para presidente, foram de 25% (1@ turno) e 28% (2@ turno).

O desafio dos candidatos
Esses cientistas políticos avaliam que o eleitor cansou de lero-lero e está à espera de gestos e atitudes. Um deles avalia: “Não há lugar para um caçador de marajás, mas para quem, como o Papa Francisco, dê o exemplo.” O desafio dos candidatos será o de encarnar esse político. “O eleitor vai escolher entre os nomes existentes. O índice dos que querem oxigenar o Legislativo costuma ser de 60%, mas a renovação média é de 30%”, diz o diretor de um instituto de pesquisa. Essa disparidade ocorre, explica, devido ao nível de conhecimento dos candidatos e à capacidade deles de se venderem à imagem e semelhança do que a população quer para dirigir seus destinos.

“Durante a jornada de junho vimos o aparato repressor da PM nas ruas coibindo movimentos sociais e ativistas” 

Partido dos Trabalhadores
Texto de moção aprovada no recente Congresso do partido que reivindica o fim das polícias militares dos estados


A encarnação da rebeldia
A candidatura do senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), segundo analistas políticos, tem limitações para capitalizar o voto de protesto. Ele não é conhecido, como a ex-senadora Heloísa Helena, e nem há tempo para gerar sua marca.

Telefone sem fio
Os petistas estão em campanha contra a ida do ex-ministro Ciro Gomes para a Saúde. Eles querem demover a presidente Dilma e conquistar apoio do ex-presidente Lula. E se deleitam, retransmitindo na rede, entrevista em que Ciro, num dos trechos diz que Lula “está conspirando" para ser o candidato do PT nas eleições presidenciais de 2014.

Correndo atrás do voto
O candidato do PR ao governo do Rio, Anthony Garotinho, entra o ano montando subdiretórios em todos os bairros da capital. O do PT, Lindbergh Farias, vai reforçar sua campanha em São Gonçalo, na Baixada e no subúrbio do Rio.

Apostando no cargo
O candidato do PMDB, Luiz Fernando Pezão, vai assumir o governo do Rio em março e conta com isso para se tornar competitivo. Até lá, vai tocar os projetos de infraestrutura, que estão em suas mãos, e entregar obras, entre as quais, as da Região Serrana, atingida por fortes chuvas em 2012. Sua preferência é fazê-lo ao lado da presidente Dilma.

Sair do isolamento
Os candidatos ao governo do Rio do PRB, Marcelo Crivella, e do DEM, Cesar Maia, têm como prioridade, no primeiro trimestre de 2014, ampliar suas alianças eleitorais. Crivella contará com a visibilidade do Ministério da Pesca.

O cargo faz a diferença
O vice João Lyra ganhou pontos na corrida pela candidatura do PSB ao governo de Pernambuco. Ele vai assumir o governo e, na eleição, Eduardo Campos, candidato a presidente, não poderá levar seu candidato pela mão, como em Recife.

A PRESIDENTE DILMA tem agenda pesada até maio. Ela vai entregar nos municípios milhares de patrol, retroescavadeiras, caminhões caçamba e pipa.