O GLOBO - 29/12
A Constituição de 1988 teve a intenção de passar a limpo praticamente todas as demandas institucionais de um país que saía do longo período de arbítrio do regime de 64. No corpo permanente da Carta, tratou-se de sincronizar a vida institucional à nova realidade provocada pelo fim da ditadura. No capítulo das disposições transitórias, os constituintes inscreveram uma série de questões que não eram de interesse geral da sociedade, senão objeto de litígios, disputas e contestações pontuais — mas, ainda assim, pendentes de serem resolvidas.
Entre essas contendas, o artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias contemplou o reconhecimento de supostos quilombos, um pressuposto para a regularização fundiária de áreas ocupadas por autoalegados descendentes de escravos. Passado mais de um quarto de século desde a promulgação da Constituição, a discussão, controversa, está na agenda do Supremo Tribunal Federal, à espera de uma solução final.
O artigo 68 trata do reconhecimento dos quilombos remanescentes à época da aprovação da nova Carta, em 1988. Foi um referendo à luta dos escravos que, conseguindo fugir das fazendas, resistiram naqueles nichos de liberdade, uma afirmação contra a opressão escravocrata. Enfim, uma reparação, alcançando os legítimos descendentes (os chamados quilombolas) dos que lutaram contra a escravidão, a uma injustiça que, ao se abater sobre a população negra do país naquele período, maculou a História do Brasil. No entanto, ao que parecia ser uma boa intenção do constituinte seguiu-se uma confusão sobre o alcance do benefício do ato transitório. Em 2003, logo ao assumir o governo, o então presidente Lula assinou o Decreto 4.887, na mesma lógica político-ideológica de outras ações de “reparo” histórico: em vez de disciplinar a aplicação do artigo 68, o ato abriu brechas para que litígios fundiários, mesmo depois de 1988, se abrigassem de forma oportunista na legislação relacionada a supostos direitos de quilombolas.
De tal forma que a questão transbordou, por exemplo, até para áreas vitais à segurança nacional. Entre terras reclamadas por quilombolas estão a Base de Alcântara (MA), estratégica para o programa espacial brasileiro, e a Restinga da Marambaia, no Rio, região que a Marinha usa para treinamento e, assim, mantém a salvo da especulação. Também no Rio, na recente querela sobre a retomada de áreas ilegalmente ocupadas com moradias no Jardim Botânico apareciam, entre os invasores, as digitais de autoalegados quilombolas.
Evidência de que se trata de tema tão complexo quanto desvirtuado dos objetivos originais, a questão é objeto de uma ação direta de inconstitucionalidade. O DEM entrou com a medida junto ao Supremo, que chegou a incluir a ação em sua pauta (com o voto pela inconstitucionalidade do decreto 4.887 dado pelo então ministro Cezar Peluso, e pedido de vistas da ministra Rosa Weber, o que o mantém fora da pauta). Quando voltar ao plenário, espera-se que o STF recoloque o artigo 68 em seu foco original, desembaraçando-o de um viés que, por oportunista, agride a segurança jurídica.
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