O GLOBO - 29/12
A forçada imitação de hábitos do Atlântico Norte na árvore de Natal e no Halloween
Minha irmã Clara me telefonou de Santo Amaro e terminamos falando sobre a inexistência da árvore de Natal na nossa infância. Clara é 10 anos mais velha do que eu, de modo que escrever “nossa infância” é esticar demais o sentido da expressão. Bethânia, que é mais nova do que eu 4 anos, deve lembrar-se de Natais com falsos pinheiros em sua meninice. Lembro que as mudanças foram se dando e se acelerando justamente entre o período escuro do começo da minha vida e as crescentes luzes que anunciavam a adolescência, o domínio do entendimento e a autonomia. Nosso natal era, no começo, feito de presépio, folhas de pitanga e areia da praia. Todas as casas de Santo Amaro (e, já nos anos 1960, mesmo os ônibus de Salvador) se enchiam de ramos de pitangueira ao aproximar-se o 25 de dezembro. O cheiro era celestial e telúrico. A areia da praia (areia branca retirada de dunas e areais, essas dunas baianas brancas como a neve) era espalhada sobre a lajota dos pisos internos das moradias. Folhas de pitanga salpicadas sobre isso. E galhos nos vasos. Depois foram surgindo árvores de Natal com algodão e bolas brilhantes, luzezinhas que piscavam etc. — tudo copiado, não tanto dos filmes americanos que víamos, mas das revistas “O Cruzeiro” e “Manchete”, que copiavam o que se via nesses filmes, trazendo tudo para mais perto de nós, em sugestões de decoração, com exemplos em casas cariocas habitadas por gente com cara de brasileira nas fotografias.
Eu estranhava. Clara me confirmou na quarta-feira (25) que todos estranhávamos. A comparação com o fenômeno mais recente da importação do Halloween, que aparece de modo engraçadíssimo na crônica de Antonio Prata intitulada “A árvore” (aliás, que beleza a capacidade redacional desse rapaz, que renascimento da crônica propriamente dita — mas carregada de energia como nunca antes — é o seu trabalho, revelado para mim por minha nora Clara, que, além de ler-me uma brilhantíssima peça chamada “Cliente paulista, garçom carioca”, me deu de presente de Natal o livro “Meio intelectual, meio de esquerda”, o que me levou a descobrir que aqui em casa eu já tinha “Nu, de botas”, que a Companhia das Letras me mandou, não tinha lido — do jovem Prata eu só conhecia comentários orais sobre texto escrito por ele ironizando ideias da direita que foi tomado a sério por leitores direitistas — mas vou ler, assim como o referido artigo reacionário), a comparação, como eu ia dizendo, é pertinente. As visões do Natal com pinheiros de palha ou de plástico, neve falsa e bolas espelhantes era percebida por nós, na Santo Amaro dos anos 1940/50, como uma forçada imitação de hábitos do Atlântico Norte, não menos alienado que o Halloween pode ser hoje.
Já contei aqui como fui me aproximando do “novo” Natal: pelo caminho do gosto arraigado pela festa pública, qualquer festa pública. As árvores anuais da Lagoa chegaram a me proporcionar alegria e, em alguns anos mais felizes, me pareceram consideravelmente elegantes. Este ano, numa ida a São Paulo para participar de um show ao lado de Emicida e Tom Zé, fiquei impressionado com o engarrafamento nos arredores da Avenida Paulista: milhares de pessoas (tanto turistas quanto paulistanos) saíam para ver as luzes e alegorias nos prédios das corporações. As ruas transversais que dão para os Jardins, numa das quais ficava meu hotel, esplendiam. Aquilo tudo me dava uma gota de excitação carnavalesca, mas a pletora de luzes (comparada com a qual toda a ornamentação do Rio, árvore da Lagoa incluída, parece muito acanhada) sugeria ostentação de riqueza, falava da força da grana. De todo modo, a reação crítica ao mau gosto que ronda o Natal quase sempre se sobrepõe, em mim, aos esboços de festejo íntimo.
Refugio-me nos livros. A leitura do “Getúlio” de Lira Neto, tão aconselhada por Jorge Mautner, me prendeu desde as primeiras páginas — e revelações como o discurso anticristão, de evidente inspiração nietzschiana, do jovem Vargas, além da oposição culta ao liberalismo em discursos na assembleia gaúcha, me dão vontade de ler logo as tantas páginas que restam (e as que ainda não foram publicadas). Interrompi essa aventura gauchesca para ler as crônicas do jovem Prata. E agora me dou conta de que volto a falar dele. Ah: dei uma parada aqui e fui conferir o artigo “Guinada à direita”: a frase “trocar as sístoles pela sinapses”, referente à famosa tirada atribuída a “Celmanceau, Bernard Shaw e Churchil”, que opõe socialismo/juventude/coração a maturidade/cérebro, é show de bola. Prata podia tirar 10 em redação sem ser nerd. Tem tudo do meu mundo (e do do pai dele) e do mundo de depois.
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