ZERO HORA - 07/08
Passei mais de um mês fora do jornal – torço para que tenham reparado. Estive estudando em Londres e virando a cidade do avesso. Sigo não falando inglês com fluência: é projeto para uma vida. Mas o vocabulário se expandiu e a cabeça também, como acontece sempre que se sai em viagem de descobrimento. Voltei me perguntando o que ainda faz de Londres minha cidade preferida no mundo, e, sendo ela tão diversa, não há uma resposta única.
Não importa em que bairro, em que pub, em que estação de metrô você esteja: sempre escutará de três a quatro idiomas diferentes ao mesmo tempo, o que anula nossa nacionalidade e nos dá a sensação arejada de pertencer ao planeta – Londres não é uma capital humilde, como se sabe. Falando em metrô: o primeiro trem subterrâneo de Londres começou a circular em 1863, antes mesmo da invenção da energia elétrica (era movido a vapor). Mind the gap. O nosso começará a circular em algum ano entre 2017 e o infinito.
O.k., evitarei comparações, até porque o londrino está menos londrino: já não é pontual e polido com fanatismo, deu uma relaxada, e isso de certa forma o democratiza. Até a rainha está mais “gente como a gente”. Uma semana antes de o bisneto vir ao mundo, foi perguntada se tinha preferência por menino ou menina: “Tanto faz, desde que nasça logo, pois quero sair de férias”. Foi-se o tempo em que responder “desde que venha com saúde” é que era nobre.
Aliás, se ouvia falar do pequeno George na imprensa, e só na imprensa. Nas ruas, nem um pio. Ninguém se mobilizou. Aquele grupo reunido em frente ao Palácio de Buckingham no dia 22 de julho era composto apenas de turistas estrangeiros, em mesmo número dos que estão lá hoje e que estarão lá amanhã. O inglês está mais interessado na vida real do que na realeza.
Londres perdeu um pouco a fleuma até no clima. Com temperaturas acima dos 30 graus, sem um pingo de chuva por semanas seguidas, a falta de compostura diante do calor virou notícia. Nunca se viu tanto homem sem camisa pelas ruas – para eles, prova irrefutável da decadência do império.
Ou seja, Londres está mais solta – me segurei para não escrever “mais brasileira”, mas não ando bebendo tanto assim. Continua majestosa em sua arquitetura, com museus de tirar o fôlego (a exposição do fotógrafo Sebastião Salgado no Museu de História Natural é de nos encher de orgulho – absolutamente espetacular) e com parques cujo paisagismo você jura que ficou a cargo de algum pintor impressionista.
Aliás, foi em um parque que meu queixo tremeu e quase fui às lágrimas, e não por causa dos esquilos e das flores: enquanto o Papa abençoava nossa terra, eu dizia amém para os Rolling Stones em show satânico em pleno Hyde Park, com Mick Jagger a poucos metros de distância, em carne, osso, rugas e testosterona. Como se sabe, o sublime pode se manifestar de maneiras variadas e insuspeitas.
Enferrujada do jeito que estou, considere este texto apenas como um “oi, cheguei”. Um breve sumário de assuntos que logo adiante serão mais bem desenvolvidos. Por ora, ofereço esse patchwork só para dizer que estava com saudades e que, por mais que viajar seja fascinante, nada como estar de volta à casa.
quarta-feira, agosto 07, 2013
Reduzido a um clique - RUY CASTRO
FOLHA DE SP - 07/08
RIO DE JANEIRO - A notícia é alarmante: "Amazon se prepara para vender livros físicos no Brasil". O alarme não se limita à iminente entrada da Amazon no mercado brasileiro de livros - algo que lembrará o passeio de um brontossauro pela Colombo. A ameaça começa pela expressão "livros físicos". É o que, a partir de agora, o diferenciará dos livros digitais.
Pelos últimos mil anos, dos manuscritos aos incunábulos e aos impressos a laser, os livros têm sido chamados de livros. Nunca precisaram de adjetivos para distingui-los dos astrolábios, das guilhotinas ou das cenouras. Quando se dizia "livro", todos entendiam um objeto de peso e volume, composto de folhas encadernadas, protegidas por papelão ou couro, nas quais se gravavam a tinta palavras ou imagens.
Há 200 anos, os livros deixaram de ser privilégio das bibliotecas públicas ou particulares e passaram a ser vendidos em lojas especializadas, chamadas livrarias. Desde sempre, as livrarias se caracterizaram por estantes altas, vendedores atenciosos, uma atmosfera de paz e a ocasional presença de um gato. Foi nelas que leitores e escritores aprenderam a se encontrar e trocar ideias, gerando uma emulação com a qual a cultura teve muito a ganhar.
A Amazon dispensa tudo isso. Ela vende livros "físicos", mas a partir de um endereço imaterial - nada físico -, acessível apenas pela internet. Dispensa as livrarias. Se você se interessar por um livro (certamente recomendado por uma lista de best-sellers), basta o número do seu cartão de crédito e um clique. Em dois dias, ele estará em suas mãos --e a um preço mais em conta, porque a Amazon não tem gastos com aluguel, escritório, luz, funcionários humanos e nem mesmo a ração do gato.
Com sorte, os livros continuarão "físicos". Mas os leitores correm o risco de ser reduzidos a um número de cartão de crédito e um clique.
RIO DE JANEIRO - A notícia é alarmante: "Amazon se prepara para vender livros físicos no Brasil". O alarme não se limita à iminente entrada da Amazon no mercado brasileiro de livros - algo que lembrará o passeio de um brontossauro pela Colombo. A ameaça começa pela expressão "livros físicos". É o que, a partir de agora, o diferenciará dos livros digitais.
Pelos últimos mil anos, dos manuscritos aos incunábulos e aos impressos a laser, os livros têm sido chamados de livros. Nunca precisaram de adjetivos para distingui-los dos astrolábios, das guilhotinas ou das cenouras. Quando se dizia "livro", todos entendiam um objeto de peso e volume, composto de folhas encadernadas, protegidas por papelão ou couro, nas quais se gravavam a tinta palavras ou imagens.
Há 200 anos, os livros deixaram de ser privilégio das bibliotecas públicas ou particulares e passaram a ser vendidos em lojas especializadas, chamadas livrarias. Desde sempre, as livrarias se caracterizaram por estantes altas, vendedores atenciosos, uma atmosfera de paz e a ocasional presença de um gato. Foi nelas que leitores e escritores aprenderam a se encontrar e trocar ideias, gerando uma emulação com a qual a cultura teve muito a ganhar.
A Amazon dispensa tudo isso. Ela vende livros "físicos", mas a partir de um endereço imaterial - nada físico -, acessível apenas pela internet. Dispensa as livrarias. Se você se interessar por um livro (certamente recomendado por uma lista de best-sellers), basta o número do seu cartão de crédito e um clique. Em dois dias, ele estará em suas mãos --e a um preço mais em conta, porque a Amazon não tem gastos com aluguel, escritório, luz, funcionários humanos e nem mesmo a ração do gato.
Com sorte, os livros continuarão "físicos". Mas os leitores correm o risco de ser reduzidos a um número de cartão de crédito e um clique.
Os alvos de Aécio - ILIMAR FRANCO
O GLOBO - 07/08
O candidato do PSDB ao Planalto, Aécio Neves, vai intensificar sua presença em São Paulo e no Nordeste. Em ambos, está de olho no potencial eleitoral. No caso paulista, procura também usufruir da força partidária local. No Nordeste, porque os tucanos estão muito frágeis. O PSDB se preocupa ainda, com aqueles estados onde não comanda os governos nem as prefeituras de capital.
Um cenário eleitoral do Rio
Lindbergh Farias (PT), com 18%, lidera a corrida para o governo do Rio. O Instituto Ideia fechou pesquisa com 1.500 entrevistas no domingo, na qual Marcelo Crivela (PRB) tem 17,5%, Anthony Garotinho (PR) 13,5%, Luiz Fernando Pezão (PMDB) 11,5%, Cesar Maia (DEM) 8,5% e Miro Teixeira (PDT) 4,3%. No cenário com Marcelo Freixo (PSOL), ele chega em segundo com 16%. Os números mostram que, à exceção de Freixo, os demais candidatos perderam cerca de três pontos percentuais em decorrência dos recentes protestos de rua. E revelam ainda, que o senador Lindbergh e o vice-governador Pezão são os candidatos com menor rejeição eleitoral.
Lindbergh Farias (PT), com 18%, lidera a corrida para o governo do Rio. O Instituto Ideia fechou pesquisa com 1.500 entrevistas no domingo, na qual Marcelo Crivela (PRB) tem 17,5%, Anthony Garotinho (PR) 13,5%, Luiz Fernando Pezão (PMDB) 11,5%, Cesar Maia (DEM) 8,5% e Miro Teixeira (PDT) 4,3%. No cenário com Marcelo Freixo (PSOL), ele chega em segundo com 16%. Os números mostram que, à exceção de Freixo, os demais candidatos perderam cerca de três pontos percentuais em decorrência dos recentes protestos de rua. E revelam ainda, que o senador Lindbergh e o vice-governador Pezão são os candidatos com menor rejeição eleitoral.
“Sua cútis está rejuvenescida. E você tem um bom argumento (para a plástica): melhorar a sua visão”
Dilma Rousseff
Presidente da República, quebrando o gelo ontem na reunião com os líderes do Senado, referindo-se à cirurgia plásstica, nas pálpebras, feita pelo senador Benedito de Lira (PP-AL)
Dilma Rousseff
Presidente da República, quebrando o gelo ontem na reunião com os líderes do Senado, referindo-se à cirurgia plásstica, nas pálpebras, feita pelo senador Benedito de Lira (PP-AL)
A palavra de ordem
Num restaurante de Brasília, na segunda-feira à noite, o presidente do DEM, José Agripino, elogiou os candidatos nos estados que buscam novos rumos, evitando que o partido fique refém do projeto eleitoral de seu maior aliado, o PSDB.
Num restaurante de Brasília, na segunda-feira à noite, o presidente do DEM, José Agripino, elogiou os candidatos nos estados que buscam novos rumos, evitando que o partido fique refém do projeto eleitoral de seu maior aliado, o PSDB.
Nomeação caseira
Para evitar confusões, como a da nomeação de Elano Figueiredo para a ANS, o ministro Edison Lobão (Minas e Energia) privilegia a nomeação de técnicos da ANP, como Waldyr Barroso, novo diretor da agência. “Os resultados são melhores quando nomeamos aqueles que já têm experiência na agência”, justifica o ministro.
Para evitar confusões, como a da nomeação de Elano Figueiredo para a ANS, o ministro Edison Lobão (Minas e Energia) privilegia a nomeação de técnicos da ANP, como Waldyr Barroso, novo diretor da agência. “Os resultados são melhores quando nomeamos aqueles que já têm experiência na agência”, justifica o ministro.
Os estrangeiros estão chegando?
O Ministério da Saúde já recebeu cerca de 1.900 inscrições de médicos estrangeiros interessados em se habilitar para atuar no Brasil pelo “Mais Médicos”. Os países com maior número de candidatos são Espanha, Argentina e Portugal.
Marcação homem a homem
Quando estava em debate a questão dos médicos militares, ontem com os líderes no Senado, a presidente Dilma atalhou: “Pode deixar que eu vou ligar para o Renan” (Calheiros, presidente do Senado). O líder Eduardo Braga lembrou que “também é bom falar com o Henrique” (Alves, presidente da Câmara). Dilma emendou: “com o Henrique o Temer fala”, referindo-se ao seu vice.
O Ministério da Saúde já recebeu cerca de 1.900 inscrições de médicos estrangeiros interessados em se habilitar para atuar no Brasil pelo “Mais Médicos”. Os países com maior número de candidatos são Espanha, Argentina e Portugal.
Marcação homem a homem
Quando estava em debate a questão dos médicos militares, ontem com os líderes no Senado, a presidente Dilma atalhou: “Pode deixar que eu vou ligar para o Renan” (Calheiros, presidente do Senado). O líder Eduardo Braga lembrou que “também é bom falar com o Henrique” (Alves, presidente da Câmara). Dilma emendou: “com o Henrique o Temer fala”, referindo-se ao seu vice.
Deixa disso
O líder do PTB no Senado, Gim Argello, chamou para a briga o líder do PMDB, Eunício Oliveira, ontem na reunião com a presidente Dilma. Reclamou do senador João Alberto (PMDB-MA) ter sido nomeado relator do “Mais Médicos”.
O líder do PTB no Senado, Gim Argello, chamou para a briga o líder do PMDB, Eunício Oliveira, ontem na reunião com a presidente Dilma. Reclamou do senador João Alberto (PMDB-MA) ter sido nomeado relator do “Mais Médicos”.
Entrando em campo
Diante do quadro eleitoral criado no Rio com os protestos, o PCdoB ensaia trilhar caminhos próprios e lançar a candidatura da deputada Jandira Feghali ao Senado. Em 2006, Jandira fez 3 milhões de votos nas eleições para o Senado.
Diante do quadro eleitoral criado no Rio com os protestos, o PCdoB ensaia trilhar caminhos próprios e lançar a candidatura da deputada Jandira Feghali ao Senado. Em 2006, Jandira fez 3 milhões de votos nas eleições para o Senado.
O PSB quer que o prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda concorra ao governo de Minas Gerais nas eleições do ano que vem.
Entre estabilização e 'obras públicas' - MARCELO DE PAIVA ABREU
ESTADÃO - 07/08
A pouco mais de um ano das eleições presidenciais de 2014, as perspectivas econômicas não são boas. Inflação no limite superior da meta, crescimento abaixo de 2% em bases anuais, balanço de pagamentos em franca deterioração e péssimo desempenho na formulação e implementação de projetos com envolvimento do setor público.
Faz parte da tradição brasileira que, com a aproximação de eleições presidenciais, a condução da política econômica seja "flexibilizada". O que se pode antecipar é que o governo intensifique medidas que busquem impedir a queda da taxa de crescimento do PIB e eventual queda do emprego. É bem provável que a herança econômica do sucessor de Dilma Rousseff seja ainda pior do que a situação atual.
A candidatura oficial tenderá a negar problemas com a atual política econômica e proporá mais do mesmo, com algum invólucro bolado pelos marqueteiros de plantão. As candidaturas de oposição enfrentarão um dilema doloroso. Quase tão doloroso quanto a obrigação que terá o candidato oficial de defender o governo Dilma Rousseff. É verdade que os candidatos de oposição terão amplo escopo para criticar o medíocre desempenho do atual governo. Em compensação, terão de propor medidas que contribuiriam para reverter o quadro desfavorável que herdariam em janeiro de 2015. Aí reside o problema.
Não há precedentes no Brasil de vitória de candidato presidencial que tenha prometido estabilização. A vitória de Collor, em 1989, em face da desmoralização do governo Sarney, não foi contra o candidato da situação, foi em meio a pântano político, com base em promessas reformistas que hipnotizaram o eleitorado. Estabilização não era o elemento central de sua plataforma. De fato, o eleitorado esperava que qualquer que fosse o candidato vitorioso teria de lidar com o problema inflacionário. Fernando Henrique foi eleito com base nos resultados iniciais positivos da estabilização.
Recuando na história. Nenhuma das fracassadas estabilizações tentadas entre 1945 e 1964 teve papel proeminente nas campanhas presidenciais. Era objetivo oculto no segundo governo Vargas. Foi objetivo passageiro de JK quando, no meio do governo, se preocupou por uns meses com a aceleração inflacionária. Na campanha de Jânio Quadros, estava escondida debaixo da vassoura. Em tempos mais recentes, a ojeriza dos políticos a plataformas que enfatizem a estabilização pode ser ilustrada pela campanha do candidato governista na eleição de 2002. José Serra conduziu a sua campanha minimizando o compromisso com a política econômica adotada no governo FHC. De fato, a eleição de 2002 mais se assemelhou a uma disputa entre dois candidatos de oposição do que a um embate entre candidatos da situação e da oposição.
Getúlio Vargas, depois de tomar posse em 1951, pretendeu, por sugestão de Horácio Lafer, dar prioridade inicial à estabilização, para depois tratar das "obras públicas", uma estratégia batizada de "Campos Salles-Rodrigues Alves". Mas as intenções foram sepultadas pelo canibalismo que caracterizou a sua equipe econômica, especialmente na relação entre Lafer e Ricardo Jafet, levando ao fracasso da estabilização.
O programa do candidato presidencial oficial na campanha de 2014 não poderá escapar da penosa tarefa de dourar a pílula quanto ao desempenho do governo Dilma Rousseff. Já os programas dos candidatos de oposição enfrentarão dificuldades em tornar a parte propositiva viável do ponto de vista eleitoral. O desafio será criar condições para que se adote estratégia econômica nos moldes da sequência considerada por Vargas em 1951: um período inicial de arrumação de casa, seguido de políticas direcionadas à retomada do crescimento sustentado a taxas significativas com inflação sob controle efetivo. Com equipe avessa à antropofagia. Há pouco espaço para otimismo.
A pouco mais de um ano das eleições presidenciais de 2014, as perspectivas econômicas não são boas. Inflação no limite superior da meta, crescimento abaixo de 2% em bases anuais, balanço de pagamentos em franca deterioração e péssimo desempenho na formulação e implementação de projetos com envolvimento do setor público.
Faz parte da tradição brasileira que, com a aproximação de eleições presidenciais, a condução da política econômica seja "flexibilizada". O que se pode antecipar é que o governo intensifique medidas que busquem impedir a queda da taxa de crescimento do PIB e eventual queda do emprego. É bem provável que a herança econômica do sucessor de Dilma Rousseff seja ainda pior do que a situação atual.
A candidatura oficial tenderá a negar problemas com a atual política econômica e proporá mais do mesmo, com algum invólucro bolado pelos marqueteiros de plantão. As candidaturas de oposição enfrentarão um dilema doloroso. Quase tão doloroso quanto a obrigação que terá o candidato oficial de defender o governo Dilma Rousseff. É verdade que os candidatos de oposição terão amplo escopo para criticar o medíocre desempenho do atual governo. Em compensação, terão de propor medidas que contribuiriam para reverter o quadro desfavorável que herdariam em janeiro de 2015. Aí reside o problema.
Não há precedentes no Brasil de vitória de candidato presidencial que tenha prometido estabilização. A vitória de Collor, em 1989, em face da desmoralização do governo Sarney, não foi contra o candidato da situação, foi em meio a pântano político, com base em promessas reformistas que hipnotizaram o eleitorado. Estabilização não era o elemento central de sua plataforma. De fato, o eleitorado esperava que qualquer que fosse o candidato vitorioso teria de lidar com o problema inflacionário. Fernando Henrique foi eleito com base nos resultados iniciais positivos da estabilização.
Recuando na história. Nenhuma das fracassadas estabilizações tentadas entre 1945 e 1964 teve papel proeminente nas campanhas presidenciais. Era objetivo oculto no segundo governo Vargas. Foi objetivo passageiro de JK quando, no meio do governo, se preocupou por uns meses com a aceleração inflacionária. Na campanha de Jânio Quadros, estava escondida debaixo da vassoura. Em tempos mais recentes, a ojeriza dos políticos a plataformas que enfatizem a estabilização pode ser ilustrada pela campanha do candidato governista na eleição de 2002. José Serra conduziu a sua campanha minimizando o compromisso com a política econômica adotada no governo FHC. De fato, a eleição de 2002 mais se assemelhou a uma disputa entre dois candidatos de oposição do que a um embate entre candidatos da situação e da oposição.
Getúlio Vargas, depois de tomar posse em 1951, pretendeu, por sugestão de Horácio Lafer, dar prioridade inicial à estabilização, para depois tratar das "obras públicas", uma estratégia batizada de "Campos Salles-Rodrigues Alves". Mas as intenções foram sepultadas pelo canibalismo que caracterizou a sua equipe econômica, especialmente na relação entre Lafer e Ricardo Jafet, levando ao fracasso da estabilização.
O programa do candidato presidencial oficial na campanha de 2014 não poderá escapar da penosa tarefa de dourar a pílula quanto ao desempenho do governo Dilma Rousseff. Já os programas dos candidatos de oposição enfrentarão dificuldades em tornar a parte propositiva viável do ponto de vista eleitoral. O desafio será criar condições para que se adote estratégia econômica nos moldes da sequência considerada por Vargas em 1951: um período inicial de arrumação de casa, seguido de políticas direcionadas à retomada do crescimento sustentado a taxas significativas com inflação sob controle efetivo. Com equipe avessa à antropofagia. Há pouco espaço para otimismo.
Pessimismo e realismo - CELSO MING
ESTADÃO - 07/08
Nesta terça-feira, o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, tentou demonstrar a empresários em São Paulo que “a percepção da economia pelo mercado e pelos agentes econômicos é mais pessimista do que a realidade”.
Tombini limitou-se a apontar áreas da economia, especialmente a dos investimentos, cujo comportamento vem sendo mais promissor do que o esperado.
O levantamento mais abrangente das expectativas do mercado é realizado justamente pelo Banco Central, por meio do Relatório Focus, que semanalmente apresenta as projeções (pelas medianas) de cerca de cem instituições financeiras, consultorias e outras empresas sobre os principais itens da economia.
Ao contrário do que afirmou Tombini, em geral, as expectativas do mercado são bem mais otimistas do que o que afinal acaba acontecendo. Foi essa a observação que fez dia 4 de agosto, naFolha de S.Paulo, o economista da FGV Samuel Pessoa, após acompanhamento atento das projeções e dos resultados ao longo de cinco anos.
O mercado quer acreditar. E quase sempre aposta em que tudo vá melhorar. O problema é que essa percepção otimista acaba sendo entortada pelas pauladas diárias que o mercado e os empresários acabam levando.
Se Tombini quer mesmo criticar a falta de realismo sobre a avaliação da economia tem de começar pelo que acontece dentro do governo. O campeão das projeções cor-de-rosa é reconhecidamente o ministro da Fazenda, Guido Mantega, que começou os últimos três anos anunciando um crescimento econômico entre 4,5% e 5,0% e vai amargando decepções. Em 2011, o PIB cresceu 2,7%; em 2012, ficou em 0,9%; e em 2013, ele mesmo agora reconhece, será apenas “melhor que 2012”.
Na área fiscal, há meses não se consegue pinçar uma única afirmação consistente do ministro Mantega. Depois do grande vexame do final do ano passado, quando o secretário do Tesouro, Arno Augustin, submeteu as contas públicas de 2012 a mágicas contábeis, o governo garantiu que o superávit primário (sobra de arrecadação para pagamento da dívida) não seria inferior a 3,1% do PIB, ou a R$ 159,9 bilhões. De lá para cá, esses números foram emagrecendo e, a esta altura, o ministro Mantega não consegue explicar como ainda pretende apresentar um resultado de 2,3% do PIB. E vejam que esse PIB não é o das projeções do início do ano; é também o PIB desidratado que, em 2013, provavelmente terá um crescimento ao redor dos 2%.
Quando se trata de avaliar o avanço futuro dos preços, não há nenhuma projeção confiável do governo – a não ser as do Banco Central, que desistiu de afirmar que a inflação convergiria para a meta (de 4,5%) “ainda que de forma não linear”. Há três semanas, por exemplo, a presidente Dilma avisou que a inflação fecharia este ano “na meta”, quando se sabe que a meta a que se refere não são os 4,5% definidos em lei, mas estes acrescidos da margem de tolerância de 2 pontos porcentuais.
Não há quem possa seguir otimista se o governo avisa que não vai mudar sua Nova Matriz Macroeconômica, que deu errado.
Nesta terça-feira, o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, tentou demonstrar a empresários em São Paulo que “a percepção da economia pelo mercado e pelos agentes econômicos é mais pessimista do que a realidade”.
Tombini limitou-se a apontar áreas da economia, especialmente a dos investimentos, cujo comportamento vem sendo mais promissor do que o esperado.
O levantamento mais abrangente das expectativas do mercado é realizado justamente pelo Banco Central, por meio do Relatório Focus, que semanalmente apresenta as projeções (pelas medianas) de cerca de cem instituições financeiras, consultorias e outras empresas sobre os principais itens da economia.
Ao contrário do que afirmou Tombini, em geral, as expectativas do mercado são bem mais otimistas do que o que afinal acaba acontecendo. Foi essa a observação que fez dia 4 de agosto, naFolha de S.Paulo, o economista da FGV Samuel Pessoa, após acompanhamento atento das projeções e dos resultados ao longo de cinco anos.
O mercado quer acreditar. E quase sempre aposta em que tudo vá melhorar. O problema é que essa percepção otimista acaba sendo entortada pelas pauladas diárias que o mercado e os empresários acabam levando.
Se Tombini quer mesmo criticar a falta de realismo sobre a avaliação da economia tem de começar pelo que acontece dentro do governo. O campeão das projeções cor-de-rosa é reconhecidamente o ministro da Fazenda, Guido Mantega, que começou os últimos três anos anunciando um crescimento econômico entre 4,5% e 5,0% e vai amargando decepções. Em 2011, o PIB cresceu 2,7%; em 2012, ficou em 0,9%; e em 2013, ele mesmo agora reconhece, será apenas “melhor que 2012”.
Na área fiscal, há meses não se consegue pinçar uma única afirmação consistente do ministro Mantega. Depois do grande vexame do final do ano passado, quando o secretário do Tesouro, Arno Augustin, submeteu as contas públicas de 2012 a mágicas contábeis, o governo garantiu que o superávit primário (sobra de arrecadação para pagamento da dívida) não seria inferior a 3,1% do PIB, ou a R$ 159,9 bilhões. De lá para cá, esses números foram emagrecendo e, a esta altura, o ministro Mantega não consegue explicar como ainda pretende apresentar um resultado de 2,3% do PIB. E vejam que esse PIB não é o das projeções do início do ano; é também o PIB desidratado que, em 2013, provavelmente terá um crescimento ao redor dos 2%.
Quando se trata de avaliar o avanço futuro dos preços, não há nenhuma projeção confiável do governo – a não ser as do Banco Central, que desistiu de afirmar que a inflação convergiria para a meta (de 4,5%) “ainda que de forma não linear”. Há três semanas, por exemplo, a presidente Dilma avisou que a inflação fecharia este ano “na meta”, quando se sabe que a meta a que se refere não são os 4,5% definidos em lei, mas estes acrescidos da margem de tolerância de 2 pontos porcentuais.
Não há quem possa seguir otimista se o governo avisa que não vai mudar sua Nova Matriz Macroeconômica, que deu errado.
Demografia e trabalho ajudam menos o PIB - CRISTIANO ROMERO
VALOR ECONÔMICO - 07/08
O crescimento da economia brasileira se beneficiou em boa medida, entre 2002 e 2012, do fator trabalho. Tanto a demografia quanto o mercado de trabalho, bem como os ganhos de produtividade, ajudaram a aumentar a taxa de expansão do Produto Interno Bruto (PIB) em relação ao período anterior. A má notícia é que, daqui em diante, esses fatores darão contribuição bem mais modesta. Se a ambição é crescer acima de 2% ao ano, o país terá que fazer reformas para elevar a produtividade do trabalho e a taxa de investimento da economia.
O ritmo de crescimento da população brasileira vem caindo há várias décadas. O país se aproxima também do fim do chamado bônus demográfico, fenômeno que ocorre quando a força de trabalho cresce a um ritmo mais veloz que o da população. Já o mercado de trabalho exibe números perto do pleno emprego, o que igualmente indica, doravante, baixa contribuição ao PIB.
Entre 1992 e 2002, a população brasileira cresceu, em média, 1,5% ao ano. A taxa de participação - relação entre o percentual de pessoas em idade de trabalhar e a população - avançou a um ritmo anual de 0,5%. Isso fez com que o impulso demográfico ao crescimento da economia atingisse 2%.
No mercado de trabalho, a taxa de atividade - a proporção da População Economicamente Ativa, que considera empregados e desempregados, e a PIA (População em Idade Ativa) - recuou 0,1% ao ano, mantendo-se praticamente estável entre 1992 e 2002. Na prática, significa dizer que o mercado de trabalho subtraiu 0,1 ponto percentual do impulso dado por fatores demográficos à alta do PIB. Entre 1992 e 2002, o Brasil teria crescido, portanto, 1,9% ao ano, independentemente do avanço da produtividade.
Quando se observa o período seguinte (2002-2012), conclui-se que, diante do crescimento médio anual da população de 1,1% e da taxa de participação em 0,4%, a demografia contribuiu com 1,5 ponto percentual para a expansão do PIB. Assim como na década anterior, a taxa de atividade caiu 0,1% ao ano. Em compensação, a taxa de emprego acelerou - 0,7% ao ano, em média -, em grande medida por causa da confiança dos agentes no rumo da política econômica.
O mercado de trabalho contribuiu, assim, com 0,6 ponto percentual para o PIB no período mencionado, o que, somado à contribuição da demografia, permitiu alta de 2,1% no crescimento anual, independentemente da produtividade.
Economistas do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV, estimam que, no período atual (2012-2022), a população crescerá a uma média anual de 0,6%. Já a expansão da taxa de participação cairá para 0,3%, refletindo o início do esgotamento do bônus demográfico. Sendo assim, a demografia deve diminuir sua contribuição para o PIB de 2,1 para 0,9 ponto percentual entre as duas décadas.
O Ibre acredita que a taxa de atividade pode melhorar um pouco na década atual, crescendo 0,1% ao ano, em média. O problema é a taxa de emprego. Numa visão otimista, é provável que ela fique estável depois de passar por fase de forte aquecimento. Nesse sentido, sua contribuição para o PIB será ligeiramente superior a zero.
"A notícia preocupante é que os 2% vão se transformar em 1% nos dez anos a partir de 2012. O nível mínimo de crescimento dado apenas pela demografia e pelo mercado de trabalho - não levando em conta, portanto, os ganhos de produtividade - sofreu um tombo e provavelmente ficará em torno de 1% entre 2012 e 2022", diz o diretor do Ibre, Luiz Guilherme Schymura. "A conclusão imediata é que, para que o PIB brasileiro cresça ao ritmo das décadas mais recentes, cujos números não foram motivo de grandes comemorações, a produtividade do trabalho terá que se elevar a uma taxa anual um ponto percentual superior à dos períodos anteriores."
O desafio é gigantesco. No primeiro período analisado - 1992-2002 -, a produtividade avançou, em média, 0,9% ao ano, elevando para 2,9% a capacidade de crescimento da economia. Entre 2002 e 2012, cresceu 1,4% ao ano, o que permitiu um avanço anual médio do PIB de 3,5%. O problema é que, desde 2011, a alta da produtividade tem sido inexpressiva.
No período recente, contribuiu para a aceleração da produtividade a formalização do mercado de trabalho. Outro fator positivo foi o crescimento de 4,3% ao ano da produtividade do setor agropecuário, um dos mais dinâmicos da economia.
No primeiro caso, é difícil saber se a formalização crescerá no ritmo observado nos últimos anos. Provavelmente, não o fará, a não ser que o governo adote medidas para flexibilizar o mercado de trabalho, reduzindo o custo de contratação. No segundo caso, a absorção de trabalhadores agrícolas, decorrente do contínuo aumento da produtividade do agronegócio, não tem escala, adverte Schymura, para mudar o curso dessa variável.
Resta ao país, se quiser acelerar o PIB, criar condições para ampliar a taxa de investimento da economia - o chamado aprofundamento do capital (o aumento do uso de máquinas e equipamentos por trabalhador) -, hoje estacionada em 18,45% do PIB. Isso depende, entre outros fatores, da elevação da poupança doméstica, que no Brasil tem pouco estímulo para crescer.
Além disso, o desafio da produtividade do trabalho passa pelo aprimoramento urgente da educação e pela realização de uma série de mudanças institucionais que estimulem o aumento da produtividade total dos fatores (PTF). A lista de tarefas é extensa, lembra Shymura, que trata do tema na Carta do Ibre que será divulgada hoje. São temas que, na sua maioria, foram relegados durante os tempos de bonança por razões político-ideológicas. Seu enfrentamento só produzirá efeitos a médio e longo prazo.
"As mudanças têm a ver com a absorção de tecnologia e a racionalização do processo produtivo. O que não falta, nesse caso, são tarefas a realizar, como um sistema tributário que reduza o custo de observância da legislação; a melhora do ambiente de negócios em geral e a diminuição do custo de investimento em infraestrutura. Neste último item, uma agenda que se desenha é a de diagnosticar as causas da dificuldade do Estado brasileiro de realizar empreendimentos complexos, como estradas, portos, usinas hidrelétricas, etc", explica Schymura.
Uma escolha simples - ALEXANDRE SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 07/08
Ou fazemos ajuste fiscal que reduza o consumo do governo ou teremos de importar recursos e ter deficit
Tive a honra de participar do 12º Congresso da Associação Brasileira do Agronegócio, no painel que debateu as questões relativas a logística e infraestrutura.
É difícil exagerar a importância do tema: sem querer repetir o lugar-comum do ideograma chinês que representa simultaneamente crise e oportunidade, a infraestrutura é, ao mesmo tempo, um severo obstáculo ao desenvolvimento do país e a maior chance que temos de destravar nosso crescimento.
Não é segredo que a infraestrutura brasileira, em particular a associada aos transportes, encontra-se esgarçada. No mais recente Relatório Global de Competitividade, publicado pelo Fórum Econômico Global, o país ficou com 107ª posição no quesito "qualidade da infraestrutura" entre 144 países, na vizinhança de Paquistão, Nicarágua, Colômbia e Senegal, e bem abaixo dessa colocação nos itens relativos a transportes.
As consequências para o crescimento são óbvias: a baixa qualidade da infraestrutura se reflete na produtividade geral da economia.
Não é necessário um exercício extraordinário de imaginação para concluir que o motorista que transporta a soja do Centro-Oeste para os portos do Sudeste poderia fazer, com o mesmo tempo que gasta hoje, um número maior de viagens se dispusesse de melhores rodo- vias, assim como de portos com capacidade de escoamento que não o forçassem a esperar dias na fila pela oportunidade de descarregar seus grãos e partir para nova jornada.
Posto de forma mais geral, o aumento da infraestrutura por trabalhador deve ter efeitos consideráveis sobre sua produtividade, o que poderia, em particular nas condições de hoje, relaxar a restrição sobre o crescimento que se origina do mercado de trabalho apertado.
Fica claro, portanto, que as carências relativas à infraestrutura representam um constrangimento sério ao crescimento, precisamente por limitar a expansão da produtividade.
Por outro lado, pelo mesmo motivo, os retornos associados a investimentos nessa área devem ser muito elevados. Assim, caso seja possível aumentá-los, os impactos sobre o crescimento potencial do país serão apreciáveis.
Isto dito, o aumento do investimento não é --ao contrário do que parece ser o entendimento vigente no governo-- um ato de vontade do soberano. À parte a questão nada trivial de montar um arranjo institucional que gere os incentivos privados à inversão (o oposto do que a obsessão governamental em limitar os retornos desses projetos irá obter), há o problema da restrição de recursos.
É fato que a poupança nacional, mesmo com a economia operando muito próxima (se não acima) do seu potencial, é modesta, da ordem de 15% do PIB, insuficiente para financiar mesmo o baixo investimento nacional (18% do PIB).
Isso não se deve a nenhuma distorção óbvia do lado do consumo das famílias, que --equivalente a 62% do PIB-- é bastante semelhante ao observado nos demais países latino-americanos.
O consumo do governo, porém, destoa, não apenas no subcontinente mas em termos globais, na ca- sa de 21% do PIB, sugerindo que o nível reduzido da poupança nacional origina-se primordialmen- te do elevado peso do governo na economia.
Dado isto, a elevação do investimento em infraestrutura como proporção do PIB requer uma escolha simples: ou fazemos um ajuste fiscal que reduza o consumo governamental ou teremos que importar os recursos do resto do mundo, sob a forma de deficit externos crescentes, partindo de níveis (3,5% do PIB) bem menos confortáveis do que foram há pouco.
A relutância em conter o gasto público sugere que a segunda alternativa parece a mais provável, implicando maior vulnerabilidade às condições internacionais de liquidez precisamente no momento em que aumentam as chances de mudanças importantes nesse cenário.
Na falta do ajuste fiscal, colocaremos em risco a principal oportunidade de acelerar decisivamente o desenvolvimento do país.
Ou fazemos ajuste fiscal que reduza o consumo do governo ou teremos de importar recursos e ter deficit
Tive a honra de participar do 12º Congresso da Associação Brasileira do Agronegócio, no painel que debateu as questões relativas a logística e infraestrutura.
É difícil exagerar a importância do tema: sem querer repetir o lugar-comum do ideograma chinês que representa simultaneamente crise e oportunidade, a infraestrutura é, ao mesmo tempo, um severo obstáculo ao desenvolvimento do país e a maior chance que temos de destravar nosso crescimento.
Não é segredo que a infraestrutura brasileira, em particular a associada aos transportes, encontra-se esgarçada. No mais recente Relatório Global de Competitividade, publicado pelo Fórum Econômico Global, o país ficou com 107ª posição no quesito "qualidade da infraestrutura" entre 144 países, na vizinhança de Paquistão, Nicarágua, Colômbia e Senegal, e bem abaixo dessa colocação nos itens relativos a transportes.
As consequências para o crescimento são óbvias: a baixa qualidade da infraestrutura se reflete na produtividade geral da economia.
Não é necessário um exercício extraordinário de imaginação para concluir que o motorista que transporta a soja do Centro-Oeste para os portos do Sudeste poderia fazer, com o mesmo tempo que gasta hoje, um número maior de viagens se dispusesse de melhores rodo- vias, assim como de portos com capacidade de escoamento que não o forçassem a esperar dias na fila pela oportunidade de descarregar seus grãos e partir para nova jornada.
Posto de forma mais geral, o aumento da infraestrutura por trabalhador deve ter efeitos consideráveis sobre sua produtividade, o que poderia, em particular nas condições de hoje, relaxar a restrição sobre o crescimento que se origina do mercado de trabalho apertado.
Fica claro, portanto, que as carências relativas à infraestrutura representam um constrangimento sério ao crescimento, precisamente por limitar a expansão da produtividade.
Por outro lado, pelo mesmo motivo, os retornos associados a investimentos nessa área devem ser muito elevados. Assim, caso seja possível aumentá-los, os impactos sobre o crescimento potencial do país serão apreciáveis.
Isto dito, o aumento do investimento não é --ao contrário do que parece ser o entendimento vigente no governo-- um ato de vontade do soberano. À parte a questão nada trivial de montar um arranjo institucional que gere os incentivos privados à inversão (o oposto do que a obsessão governamental em limitar os retornos desses projetos irá obter), há o problema da restrição de recursos.
É fato que a poupança nacional, mesmo com a economia operando muito próxima (se não acima) do seu potencial, é modesta, da ordem de 15% do PIB, insuficiente para financiar mesmo o baixo investimento nacional (18% do PIB).
Isso não se deve a nenhuma distorção óbvia do lado do consumo das famílias, que --equivalente a 62% do PIB-- é bastante semelhante ao observado nos demais países latino-americanos.
O consumo do governo, porém, destoa, não apenas no subcontinente mas em termos globais, na ca- sa de 21% do PIB, sugerindo que o nível reduzido da poupança nacional origina-se primordialmen- te do elevado peso do governo na economia.
Dado isto, a elevação do investimento em infraestrutura como proporção do PIB requer uma escolha simples: ou fazemos um ajuste fiscal que reduza o consumo governamental ou teremos que importar os recursos do resto do mundo, sob a forma de deficit externos crescentes, partindo de níveis (3,5% do PIB) bem menos confortáveis do que foram há pouco.
A relutância em conter o gasto público sugere que a segunda alternativa parece a mais provável, implicando maior vulnerabilidade às condições internacionais de liquidez precisamente no momento em que aumentam as chances de mudanças importantes nesse cenário.
Na falta do ajuste fiscal, colocaremos em risco a principal oportunidade de acelerar decisivamente o desenvolvimento do país.
Para não repetir a barbárie - ESTHER PILLAR GROSSI
ZERO HORA - 07/08
Associando-me à voz das ruas, dirijo-me à Senhora Presidente da República, para gritar bem forte:
_ De nada adiantará destinar 100% dos royalties do petróleo para educação se nada se modificar, concreta e rapidamente, no coração das salas de aula, a começar pela alfabetização.
Se a alfabetização não for feita aos seis anos, no 1º ano do Ensino Fundamental, o desastre do nosso analfabetismo continuará. Grupo que não domina a escrita em pleno século 21 é grupo desesperado, porque escrever é ter esperança.
Ora, temos ainda cerca de 50 milhões de analfabetos adultos, que o são, não porque não frequentaram escola. Frequentaram, sim, por vários anos e dela saíram analfabetos. É, portanto, a escola que não sabe alfabetizá-los. Não sabe alfabetizar alunos de escolas públicas, e para evitar esta constatação dolorosa prolonga-se criminosamente por três anos o tempo para tentar fazê-lo.
Prolongar a duração da alfabetização, se não se modifica a proposta pedagógica nas escolas, nada resultará. E por quê? Porque aprender é vivenciar situações em que os elementos do que se está aprendendo levam a pensar e a perguntar.
As crianças de classes altas e médias, que convivem com pessoas que leem e escrevem, cedo começam a se perguntar sobre o que é ler e escrever. E, mais do que isso, apalpam que a escrita tem valor porque ela é útil e necessária para seus pais, para seus irmãos mais velhos, para seus tios, para seus avós... os quais são para eles modelos de identificação.
Quem não viu criança imitando adulto que lê numa casa que há pessoas que leem?
É preciso que a escola para crianças que vêm de ambientes não alfabetizados, e são muitos no Brasil, crie na sala de aula um ambiente alfabetizador tão próximo quanto possível daquele que os agraciados vivem desde que nascem.
E o faça de forma tão adequada que compense em um ano letivo o que crianças privilegiadas viveram nos seus primeiros anos de vida. Pois o fantástico é que isto é possível. Vem sendo concretizado em todos os Estados brasileiros no Programa Correção de Fluxo Escolar na Alfabetização, do Ministério da Educação. Mais do que em um ano letivo, alunos ainda não alfabetizados que estão na escola com mais de oito anos logram ler e escrever em no máximo cinco meses.
A amostra científica que comprova esta possibilidade é composta por 60 mil alunos deste Programa. Portanto, Senhora Presidente, continuar não abrindo as portas da escrita para tantos contemporâneos, quando já se tem comprovada a possibilidades de fazê-lo, é inadmissível.
Assim como os colonizadores desclassificaram os indígenas, legítimos habitantes das terras descobertas, marginalizando-os, fazemos o mesmo hoje com uma parcela considerável da população, aquela que privamos da escrita, marco da civilização. E o fazemos com ares de superioridade _ os pobres, alunos de escolas públicas não têm condições de ascender ao patamar das classes dominantes, cujos filhos aprendem a ler e a escrever aos cinco ou seis anos.
Ao conceder este prazo dilatado os estamos diretamente condenando à não alfabetização, pois aprender é um fenômeno social e histórico: quem não se alfabetiza no espaço e no tempo que já foi amplamente constatado ser possível, não o fará com mais tempo.
Sara Pain, uma das grandes pensadoras da atualidade, alerta "o tempo é inimigo das dificuldades de aprendizagens". Ampliar o tempo para alfabetizar alunos de camadas populares é uma criminosa repetição da falsa benevolência dos colonizadores, que julgaram os donos da terra, os habitantes milenares dos solos americano e africano, incapazes de alcançar seu pretendido estágio civilizatório avançado.
Alfabetizemos, pois, todos os brasileiros aos seis anos, para não repetir a barbárie dos colonizadores.
Associando-me à voz das ruas, dirijo-me à Senhora Presidente da República, para gritar bem forte:
_ De nada adiantará destinar 100% dos royalties do petróleo para educação se nada se modificar, concreta e rapidamente, no coração das salas de aula, a começar pela alfabetização.
Se a alfabetização não for feita aos seis anos, no 1º ano do Ensino Fundamental, o desastre do nosso analfabetismo continuará. Grupo que não domina a escrita em pleno século 21 é grupo desesperado, porque escrever é ter esperança.
Ora, temos ainda cerca de 50 milhões de analfabetos adultos, que o são, não porque não frequentaram escola. Frequentaram, sim, por vários anos e dela saíram analfabetos. É, portanto, a escola que não sabe alfabetizá-los. Não sabe alfabetizar alunos de escolas públicas, e para evitar esta constatação dolorosa prolonga-se criminosamente por três anos o tempo para tentar fazê-lo.
Prolongar a duração da alfabetização, se não se modifica a proposta pedagógica nas escolas, nada resultará. E por quê? Porque aprender é vivenciar situações em que os elementos do que se está aprendendo levam a pensar e a perguntar.
As crianças de classes altas e médias, que convivem com pessoas que leem e escrevem, cedo começam a se perguntar sobre o que é ler e escrever. E, mais do que isso, apalpam que a escrita tem valor porque ela é útil e necessária para seus pais, para seus irmãos mais velhos, para seus tios, para seus avós... os quais são para eles modelos de identificação.
Quem não viu criança imitando adulto que lê numa casa que há pessoas que leem?
É preciso que a escola para crianças que vêm de ambientes não alfabetizados, e são muitos no Brasil, crie na sala de aula um ambiente alfabetizador tão próximo quanto possível daquele que os agraciados vivem desde que nascem.
E o faça de forma tão adequada que compense em um ano letivo o que crianças privilegiadas viveram nos seus primeiros anos de vida. Pois o fantástico é que isto é possível. Vem sendo concretizado em todos os Estados brasileiros no Programa Correção de Fluxo Escolar na Alfabetização, do Ministério da Educação. Mais do que em um ano letivo, alunos ainda não alfabetizados que estão na escola com mais de oito anos logram ler e escrever em no máximo cinco meses.
A amostra científica que comprova esta possibilidade é composta por 60 mil alunos deste Programa. Portanto, Senhora Presidente, continuar não abrindo as portas da escrita para tantos contemporâneos, quando já se tem comprovada a possibilidades de fazê-lo, é inadmissível.
Assim como os colonizadores desclassificaram os indígenas, legítimos habitantes das terras descobertas, marginalizando-os, fazemos o mesmo hoje com uma parcela considerável da população, aquela que privamos da escrita, marco da civilização. E o fazemos com ares de superioridade _ os pobres, alunos de escolas públicas não têm condições de ascender ao patamar das classes dominantes, cujos filhos aprendem a ler e a escrever aos cinco ou seis anos.
Ao conceder este prazo dilatado os estamos diretamente condenando à não alfabetização, pois aprender é um fenômeno social e histórico: quem não se alfabetiza no espaço e no tempo que já foi amplamente constatado ser possível, não o fará com mais tempo.
Sara Pain, uma das grandes pensadoras da atualidade, alerta "o tempo é inimigo das dificuldades de aprendizagens". Ampliar o tempo para alfabetizar alunos de camadas populares é uma criminosa repetição da falsa benevolência dos colonizadores, que julgaram os donos da terra, os habitantes milenares dos solos americano e africano, incapazes de alcançar seu pretendido estágio civilizatório avançado.
Alfabetizemos, pois, todos os brasileiros aos seis anos, para não repetir a barbárie dos colonizadores.
Novos ventos do mundo - SÉRGIO FAUSTO
O ESTADO DE S. PAULO - 07/08
A recuperação do EUA e a desaceleração da China já produzem efeitos sobre a América Latina. Embora não conheçamos o impacto futuro desses processos, é certo que será crescente nos próximos anos. Os novos ventos da economia internacional são prejudiciais aos países exportadores de commodities, os que mais se beneficiaram do acelerado crescimento chinês dos últimos dez anos. Entre eles, o prejuízo deve ser maior para os que dependem mais das exportações de minérios e petróleo e menor para os produtores de alimentos. Na América Latina, por sua estreita ligação econômica com os EUA, o México tende a ser o mais beneficiado por esses novos ventos. O Brasil, em tese, não deveria estar mal na foto, não fossem erros acumulados nos últimos anos.
Para recorrer a uma imagem que virou clichê, quando a maré baixa é que se sabe quem estava nadando pelado. As fragilidades de países como Argentina e Venezuela já se encontram expostas faz muito tempo. A maior delas é política. São países fraturados em duas partes frontalmente antagonizadas. A situação argentina é menos dramática e mais nuançada. Ainda assim, é difícil identificar, no panorama político dó país vizinho, de onde viriam as forças para reverter o longo caminho de decadência que a Argentina percorre há muitas décadas. Já a Venezuela é um caso de crise aguda, que os novos ventos do mundo só tendem a agravar.
Bem mais favorável é a situação dos países sul-americanos do chamado Arco do Pacífico. Chile, Colômbia e mesmo Peru souberam aproveitar melhor a bonança dos últimos dez anos. Não se deve, contudo, subestimar o desafio que a adaptação ao novo quadro da economia internacional representa para esse grupo de países, em especial o último deles.
No Chile, o provável retorno de Michelle Bachelet à presidência, nas eleições de novembro, aponta para um novo equilíbrio político no país. No quinto governo da Concertación o pêndulo se moverá para a esquerda em relação aos anteriores. Estará em pauta uma reforma fiscal, para aumentar o financiamento público da educação, e uma reforma política, para dar maior espaço de representação parlamentar aos menores partidos, em especial o Partido Comunista. A polarização política com a direita, agora enfraquecida, aumentará. A queda nas exportações de cobre reduzirá o espaço de manobra fiscal do novo governo. Nada, todavia, que indique graves problemas na gestão política e econômica do Chile nos próximos anos.
Na Colômbia a situação é parecida, mas os riscos são maiores, para o bem e para o mal. As negociações com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) entram agora em fase decisiva. Fechado o acordo em tomo da reforma agrária, o primeiro dos temas abordados, o governo e as Farc ingressam estas semanas no terreno pedregoso das discussões sobre os meios e modos para a incorporação do grupo guerrilheiro ao jogo democrático e depois, se vencida essa etapa, sobre seu desarmamento. Candidato à reeleição em 2014, o presidente Juan Manuel Santos joga todas as suas chances no sucesso dessas negociações. Se produzirem resultados, a Colômbia terá dado um passo gigantesco para se consolidar como o segundo mais importante país sul-americano. O fim de uma guerrilha de 50 anos, que chegou a dominar um terço do território do país, compensará com sobra quaisquer dificuldades acarretadas pelos novos ventos do mundo. Não só pelo que representaria politicamente, mas também pela liberação de fatores de produção hoje sob controle das Farc e do narcotráfico (terras e camponeses). Os riscos e a incerteza da travessia, porém, não são desprezíveis.
Maiores são os riscos no Peru. As altas e contínuas taxas de crescimento observadas desde os anos 90 não vieram acompanhadas de aumento da eficácia do Estado na área social e fortalecimento das instituições políticas peruanas. A redução do ritmo de crescimento e da disponibilidade de recursos públicos pode produzir instabilidade social e política significativa, num país que se tomou o maior produtor de coca do mundo e onde ainda sobrevivem focos narcoguerrilheiros do Sendero Luminoso.
De todos os países da região, o México é o que está, em tese, em melhor situação para colher os frutos do novo quadro da economia global. A indústria mexicana ganha com a retomada dos EUA e com o aumento dos custos de-produção na indústria chinesa, sua principal competidora no mercado americano.
Emperradas há dez anos, reformas estruturais têm agora chances de se tornar realidade nesse país. O Pacto pelo México, negociado entre o partido do presidente Pena Nieto, o PRI, e os dois principais partidos da oposição, já produziu mudanças fundamentais nos setores de educação e telecomunicações. Falta o mais importante: a reforma do setor de energia, que põe em questão o regime regulatório em que opera a Pemex, vaca sagrada da Revolução Mexicana, desde sua nacionalização no final dos anos 30, e a reforma fiscal. Ambas são indissociáveis, pois a empresa petrolífera responde por 40% das receitas do Tesouro mexicano e este absorve 80% das receitas daquela, numa equação que impede o investimento da Pemex e amarra as mãos do Estado mexicano. Essas duas reformas estão sobre a mesa, despertando um cauteloso otimismo. Se vierem a ser aprovadas, o México saltará na frente dos demais países da região.
E o Brasil? É verdade que temos algumas condições estruturais e institucionais que ajudam nossa adaptação aos novos ventos do mundo: economia (ainda) diversificada, agronegócio grande e competitivo, amplo mercado interno, instituições comparativamente sólidas, etc.
Mas os erros acumulados foram tantos desde o final do primeiro mandato de Lula que nossa situação é hoje muito mais difícil do que poderia e deveria ser. Por isso, em 2014 é preciso mudar o time que está perdendo.
Para recorrer a uma imagem que virou clichê, quando a maré baixa é que se sabe quem estava nadando pelado. As fragilidades de países como Argentina e Venezuela já se encontram expostas faz muito tempo. A maior delas é política. São países fraturados em duas partes frontalmente antagonizadas. A situação argentina é menos dramática e mais nuançada. Ainda assim, é difícil identificar, no panorama político dó país vizinho, de onde viriam as forças para reverter o longo caminho de decadência que a Argentina percorre há muitas décadas. Já a Venezuela é um caso de crise aguda, que os novos ventos do mundo só tendem a agravar.
Bem mais favorável é a situação dos países sul-americanos do chamado Arco do Pacífico. Chile, Colômbia e mesmo Peru souberam aproveitar melhor a bonança dos últimos dez anos. Não se deve, contudo, subestimar o desafio que a adaptação ao novo quadro da economia internacional representa para esse grupo de países, em especial o último deles.
No Chile, o provável retorno de Michelle Bachelet à presidência, nas eleições de novembro, aponta para um novo equilíbrio político no país. No quinto governo da Concertación o pêndulo se moverá para a esquerda em relação aos anteriores. Estará em pauta uma reforma fiscal, para aumentar o financiamento público da educação, e uma reforma política, para dar maior espaço de representação parlamentar aos menores partidos, em especial o Partido Comunista. A polarização política com a direita, agora enfraquecida, aumentará. A queda nas exportações de cobre reduzirá o espaço de manobra fiscal do novo governo. Nada, todavia, que indique graves problemas na gestão política e econômica do Chile nos próximos anos.
Na Colômbia a situação é parecida, mas os riscos são maiores, para o bem e para o mal. As negociações com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) entram agora em fase decisiva. Fechado o acordo em tomo da reforma agrária, o primeiro dos temas abordados, o governo e as Farc ingressam estas semanas no terreno pedregoso das discussões sobre os meios e modos para a incorporação do grupo guerrilheiro ao jogo democrático e depois, se vencida essa etapa, sobre seu desarmamento. Candidato à reeleição em 2014, o presidente Juan Manuel Santos joga todas as suas chances no sucesso dessas negociações. Se produzirem resultados, a Colômbia terá dado um passo gigantesco para se consolidar como o segundo mais importante país sul-americano. O fim de uma guerrilha de 50 anos, que chegou a dominar um terço do território do país, compensará com sobra quaisquer dificuldades acarretadas pelos novos ventos do mundo. Não só pelo que representaria politicamente, mas também pela liberação de fatores de produção hoje sob controle das Farc e do narcotráfico (terras e camponeses). Os riscos e a incerteza da travessia, porém, não são desprezíveis.
Maiores são os riscos no Peru. As altas e contínuas taxas de crescimento observadas desde os anos 90 não vieram acompanhadas de aumento da eficácia do Estado na área social e fortalecimento das instituições políticas peruanas. A redução do ritmo de crescimento e da disponibilidade de recursos públicos pode produzir instabilidade social e política significativa, num país que se tomou o maior produtor de coca do mundo e onde ainda sobrevivem focos narcoguerrilheiros do Sendero Luminoso.
De todos os países da região, o México é o que está, em tese, em melhor situação para colher os frutos do novo quadro da economia global. A indústria mexicana ganha com a retomada dos EUA e com o aumento dos custos de-produção na indústria chinesa, sua principal competidora no mercado americano.
Emperradas há dez anos, reformas estruturais têm agora chances de se tornar realidade nesse país. O Pacto pelo México, negociado entre o partido do presidente Pena Nieto, o PRI, e os dois principais partidos da oposição, já produziu mudanças fundamentais nos setores de educação e telecomunicações. Falta o mais importante: a reforma do setor de energia, que põe em questão o regime regulatório em que opera a Pemex, vaca sagrada da Revolução Mexicana, desde sua nacionalização no final dos anos 30, e a reforma fiscal. Ambas são indissociáveis, pois a empresa petrolífera responde por 40% das receitas do Tesouro mexicano e este absorve 80% das receitas daquela, numa equação que impede o investimento da Pemex e amarra as mãos do Estado mexicano. Essas duas reformas estão sobre a mesa, despertando um cauteloso otimismo. Se vierem a ser aprovadas, o México saltará na frente dos demais países da região.
E o Brasil? É verdade que temos algumas condições estruturais e institucionais que ajudam nossa adaptação aos novos ventos do mundo: economia (ainda) diversificada, agronegócio grande e competitivo, amplo mercado interno, instituições comparativamente sólidas, etc.
Mas os erros acumulados foram tantos desde o final do primeiro mandato de Lula que nossa situação é hoje muito mais difícil do que poderia e deveria ser. Por isso, em 2014 é preciso mudar o time que está perdendo.
Rendimento zero - VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SP - 07/08
Poupador corre em massa para cadernetas, que, porém, perderam da inflação nos últimos 12 meses
OS BRASILEIROS colocaram muito dinheiro nas cadernetas de poupança em junho. Foram R$ 9,4 bilhões nesse mês, R$ 62,5 bilhões no primeiro semestre, 14% mais que o total dos depósitos em junho de 2012.
Considerados os rendimentos, o saldo total das cadernetas cresceu 20%, ante uma inflação de 6,7% no período e um crescimento de uns 8% na massa de salários nas regiões metropolitanas.
Porém, nesses 12 meses contados até junho, o dinheiro que ficou na caderneta encolheu, em termos reais. Isto é, descontada a inflação do período, rendeu nada ou menos do que nada. Por que, então, tanto dinheiro foi para as cadernetas?
A pergunta na prática não faz lá muito sentido, pois muita gente que coloca dinheiro na poupança não faz as contas. Alguns poupadores se assustam de tal maneira com os (por vezes imaginários) riscos ou as complexidades de outras aplicações que nem pensam em alternativas.
No entanto, caso tivesse feito contas, a maioria dos poupadores teria descoberto que suas opções eram escassas ou complexas, mesmo. Quase todos os fundos de investimento "populares" ou acessíveis ao poupador que não seja rico perderam da poupança, quando não foram goleados pela inflação. Trata-se aqui de fundos chamados de renda fixa, curto prazo e referenciados.
Muita gente deve ter ficado de resto assustada com o horrendo desempenho recente da previdência privada (mesmo sem levar em conta as extorsivas taxas dessas aplicações).
Em muitas situações, pois, a poupança era o prejuízo menor (desconsiderados investimentos de maior risco ou mais complexos).
Logo, o poupador desamparado pela educação ou pela assessoria em finanças talvez tenha tomado uma decisão racional ao optar pela poupança. Mesmo assim, trata-se de um desastre. Como formar patrimônio, preparar-se para dias ruins ou para a aposentadoria se o mercado "pop" de aplicações financeiras não oferece nem proteção contra a inflação?
Sim, os juros reais no país caíram a menos de 2%; fica mais difícil achar rentabilidade. Mas, num país mais normal, de crescimento econômico menos tumultuado, com um governo que devesse menos, numa economia com menos ineficiências e outras deformações do mercado, haveria opções mais interessantes de investimento "real". Mas nosso mercado ainda é pouco diversificado (para a "massa").
O rendimento dos fundos comuns deve melhorar um tico, agora que os juros estão aumentando, mas não vai ser grande coisa.
Para quem pode deixar o dinheiro parado por pelo menos uns dois anos, tem paciência para abrir conta em corretora (que cobre taxa zero) e para aprender um mínimo básico de finanças, o melhor investimento ainda é emprestar dinheiro diretamente para o governo (comprar papéis do Tesouro Direto).
Mesmo que não se invista do Tesouro Direto, é bom se informar dos juros oferecidos por papéis do Tesouro que oferecem juros mais correção pela inflação (chamados de NTN-B). Sabendo das taxas do Tesouro, pesquisam-se as alternativas de risco semelhante nos bancos: o que eles podem oferecer que renda mais ou menos isso (considerados taxas e impostos, prestar atenção)?
É um modo de não ser levado na conversa pelos bancos.
Poupador corre em massa para cadernetas, que, porém, perderam da inflação nos últimos 12 meses
OS BRASILEIROS colocaram muito dinheiro nas cadernetas de poupança em junho. Foram R$ 9,4 bilhões nesse mês, R$ 62,5 bilhões no primeiro semestre, 14% mais que o total dos depósitos em junho de 2012.
Considerados os rendimentos, o saldo total das cadernetas cresceu 20%, ante uma inflação de 6,7% no período e um crescimento de uns 8% na massa de salários nas regiões metropolitanas.
Porém, nesses 12 meses contados até junho, o dinheiro que ficou na caderneta encolheu, em termos reais. Isto é, descontada a inflação do período, rendeu nada ou menos do que nada. Por que, então, tanto dinheiro foi para as cadernetas?
A pergunta na prática não faz lá muito sentido, pois muita gente que coloca dinheiro na poupança não faz as contas. Alguns poupadores se assustam de tal maneira com os (por vezes imaginários) riscos ou as complexidades de outras aplicações que nem pensam em alternativas.
No entanto, caso tivesse feito contas, a maioria dos poupadores teria descoberto que suas opções eram escassas ou complexas, mesmo. Quase todos os fundos de investimento "populares" ou acessíveis ao poupador que não seja rico perderam da poupança, quando não foram goleados pela inflação. Trata-se aqui de fundos chamados de renda fixa, curto prazo e referenciados.
Muita gente deve ter ficado de resto assustada com o horrendo desempenho recente da previdência privada (mesmo sem levar em conta as extorsivas taxas dessas aplicações).
Em muitas situações, pois, a poupança era o prejuízo menor (desconsiderados investimentos de maior risco ou mais complexos).
Logo, o poupador desamparado pela educação ou pela assessoria em finanças talvez tenha tomado uma decisão racional ao optar pela poupança. Mesmo assim, trata-se de um desastre. Como formar patrimônio, preparar-se para dias ruins ou para a aposentadoria se o mercado "pop" de aplicações financeiras não oferece nem proteção contra a inflação?
Sim, os juros reais no país caíram a menos de 2%; fica mais difícil achar rentabilidade. Mas, num país mais normal, de crescimento econômico menos tumultuado, com um governo que devesse menos, numa economia com menos ineficiências e outras deformações do mercado, haveria opções mais interessantes de investimento "real". Mas nosso mercado ainda é pouco diversificado (para a "massa").
O rendimento dos fundos comuns deve melhorar um tico, agora que os juros estão aumentando, mas não vai ser grande coisa.
Para quem pode deixar o dinheiro parado por pelo menos uns dois anos, tem paciência para abrir conta em corretora (que cobre taxa zero) e para aprender um mínimo básico de finanças, o melhor investimento ainda é emprestar dinheiro diretamente para o governo (comprar papéis do Tesouro Direto).
Mesmo que não se invista do Tesouro Direto, é bom se informar dos juros oferecidos por papéis do Tesouro que oferecem juros mais correção pela inflação (chamados de NTN-B). Sabendo das taxas do Tesouro, pesquisam-se as alternativas de risco semelhante nos bancos: o que eles podem oferecer que renda mais ou menos isso (considerados taxas e impostos, prestar atenção)?
É um modo de não ser levado na conversa pelos bancos.
Não vale o escrito - DORA KRAMER
ESTADÃO - 07/08
Substantivo que define o “estudo de juízos de apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal”, a palavra “ética” perdeu a força de seu conceito e ganhou lugar no rol das banalidades.
Muito falada e pouco praticada, em alguns ambientes virou sinônimo de farisaísmo. Neles, sua defesa é vista como mero exercício de hipocrisia. Coisa de gente moralista no sentido pejorativo do termo e o abrigo ideal para amorais enrustidos. De onde não valeria a pena perder tempo com o assunto.
Por esse raciocínio, está coberto de razão o senador Edison Lobão Filho — suplente do pai, ministro das Minas e Energia — quando diz que a inclusão do compromisso com a ética no juramento de posse dos senadores poderia “dar margem a interpretações perigosas”.
Relator da proposta de reforma do regimento do Senado em vigor desde 1970, Lobão Filho retirou três itens do projeto original: a exigência de apresentação da relação de bens de parentes até segundo grau dos senadores (para evitar transferência dolosa), a inclusão de atos cometidos fora das dependências do Legislativo para efeito de punição por quebra de decoro e o compromisso explícito com a ética no cumprimento do mandato.
Além de “interpretações perigosas”, o senador teme que a tão desgastada palavra crie “conflitos” no Senado, pois o que é ético para uns é antiético para outros. Deve perder a parada. De olho na “agenda positiva”, seus pares provavelmente discordarão e a ética deve acabar entrando no texto do regimento. Custa baratinho, já que não vale o escrito.
Sem retoque.Acusar o governo federal de “politizar” as denúncias de que houve formação de cartel para licitação de obras de trens e metrô em São Paulo, com suspeitas também de corrupção nos governos de Mário Covas, José Serra e Geraldo Alckmin, não vai ajudar em nada o PSDB.
Ao contrário: leva o público a concluir que os tucanos jogam a conta do problema na conspiração para não enfrentar o fato de que pode ter havido crimes de improbidade e enriquecimento ilícito sob a responsabilidade de suas administrações.
Quem te viu.O processo de divórcio litigioso entre o governador Sérgio Cabral e a população do Rio é um “case” cujo epílogo ainda está por ser escrito. Em Estado de peso político significativo não há registro de nada semelhante: reeleito com 70% dos votos em 2010, Cabral ficou reduzido a 12% de aprovação no pouco mais de um ano que lhe resta de mandato.
Ele mesmo deu a pista sobre as razões do desgaste ao prometer, em sua autocrítica compulsória, “voltar a ser eu mesmo”. Admitiu ter se deixado embevecer pelas delícias do poder. Fantasiou ao ponto de tentar se “colocar” como candidato a vice de Dilma Rousseff em 2014 passando por cima da hierarquia do PMDB, partido que no âmbito nacional não o considera verdadeiramente um dos seus.
Arrependido, tenta se reinventar. A questão não é se ele aprendeu a lição, mas se a população acreditará que esteve fora de seu estado natural ou se o sucesso fez aflorar sua verdadeira natureza.
Ainda assim, não obstante as evidências em contrário hoje, não é impossível que o eleitorado venha a escolher seu vice como sucessor. Não por força de seu apoio, mas por insuficiência de alternativas e méritos de Luiz Fernando Pezão, a antítese do titular: desprovido de afetação, imune ao deslumbramento e sempre presente em situações adversas para o governo.
Essa é a matéria-prima de que dispõe Pezão para trabalhar na aquisição de luz própria a fim de fugir da imagem do “poste” que Sérgio Cabral já não pode iluminar.
Substantivo que define o “estudo de juízos de apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal”, a palavra “ética” perdeu a força de seu conceito e ganhou lugar no rol das banalidades.
Muito falada e pouco praticada, em alguns ambientes virou sinônimo de farisaísmo. Neles, sua defesa é vista como mero exercício de hipocrisia. Coisa de gente moralista no sentido pejorativo do termo e o abrigo ideal para amorais enrustidos. De onde não valeria a pena perder tempo com o assunto.
Por esse raciocínio, está coberto de razão o senador Edison Lobão Filho — suplente do pai, ministro das Minas e Energia — quando diz que a inclusão do compromisso com a ética no juramento de posse dos senadores poderia “dar margem a interpretações perigosas”.
Relator da proposta de reforma do regimento do Senado em vigor desde 1970, Lobão Filho retirou três itens do projeto original: a exigência de apresentação da relação de bens de parentes até segundo grau dos senadores (para evitar transferência dolosa), a inclusão de atos cometidos fora das dependências do Legislativo para efeito de punição por quebra de decoro e o compromisso explícito com a ética no cumprimento do mandato.
Além de “interpretações perigosas”, o senador teme que a tão desgastada palavra crie “conflitos” no Senado, pois o que é ético para uns é antiético para outros. Deve perder a parada. De olho na “agenda positiva”, seus pares provavelmente discordarão e a ética deve acabar entrando no texto do regimento. Custa baratinho, já que não vale o escrito.
Sem retoque.Acusar o governo federal de “politizar” as denúncias de que houve formação de cartel para licitação de obras de trens e metrô em São Paulo, com suspeitas também de corrupção nos governos de Mário Covas, José Serra e Geraldo Alckmin, não vai ajudar em nada o PSDB.
Ao contrário: leva o público a concluir que os tucanos jogam a conta do problema na conspiração para não enfrentar o fato de que pode ter havido crimes de improbidade e enriquecimento ilícito sob a responsabilidade de suas administrações.
Quem te viu.O processo de divórcio litigioso entre o governador Sérgio Cabral e a população do Rio é um “case” cujo epílogo ainda está por ser escrito. Em Estado de peso político significativo não há registro de nada semelhante: reeleito com 70% dos votos em 2010, Cabral ficou reduzido a 12% de aprovação no pouco mais de um ano que lhe resta de mandato.
Ele mesmo deu a pista sobre as razões do desgaste ao prometer, em sua autocrítica compulsória, “voltar a ser eu mesmo”. Admitiu ter se deixado embevecer pelas delícias do poder. Fantasiou ao ponto de tentar se “colocar” como candidato a vice de Dilma Rousseff em 2014 passando por cima da hierarquia do PMDB, partido que no âmbito nacional não o considera verdadeiramente um dos seus.
Arrependido, tenta se reinventar. A questão não é se ele aprendeu a lição, mas se a população acreditará que esteve fora de seu estado natural ou se o sucesso fez aflorar sua verdadeira natureza.
Ainda assim, não obstante as evidências em contrário hoje, não é impossível que o eleitorado venha a escolher seu vice como sucessor. Não por força de seu apoio, mas por insuficiência de alternativas e méritos de Luiz Fernando Pezão, a antítese do titular: desprovido de afetação, imune ao deslumbramento e sempre presente em situações adversas para o governo.
Essa é a matéria-prima de que dispõe Pezão para trabalhar na aquisição de luz própria a fim de fugir da imagem do “poste” que Sérgio Cabral já não pode iluminar.
Ninguém sabe com quem está falando - ROBERTO DAMATTA
O GLOBO - 07/08
As passeatas testam de modo intenso onde estão estão os limites. Elas também desnudam a falta de interlocução entre as forças sociais que o próprio exercício da democracia liberal libertou entre nós
Que o leitor me desculpe a autorreferência, mas para quem caracterizou o sistema brasileiro como dependente de uma dimensão hierárquica (a realidade do mais ou menos) que obriga em saber quem manda ou quem é dono — o famoso, mas pouco avaliado, “Você sabe com quem está falando?” — o mal-estar que nos assola tem tudo a ver com uma ausência de limites relacionada a uma forte presença da igualdade e a ausência significativa, típica do lulopetismo, de alguém capaz de ancorar responsavelmente a cena política.
A velha oposição entre direita e esquerda que sempre ajudou a montar a nossa cosmopolítica dividindo o mundo entre mal e bem, burgueses vendidos e nós, esboroou-se com as manifestações que trouxeram ao palco uma multidão de reivindicações, a maioria pedindo o final de dois pesos e medidas, de uma ética de condescendência típica das posições lulistas e messiânicas.
Fincadas na liberdade e exigindo igualdade, as passeatas inauguraram um escandaloso “ninguém sabe com quem está falando!” Deste modo, o mandamento central da nossa cartilha política sumiu depois das reações da presidente, cujo resultado criou novos confrontos. Mas o clímax desta ausência de limites foi a entrevista à “Folha de S.Paulo”, na qual se lê que Dilma e Lula são “indissociáveis”. Formam, como eu insinuei nesta coluna faz tempo, um perfeito ato de ventriloquia. Agora ninguém sabe mais se está falando com o ventríloquo ou com o boneco.
As passeatas testam de modo intenso onde estão os limites. Elas também desnudam a falta de interlocução entre as forças sociais que o próprio exercício da democracia liberal libertou entre nós. Nas repúblicas, tal papel cabe ao Poder Executivo. Um poder solitário, próprio de um personagem capaz de eliminar as arestas do impessoalismo da dimensão liberal, fundada no consentimento e na difícil ética de dizer não aos nossos desejos e interesses.
Como entender o nosso pobre, querido, passivo e abandonado “povo” quando ele deixa de ser a parte passiva de discursos populistas controlados por um partido, e passa a ser um protagonista livre a clamar não por uma revolução, mas por um estilo de governar mais sincero, mais honesto e menos mentiroso? Mais próximo das necessidades pagas pelo trabalho desse povo, o que faz das passeatas também uma cobrança. Uma exigência de reciprocidade depois de uma década e pouco de megapublicidade despudorada e promessas não cumpridas?
A explicação de que tudo foi obra de redes eletrônicas é importante, mas não se pode esquecer que nenhum computador opera sem ter sido ligado. Para que as redes influenciem, é preciso fazer parte de uma teia. De uma rede que valorizamos e seja capaz de ordenar para nós.
O fato novo é o elo entre individualismo, transparência e igualdade em tempo real e global. É a vida num universo translúcido no qual a comparação é um dado essencial e que, por isso mesmo, não pode conviver com a opacidade de um sistema de governo desenhado para manter os labirintos sombrios dos que se tornam aristocratas (e milionários!) pela política. É preciso liquidar a distância entre o ético e o legal onde nascem as oligarquias e os privilégios que sempre foram o apanágio do poder à brasileira. São eles que separam o abismo entre o circo futebolístico “padrão Fifa” do pão amargo de um transporte, de uma saúde, de uma educação e de uma segurança abaixo de todos nós — as pessoas comuns.
Vivemos hoje a rejeição de um mundo ideológico tão a gosto de um desonesto receituário político. Esquerda e direita escondem quem manda mais e quem manda menos; quem é realmente responsável pela torrente de escândalos que a mídia e as redes não podem abafar. Do fundo da megalópole dita sem alma, surge um povo livre de partidos. Sobretudo do partido do poder. O povo, curiosamente individualizado na passeata, aponta a dissonância: há um padrão internacional para o futebol, mas não há um padrão decente para a moralidade pública.
O resultado é uma perturbação histórica. No país do “Você sabe com quem está falando?”; na terra dos barões, dos populistas e dos que sabem tudo, não temos mais com quem falar. Há uma busca, mas a presidente ouve e não escuta. Ela gerencia: decreta e discursa. E quando o faz, cria outras passeatas e abre a coletividade para novos problemas.
Um lado meu teme pela ausência de atores mais conscientes dos seus papéis; um outro, otimista, acha que começamos a descobrir que democracia tem a ver com uma anarquia controlada. Um sistema onde cada qual sabe do mais difícil: a grande arte de dizer não a si mesmo.
As passeatas testam de modo intenso onde estão estão os limites. Elas também desnudam a falta de interlocução entre as forças sociais que o próprio exercício da democracia liberal libertou entre nós
Que o leitor me desculpe a autorreferência, mas para quem caracterizou o sistema brasileiro como dependente de uma dimensão hierárquica (a realidade do mais ou menos) que obriga em saber quem manda ou quem é dono — o famoso, mas pouco avaliado, “Você sabe com quem está falando?” — o mal-estar que nos assola tem tudo a ver com uma ausência de limites relacionada a uma forte presença da igualdade e a ausência significativa, típica do lulopetismo, de alguém capaz de ancorar responsavelmente a cena política.
A velha oposição entre direita e esquerda que sempre ajudou a montar a nossa cosmopolítica dividindo o mundo entre mal e bem, burgueses vendidos e nós, esboroou-se com as manifestações que trouxeram ao palco uma multidão de reivindicações, a maioria pedindo o final de dois pesos e medidas, de uma ética de condescendência típica das posições lulistas e messiânicas.
Fincadas na liberdade e exigindo igualdade, as passeatas inauguraram um escandaloso “ninguém sabe com quem está falando!” Deste modo, o mandamento central da nossa cartilha política sumiu depois das reações da presidente, cujo resultado criou novos confrontos. Mas o clímax desta ausência de limites foi a entrevista à “Folha de S.Paulo”, na qual se lê que Dilma e Lula são “indissociáveis”. Formam, como eu insinuei nesta coluna faz tempo, um perfeito ato de ventriloquia. Agora ninguém sabe mais se está falando com o ventríloquo ou com o boneco.
As passeatas testam de modo intenso onde estão os limites. Elas também desnudam a falta de interlocução entre as forças sociais que o próprio exercício da democracia liberal libertou entre nós. Nas repúblicas, tal papel cabe ao Poder Executivo. Um poder solitário, próprio de um personagem capaz de eliminar as arestas do impessoalismo da dimensão liberal, fundada no consentimento e na difícil ética de dizer não aos nossos desejos e interesses.
Como entender o nosso pobre, querido, passivo e abandonado “povo” quando ele deixa de ser a parte passiva de discursos populistas controlados por um partido, e passa a ser um protagonista livre a clamar não por uma revolução, mas por um estilo de governar mais sincero, mais honesto e menos mentiroso? Mais próximo das necessidades pagas pelo trabalho desse povo, o que faz das passeatas também uma cobrança. Uma exigência de reciprocidade depois de uma década e pouco de megapublicidade despudorada e promessas não cumpridas?
A explicação de que tudo foi obra de redes eletrônicas é importante, mas não se pode esquecer que nenhum computador opera sem ter sido ligado. Para que as redes influenciem, é preciso fazer parte de uma teia. De uma rede que valorizamos e seja capaz de ordenar para nós.
O fato novo é o elo entre individualismo, transparência e igualdade em tempo real e global. É a vida num universo translúcido no qual a comparação é um dado essencial e que, por isso mesmo, não pode conviver com a opacidade de um sistema de governo desenhado para manter os labirintos sombrios dos que se tornam aristocratas (e milionários!) pela política. É preciso liquidar a distância entre o ético e o legal onde nascem as oligarquias e os privilégios que sempre foram o apanágio do poder à brasileira. São eles que separam o abismo entre o circo futebolístico “padrão Fifa” do pão amargo de um transporte, de uma saúde, de uma educação e de uma segurança abaixo de todos nós — as pessoas comuns.
Vivemos hoje a rejeição de um mundo ideológico tão a gosto de um desonesto receituário político. Esquerda e direita escondem quem manda mais e quem manda menos; quem é realmente responsável pela torrente de escândalos que a mídia e as redes não podem abafar. Do fundo da megalópole dita sem alma, surge um povo livre de partidos. Sobretudo do partido do poder. O povo, curiosamente individualizado na passeata, aponta a dissonância: há um padrão internacional para o futebol, mas não há um padrão decente para a moralidade pública.
O resultado é uma perturbação histórica. No país do “Você sabe com quem está falando?”; na terra dos barões, dos populistas e dos que sabem tudo, não temos mais com quem falar. Há uma busca, mas a presidente ouve e não escuta. Ela gerencia: decreta e discursa. E quando o faz, cria outras passeatas e abre a coletividade para novos problemas.
Um lado meu teme pela ausência de atores mais conscientes dos seus papéis; um outro, otimista, acha que começamos a descobrir que democracia tem a ver com uma anarquia controlada. Um sistema onde cada qual sabe do mais difícil: a grande arte de dizer não a si mesmo.
Dilemas da educação - ÉRICA FRAGA
FOLHA DE SP - 07/08
Em meados do século 20, o reconhecimento da educação como importante motor do crescimento econômico estava longe de ser consensual.
Estudiosos defendiam a ideia de que a melhora do capital humano de um país estava mais para consequência do que para causa do desenvolvimento. Desfeito o diagnóstico equivocado, o Brasil foi um dos países que tardaram a acordar para a necessidade de investir nessa área.
Agora, defronta-se com a questão crucial sobre o que pode ser feito para melhorar a qualidade do ensino, após o aumento da escolaridade nas últimas décadas.
A principal resposta política à demanda das ruas por educação melhor foi ressuscitar planos para ampliar investimentos. A discussão é controversa e pula uma etapa essencial do debate que deveria precedê-la: em que, afinal, é preciso investir?
Salas de aula cheias, titulação insuficiente dos professores e carência de investimentos em tecnologia estariam entre as causas do ensino de baixa qualidade no país.
Segundo o economista Eric Hanushek, da Universidade Stanford, que se dedica há décadas ao estudo dos fatores que têm impacto sobre o desempenho dos alunos, nada disso importa. Infraestrutura básica --como cadeiras, mesas, giz e biblioteca-- é parte do que faz a diferença, de acordo com o pesquisador.
Sobre a formação dos professores, Hanushek diz que diplomas de pós-graduação não têm impacto na aprendizagem dos alunos, mas o conhecimento da disciplina ministrada sim. Essa conclusão aponta um entrave importante da educação no Brasil.
Em estudo publicado em 2007, o Inep (instituto ligado ao MEC) ressaltou ser "evidente a carência de professores com formação adequada à disciplina que lecionam".
A pesquisa, que não foi atualizada, mostrava que apenas 44,7% dos professores de matemática e 48,4% dos de geografia dos anos finais do ensino fundamental apresentavam bagagem apropriada.
Estudos de outros especialistas oferecem pistas semelhantes às fornecidas por Hanushek. O economista Naercio Menezes, do Insper, também percebeu que o tamanho das turmas não afeta o desempenho dos alunos. Mas descobriu que, quanto mais tempo o aluno passa na escola, maior tende a ser sua aprendizagem. Sugere aumentar o número de horas de aula, ainda que isso resulte em mais alunos por sala.
No Brasil, há casos como o do município de Sobral (CE), que conseguiu avanços significativos na aprendizagem com medidas como alocar os melhores professores para os alunos mais fracos.
Essas descobertas mostram que, antes de pensar em aumentar gastos, é preciso aprender a administrá-los melhor.
Em meados do século 20, o reconhecimento da educação como importante motor do crescimento econômico estava longe de ser consensual.
Estudiosos defendiam a ideia de que a melhora do capital humano de um país estava mais para consequência do que para causa do desenvolvimento. Desfeito o diagnóstico equivocado, o Brasil foi um dos países que tardaram a acordar para a necessidade de investir nessa área.
Agora, defronta-se com a questão crucial sobre o que pode ser feito para melhorar a qualidade do ensino, após o aumento da escolaridade nas últimas décadas.
A principal resposta política à demanda das ruas por educação melhor foi ressuscitar planos para ampliar investimentos. A discussão é controversa e pula uma etapa essencial do debate que deveria precedê-la: em que, afinal, é preciso investir?
Salas de aula cheias, titulação insuficiente dos professores e carência de investimentos em tecnologia estariam entre as causas do ensino de baixa qualidade no país.
Segundo o economista Eric Hanushek, da Universidade Stanford, que se dedica há décadas ao estudo dos fatores que têm impacto sobre o desempenho dos alunos, nada disso importa. Infraestrutura básica --como cadeiras, mesas, giz e biblioteca-- é parte do que faz a diferença, de acordo com o pesquisador.
Sobre a formação dos professores, Hanushek diz que diplomas de pós-graduação não têm impacto na aprendizagem dos alunos, mas o conhecimento da disciplina ministrada sim. Essa conclusão aponta um entrave importante da educação no Brasil.
Em estudo publicado em 2007, o Inep (instituto ligado ao MEC) ressaltou ser "evidente a carência de professores com formação adequada à disciplina que lecionam".
A pesquisa, que não foi atualizada, mostrava que apenas 44,7% dos professores de matemática e 48,4% dos de geografia dos anos finais do ensino fundamental apresentavam bagagem apropriada.
Estudos de outros especialistas oferecem pistas semelhantes às fornecidas por Hanushek. O economista Naercio Menezes, do Insper, também percebeu que o tamanho das turmas não afeta o desempenho dos alunos. Mas descobriu que, quanto mais tempo o aluno passa na escola, maior tende a ser sua aprendizagem. Sugere aumentar o número de horas de aula, ainda que isso resulte em mais alunos por sala.
No Brasil, há casos como o do município de Sobral (CE), que conseguiu avanços significativos na aprendizagem com medidas como alocar os melhores professores para os alunos mais fracos.
Essas descobertas mostram que, antes de pensar em aumentar gastos, é preciso aprender a administrá-los melhor.
Dizendo não ao tráfico - ZUENIR VENTURA
O GLOBO - 07/08
Uma das diferenças entre a ditadura militar dos anos 60/70 e a do narcotráfico de agora é que contra aquela ainda havia lugar para algum tipo de contestação, embora com risco; já esta não permite qualquer desobediência a suas ordens. Toda oposição é castigada com tortura e execução. Por isso, assume caráter inédito a resistência do AfroReggae e de seu coordenador, José Junior, à pressão exercida pelos traficantes do Complexo do Alemão e da Penha por meio de ameaças de morte e vários atentados a prédios da entidade, comandados à distância, ao que tudo indica, por dois dos mais perigosos bandidos do estado: Fernandinho Beira-Mar e Marcinho VP, que cumprem pena na penitenciária de segurança máxima de Catanduvas, no Paraná. Como chama a atenção o próprio Junior, “o importante nessa história é que pela primeira vez uma instituição não acata uma ordem do narcotráfico”. O exemplo não é só o dele, mas também dos “jovens e idosos que, mesmo contra a proibição ao AR, participam das nossas atividades”.
Novidade também é o movimento que começou a se organizar na semana passada, quando cerca de 100 pessoas representando vários segmentos sociais se reuniram para criar uma espécie de “rede de proteção” simbólica a José Junior, que vem sofrendo ameaças de morte e se recusa a deixar o país, apesar do convite de organizações internacionais e do conselho de amigos e autoridades. Ressaltou-se também a importância de a sociedade assumir o projeto de pacificação como uma política de Estado, a ser mantida mesmo com mudanças de governo. Graças às UPPs, morrem hoje no Rio menos mil pessoas a cada ano. Na ocasião, dois jovens da periferia deram seu depoimento: o de uma comunidade pacificada disse que havia muita coisa a fazer, mas que ninguém desejava a volta ao passado; o outro afirmou: “Queremos a pacificação. Nada ganhamos sob o domínio dos traficantes.”
A partir do encontro, que discutiu formas de solidariedade a serem adotadas, o movimento se estendeu à internet e está recebendo dezenas de e-mails de adesão. O primeiro evento programado é o Concerto para a Paz, da Orquestra Sinfônica Brasileira, no próximo dia 19, no Teatro Municipal. José Junior acredita que com o apoio da sociedade e do governo “podemos vencer essa guerra, aliás, já estamos vencendo”. Ele não hesita em defender a política de pacificação, discordando dos que veem nos atentados um sintoma de enfraquecimento do projeto das UPPs. Ao contrário: “Os tiros não foram um sinal de força, e sim de fraqueza.”
Uma das diferenças entre a ditadura militar dos anos 60/70 e a do narcotráfico de agora é que contra aquela ainda havia lugar para algum tipo de contestação, embora com risco; já esta não permite qualquer desobediência a suas ordens. Toda oposição é castigada com tortura e execução. Por isso, assume caráter inédito a resistência do AfroReggae e de seu coordenador, José Junior, à pressão exercida pelos traficantes do Complexo do Alemão e da Penha por meio de ameaças de morte e vários atentados a prédios da entidade, comandados à distância, ao que tudo indica, por dois dos mais perigosos bandidos do estado: Fernandinho Beira-Mar e Marcinho VP, que cumprem pena na penitenciária de segurança máxima de Catanduvas, no Paraná. Como chama a atenção o próprio Junior, “o importante nessa história é que pela primeira vez uma instituição não acata uma ordem do narcotráfico”. O exemplo não é só o dele, mas também dos “jovens e idosos que, mesmo contra a proibição ao AR, participam das nossas atividades”.
Novidade também é o movimento que começou a se organizar na semana passada, quando cerca de 100 pessoas representando vários segmentos sociais se reuniram para criar uma espécie de “rede de proteção” simbólica a José Junior, que vem sofrendo ameaças de morte e se recusa a deixar o país, apesar do convite de organizações internacionais e do conselho de amigos e autoridades. Ressaltou-se também a importância de a sociedade assumir o projeto de pacificação como uma política de Estado, a ser mantida mesmo com mudanças de governo. Graças às UPPs, morrem hoje no Rio menos mil pessoas a cada ano. Na ocasião, dois jovens da periferia deram seu depoimento: o de uma comunidade pacificada disse que havia muita coisa a fazer, mas que ninguém desejava a volta ao passado; o outro afirmou: “Queremos a pacificação. Nada ganhamos sob o domínio dos traficantes.”
A partir do encontro, que discutiu formas de solidariedade a serem adotadas, o movimento se estendeu à internet e está recebendo dezenas de e-mails de adesão. O primeiro evento programado é o Concerto para a Paz, da Orquestra Sinfônica Brasileira, no próximo dia 19, no Teatro Municipal. José Junior acredita que com o apoio da sociedade e do governo “podemos vencer essa guerra, aliás, já estamos vencendo”. Ele não hesita em defender a política de pacificação, discordando dos que veem nos atentados um sintoma de enfraquecimento do projeto das UPPs. Ao contrário: “Os tiros não foram um sinal de força, e sim de fraqueza.”
Anatomia de um desastre - HÉLIO SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 07/08
SÃO PAULO - Detroit está quebrada. O suspeito de sempre é o declínio da indústria automobilística norte-americana. Não há dúvida de que os percalços da Ford e da GM ajudaram, mas não são nem de longe os principais responsáveis pelo lamentável estado do município. Várias outras localidades, afinal, enfrentaram processos de desindustrialização e só Detroit passou de mais rica cidade dos EUA para capital da decadência da América, onde a única coisa que prospera é o crime --tudo isso em 50 anos.
O desastre de Detroit é mais bem explicado por uma conjunção de reveses econômicos magnificados por uma estrutura tributária e de zoneamento perversas, que criaram uma espécie de tempestade perfeita.
Os problemas começaram em 1967, quando a cidade foi palco de uma série de revoltas raciais. Assustada, a população mais rica (e mais branca) mudou-se para subúrbios onde se sentia mais segura. Em Michigan, esses subúrbios, os "charter townships", têm imunidade contra a incorporação por cidades maiores.
Teve início assim o círculo vicioso. À medida que os mais ricos optavam por deixar a cidade, o valor dos imóveis e a arrecadação caíam. Com menos recursos, a qualidade dos serviços públicos, em especial a polícia e a educação, entraram em declínio, afastando ainda mais moradores.
Na tentativa de corrigir a situação, o município elevou as alíquotas das "property taxes". O resultado foi o oposto do almejado: mais brancos deixaram a cidade, e novas levas de pobres e desempregados (grande parte deles negros) vieram. Hoje, metade dos residentes está inadimplente com seus tributos municipais.
Detroit converteu-se, assim, em uma ilha de pobreza cercada por alguns dos mais ricos subúrbios dos EUA, como Bloomfield Hills.
Estrutura tributária e regras de zoneamento são coisas chatas de discutir, mas a catástrofe de Detroit mostra que podem fazer toda a diferença.
SÃO PAULO - Detroit está quebrada. O suspeito de sempre é o declínio da indústria automobilística norte-americana. Não há dúvida de que os percalços da Ford e da GM ajudaram, mas não são nem de longe os principais responsáveis pelo lamentável estado do município. Várias outras localidades, afinal, enfrentaram processos de desindustrialização e só Detroit passou de mais rica cidade dos EUA para capital da decadência da América, onde a única coisa que prospera é o crime --tudo isso em 50 anos.
O desastre de Detroit é mais bem explicado por uma conjunção de reveses econômicos magnificados por uma estrutura tributária e de zoneamento perversas, que criaram uma espécie de tempestade perfeita.
Os problemas começaram em 1967, quando a cidade foi palco de uma série de revoltas raciais. Assustada, a população mais rica (e mais branca) mudou-se para subúrbios onde se sentia mais segura. Em Michigan, esses subúrbios, os "charter townships", têm imunidade contra a incorporação por cidades maiores.
Teve início assim o círculo vicioso. À medida que os mais ricos optavam por deixar a cidade, o valor dos imóveis e a arrecadação caíam. Com menos recursos, a qualidade dos serviços públicos, em especial a polícia e a educação, entraram em declínio, afastando ainda mais moradores.
Na tentativa de corrigir a situação, o município elevou as alíquotas das "property taxes". O resultado foi o oposto do almejado: mais brancos deixaram a cidade, e novas levas de pobres e desempregados (grande parte deles negros) vieram. Hoje, metade dos residentes está inadimplente com seus tributos municipais.
Detroit converteu-se, assim, em uma ilha de pobreza cercada por alguns dos mais ricos subúrbios dos EUA, como Bloomfield Hills.
Estrutura tributária e regras de zoneamento são coisas chatas de discutir, mas a catástrofe de Detroit mostra que podem fazer toda a diferença.
A vida real é um videogame? - WANDA CAMARGO
GAZETA DO POVO - PR - 07/08
No espaço de pouco mais de um ano, convivemos com duas tragédias de características semelhantes: o comandante de um transatlântico pilotou temerariamente seu navio e provocou um naufrágio; o maquinista de um trem imprimiu velocidade excessiva a seu veículo e causou descarrilamento. Nos dois casos, houve dezenas de mortes.
O que torna esses desastres mais terríveis é que não ocorreram devido a fatalidades, condições atmosféricas adversas, falhas mecânicas ou eletrônicas; foram provocados, ainda que não intencionalmente, pela presunção e arrogância de seus principais protagonistas.
Comandantes de navios e aviões, maquinistas e outros são profissionais treinados que chegam a suas posições após anos de prática e experiência, e devemos a eles muito da segurança que sentimos ao utilizar os meios de transporte que conduzem. Entretanto, como em todas as atividades humanas, há aqueles que se deixam infantilizar por equipamentos que aparentemente expandiriam suas competências e, no limite, seus intelectos, dotando-os de uma autoconfiança quase suicida – e às vezes assassina.
Quando foram lançados os primeiros automóveis equipados com airbags, noticiou-se que na Alemanha grupos de jovens delinquentes roubavam carros que possuíam o recurso, apenas para provocar acidentes e, supostamente, sair ilesos. No entanto, nenhuma tecnologia garante totalmente a isenção de riscos – o número de mortes e ferimentos ocorridos diminuiu drasticamente tal prática “esportiva”.
Se o Titanic contasse com um elementar sistema de radar com alcance de alguns quilômetros, muito provavelmente não teria colidido com um iceberg. Todavia, igualmente existe perigo no distanciamento que o uso de certos aparatos eletrônicos causa entre o usuário e a realidade, como se tudo se tornasse um jogo, um videogame em que participantes não são reais, os acidentes não têm maiores consequências e o jogador tem inúmeras “vidas” à disposição.
Imaginemos as consequências futuras do uso de aeronaves não tripuladas, os drones, em guerras reais e com armamentos reais. É fato conhecido entre analistas militares que, em condições de batalha, apenas uma minoria de soldados atira realmente para matar o oponente – muitos, na percepção de enfrentamento com outros seres humanos, erram os tiros, preferem provocar apenas danos materiais. No entanto, se o inimigo for apenas uma imagem, algo localizado a milhares de quilômetros de distância, nenhum sentimento de humanidade sobreviverá para reduzir as perdas.
É preciso pensar se nosso sistema educacional, ao lado da qualificação técnica, também está adequado para não colaborar na desumanização do estudante, preparando-o adequadamente para o convívio social, para o controle dos excessos, para a reflexão. O exibicionismo (aparente causador das duas tragédias), a perda do sentido de realidade, a sensação de poder ilimitado parecem ser características da nossa época, transcendendo fronteiras e transformando pessoas em verdadeiras máquinas de matar.
A imaginação constitui-se em poderoso meio de ensino e aprendizagem, está associada à criatividade e à inovação, expande as fronteiras emocionais e nos prepara para a vida. Só não pode sobrepujar a realidade.
No espaço de pouco mais de um ano, convivemos com duas tragédias de características semelhantes: o comandante de um transatlântico pilotou temerariamente seu navio e provocou um naufrágio; o maquinista de um trem imprimiu velocidade excessiva a seu veículo e causou descarrilamento. Nos dois casos, houve dezenas de mortes.
O que torna esses desastres mais terríveis é que não ocorreram devido a fatalidades, condições atmosféricas adversas, falhas mecânicas ou eletrônicas; foram provocados, ainda que não intencionalmente, pela presunção e arrogância de seus principais protagonistas.
Comandantes de navios e aviões, maquinistas e outros são profissionais treinados que chegam a suas posições após anos de prática e experiência, e devemos a eles muito da segurança que sentimos ao utilizar os meios de transporte que conduzem. Entretanto, como em todas as atividades humanas, há aqueles que se deixam infantilizar por equipamentos que aparentemente expandiriam suas competências e, no limite, seus intelectos, dotando-os de uma autoconfiança quase suicida – e às vezes assassina.
Quando foram lançados os primeiros automóveis equipados com airbags, noticiou-se que na Alemanha grupos de jovens delinquentes roubavam carros que possuíam o recurso, apenas para provocar acidentes e, supostamente, sair ilesos. No entanto, nenhuma tecnologia garante totalmente a isenção de riscos – o número de mortes e ferimentos ocorridos diminuiu drasticamente tal prática “esportiva”.
Se o Titanic contasse com um elementar sistema de radar com alcance de alguns quilômetros, muito provavelmente não teria colidido com um iceberg. Todavia, igualmente existe perigo no distanciamento que o uso de certos aparatos eletrônicos causa entre o usuário e a realidade, como se tudo se tornasse um jogo, um videogame em que participantes não são reais, os acidentes não têm maiores consequências e o jogador tem inúmeras “vidas” à disposição.
Imaginemos as consequências futuras do uso de aeronaves não tripuladas, os drones, em guerras reais e com armamentos reais. É fato conhecido entre analistas militares que, em condições de batalha, apenas uma minoria de soldados atira realmente para matar o oponente – muitos, na percepção de enfrentamento com outros seres humanos, erram os tiros, preferem provocar apenas danos materiais. No entanto, se o inimigo for apenas uma imagem, algo localizado a milhares de quilômetros de distância, nenhum sentimento de humanidade sobreviverá para reduzir as perdas.
É preciso pensar se nosso sistema educacional, ao lado da qualificação técnica, também está adequado para não colaborar na desumanização do estudante, preparando-o adequadamente para o convívio social, para o controle dos excessos, para a reflexão. O exibicionismo (aparente causador das duas tragédias), a perda do sentido de realidade, a sensação de poder ilimitado parecem ser características da nossa época, transcendendo fronteiras e transformando pessoas em verdadeiras máquinas de matar.
A imaginação constitui-se em poderoso meio de ensino e aprendizagem, está associada à criatividade e à inovação, expande as fronteiras emocionais e nos prepara para a vida. Só não pode sobrepujar a realidade.
Um grande dia na história da imprensa - ELIO GASPARI
O GLOBO - 07/08
Em setembro de 1994 um curioso com jeito de E.T., diploma de engenharia da computação pela Universidade de Stanford e uma passagem pelo Bankers Trust queria começar seu negócio. Qual, não decidira, mas sabia que seu motor seria o comércio eletrônico. Inscreveu-se num curso rápido para interessados em vender livros. Viu que estava diante de um mercado anacrônico, fez uma dívida, alugou uma garagem e fundou a Amazon com a mulher, um computador e dois amigos. Vendeu livros e tornou-se a maior livraria do mundo. Vende de tudo e é a maior atacadista de comércio eletrônico. Jeff Bezos acaba de comprar por US$ 250 milhões o venerando “The Washington Post”, quindim dos jornalistas no século passado, berço da dupla de repórteres que derrubou o presidente Richard Nixon com suas reportagens sobre o caso Watergate.
O “Post” teve de tudo: editor brilhante, Ben Bradlee, copiloto da cobertura do Watergate; donos malucos, o playboy Edward MacLean, que azarou a família comprando para sua mulher o diamante Hope, ou Philip Graham, que pediu ao presidente John Kennedy que demitisse um editor do seu jornal. Doente, Graham matou-se. No apogeu, teve na sua viúva, Katharine, a cujo pai pertencera o jornal, a maior figura da história do “Post”. Logo ela, que até a morte do marido parecera uma dondoca maltratada e tímida. Kay Graham morreu em 2001.
A compra do jornal por Bezos foi anunciada dias depois de o “New York Times” ter vendido o “Boston Globe” por 6% do US$ 1,1 bilhão que pagou em 1993. Ele não só criou a Amazon como lançou o Kindle. Bezos é um gênio da conexão com os consumidores. Sua estrutura tecnológica é uma das maiores do mundo, mas seu segredo está na logística e no atendimento à freguesia. É um empresário feroz e detesta sindicatos. Quando lançou o Kindle, com livros a US$ 9,99, os magnatas do mercado editorial organizaram um cartel debaixo do guarda-chuva da Apple e acabaram nos tribunais. No Brasil sua operação é pedestre, mas essa é outra história.
Bezos entrou no “Post” com dinheiro do próprio bolso, para enfrentar o “The New York Times”, que há anos busca o caminho das pedras eletrônicas. Leva uma vantagem: com uma fortuna de US$ 27,9 bilhões, tem mais dinheiro que toda a família Sulzberger e pouco se lixa para as oscilações de Wall Street. A Amazon perdeu dinheiro durante cinco anos e sobreviveu à bolha da internet. Seu negócio, desde o primeiro momento, era a inovação. Numa daquelas histórias que fazem o folclore dos empresários, quando uma senhora idosa reclamou que os pacotes da Amazon eram difíceis de abrir, ele mandou redesenhá-los. Noutra: fazia reuniões mantendo uma cadeira vazia, para que todos se lembrassem do consumidor.
Bezos entra num mercado que consome fortunas em logística e papel para entregar produtos que podem chegar eletronicamente a um tablet em pouco mais de um minuto. É fácil intuir que, aos 49 anos, olha para esse negócio com a cobiça que sentiu aos 30, quando se inscreveu no curso para livreiros. O que fará, e como, será uma bonita história. De saída, anunciou que vive “em outra Washington”, pois sua sede fica em Seattle, do outro lado do país, no estado do mesmo nome. Um palpite: ele adora vender barato.
Em setembro de 1994 um curioso com jeito de E.T., diploma de engenharia da computação pela Universidade de Stanford e uma passagem pelo Bankers Trust queria começar seu negócio. Qual, não decidira, mas sabia que seu motor seria o comércio eletrônico. Inscreveu-se num curso rápido para interessados em vender livros. Viu que estava diante de um mercado anacrônico, fez uma dívida, alugou uma garagem e fundou a Amazon com a mulher, um computador e dois amigos. Vendeu livros e tornou-se a maior livraria do mundo. Vende de tudo e é a maior atacadista de comércio eletrônico. Jeff Bezos acaba de comprar por US$ 250 milhões o venerando “The Washington Post”, quindim dos jornalistas no século passado, berço da dupla de repórteres que derrubou o presidente Richard Nixon com suas reportagens sobre o caso Watergate.
O “Post” teve de tudo: editor brilhante, Ben Bradlee, copiloto da cobertura do Watergate; donos malucos, o playboy Edward MacLean, que azarou a família comprando para sua mulher o diamante Hope, ou Philip Graham, que pediu ao presidente John Kennedy que demitisse um editor do seu jornal. Doente, Graham matou-se. No apogeu, teve na sua viúva, Katharine, a cujo pai pertencera o jornal, a maior figura da história do “Post”. Logo ela, que até a morte do marido parecera uma dondoca maltratada e tímida. Kay Graham morreu em 2001.
A compra do jornal por Bezos foi anunciada dias depois de o “New York Times” ter vendido o “Boston Globe” por 6% do US$ 1,1 bilhão que pagou em 1993. Ele não só criou a Amazon como lançou o Kindle. Bezos é um gênio da conexão com os consumidores. Sua estrutura tecnológica é uma das maiores do mundo, mas seu segredo está na logística e no atendimento à freguesia. É um empresário feroz e detesta sindicatos. Quando lançou o Kindle, com livros a US$ 9,99, os magnatas do mercado editorial organizaram um cartel debaixo do guarda-chuva da Apple e acabaram nos tribunais. No Brasil sua operação é pedestre, mas essa é outra história.
Bezos entrou no “Post” com dinheiro do próprio bolso, para enfrentar o “The New York Times”, que há anos busca o caminho das pedras eletrônicas. Leva uma vantagem: com uma fortuna de US$ 27,9 bilhões, tem mais dinheiro que toda a família Sulzberger e pouco se lixa para as oscilações de Wall Street. A Amazon perdeu dinheiro durante cinco anos e sobreviveu à bolha da internet. Seu negócio, desde o primeiro momento, era a inovação. Numa daquelas histórias que fazem o folclore dos empresários, quando uma senhora idosa reclamou que os pacotes da Amazon eram difíceis de abrir, ele mandou redesenhá-los. Noutra: fazia reuniões mantendo uma cadeira vazia, para que todos se lembrassem do consumidor.
Bezos entra num mercado que consome fortunas em logística e papel para entregar produtos que podem chegar eletronicamente a um tablet em pouco mais de um minuto. É fácil intuir que, aos 49 anos, olha para esse negócio com a cobiça que sentiu aos 30, quando se inscreveu no curso para livreiros. O que fará, e como, será uma bonita história. De saída, anunciou que vive “em outra Washington”, pois sua sede fica em Seattle, do outro lado do país, no estado do mesmo nome. Um palpite: ele adora vender barato.
Saúde pública - SILVANO RAIA
O ESTADO DE S. PAULO - 07/08
É chegado o momento de sugerir soluções, e não apenas criticar as propostas já apresentadas para a reestruturação da saúde pública. Elas devem considerar, antes de mais nada, que não se trata apenas de corrigir ou aperfeiçoar o sistema atual, mas, sim, de implantá-lo também nas regiões menos desenvolvidas, o que implica ações abrangentes e estruturantes inéditas, que exigem expertise específica.
A Constituição federal de 1988 estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Todavia, num país com uma população de 197,7 milhões de habitantes, 8,5 milhões de quilômetros quadrados e 5.570 municípios, toma-se extremamente complexo organizar e manter um sistema de saúde para atender quase 200 milhões de pessoas com variáveis sociais, políticas e geográficas tão diferentes entre si.
Entretanto, provavelmente pela primeira vez, várias circunstancias determinadas pelo recente movimento popular e a vontade inequívoca dos órgãos governamentais de a ele atender criam uma oportunidade única para elaborar um programa comprometido entre todos os envolvidos que permita atingir aquele objetivo no longo prazo.
Diante disso, o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação apresentaram o programa Mais Médicos, incluindo quatro iniciativas principais:
• Acrescentar, sob a forma de residência obrigatória, dois anos ao currículo médico de graduação para assistência comunitária em áreas estratégicas;
• importar profissionais estrangeiros, sem revalidação do diploma, em número suficiente para atender à necessidade de cerca de 1.500 municípios que hoje não dispõem de nenhum médico;
• criar novas escolas de Medicina nas regiões mais necessitadas, na esperança de que os for-mandos aí permaneçam exercendo sua atividade;
• aplicar, até 2015, R$ 15 bilhões no equipamento de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) já existentes e na construção de hospitais regionais próximos às novas escolas.
Essas iniciativas, no entanto, já haviam sido amplamente discutidas e algumas, rejeitadas, em passado recente, pela Associação Brasileira de Educação Médica, pelo Conselho Federal de Medicina e por uma comissão de especialistas que, além de contraindicar a criação de mais escolas, sugeriram o fechamento de algumas já em atividade pela má qualidade do ensino prestado. Saliente-se, porém, que são entidades de classe independentes que, bem fazendo, avaliam cada uma das propostas com atenção dirigida principalmente para os interesses daqueles que representam, muitas vezes conflitantes entre si.
Nesse sentido, merece atenção a experiência recente do Ministério da Saúde que obteve bons resultados para o desenvolvimento de medicina de ponta em Estados ainda dela desprovidos. O ministro da Saúde criou um grupo de trabalho, por ele presidido e coordenado por um expert de fora do quadro de sua pasta ministerial, encarregado de estudar cada polo-alvo, definir estratégias para capacitá-los, bem como estimular e apressar as ações dos diferentes setores do Ministério da Saúde em direção a esse objetivo. Com o decorrer do tempo, tornou-se aparente que o coordenador, sendo acadêmico, atua conforme seu hábito de inovador e as equipes do Ministério da Saúde atuam conforme seu hábito de executoras, potencializando o trabalho de ambos.
Analogamente, também para a saúde pública poderia ser criado um grupo de trabalho presidido pelo ministro da Saúde, com três subgrupos. Um, com a participação de técnicos do Ministério da Saúde, de associações de classe, da Academia e de representantes da sociedade, para avaliar o estado atual da questão, elaborar um programa de recuperação e integração da saúde pública com ações abrangentes e estruturantes, além de avaliar os recursos necessários para isso. Outro, constituído por membros do Ministério da Saúde, para executar o programa dentro de um cronograma prospectivamente definido. E mais, pela importância do projeto e pelo montante dos recursos previsto, também um terceiro - de acompanhamento -, com a participação do Ministério Público Federal e do Tribunal de Contas da União, assumindo o papel de fiscal do atendimento das reivindicações das ruas para acompanhar o programa.
Com esse perfil, é legítimo prever que o programa será aceito por todas as partes e, dessa maneira, com muito mais possibilidades de sucesso, uma vez que serão conhecidos e comprometidos os recursos necessários, bem como onde serão aplicados, induzindo a aprovação das medidas necessárias para sua implementação, mesmo com o inevitável sacrifício temporário de alguns em benefício de todos.
Espera-se que essa ação indutora se exerça em vários níveis:
• Definindo um objetivo específico à reivindicação popular "saúde pública";
• pressionando o Congresso Nacional para a ela destinar os recursos adicionais necessários, atendendo a projeto popular que destina à saúde 10% do Orçamento da União. Com mais recursos será possível corrigir os valores atuais da Tabela do Sistema Único de Saúde (SUS), pagar salários atraentes e definir uma carreira pára profissionais da saúde, bem como ao corpo docente das novas faculdades que se pretende criar, além de construir novos equipamentos nas áreas que deles necessitem; estimulando os órgãos reguladores das escolas médicas a encontrar formas que permitam às que detêm tecnologia didática mais sedimentada tutelar o desenvolvimento das novas previstas no projeto. Várias já demonstraram disposição de fazê-lo.
No conjunto, um programa desse tipo pauta e atende à reivindicação popular. E, mais do que isso, desloca o foco atual, dirigido a aspectos pontuais, para outro mais amplo, visando à solução, quanto possível definitiva, de um dos maiores problemas sociais no nosso país.
A Constituição federal de 1988 estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Todavia, num país com uma população de 197,7 milhões de habitantes, 8,5 milhões de quilômetros quadrados e 5.570 municípios, toma-se extremamente complexo organizar e manter um sistema de saúde para atender quase 200 milhões de pessoas com variáveis sociais, políticas e geográficas tão diferentes entre si.
Entretanto, provavelmente pela primeira vez, várias circunstancias determinadas pelo recente movimento popular e a vontade inequívoca dos órgãos governamentais de a ele atender criam uma oportunidade única para elaborar um programa comprometido entre todos os envolvidos que permita atingir aquele objetivo no longo prazo.
Diante disso, o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação apresentaram o programa Mais Médicos, incluindo quatro iniciativas principais:
• Acrescentar, sob a forma de residência obrigatória, dois anos ao currículo médico de graduação para assistência comunitária em áreas estratégicas;
• importar profissionais estrangeiros, sem revalidação do diploma, em número suficiente para atender à necessidade de cerca de 1.500 municípios que hoje não dispõem de nenhum médico;
• criar novas escolas de Medicina nas regiões mais necessitadas, na esperança de que os for-mandos aí permaneçam exercendo sua atividade;
• aplicar, até 2015, R$ 15 bilhões no equipamento de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) já existentes e na construção de hospitais regionais próximos às novas escolas.
Essas iniciativas, no entanto, já haviam sido amplamente discutidas e algumas, rejeitadas, em passado recente, pela Associação Brasileira de Educação Médica, pelo Conselho Federal de Medicina e por uma comissão de especialistas que, além de contraindicar a criação de mais escolas, sugeriram o fechamento de algumas já em atividade pela má qualidade do ensino prestado. Saliente-se, porém, que são entidades de classe independentes que, bem fazendo, avaliam cada uma das propostas com atenção dirigida principalmente para os interesses daqueles que representam, muitas vezes conflitantes entre si.
Nesse sentido, merece atenção a experiência recente do Ministério da Saúde que obteve bons resultados para o desenvolvimento de medicina de ponta em Estados ainda dela desprovidos. O ministro da Saúde criou um grupo de trabalho, por ele presidido e coordenado por um expert de fora do quadro de sua pasta ministerial, encarregado de estudar cada polo-alvo, definir estratégias para capacitá-los, bem como estimular e apressar as ações dos diferentes setores do Ministério da Saúde em direção a esse objetivo. Com o decorrer do tempo, tornou-se aparente que o coordenador, sendo acadêmico, atua conforme seu hábito de inovador e as equipes do Ministério da Saúde atuam conforme seu hábito de executoras, potencializando o trabalho de ambos.
Analogamente, também para a saúde pública poderia ser criado um grupo de trabalho presidido pelo ministro da Saúde, com três subgrupos. Um, com a participação de técnicos do Ministério da Saúde, de associações de classe, da Academia e de representantes da sociedade, para avaliar o estado atual da questão, elaborar um programa de recuperação e integração da saúde pública com ações abrangentes e estruturantes, além de avaliar os recursos necessários para isso. Outro, constituído por membros do Ministério da Saúde, para executar o programa dentro de um cronograma prospectivamente definido. E mais, pela importância do projeto e pelo montante dos recursos previsto, também um terceiro - de acompanhamento -, com a participação do Ministério Público Federal e do Tribunal de Contas da União, assumindo o papel de fiscal do atendimento das reivindicações das ruas para acompanhar o programa.
Com esse perfil, é legítimo prever que o programa será aceito por todas as partes e, dessa maneira, com muito mais possibilidades de sucesso, uma vez que serão conhecidos e comprometidos os recursos necessários, bem como onde serão aplicados, induzindo a aprovação das medidas necessárias para sua implementação, mesmo com o inevitável sacrifício temporário de alguns em benefício de todos.
Espera-se que essa ação indutora se exerça em vários níveis:
• Definindo um objetivo específico à reivindicação popular "saúde pública";
• pressionando o Congresso Nacional para a ela destinar os recursos adicionais necessários, atendendo a projeto popular que destina à saúde 10% do Orçamento da União. Com mais recursos será possível corrigir os valores atuais da Tabela do Sistema Único de Saúde (SUS), pagar salários atraentes e definir uma carreira pára profissionais da saúde, bem como ao corpo docente das novas faculdades que se pretende criar, além de construir novos equipamentos nas áreas que deles necessitem; estimulando os órgãos reguladores das escolas médicas a encontrar formas que permitam às que detêm tecnologia didática mais sedimentada tutelar o desenvolvimento das novas previstas no projeto. Várias já demonstraram disposição de fazê-lo.
No conjunto, um programa desse tipo pauta e atende à reivindicação popular. E, mais do que isso, desloca o foco atual, dirigido a aspectos pontuais, para outro mais amplo, visando à solução, quanto possível definitiva, de um dos maiores problemas sociais no nosso país.
Mudança positiva? - MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 07/08
O orçamento impositivo, que o presidente da Câmara, Henrique Alves, pretende aprovar, é a mais nova dor de cabeça para o Palácio do Planalto. Mas pode vir a ser uma mudança estrutural importante na política brasileira. Há quem considere que a sua aprovação pode trazer um ponto altamente vantajoso: acabar o é dando que se recebe com relação às emendas parlamentares, provocando uma redefinição de forças no Congresso, porque parlamentares deixarão de se alinhar automaticamente com o governo só para liberar suas emendas.
Toda vez que existe uma votação importante no Congresso, há também uma corrida de deputados e senadores ao Palácio do Planalto em busca da liberação de verbas contingenciadas do Orçamento federal.
Esse é o sistema é dando que se recebe , expressão de São Francisco de Assis utilizada, no contexto da troca de votos por verbas, pelo então deputado paulista Roberto Cardoso Alves, que dá à opinião pública uma péssima impressão da relação entre os congressistas e o Executivo, ampliando a sensação de que o fisiologismo impera.
Esse processo de contingenciamento de verbas para emendas parlamentares foi aperfeiçoado no governo Fernando Henrique, tornando-se o principal instrumento de controle das votações no Congresso, transformando algo que é legal num mecanismo de disciplina de voto.
Deputados experientes no Congresso consideram que o Legislativo se tornou um departamento do Poder Executivo. O deputado Miro Teixeira acha que o Orçamento tem que ser mesmo impositivo, e não autorizativo como é hoje, e cita os Estados Unidos, onde o debate é feito na sociedade. Ele gosta de dar o seguinte exemplo: um burocrata que não tem um voto pode fazer o desenho da Transamazônica, mas o deputado está impedido de colocar no Orçamento uma grande estrada, mesmo que a fundamentação esteja correta.
Essa situação de submissão seria atenuada se os partidos se guiassem por programas para participarem do governo, mas no sistema atual um partido recebe um ministério sem mesmo saber qual é o programa que vai conduzir.
Ao contrário dos países mais desenvolvidos, onde 70% do trabalho do Legislativo são a definição do Orçamento, quem define é o Executivo, e, se um parlamentar quiser alguma mudança, tem que negociar com o Executivo, além de ter que mendigar - essa é a expressão mais usada - para aprovar suas emendas, que é a parte do Orçamento que passará a ser impositivo se a Proposta de Emenda Constitucional for aprovada.
Na Constituição de 1946, os parlamentares podiam emendar o Orçamento inteiro, como nos Estados Unidos se emenda. A partir da ditadura militar, o Orçamento passou a ser tratado como um decreto-lei. O Congresso só podia aprová-lo ou rejeitá-lo, não podia emendá-lo. E os deputados e senadores tinham uma cota para dar verbas a entidades assistenciais.
A Constituição de 1988 retomou o espírito da de 1946, com a capacidade de emenda do Congresso. Mas no governo Collor surgem os anões do Orçamento , com o ex-deputado João Alves - que ganhou várias vezes na loteria - de relator que contingenciava o emendamento, e os deputados só podiam emendar 20% do Orçamento, em nome da moralidade .
Mas os anões - todos os deputados envolvidos no escândalo eram baixinhos - incluíam suas emendas direto no Ministério do Planejamento. Hoje, existe um núcleo de poder que aumenta a previsão da receita para aumentar a despesa, aumentando também as emendas dos deputados e as emendas de bancadas, criadas no rastro dos anões.
O governo começou a se valer dessa mecânica para subjugar o Parlamento. Só libera as emendas dos parlamentares adestrados . Essa situação pode mudar com o orçamento impositivo. Mas é preciso que o Executivo tenha condições de vetar uma proposta absurda de emenda parlamentar.
Toda vez que existe uma votação importante no Congresso, há também uma corrida de deputados e senadores ao Palácio do Planalto em busca da liberação de verbas contingenciadas do Orçamento federal.
Esse é o sistema é dando que se recebe , expressão de São Francisco de Assis utilizada, no contexto da troca de votos por verbas, pelo então deputado paulista Roberto Cardoso Alves, que dá à opinião pública uma péssima impressão da relação entre os congressistas e o Executivo, ampliando a sensação de que o fisiologismo impera.
Esse processo de contingenciamento de verbas para emendas parlamentares foi aperfeiçoado no governo Fernando Henrique, tornando-se o principal instrumento de controle das votações no Congresso, transformando algo que é legal num mecanismo de disciplina de voto.
Deputados experientes no Congresso consideram que o Legislativo se tornou um departamento do Poder Executivo. O deputado Miro Teixeira acha que o Orçamento tem que ser mesmo impositivo, e não autorizativo como é hoje, e cita os Estados Unidos, onde o debate é feito na sociedade. Ele gosta de dar o seguinte exemplo: um burocrata que não tem um voto pode fazer o desenho da Transamazônica, mas o deputado está impedido de colocar no Orçamento uma grande estrada, mesmo que a fundamentação esteja correta.
Essa situação de submissão seria atenuada se os partidos se guiassem por programas para participarem do governo, mas no sistema atual um partido recebe um ministério sem mesmo saber qual é o programa que vai conduzir.
Ao contrário dos países mais desenvolvidos, onde 70% do trabalho do Legislativo são a definição do Orçamento, quem define é o Executivo, e, se um parlamentar quiser alguma mudança, tem que negociar com o Executivo, além de ter que mendigar - essa é a expressão mais usada - para aprovar suas emendas, que é a parte do Orçamento que passará a ser impositivo se a Proposta de Emenda Constitucional for aprovada.
Na Constituição de 1946, os parlamentares podiam emendar o Orçamento inteiro, como nos Estados Unidos se emenda. A partir da ditadura militar, o Orçamento passou a ser tratado como um decreto-lei. O Congresso só podia aprová-lo ou rejeitá-lo, não podia emendá-lo. E os deputados e senadores tinham uma cota para dar verbas a entidades assistenciais.
A Constituição de 1988 retomou o espírito da de 1946, com a capacidade de emenda do Congresso. Mas no governo Collor surgem os anões do Orçamento , com o ex-deputado João Alves - que ganhou várias vezes na loteria - de relator que contingenciava o emendamento, e os deputados só podiam emendar 20% do Orçamento, em nome da moralidade .
Mas os anões - todos os deputados envolvidos no escândalo eram baixinhos - incluíam suas emendas direto no Ministério do Planejamento. Hoje, existe um núcleo de poder que aumenta a previsão da receita para aumentar a despesa, aumentando também as emendas dos deputados e as emendas de bancadas, criadas no rastro dos anões.
O governo começou a se valer dessa mecânica para subjugar o Parlamento. Só libera as emendas dos parlamentares adestrados . Essa situação pode mudar com o orçamento impositivo. Mas é preciso que o Executivo tenha condições de vetar uma proposta absurda de emenda parlamentar.
Governo é governo - FERNANDO RODRIGUES
FOLHA DE SP - 07/08
BRASÍLIA - Não se consumou na sua totalidade o clima beligerante pós-recesso no Congresso. O Planalto deve contabilizar derrotas, mas levará o que for relevante para a Justiça. É a política seguindo seu rumo.
O governo também tem a seu favor um grande novo escândalo na praça, com os tucanos amedrontados em razão das acusações de fraude no Metrô de São Paulo.
Coincidência maior não poderia haver. A depauperação da imagem dos políticos começou por causa de protestos de rua pedindo, sobretudo, transporte público melhor. Menos de dois meses depois, descobre-se que, em São Paulo, esse serviço é ainda ruim, entre outras razões, devido à corrupção de empresas em algum tipo de conluio com gente de governos do PSDB paulista.
O caso do Metrô de São Paulo é só mais um alerta sobre a impossibilidade de fazer afirmações peremptórias sobre as eleições de 2014. O que vale nessas horas é a máxima "governo é governo", um pleonasmo antigo com ares de axioma político.
Tome-se o caso de Dilma Rousseff. A presidente cometeu erros de forma e conteúdo ao tentar dar respostas à demanda das ruas. Ainda assim, ocupou mais espaços do que todos os seus adversários juntos. Não tenho levantamento científico a respeito, mas parece evidente que Marina Silva, Aécio Neves e Eduardo Campos tiveram menos exposição do que a petista nos últimos 45 dias.
É que... governo é governo. Se Dilma resolve propor um plebiscito para fazer a reforma política, entorpece o Congresso e a mídia durante semanas. Por mais escalafobética e fora de hora que seja a formatação da ideia, quem há de ser contra consultar os eleitores a respeito de como melhorar a política brasileira?
Só que toda essa operação "salva Dilma" ainda não garante o vaticínio do marqueteiro oficial, João Santana, sobre a petista recuperar sua popularidade em quatro meses. O prazo vence em outubro. Aguardemos.
BRASÍLIA - Não se consumou na sua totalidade o clima beligerante pós-recesso no Congresso. O Planalto deve contabilizar derrotas, mas levará o que for relevante para a Justiça. É a política seguindo seu rumo.
O governo também tem a seu favor um grande novo escândalo na praça, com os tucanos amedrontados em razão das acusações de fraude no Metrô de São Paulo.
Coincidência maior não poderia haver. A depauperação da imagem dos políticos começou por causa de protestos de rua pedindo, sobretudo, transporte público melhor. Menos de dois meses depois, descobre-se que, em São Paulo, esse serviço é ainda ruim, entre outras razões, devido à corrupção de empresas em algum tipo de conluio com gente de governos do PSDB paulista.
O caso do Metrô de São Paulo é só mais um alerta sobre a impossibilidade de fazer afirmações peremptórias sobre as eleições de 2014. O que vale nessas horas é a máxima "governo é governo", um pleonasmo antigo com ares de axioma político.
Tome-se o caso de Dilma Rousseff. A presidente cometeu erros de forma e conteúdo ao tentar dar respostas à demanda das ruas. Ainda assim, ocupou mais espaços do que todos os seus adversários juntos. Não tenho levantamento científico a respeito, mas parece evidente que Marina Silva, Aécio Neves e Eduardo Campos tiveram menos exposição do que a petista nos últimos 45 dias.
É que... governo é governo. Se Dilma resolve propor um plebiscito para fazer a reforma política, entorpece o Congresso e a mídia durante semanas. Por mais escalafobética e fora de hora que seja a formatação da ideia, quem há de ser contra consultar os eleitores a respeito de como melhorar a política brasileira?
Só que toda essa operação "salva Dilma" ainda não garante o vaticínio do marqueteiro oficial, João Santana, sobre a petista recuperar sua popularidade em quatro meses. O prazo vence em outubro. Aguardemos.
Brasil tem de se adaptar ao seu perfil demográfico - EDITORIAL O GLOBO
O GLOBO - 07/08
Os registros históricos são precários, mas presume-se que, na época de Moisés, a expectativa média de vida não era maior que vinte anos. Por isso, teria vagado quarenta anos pelo deserto, para que, após duas gerações, conseguisse mudar a mentalidade de seu povo antes de chegar à chamada Terra Prometida. Passaram-se milhares de anos para que a expectativa média de vida da humanidade dobrasse, atingindo os 40 anos. Esta é também a média estimada para a o Brasil no início do século XX. Ao fim da primeira metade do século passado, conjugada a uma alta taxa de expansão demográfica, a expectativa de vida dos brasileiros chegou a 50 anos, na média, e todos as políticas públicas, incluindo as regras para a previdência social, foram focadas nesses parâmetros.
Na segunda metade do século XX, houve uma transformação demográfica expressiva no país. Acompanhando o que ocorreu com a maioria da Humanidade, também a expectativa média de vida dos brasileiros aumentou, fenômeno associado a uma forte redução nas taxas de fecundidade das mulheres.
Vários fatores explicam essa maior longevidade, destacando-se a queda dos índices de mortalidade infantil, o que, por sua vez, decorreu da inserção das mulheres no mercado de trabalho, da urbanização, da escolarização dos pais e das crianças, das campanhas de vacinação, do uso de medicamentos, do acompanhamento pré-natal, etc.
Concretamente, de 1980 a 2010, segundo a Tábua de Mortalidade para o Brasil, divulgada há poucos dias pelo IBGE, a expectativa média de vida dos brasileiros avançou 11 anos, alcançando 73,8 anos, patamar semelhante ao de um país europeu como a Bulgária.
Em termos relativos, o avanço foi mais significativo aconteceu em regiões menos desenvolvidas do país (Norte, Nordeste). Ainda assim, estados dessas regiões continuam a ser os que apresentam as taxas mais elevadas de mortalidade infantil e de diferença de expectativa de vida entre homens e mulheres, por força dos índices de morte violenta de adolescentes e jovens adultos.
A reflexão sobre esses números é que o Brasil precisa, desde já, repensar suas políticas públicas. As regras do sistema previdenciário, que estimulam a aposentadoria precoce, ficaram desfasadas. Tais regras deveriam estimular tanto empregados como empregadores a postergarem aposentadorias, estendendo prazos de contribuição (com redução proporcional a partir de certa idade) e encurtando os de recebimento de benefícios.
Transporte público e vias urbanas deveriam ser adaptados a esse envelhecimento da população, pois muitos idosos passam a ter mais dificuldades de locomoção. Políticas de saúde precisam ficar mais atentas à prevenção de doenças e ao estímulo de uma vida mais saudável. O país já está atrasado neste trabalho.
Os registros históricos são precários, mas presume-se que, na época de Moisés, a expectativa média de vida não era maior que vinte anos. Por isso, teria vagado quarenta anos pelo deserto, para que, após duas gerações, conseguisse mudar a mentalidade de seu povo antes de chegar à chamada Terra Prometida. Passaram-se milhares de anos para que a expectativa média de vida da humanidade dobrasse, atingindo os 40 anos. Esta é também a média estimada para a o Brasil no início do século XX. Ao fim da primeira metade do século passado, conjugada a uma alta taxa de expansão demográfica, a expectativa de vida dos brasileiros chegou a 50 anos, na média, e todos as políticas públicas, incluindo as regras para a previdência social, foram focadas nesses parâmetros.
Na segunda metade do século XX, houve uma transformação demográfica expressiva no país. Acompanhando o que ocorreu com a maioria da Humanidade, também a expectativa média de vida dos brasileiros aumentou, fenômeno associado a uma forte redução nas taxas de fecundidade das mulheres.
Vários fatores explicam essa maior longevidade, destacando-se a queda dos índices de mortalidade infantil, o que, por sua vez, decorreu da inserção das mulheres no mercado de trabalho, da urbanização, da escolarização dos pais e das crianças, das campanhas de vacinação, do uso de medicamentos, do acompanhamento pré-natal, etc.
Concretamente, de 1980 a 2010, segundo a Tábua de Mortalidade para o Brasil, divulgada há poucos dias pelo IBGE, a expectativa média de vida dos brasileiros avançou 11 anos, alcançando 73,8 anos, patamar semelhante ao de um país europeu como a Bulgária.
Em termos relativos, o avanço foi mais significativo aconteceu em regiões menos desenvolvidas do país (Norte, Nordeste). Ainda assim, estados dessas regiões continuam a ser os que apresentam as taxas mais elevadas de mortalidade infantil e de diferença de expectativa de vida entre homens e mulheres, por força dos índices de morte violenta de adolescentes e jovens adultos.
A reflexão sobre esses números é que o Brasil precisa, desde já, repensar suas políticas públicas. As regras do sistema previdenciário, que estimulam a aposentadoria precoce, ficaram desfasadas. Tais regras deveriam estimular tanto empregados como empregadores a postergarem aposentadorias, estendendo prazos de contribuição (com redução proporcional a partir de certa idade) e encurtando os de recebimento de benefícios.
Transporte público e vias urbanas deveriam ser adaptados a esse envelhecimento da população, pois muitos idosos passam a ter mais dificuldades de locomoção. Políticas de saúde precisam ficar mais atentas à prevenção de doenças e ao estímulo de uma vida mais saudável. O país já está atrasado neste trabalho.
Reservatórios polivalentes - EDITORIAL CORREIO BRAZILIENSE
CORREIO BRAZILIENSE - 07/08
Nos últimos anos, os períodos de estiagem têm se repetido, alguns bem extensos, causando preocupação ao governo quanto à capacidade dos reservatórios para a geração de energia. Por isso, o Comitê Brasileiro de Barragens (CBDB) quer estimular debate técnico sobre a importância do uso múltiplo dos estoques de água das usinas hidrelétricas. O presidente do organismo, Erton Carvalho, defende o uso do sistema de regularização de reservatórios com capacidade para estocagem de água nas fases chuvosas visando à utilização durante a seca.
Os reservatórios das usinas brasileiras têm sido usados também para projetos de irrigação, como ocorre na Bacia do São Francisco, que permitiu, por exemplo, o desenvolvimento da produção de frutas na região de Petrolina (PE) e Juazeiro (BA). Nas cabeceiras do Velho Chico há manutenção de uma vazão mínima para melhorar as condições de navegação. "No momento em que há água armazenada, há energia acumulada. Água que pode atender outras finalidades, como o abastecimento à população", observa Carvalho.
Depois de 2007, com o surgimento de exigências ambientais mais rigorosas, não estão sendo feitas mais no Brasil usinas hidrelétricas com reservatórios de regularização. Em outras palavras: as usinas que fazem barragens para gerar energia estão trabalhando condicionadas ao tempo. Como a barragem não acumula água, a hidrelétrica gera à medida que o rio contribui - na cheia, gera mais; na seca, gera muito pouco, porque não há reserva hídrica.
O comitê considera que a política imposta pelas restrições ambientais deve ser reavaliada. A poluição é outro problema. Segundo os técnicos, o impacto ambiental é muito mais severo nas térmicas que utilizam combustíveis fósseis porque emitem gases de efeito estufa em quantidades consideráveis. Eles recomendam à sociedade que discuta o tema com profundidade. A energia eólica (gerada pelos ventos) é importante para a matriz energética brasileira e não deve ser descartada. Porém, não entra na base do sistema porque a produção não é constante, sendo apenas complemento à energia hidráulica.
O setor elétrico brasileiro tem um dos maiores sistemas interligados do mundo, com 12 mil quilômetros de linhas de alta tensão, acima de 230 quilovolts (kV), que interliga o sistema e permite o uso otimizado dos reservatórios de todo o país. O comitê barragens defende que isso só pode ser feito com o uso dos reservatórios que "estocam água, isto é, estocam energia", permitindo que ela possa ser transportada pelo sistema. Portanto, urge um debate técnico amplo sobre a importância do uso múltiplo dos reservatórios das usinas hidrelétricas do país. Afinal, os períodos de estiagem estão cada vez mais longos e preocupantes.
Os reservatórios das usinas brasileiras têm sido usados também para projetos de irrigação, como ocorre na Bacia do São Francisco, que permitiu, por exemplo, o desenvolvimento da produção de frutas na região de Petrolina (PE) e Juazeiro (BA). Nas cabeceiras do Velho Chico há manutenção de uma vazão mínima para melhorar as condições de navegação. "No momento em que há água armazenada, há energia acumulada. Água que pode atender outras finalidades, como o abastecimento à população", observa Carvalho.
Depois de 2007, com o surgimento de exigências ambientais mais rigorosas, não estão sendo feitas mais no Brasil usinas hidrelétricas com reservatórios de regularização. Em outras palavras: as usinas que fazem barragens para gerar energia estão trabalhando condicionadas ao tempo. Como a barragem não acumula água, a hidrelétrica gera à medida que o rio contribui - na cheia, gera mais; na seca, gera muito pouco, porque não há reserva hídrica.
O comitê considera que a política imposta pelas restrições ambientais deve ser reavaliada. A poluição é outro problema. Segundo os técnicos, o impacto ambiental é muito mais severo nas térmicas que utilizam combustíveis fósseis porque emitem gases de efeito estufa em quantidades consideráveis. Eles recomendam à sociedade que discuta o tema com profundidade. A energia eólica (gerada pelos ventos) é importante para a matriz energética brasileira e não deve ser descartada. Porém, não entra na base do sistema porque a produção não é constante, sendo apenas complemento à energia hidráulica.
O setor elétrico brasileiro tem um dos maiores sistemas interligados do mundo, com 12 mil quilômetros de linhas de alta tensão, acima de 230 quilovolts (kV), que interliga o sistema e permite o uso otimizado dos reservatórios de todo o país. O comitê barragens defende que isso só pode ser feito com o uso dos reservatórios que "estocam água, isto é, estocam energia", permitindo que ela possa ser transportada pelo sistema. Portanto, urge um debate técnico amplo sobre a importância do uso múltiplo dos reservatórios das usinas hidrelétricas do país. Afinal, os períodos de estiagem estão cada vez mais longos e preocupantes.
Impositivo demais - EDTORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 07/08
Deputados fariam melhor se pusessem freio nos gastos obrigatórios do Orçamento, em vez de tentar fixar cota individual de emendas
Está prevista para hoje na Câmara dos Deputados a votação da proposta de emenda constitucional que instituiria o "Orçamento impositivo" no Brasil. O conceito, inspirado em democracias maduras, predica que todo gasto pactuado na confecção da lei orçamentária anual deve ser de realização obrigatória ao longo do período.
A programação de despesas pode ser alterada apenas diante de imprevistos, como catástrofes ou quebra na receita de impostos. Mesmo nessas hipóteses, o desvio do script está sujeito a limites e à mediação do Legislativo.
A PEC em tramitação na Casa dos deputados, entretanto, tem objetivos mais provincianos. Tenta instituir uma cota anual de emendas por parlamentar, R$ 10 milhões por cabeça, cuja execução pelo Planalto seria obrigatória. Está mais para "bolsa emenda" do que para Orçamento impositivo.
O governo veria diminuído o seu poder de barganha, pois se vale da liberação discriminada de emendas para assegurar apoio em momentos decisivos no Congresso. Ficaria um pouco mais difícil, por outro lado, para o Executivo ajustar a dura realidade da arrecadação aos desejos fiscalmente irresponsáveis de congressistas, impressos na peça de ficção que uma vez por ano entregam ao governo.
A conta da "bolsa emenda" não parece tão salgada. Seriam R$ 6,2 bilhões ao longo de 12 meses, cerca de 0,5% do desembolso da União, que passa de R$ 1 trilhão.
Mas seria um meio ruim, pulverizado e de difícil fiscalização, de aplicar dinheiro dos impostos. O ideal seria privilegiar as emendas coletivas, pactuadas entre os congressistas de cada Estado e mais coerentemente inseridas em planos de desenvolvimento regional.
Emendas tratam sobretudo da despesa na infraestrutura, a rubrica mais sacrificada nos orçamentos, embora decisiva para o crescimento econômico. Quando se fixa uma cota para as emendas paroquiais, obriga-se o governo a sacrificar outros investimentos.
O Orçamento já é bastante impositivo. Despesas obrigatórias com manutenção da máquina, pessoal, juros e seguridade consomem mais de R$ 80 de cada R$ 100 gastos pela União. O quadro reflete escolhas sedimentadas da democracia brasileira ao longo de três décadas. Optou-se pela constituição de um colchão social extenso, mas incapaz de oferecer serviços de boa qualidade --limitado pela renda apenas média do Brasil.
Se os congressistas desejam transformar o Orçamento numa peça importante para o desenvolvimento do país, deveriam começar pela revisão das despesas obrigatórias. De sua diminuição relativa nos próximos anos depende a retomada de um ritmo confortável de aumento na renda nacional.
Deputados fariam melhor se pusessem freio nos gastos obrigatórios do Orçamento, em vez de tentar fixar cota individual de emendas
Está prevista para hoje na Câmara dos Deputados a votação da proposta de emenda constitucional que instituiria o "Orçamento impositivo" no Brasil. O conceito, inspirado em democracias maduras, predica que todo gasto pactuado na confecção da lei orçamentária anual deve ser de realização obrigatória ao longo do período.
A programação de despesas pode ser alterada apenas diante de imprevistos, como catástrofes ou quebra na receita de impostos. Mesmo nessas hipóteses, o desvio do script está sujeito a limites e à mediação do Legislativo.
A PEC em tramitação na Casa dos deputados, entretanto, tem objetivos mais provincianos. Tenta instituir uma cota anual de emendas por parlamentar, R$ 10 milhões por cabeça, cuja execução pelo Planalto seria obrigatória. Está mais para "bolsa emenda" do que para Orçamento impositivo.
O governo veria diminuído o seu poder de barganha, pois se vale da liberação discriminada de emendas para assegurar apoio em momentos decisivos no Congresso. Ficaria um pouco mais difícil, por outro lado, para o Executivo ajustar a dura realidade da arrecadação aos desejos fiscalmente irresponsáveis de congressistas, impressos na peça de ficção que uma vez por ano entregam ao governo.
A conta da "bolsa emenda" não parece tão salgada. Seriam R$ 6,2 bilhões ao longo de 12 meses, cerca de 0,5% do desembolso da União, que passa de R$ 1 trilhão.
Mas seria um meio ruim, pulverizado e de difícil fiscalização, de aplicar dinheiro dos impostos. O ideal seria privilegiar as emendas coletivas, pactuadas entre os congressistas de cada Estado e mais coerentemente inseridas em planos de desenvolvimento regional.
Emendas tratam sobretudo da despesa na infraestrutura, a rubrica mais sacrificada nos orçamentos, embora decisiva para o crescimento econômico. Quando se fixa uma cota para as emendas paroquiais, obriga-se o governo a sacrificar outros investimentos.
O Orçamento já é bastante impositivo. Despesas obrigatórias com manutenção da máquina, pessoal, juros e seguridade consomem mais de R$ 80 de cada R$ 100 gastos pela União. O quadro reflete escolhas sedimentadas da democracia brasileira ao longo de três décadas. Optou-se pela constituição de um colchão social extenso, mas incapaz de oferecer serviços de boa qualidade --limitado pela renda apenas média do Brasil.
Se os congressistas desejam transformar o Orçamento numa peça importante para o desenvolvimento do país, deveriam começar pela revisão das despesas obrigatórias. De sua diminuição relativa nos próximos anos depende a retomada de um ritmo confortável de aumento na renda nacional.
A quadrilha dos trilhos - EDITORIAL O ESTADÃO
O ESTADO DE S. PAULO - 07/08
O governo paulista entrou com o pé esquerdo no caso da investigação em curso no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) sobre a formação de cartel em licitações para a compra de equipamentos, construção e manutenção de linhas de trens e metrôs em São Paulo. As regras da livre-concorrência também foram burladas no Distrito Federal. A primeira reação do Palácio dos Bandeirantes depois de o inquérito ter sido revelado pela Folha de S.Paulo, em meados de julho, foi recorrer à teoria conspiratória segundo a qual o Cade, ligado ao Ministério da Justiça, agia como "polícia política" do PT, ao vazar, de forma supostamente seletiva, documentos em seu poder sobre o escândalo.
O objetivo óbvio seria plantar na opinião pública a suspeita de que, entre 2000 e 2007, sucessivas administrações do PSDB, conduzidas por Mário Covas, Geraldo Alckmin e José Serra, ou deixaram correr as fraudes continuadas de que tinham conhecimento ou delas se beneficiaram de alguma forma. O governo decerto não podia imaginar que o ex-secretário estadual de Transportes (na gestão Covas), Cláudio de Senna Federico, declararia que "não se lembrava de ter acontecido uma licitação de fato competitiva", embora alegasse ignorância do cartel à época. O segundo passo malsucedido de Alckmin foi recorrer à Justiça para ter acesso à documentação completa em exame no Cade, negado pelo organismo. Ao rejeitar o pedido, o juiz federal Gabriel José Queiroz Neto lembrou que o inquérito corre sob sigilo por decisão judicial e que o Cade ainda não chegou a uma conclusão sobre o que pode ou não ser repassado - se é que a separação é possível.
Já não sem tempo, uma providência positiva acaba de ser tomada. O Ministério Público paulista constituiu uma força-tarefa integrada por 10 promotores, 2 deles da área crimi nal, para conduzir 45 inquéritos, entre os quais 15 que haviam sido arquivados por falta de provas, a fim de apurar presumível enriquecimento ilícito de autoridades estaduais, além de lavagem de dinheiro, antes e durante a execução dos contratos no Metrô e na Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Eles somaram, em valores correntes, R$ 1,925 bilhão, conforme documentos obtidos pelo Estado. Se a concorrência fosse para valer, o custo teria sido 30% inferior. Ou seja, o prejuízo para o governo foi da ordem de R$ 557 milhões. O porcentual é citado em um texto, a que este jornal teve acesso, preparado pela multinacional alemã Siemens. |
A megaempresa, por motivos ainda não de todo esclarecidos, tomou a iniciativa de delatar o esquema ao Cade, com o qual (e com os Ministérios Públicos Estadual e Federal) assinou em 22 de maio um "acordo de leniência" para não ser alcançada pelas punições que vierem a ser aplicadas aos seus parceiros. Pelo menos quatro gigantes globais da área de infraestrutura se associaram na armação, segundo a denúncia da Siemens, amparada em copiosa documentação: a Alstom, francesa; a Mitsui, japonesa; a CAF, espanhola; e a Bom-bardier, canadense. Um diário com anotações de diversos executivos da Siemens, repassado às autoridades, é praticamente um manual de concorrências pré-fabricadas e preços superfaturados.
De acordo com a empresa, a Secretaria de Transportes, para evitar que disputas judiciais entre competidores travassem a obra, apoiou a formação de um consorcio único para ganhar a licitação de um trecho da linha 5 (lilás) do metrô paulistano. O diário registra um satisfeito comentário sobre o acerto: "O fornecimento dos carros é organizado em um consórcio político. Então, o preço foi muito alto". Quando, por alguma razão, a frente única é inviável, a alternativa é um "acordo de cavalheiros", vá lá o termo, pelo qual o ganhador da concorrência forjada subcon-trata o competidor derrotado. A ansiedade das autoridades em tirar as obras do papel não raro as leva a fazer vistas grossas às maracutaias.
No caso da quadrilha dos trilhos, há pelo menos um indício de corrupção. O Estado revelou dias atrás que o Ministério Público tem os nomes de três empresas offshore sediadas no Uruguai, por meio das quais agentes públicos teriam recebido subornos para facilitar contratos com o Metrô e a CPTM.
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