FOLHA DE SP - 08/04
O povo adora apedrejar pecadoras e detesta quem as perdoa
Talvez uma das passagens mais famosas do Evangelho seja aquela em que umas pessoas trazem uma mulher aos prantos, envergonhada, e a jogam aos pés de Jesus. Ela tinha sido pega transando com outro homem que não o seu marido. Um horror até hoje. Uma adúltera (que não tem nada a ver com Maria Madalena!).
As pessoas que a levaram perguntaram a Jesus se ela não deveria ser morta por apedrejamento, como rezava a lei de Moisés. Era uma armadilha para testar se Jesus era fiel às leis de Israel ou se era algum tipo de herege.
É fácil imaginar que leis como essas visavam garantir a fidelidade da mulher e, com isso, a paternidade dos filhos. Esse negócio de sexo é coisa séria demais para deixarmos nas mãos dos idiotas de gênero.
Façamos um exercício literário bíblico. Na Bíblia, outro personagem muito famoso, que para os cristãos era ancestral de Jesus, o Rei Davi, passou por uma semelhante. Davi se apaixonou por Batsheva (Betsabá), mulher de um dos seus generais mais fiéis.
Davi, segundo a tradição, escreveu os Salmos. Homem de coração apaixonado, ambicioso, libidinoso, mas profundamente sincero, e Deus gosta dos corajosos, sinceros e humildes. Ele engravidou a mulher do general (logo, ela era uma adúltera) e armou uma situação para parecer que ela estava grávida do marido.
Em seguida, armou outra para o general morrer na guerra que estava acontecendo ao norte do reino israelita. O militar morreu, mas a história não colou. Davi queria que sua amada escapasse do apedrejamento que “merecia” por lei. Mas não adiantou, o povo foi atrás. O povo adora apedrejar adúlteras e detesta quem as perdoa. O povo odeia o perdão.
As pessoas clamaram pelo apedrejamento da adúltera às portas de Jerusalém, inclusive porque os homens santos diziam que a seca infame que Israel sofria àquela altura era castigo pelo adultério real.
Davi se recusou a entregar sua amada e foi pedir a Deus, pessoalmente, na tenda onde ficava a Arca da Aliança, para que perdoasse Batsheva e o punisse, afinal Davi era o rei, enquanto ela era uma coitada que tinha de obedecê-lo —apesar de saber que ela também o amava e o desejava, portanto, também era responsável pelo pecado do adultério.
Sendo Davi ele mesmo um pecador por ter armado tudo que armou, deveria ser destruído pelas chamas do céu ao tocar a Torá, na qual só os puros poderiam encostar.
Mas não. Deus o perdoa e faz chover sobre Israel. A sinceridade de Davi, reconhecendo que ele mesmo merecia morrer, e não ela, e o pedido para que ele fosse castigado, e não ela, faz Deus ficar comovido.
O povo, impressionado, aprende ali que Deus é misericordioso e que a lei não esgota a relação entre nós e Ele.
Davi se casa então com Batsheva, e deles nasce Salomão: o futuro rei sábio da Israel antiga, autor, segundo a tradição, dos livros de sabedoria israelita, entre eles o Cântico dos Cânticos, uma história de amor proibido.
Davi, na tradição judaica, é o bem-amado de Deus, o preferido entre os heróis do Antigo Testamento. Por quê?
Quem somos nós pra saber o que se passa no coração de Deus, mas talvez Davi seja querido justamente porque sabe que não merece o perdão e não o barganha —no lugar disso, pede que ele salve a mulher amada.
Deus não resiste à sinceridade e ao amor verdadeiro, que pode custar a vida de quem ama. Por isso, o caminho mais reto para o coração divino é a verdade. A verdade comove o coração da divindade israelita.
Voltando a Jesus e à adúltera, a reposta dada pelo Cristo é famosa. Ele reconhece que a mulher pecou, e ela também, e que a lei é a lei. Mas pede que aquele que tiver o coração puro atire a primeira pedra.
Jesus, como Deus na história de Davi e Batsheva, comove-se com a dor da mulher humilhada e desafia os “puros” de coração a aplicar a lei. Ninguém atira a primeira pedra, porque não existem os puros de coração, pelo menos entre os que assim pensam de si mesmos.
Essa passagem é fundamental para uma época com tantos santos desfilando pelo mundo. A Bíblia nos ensina que a virtude não está onde parece se revelar, orgulhosa de si mesma (evidente contradição, não?).
A virtude está no desespero de Davi diante do possível apedrejamento da mulher que ele desgraçou. A virtude está naquela adúltera desesperada pega em pecado evidente diante dos seus juízes.
Enfim, a virtude está no pecador que sabe quem é. Por isso, uma das velhas e maiores máximas do mundo bíblico é: só os pecadores verão a Deus.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP
segunda-feira, abril 08, 2019
"O supremo brinquedo do Zequinha" - GUILHERME FIUZA
GAZETA DO POVO - PR - 07/04
"Talvez você não saiba, mas José Dirceu tem um filho que é deputado. Talvez você não se lembre quem é José Dirceu, então dê um pulo no Google quando não tiver ninguém olhando – para não ser acusado de formação de quadrilha. E agora que você já sabe de tudo, veja a cena: o ministro da Economia, com sua equipe de padrão internacional, liderando a reforma mais esperada do país e sendo interpelado por Dirceu Júnior.
Interpelação não é o termo exato – sugere uma dignidade que a cena não ostentava. Pegadinha seria mais próximo do sentido da coisa, já que molecagem está em desuso. Mostrando que desinibição é genética, o filho do herói sem tornozeleira saltou na ribalta para uma repreensão moral à autoridade econômica – e se você rir agora estragará o final da piada, que é de chorar.
Acaba assim: Dirceuzinho fez malcriação, bagunçou a sala, forçou a interrupção da audiência mais aguardada do ano e obteve, ato contínuo, ampla repercussão nas redes e na imprensa tradicional até sobre a existência de um fã clube para exaltá-lo – com direito a muitas fotografias e sugestões de que se trata de um galã. Haddad já era.
Por mais que tenha sido lançado à Presidência dentro da cadeia, o poste do Lula não tem o mesmo charme. Em seus perfis na internet, o filho do coordenador do maior assalto da história do país aparece dando voltas ao mundo – exibindo a quem quiser ver as maravilhas que uma família bem-sucedida pode desfrutar. O petróleo é nosso (deles).
Pois esse personagem carismático e cativante foi lá botar o dedo na cara do Paulo Guedes. O acusou de ser mau com os pobres e bonzinho com os poderosos. De maldade com o povo ele entende, considerando-se que a simpática gangue do seu pai presenteou os brasileiros com a maior recessão de sua história. De adulação e conchavo com os poderosos o jovem herdeiro do petrolão também pode falar de cátedra – basta ver o clube de empreiteiras que seu pai montou para livrar o país do excesso de dinheiro.
Mesmo com esse festival de virtudes, sendo o Brasil um adorável jardim de infância, o que consagrou Dirceu Jr. foi a sua terminologia pré-escolar: Guedes virou tigrão contra os fracos e tchuchuca com os fortes. O menino sabe o que diz. Poderia até ter ilustrado seu postulado contando como se faz para que a corte máxima do país seja tchuchuca com papai – condenado a mais de 30 anos de prisão e flanando à solta por aí.
Um ponto importante para a decisão do STF de manter José Dirceu fora da cadeia foi uma divergência sobre quantos milhões de reais o condenado terá que devolver aos cofres públicos. Faz todo o sentido – e a lei é claríssima: não se pode privar um ladrão de torrar à vontade o dinheiro roubado só porque ainda não se sabe exatamente quanto da fortuna amealhada com o suor dos outros vai sobrar para os felizes herdeiros.
O Supremo não vai deixar tigrão nenhum tirar o brinquedo do Zequinha.
Já o Brasil, sempre sensível aos guerreiros do povo e ao sagrado direito dos seus filhos de brincar com a cara da população, permanece na trincheira contra o fascismo imaginário. Esse sim é terrível – e deu para ver nos olhos faiscantes de Guedes a ira do tinhoso. Aconteceu a mesmíssima coisa na época de FHC – que hoje está no camarote vip dos democratas de auditório, mas já foi o monstro neoliberal mancomunado com os filhotes da ditadura. O golpe fascista na ocasião se chamava Plano Real – e vinha junto com reformas do estado, inclusive da previdência. Mesmo truque.
Felizmente os brasileiros têm guardiões da democracia como Dirceu, Dirceuzinho, Gleisi, Molon, Freixo, Maria do Rosário e toda a brigada Lula Livre para lutar contra esses fascistas que querem indisfarçavelmente engordar o povo – provavelmente para depois maltratá-lo a golpes de gordofobia.
Não passarão!"
"Talvez você não saiba, mas José Dirceu tem um filho que é deputado. Talvez você não se lembre quem é José Dirceu, então dê um pulo no Google quando não tiver ninguém olhando – para não ser acusado de formação de quadrilha. E agora que você já sabe de tudo, veja a cena: o ministro da Economia, com sua equipe de padrão internacional, liderando a reforma mais esperada do país e sendo interpelado por Dirceu Júnior.
Interpelação não é o termo exato – sugere uma dignidade que a cena não ostentava. Pegadinha seria mais próximo do sentido da coisa, já que molecagem está em desuso. Mostrando que desinibição é genética, o filho do herói sem tornozeleira saltou na ribalta para uma repreensão moral à autoridade econômica – e se você rir agora estragará o final da piada, que é de chorar.
Acaba assim: Dirceuzinho fez malcriação, bagunçou a sala, forçou a interrupção da audiência mais aguardada do ano e obteve, ato contínuo, ampla repercussão nas redes e na imprensa tradicional até sobre a existência de um fã clube para exaltá-lo – com direito a muitas fotografias e sugestões de que se trata de um galã. Haddad já era.
Por mais que tenha sido lançado à Presidência dentro da cadeia, o poste do Lula não tem o mesmo charme. Em seus perfis na internet, o filho do coordenador do maior assalto da história do país aparece dando voltas ao mundo – exibindo a quem quiser ver as maravilhas que uma família bem-sucedida pode desfrutar. O petróleo é nosso (deles).
Pois esse personagem carismático e cativante foi lá botar o dedo na cara do Paulo Guedes. O acusou de ser mau com os pobres e bonzinho com os poderosos. De maldade com o povo ele entende, considerando-se que a simpática gangue do seu pai presenteou os brasileiros com a maior recessão de sua história. De adulação e conchavo com os poderosos o jovem herdeiro do petrolão também pode falar de cátedra – basta ver o clube de empreiteiras que seu pai montou para livrar o país do excesso de dinheiro.
Mesmo com esse festival de virtudes, sendo o Brasil um adorável jardim de infância, o que consagrou Dirceu Jr. foi a sua terminologia pré-escolar: Guedes virou tigrão contra os fracos e tchuchuca com os fortes. O menino sabe o que diz. Poderia até ter ilustrado seu postulado contando como se faz para que a corte máxima do país seja tchuchuca com papai – condenado a mais de 30 anos de prisão e flanando à solta por aí.
Um ponto importante para a decisão do STF de manter José Dirceu fora da cadeia foi uma divergência sobre quantos milhões de reais o condenado terá que devolver aos cofres públicos. Faz todo o sentido – e a lei é claríssima: não se pode privar um ladrão de torrar à vontade o dinheiro roubado só porque ainda não se sabe exatamente quanto da fortuna amealhada com o suor dos outros vai sobrar para os felizes herdeiros.
O Supremo não vai deixar tigrão nenhum tirar o brinquedo do Zequinha.
Já o Brasil, sempre sensível aos guerreiros do povo e ao sagrado direito dos seus filhos de brincar com a cara da população, permanece na trincheira contra o fascismo imaginário. Esse sim é terrível – e deu para ver nos olhos faiscantes de Guedes a ira do tinhoso. Aconteceu a mesmíssima coisa na época de FHC – que hoje está no camarote vip dos democratas de auditório, mas já foi o monstro neoliberal mancomunado com os filhotes da ditadura. O golpe fascista na ocasião se chamava Plano Real – e vinha junto com reformas do estado, inclusive da previdência. Mesmo truque.
Felizmente os brasileiros têm guardiões da democracia como Dirceu, Dirceuzinho, Gleisi, Molon, Freixo, Maria do Rosário e toda a brigada Lula Livre para lutar contra esses fascistas que querem indisfarçavelmente engordar o povo – provavelmente para depois maltratá-lo a golpes de gordofobia.
Não passarão!"
Ainda a conta do PT - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo - 08/04
Nas mãos do PT, o BNDES torrou dinheiro público em projetos sem relevância para o interesse nacional.
O Congresso defenestrou a última presidente petista por crime de responsabilidade, o Judiciário condenou criminosos petistas pelo mensalão e o petrolão e o eleitorado bloqueou o retorno do último poste de Lula da Silva ao Planalto nas eleições passadas. Mas o contribuinte continua a pagar a conta do projeto de poder do PT.
Conforme reportagem do Estado, só Venezuela, Cuba e Moçambique somam R$ 2,3 bilhões em dívidas atrasadas com o BNDES. Os valores recairão sobre o Tesouro, que cobre os financiamentos do banco ao exterior e que já teve de indenizá-lo em R$ 1,3 bilhão devido aos atrasos desses países.
Criado nos anos 50 para capitalizar empreendedores de todos os portes, em especial empreendimentos estratégicos na indústria e infraestrutura, o banco também teve papel decisivo na modernização da agricultura, comércio e serviços, assim como em investimentos sociais na educação, saúde, agricultura familiar, saneamento básico e transporte coletivo. Na gestão petista, esse instrumento destinado a fortalecer a economia serviu à bandeira populista e para operações duvidosas das “campeãs nacionais”.
Em 2012, logo após a entrada em vigência da Lei de Acesso à Informação, o então ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio decretou sigilo até
2027 sobre a documentação dos empréstimos do BNDES, vedando que a ela tivessem acesso o Tribunal de Contas da União (TCU), a Controladoria Geral da União e o próprio Ministério Público. Três anos depois, o Congresso suspendeu o sigilo por decreto, vetado por Dilma Rousseff. Só em julho de 2015 um juiz federal, a pedido do Ministério Público, derrubou o sigilo.
O levantamento do TCU foi estarrecedor. De R$ 50 bilhões distribuídos em 140 contratos de financiamento, 87% (R$ 44 bilhões) estavam concentrados em cinco países – Angola, Venezuela, República Dominicana, Argentina e Cuba –, e 97% desses recursos beneficiavam apenas cinco empreiteiras, todas denunciadas na Lava Jato.
Dentre outras irregularidades, o TCU averiguou que os empréstimos foram acertados por instâncias do Executivo, sendo apenas homologados pelo BNDES, que, contra todos os protocolos, sobretudo em empréstimos de altos risco e custo, não acionou os seus pareceristas técnicos. Além disso, não houve processos licitatórios e o banco se omitiu na apuração dos preços, deixados a cargo das empresas e governos beneficiados. Pior, os riscos de inadimplência ficaram todos com o governo, quer dizer, com o contribuinte brasileiro.
De lá para cá, duas Comissões Parlamentares de Inquérito do BNDES malograram pelas manobras dos próceres petistas na Câmara e a terceira, cuja constituição foi determinada em fevereiro deste ano pelo presidente da Câmara, ainda está em formação.
Que a caixa-preta do BNDES, quando definitivamente aberta, revelará muitos outros descalabros, ninguém duvida – a começar pelos próprios petistas, que tanto se esforçaram para trancafiá-la. Só o risco do calote desses três países, que é quase uma certeza, levou o banco a registrar perdas de R$ 4,4 bilhões no balanço financeiro de 2018, divulgado na semana passada. Somem-se a isso as dívidas perdoadas pelos governos petistas, como os US$ 900 milhões dados sem contrapartida a 12 governos africanos, e as propinas apuradas pela Lava Jato.
A constatação é que nas mãos sujas petistas o BNDES se transformou para a geração presente e as próximas num verdadeiro “Banco Nacional do Retrocesso Econômico e Social”, que não só torrou o dinheiro público com projetos sem nenhuma relevância para o interesse nacional, como abasteceu os bolsos de políticos e empresários corruptos, e, pior, de ditadores que asfixiam as populações de seus países.
Cabe aos brasileiros continuar pressionando o Congresso, o Ministério Público e os outros órgãos de fiscalização para que levem essa devassa até o fim e, sobretudo, aniquilar nas urnas o projeto de poder desse partido que, ainda hoje, tem a maior bancada na Câmara.
Nas mãos do PT, o BNDES torrou dinheiro público em projetos sem relevância para o interesse nacional.
O Congresso defenestrou a última presidente petista por crime de responsabilidade, o Judiciário condenou criminosos petistas pelo mensalão e o petrolão e o eleitorado bloqueou o retorno do último poste de Lula da Silva ao Planalto nas eleições passadas. Mas o contribuinte continua a pagar a conta do projeto de poder do PT.
Conforme reportagem do Estado, só Venezuela, Cuba e Moçambique somam R$ 2,3 bilhões em dívidas atrasadas com o BNDES. Os valores recairão sobre o Tesouro, que cobre os financiamentos do banco ao exterior e que já teve de indenizá-lo em R$ 1,3 bilhão devido aos atrasos desses países.
Criado nos anos 50 para capitalizar empreendedores de todos os portes, em especial empreendimentos estratégicos na indústria e infraestrutura, o banco também teve papel decisivo na modernização da agricultura, comércio e serviços, assim como em investimentos sociais na educação, saúde, agricultura familiar, saneamento básico e transporte coletivo. Na gestão petista, esse instrumento destinado a fortalecer a economia serviu à bandeira populista e para operações duvidosas das “campeãs nacionais”.
Em 2012, logo após a entrada em vigência da Lei de Acesso à Informação, o então ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio decretou sigilo até
2027 sobre a documentação dos empréstimos do BNDES, vedando que a ela tivessem acesso o Tribunal de Contas da União (TCU), a Controladoria Geral da União e o próprio Ministério Público. Três anos depois, o Congresso suspendeu o sigilo por decreto, vetado por Dilma Rousseff. Só em julho de 2015 um juiz federal, a pedido do Ministério Público, derrubou o sigilo.
O levantamento do TCU foi estarrecedor. De R$ 50 bilhões distribuídos em 140 contratos de financiamento, 87% (R$ 44 bilhões) estavam concentrados em cinco países – Angola, Venezuela, República Dominicana, Argentina e Cuba –, e 97% desses recursos beneficiavam apenas cinco empreiteiras, todas denunciadas na Lava Jato.
Dentre outras irregularidades, o TCU averiguou que os empréstimos foram acertados por instâncias do Executivo, sendo apenas homologados pelo BNDES, que, contra todos os protocolos, sobretudo em empréstimos de altos risco e custo, não acionou os seus pareceristas técnicos. Além disso, não houve processos licitatórios e o banco se omitiu na apuração dos preços, deixados a cargo das empresas e governos beneficiados. Pior, os riscos de inadimplência ficaram todos com o governo, quer dizer, com o contribuinte brasileiro.
De lá para cá, duas Comissões Parlamentares de Inquérito do BNDES malograram pelas manobras dos próceres petistas na Câmara e a terceira, cuja constituição foi determinada em fevereiro deste ano pelo presidente da Câmara, ainda está em formação.
Que a caixa-preta do BNDES, quando definitivamente aberta, revelará muitos outros descalabros, ninguém duvida – a começar pelos próprios petistas, que tanto se esforçaram para trancafiá-la. Só o risco do calote desses três países, que é quase uma certeza, levou o banco a registrar perdas de R$ 4,4 bilhões no balanço financeiro de 2018, divulgado na semana passada. Somem-se a isso as dívidas perdoadas pelos governos petistas, como os US$ 900 milhões dados sem contrapartida a 12 governos africanos, e as propinas apuradas pela Lava Jato.
A constatação é que nas mãos sujas petistas o BNDES se transformou para a geração presente e as próximas num verdadeiro “Banco Nacional do Retrocesso Econômico e Social”, que não só torrou o dinheiro público com projetos sem nenhuma relevância para o interesse nacional, como abasteceu os bolsos de políticos e empresários corruptos, e, pior, de ditadores que asfixiam as populações de seus países.
Cabe aos brasileiros continuar pressionando o Congresso, o Ministério Público e os outros órgãos de fiscalização para que levem essa devassa até o fim e, sobretudo, aniquilar nas urnas o projeto de poder desse partido que, ainda hoje, tem a maior bancada na Câmara.
Pobre Brasil do aqui e agora - FERNANDO GABEIRA
O Globo - 08/04
Professores de História terão de explicar como um movimento de esquerda invadiu a URSS, espécie de meca dos esquerdistas
Oque fazer quando o presidente e o chanceler de seu país dizem, em Israel, que o nazismo foi um movimento de esquerda? O ideal é dar de ombros e seguir na vida cotidiana. Essas afirmações bombásticas são feitas para provocar debate. Não tenho tempo para ele.
Sinto muito pelos professores de História no Brasil. Terão de explicar como um movimento de esquerda invadiu a União Soviética, uma espécie de meca da esquerda mundial naquele período. E como milhões de pessoas morreram a partir desse fogo amigo.
Os professores de História terão de se consolar com os de Geografia, que ainda acham que a Terra tem uma forma arredondada. São colegas com uma tarefa mais dura: explicar que a Terra não é plana, como querem os novos ideólogos.
Estamos passando por uma revisão completa. Seus autores se acham geniais. O chanceler Ernesto Araújo disse que o nazismo é de esquerda, dentro do Museu do Holocausto, em Israel. Ali, o nazismo é considerado um movimento de extrema direita.
Mas o chanceler disse que há teorias mais profundas. Os judeus, que sofreram com o nazismo e ergueram um museu para lembrar suas vítimas, são superficiais: ainda não descobriram a verdade das obscuras teorias conspiratórias que embalam o governo brasileiro.
A direita embarca na canoa usada pela esquerda no passado recente. Não há mais respeito às evidências ou provas científicas. O que importa é a versão. Não houve desvio de dinheiro público, apenas procuradores e juízes perseguindo honestos políticos.
Eles convergem na tentativa de conformar os fatos às suas convicções ideológicas. O que foi aquela gritaria na Câmara? Nada mais que uma aversão compartilhada à palavra tchutchuca.
Suspeito que direita e esquerda são machistas da mesma maneira que suspeito que a Terra seja arredondada, e o nazismo tenha sido um movimento de extrema direita. Tenho pavor dessas gritarias noturnas na Câmara. Na minha época descobri: servem apenas para prejudicar o sono. Saem todos tensos e irados e têm dificuldade em dormir. Só isso. Uma reforma da Previdência é coisa séria. É possível alterar a proposta do governo. Mas é muito difícil negar a importância de alguma reforma, antes que a Previdência quebre como na Grécia.
Há mais de um século a esquerda desenvolve suas técnicas de provocação. Guedes precisa mais que o curso de alguns dias para enfrentá-la com êxito.
Minha experiência mostra que nessas constantes trocas de insultos, sempre alguém vai insinuar que o outro é gay. Com o tempo, certas pessoas se acostumam. É o meu caso. Tive a sorte, como na música de Cazuza, de ser chamado de viado e maconheiro. O único problema era ser chamado de apenas um desses dois nomes. Ficava esperando o outro como se estivesse faltando algo.
É como a piada de um homem que vivia no andar de baixo, e todas as noites o vizinho de cima chegava meio bêbado e tirava as botas ruidosamente. O homem reclamou. O bêbado voltou do botequim, jogou a bota esquerda com força, mas se lembrou do vizinho. Tirou a bota direita com muito cuidado, silenciosamente. O vizinho de baixo não dormiu esperando que ele jogasse a outra.
Todas aquelas pessoas xingando as outras na Câmara: não há nada de pessoal naquilo. Apenas histeria política.
É preciso superar logo essa fase de sensibilidade à flor da pele. Entender que é o país que está em jogo. E não depende apenas da reforma da Previdência.
A política externa toma um rumo radical, sem que o tema seja discutido adequadamente no Congresso. Nesse sentido, é uma política tão autoritária como a que nos ligou ao bolivarianismo. Não expressa a visão nacional.
O Ministério da Educação não funciona. Todos as semanas demitem e contratam. A ida do ministro Vélez à Câmara mostrou que não tem projeto. Exceto o de reescrever sua parte da história do golpe militar. Ele é modesto diante do chanceler que quer reescrever a história da Segunda Guerra Mundial e levar sua mensagem cristã a todos os recantos do mundo.
O velho cardeal Richelieu já dizia no século XVII: o homem é imortal, sua salvação está no outro mundo. O Estado não dispõe de imortalidade: sua salvação se dá aqui ou nunca.
Professores de História terão de explicar como um movimento de esquerda invadiu a URSS, espécie de meca dos esquerdistas
Oque fazer quando o presidente e o chanceler de seu país dizem, em Israel, que o nazismo foi um movimento de esquerda? O ideal é dar de ombros e seguir na vida cotidiana. Essas afirmações bombásticas são feitas para provocar debate. Não tenho tempo para ele.
Sinto muito pelos professores de História no Brasil. Terão de explicar como um movimento de esquerda invadiu a União Soviética, uma espécie de meca da esquerda mundial naquele período. E como milhões de pessoas morreram a partir desse fogo amigo.
Os professores de História terão de se consolar com os de Geografia, que ainda acham que a Terra tem uma forma arredondada. São colegas com uma tarefa mais dura: explicar que a Terra não é plana, como querem os novos ideólogos.
Estamos passando por uma revisão completa. Seus autores se acham geniais. O chanceler Ernesto Araújo disse que o nazismo é de esquerda, dentro do Museu do Holocausto, em Israel. Ali, o nazismo é considerado um movimento de extrema direita.
Mas o chanceler disse que há teorias mais profundas. Os judeus, que sofreram com o nazismo e ergueram um museu para lembrar suas vítimas, são superficiais: ainda não descobriram a verdade das obscuras teorias conspiratórias que embalam o governo brasileiro.
A direita embarca na canoa usada pela esquerda no passado recente. Não há mais respeito às evidências ou provas científicas. O que importa é a versão. Não houve desvio de dinheiro público, apenas procuradores e juízes perseguindo honestos políticos.
Eles convergem na tentativa de conformar os fatos às suas convicções ideológicas. O que foi aquela gritaria na Câmara? Nada mais que uma aversão compartilhada à palavra tchutchuca.
Suspeito que direita e esquerda são machistas da mesma maneira que suspeito que a Terra seja arredondada, e o nazismo tenha sido um movimento de extrema direita. Tenho pavor dessas gritarias noturnas na Câmara. Na minha época descobri: servem apenas para prejudicar o sono. Saem todos tensos e irados e têm dificuldade em dormir. Só isso. Uma reforma da Previdência é coisa séria. É possível alterar a proposta do governo. Mas é muito difícil negar a importância de alguma reforma, antes que a Previdência quebre como na Grécia.
Há mais de um século a esquerda desenvolve suas técnicas de provocação. Guedes precisa mais que o curso de alguns dias para enfrentá-la com êxito.
Minha experiência mostra que nessas constantes trocas de insultos, sempre alguém vai insinuar que o outro é gay. Com o tempo, certas pessoas se acostumam. É o meu caso. Tive a sorte, como na música de Cazuza, de ser chamado de viado e maconheiro. O único problema era ser chamado de apenas um desses dois nomes. Ficava esperando o outro como se estivesse faltando algo.
É como a piada de um homem que vivia no andar de baixo, e todas as noites o vizinho de cima chegava meio bêbado e tirava as botas ruidosamente. O homem reclamou. O bêbado voltou do botequim, jogou a bota esquerda com força, mas se lembrou do vizinho. Tirou a bota direita com muito cuidado, silenciosamente. O vizinho de baixo não dormiu esperando que ele jogasse a outra.
Todas aquelas pessoas xingando as outras na Câmara: não há nada de pessoal naquilo. Apenas histeria política.
É preciso superar logo essa fase de sensibilidade à flor da pele. Entender que é o país que está em jogo. E não depende apenas da reforma da Previdência.
A política externa toma um rumo radical, sem que o tema seja discutido adequadamente no Congresso. Nesse sentido, é uma política tão autoritária como a que nos ligou ao bolivarianismo. Não expressa a visão nacional.
O Ministério da Educação não funciona. Todos as semanas demitem e contratam. A ida do ministro Vélez à Câmara mostrou que não tem projeto. Exceto o de reescrever sua parte da história do golpe militar. Ele é modesto diante do chanceler que quer reescrever a história da Segunda Guerra Mundial e levar sua mensagem cristã a todos os recantos do mundo.
O velho cardeal Richelieu já dizia no século XVII: o homem é imortal, sua salvação está no outro mundo. O Estado não dispõe de imortalidade: sua salvação se dá aqui ou nunca.
Deus, o hino e a bandeira - DEMÉTRIO MAGNOLI
O Globo - 08/04
‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. O mantra de Bolsonaro é mais do que parece. A invocação da fé religiosa pontilha os discursos oficiais, do presidente à ministra dos Direitos Humanos, passando pelo ministro das Relações Exteriores. Paralelamente, por atos ou palavras, o governo insiste nos ícones da nacionalidade. Como esquecer a frustrada iniciativa do ministro da Educação de solicitar às escolas vídeos de professores e alunos entoando o Hino Nacional, durante o hasteamento do auriverde pendão da esperança? Ou a conclamação do porta-voz presidencial, general Otávio Rêgo Barros, para “toda a sociedade prostrar-se diante da bandeira ao menos uma vez por semana”?
As pessoas cultas inclinam-se a descartar isso tudo, transferindo a ladainha carola e nacionalisteira para o arquivo morto dos anacronismos. De modo geral, não se atenta ao sentido mais profundo dessas exaustivas referências: o populismo de direita encontrou uma refutação eficaz do multiculturalismo.
Há algumas décadas, as elites políticas liberais e de esquerda substituíram o discurso universalista (cidadãos) pelo discurso multiculturalista (minorias). A diferença converteu-se em valor supremo, enquanto o ácido da ironia dissolvia a aspiração à igualdade (de direitos, de oportunidades). A nação deu lugar a uma miríade de grupos singulares (negros, mulheres, gays). A ideia de direitos universais (educação, saúde, previdência, transportes) deu lugar à chamada discriminação positiva (leis e regras específicas, cotas de gênero ou de “raça”). Deus e a pátria fazem seu caminho no espaço aberto por essa abdicação histórica.
A direita populista manipula poderosos signos de igualdade. O “Brasil acima de tudo” cumpre dupla função. Na sua faceta oculta, tenta identificar a pátria ao governo, um expediente autoritário clássico. Mas, na sua faceta pública, veicula uma mensagem inclusiva: todos —ricos e pobres, homens e mulheres, “brancos” e “negros” — pertencem igualmente à comunidade nacional. O nacionalismo da direita populista carrega as sementes da xenofobia (diante do imigrante) e da intolerância política (diante das oposições). Ao mesmo tempo, oferece um abrangente manto comum — e, com ele, a promessa de resgate dos fracos e humilhados.
As religiões monoteístas deitaram raízes pois ofereciam uma base pétrea de legitimidade aos governantes (um Deus no céu, um imperador na Terra) mas, simultaneamente, a esperança de justiça aos desamparados (todos são filhos do mesmo Deus). O “Deus acima de todos” de Bolsonaro também desempenha dois papéis. Na sua face escura, corrói a laicidade estatal e propicia o acesso das igrejas à mesa do poder. Na sua face luminosa, porém, apela ao sentido popular de igualdade: nenhuma ovelha do rebanho será deixada para trás.
No plano filosófico, a doutrina do multiculturalismo enfraqueceu os pilares dos direitos humanos. A condição humana foi rebaixada ao estatuto de mito liberal, abstração destinada a esconder as singularidades étnicas, raciais ou culturais. A direita populista nutre-se dessa renúncia à humanidade universal para negar os direitos dos “indesejáveis”, sejam eles imigrantes, refugiados, gays ou marginais.
No plano político, o multiculturalismo abandonou a ideia de unidade, que se conecta estreitamente à de igualdade. O conceito de unidade nacional, fundado no contrato de cidadania, foi reinterpretado como ferramenta de exclusão das minorias. O populismo de direita ocupou a trincheira deserta para embrulhar a unidade no celofane da autoridade. Na sua equação, o governo identifica-se com a nação, e a divergência política transforma-se em traição.
Bolsonaro não está só. Deus, a bandeira e o hino são chaves narrativas compartilhadas por Donald Trump, nos EUA, Vladimir Putin, na Rússia, Recep Erdogan, na Turquia, Viktor Orbán, na Hungria, e Matteo Salvini, na Itália. O comboio populista avança pelas clareiras desmatadas no longo intervalo de abjuração multiculturalista. A direita autoritária sequestrou os estandartes da igualdade e da unidade. Foi fácil: ninguém mais cuidava deles.
‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. O mantra de Bolsonaro é mais do que parece. A invocação da fé religiosa pontilha os discursos oficiais, do presidente à ministra dos Direitos Humanos, passando pelo ministro das Relações Exteriores. Paralelamente, por atos ou palavras, o governo insiste nos ícones da nacionalidade. Como esquecer a frustrada iniciativa do ministro da Educação de solicitar às escolas vídeos de professores e alunos entoando o Hino Nacional, durante o hasteamento do auriverde pendão da esperança? Ou a conclamação do porta-voz presidencial, general Otávio Rêgo Barros, para “toda a sociedade prostrar-se diante da bandeira ao menos uma vez por semana”?
As pessoas cultas inclinam-se a descartar isso tudo, transferindo a ladainha carola e nacionalisteira para o arquivo morto dos anacronismos. De modo geral, não se atenta ao sentido mais profundo dessas exaustivas referências: o populismo de direita encontrou uma refutação eficaz do multiculturalismo.
Há algumas décadas, as elites políticas liberais e de esquerda substituíram o discurso universalista (cidadãos) pelo discurso multiculturalista (minorias). A diferença converteu-se em valor supremo, enquanto o ácido da ironia dissolvia a aspiração à igualdade (de direitos, de oportunidades). A nação deu lugar a uma miríade de grupos singulares (negros, mulheres, gays). A ideia de direitos universais (educação, saúde, previdência, transportes) deu lugar à chamada discriminação positiva (leis e regras específicas, cotas de gênero ou de “raça”). Deus e a pátria fazem seu caminho no espaço aberto por essa abdicação histórica.
A direita populista manipula poderosos signos de igualdade. O “Brasil acima de tudo” cumpre dupla função. Na sua faceta oculta, tenta identificar a pátria ao governo, um expediente autoritário clássico. Mas, na sua faceta pública, veicula uma mensagem inclusiva: todos —ricos e pobres, homens e mulheres, “brancos” e “negros” — pertencem igualmente à comunidade nacional. O nacionalismo da direita populista carrega as sementes da xenofobia (diante do imigrante) e da intolerância política (diante das oposições). Ao mesmo tempo, oferece um abrangente manto comum — e, com ele, a promessa de resgate dos fracos e humilhados.
As religiões monoteístas deitaram raízes pois ofereciam uma base pétrea de legitimidade aos governantes (um Deus no céu, um imperador na Terra) mas, simultaneamente, a esperança de justiça aos desamparados (todos são filhos do mesmo Deus). O “Deus acima de todos” de Bolsonaro também desempenha dois papéis. Na sua face escura, corrói a laicidade estatal e propicia o acesso das igrejas à mesa do poder. Na sua face luminosa, porém, apela ao sentido popular de igualdade: nenhuma ovelha do rebanho será deixada para trás.
No plano filosófico, a doutrina do multiculturalismo enfraqueceu os pilares dos direitos humanos. A condição humana foi rebaixada ao estatuto de mito liberal, abstração destinada a esconder as singularidades étnicas, raciais ou culturais. A direita populista nutre-se dessa renúncia à humanidade universal para negar os direitos dos “indesejáveis”, sejam eles imigrantes, refugiados, gays ou marginais.
No plano político, o multiculturalismo abandonou a ideia de unidade, que se conecta estreitamente à de igualdade. O conceito de unidade nacional, fundado no contrato de cidadania, foi reinterpretado como ferramenta de exclusão das minorias. O populismo de direita ocupou a trincheira deserta para embrulhar a unidade no celofane da autoridade. Na sua equação, o governo identifica-se com a nação, e a divergência política transforma-se em traição.
Bolsonaro não está só. Deus, a bandeira e o hino são chaves narrativas compartilhadas por Donald Trump, nos EUA, Vladimir Putin, na Rússia, Recep Erdogan, na Turquia, Viktor Orbán, na Hungria, e Matteo Salvini, na Itália. O comboio populista avança pelas clareiras desmatadas no longo intervalo de abjuração multiculturalista. A direita autoritária sequestrou os estandartes da igualdade e da unidade. Foi fácil: ninguém mais cuidava deles.
A velha Previdência e o novo trabalho - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo - 08/04
As relações de trabalho atípicas crescem em detrimento do emprego tradicional. O País precisará se adaptar ao novo mundo do trabalho.
A proposta de reforma da Previdência corrige desajustes, como a idade mínima numa população cada dia mais longeva, e injustiças, como a disparidade entre servidores públicos e trabalhadores privados, que faz com que o Estado seja o maior promotor de desigualdade social no Brasil. Mas, além do equilíbrio e da equidade fiscal, o País precisará se adaptar ao novo mundo do trabalho, em especial ao crescimento das relações de trabalho atípicas em detrimento do emprego tradicional. A revolução digital faz com que modalidades como o trabalho temporário, o autoemprego ou a contratação independente sejam cada vez mais comuns.
Conforme a pesquisa “Previdência sem providência?”, dos economistas J.R. Afonso e J.D. Sousa, os empregados com carteira assinada no Brasil respondem por 38,9% da força ocupada e os servidores por 8,5%. Restam 52,6% sem vínculo e proteção. Metade dos brasileiros, especialmente os mais jovens, educados e de maior renda, prefere o trabalho autônomo com rendimentos mais altos, sem benefícios e com impostos mais baixos. Tal transformação é intensificada pela “pejotização”, ou seja, a migração do emprego formal para o regime de pessoa jurídica ou autônomo, causada sobretudo por anomalias tributárias: enquanto a média mundial de custos trabalhistas (em queda) é de 20,5% do salário pago, no Brasil esse índice (em crescimento) é de 71,4%.
Em resumo, o sistema previdenciário tradicional não só arrecadará cada vez menos, como cobrirá cada vez menos trabalhadores. Entre 1996 e 2017, o número de contribuintes do INSS com renda acima do teto de sete salários mínimos caiu 25%, enquanto o daqueles com salário abaixo disso cresceu 158%. Segundo os pesquisadores, “esse movimento quebrou um dos princípios básicos do regime brasileiro – o do subsídio cruzado –, na medida em que empregadores que pagam salários maiores passaram a financiar cada vez menos aqueles com menores benefícios”. Ou seja, o fator redistributivo está em franca erosão.
A Previdência é só um dos componentes dos sistemas de seguridade social que precisarão ser adaptados à flexibilização das relações de trabalho. Entre as diretrizes da Organização Internacional do Trabalho para garantir proteção mínima a todos, está a flexibilização da vinculação da proteção social à contribuição salarial, a ser complementada com sistemas protetores independentes. Para fortalecer a rede de proteção aos trabalhadores em regimes atípicos, estão medidas como a redução dos limites mínimos de contribuição relativos a renda, horas de trabalho e duração do emprego, a flexibilização em relação às interrupções do período de contribuição e o incentivo à portabilidade dos títulos.
Uma das propostas do projeto previdenciário do governo nesse sentido é a substituição do modelo de financiamento por repartição pelo de capitalização. O regime atual, em que os trabalhadores da ativa contribuem junto com os empregadores e o governo federal para os benefícios dos aposentados, é insustentável, já que o número de idosos que dependem dos trabalhadores ativos aumenta a cada ano. Já no regime de capitalização, cada trabalhador financia sua própria aposentadoria, depositando suas contribuições em contas individuais geridas pela iniciativa privada. Mas, como mostra a experiência do Chile, que inspira essa proposta, o ideal é um sistema híbrido, em que essa opção fique restrita aos segurados de maior renda, evitando quedas de arrecadação muito bruscas e garantindo um mínimo de proteção aos trabalhadores de baixa renda e aos idosos.
Enfim, desarmar a bomba-relógio previdenciária é imperativo. Mas isso só tapa o buraco pelo qual o Estado de Bem-Estar Social brasileiro está se esvaindo. A médio prazo, se o País quiser navegar pelas águas em cujo horizonte se ergue um novo mundo do trabalho, precisará de novos motores, combustíveis e equipamentos, e, a longo prazo, reconstruir essa embarcação por completo. No regime atual, o empregado contribui para o INSS até sete salários mínimos, mas o empregador sobre a folha como um todo. Com a queda do grupo de assalariados abaixo desse teto e o crescimento dos que ganham acima, quebra-se um dos princípios básicos do regime, o da subsidiariedade cruzada, pelo qual os salários maiores financiam os menores benefícios.
As relações de trabalho atípicas crescem em detrimento do emprego tradicional. O País precisará se adaptar ao novo mundo do trabalho.
A proposta de reforma da Previdência corrige desajustes, como a idade mínima numa população cada dia mais longeva, e injustiças, como a disparidade entre servidores públicos e trabalhadores privados, que faz com que o Estado seja o maior promotor de desigualdade social no Brasil. Mas, além do equilíbrio e da equidade fiscal, o País precisará se adaptar ao novo mundo do trabalho, em especial ao crescimento das relações de trabalho atípicas em detrimento do emprego tradicional. A revolução digital faz com que modalidades como o trabalho temporário, o autoemprego ou a contratação independente sejam cada vez mais comuns.
Conforme a pesquisa “Previdência sem providência?”, dos economistas J.R. Afonso e J.D. Sousa, os empregados com carteira assinada no Brasil respondem por 38,9% da força ocupada e os servidores por 8,5%. Restam 52,6% sem vínculo e proteção. Metade dos brasileiros, especialmente os mais jovens, educados e de maior renda, prefere o trabalho autônomo com rendimentos mais altos, sem benefícios e com impostos mais baixos. Tal transformação é intensificada pela “pejotização”, ou seja, a migração do emprego formal para o regime de pessoa jurídica ou autônomo, causada sobretudo por anomalias tributárias: enquanto a média mundial de custos trabalhistas (em queda) é de 20,5% do salário pago, no Brasil esse índice (em crescimento) é de 71,4%.
Em resumo, o sistema previdenciário tradicional não só arrecadará cada vez menos, como cobrirá cada vez menos trabalhadores. Entre 1996 e 2017, o número de contribuintes do INSS com renda acima do teto de sete salários mínimos caiu 25%, enquanto o daqueles com salário abaixo disso cresceu 158%. Segundo os pesquisadores, “esse movimento quebrou um dos princípios básicos do regime brasileiro – o do subsídio cruzado –, na medida em que empregadores que pagam salários maiores passaram a financiar cada vez menos aqueles com menores benefícios”. Ou seja, o fator redistributivo está em franca erosão.
A Previdência é só um dos componentes dos sistemas de seguridade social que precisarão ser adaptados à flexibilização das relações de trabalho. Entre as diretrizes da Organização Internacional do Trabalho para garantir proteção mínima a todos, está a flexibilização da vinculação da proteção social à contribuição salarial, a ser complementada com sistemas protetores independentes. Para fortalecer a rede de proteção aos trabalhadores em regimes atípicos, estão medidas como a redução dos limites mínimos de contribuição relativos a renda, horas de trabalho e duração do emprego, a flexibilização em relação às interrupções do período de contribuição e o incentivo à portabilidade dos títulos.
Uma das propostas do projeto previdenciário do governo nesse sentido é a substituição do modelo de financiamento por repartição pelo de capitalização. O regime atual, em que os trabalhadores da ativa contribuem junto com os empregadores e o governo federal para os benefícios dos aposentados, é insustentável, já que o número de idosos que dependem dos trabalhadores ativos aumenta a cada ano. Já no regime de capitalização, cada trabalhador financia sua própria aposentadoria, depositando suas contribuições em contas individuais geridas pela iniciativa privada. Mas, como mostra a experiência do Chile, que inspira essa proposta, o ideal é um sistema híbrido, em que essa opção fique restrita aos segurados de maior renda, evitando quedas de arrecadação muito bruscas e garantindo um mínimo de proteção aos trabalhadores de baixa renda e aos idosos.
Enfim, desarmar a bomba-relógio previdenciária é imperativo. Mas isso só tapa o buraco pelo qual o Estado de Bem-Estar Social brasileiro está se esvaindo. A médio prazo, se o País quiser navegar pelas águas em cujo horizonte se ergue um novo mundo do trabalho, precisará de novos motores, combustíveis e equipamentos, e, a longo prazo, reconstruir essa embarcação por completo. No regime atual, o empregado contribui para o INSS até sete salários mínimos, mas o empregador sobre a folha como um todo. Com a queda do grupo de assalariados abaixo desse teto e o crescimento dos que ganham acima, quebra-se um dos princípios básicos do regime, o da subsidiariedade cruzada, pelo qual os salários maiores financiam os menores benefícios.
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