segunda-feira, dezembro 05, 2011

Lampião é macho, macho por despacho - EUGÊNIO BUCCI

REVISTA ÉPOCA


Difícil saber o feminino do cangaceiro Lampião. Será Lampiã? Lampioa? Ou será Lamparina? Existe o feminino de Lampião? Difícil saber, mortalmente difícil. E muito perigoso. Se especularmos por essa vereda escorregadia, alguém poderá se abespinhar e dizer que está em curso uma heresia contra o legado másculo do legendário bandido. Portanto, não lhe duvidamos da masculinidade. Fica decidido que Lampião não tem feminino, é macheza pura.

Mesmo assim, mesmo afirmando a macheza, temos aqui um problema de gênero. Não um problema do homem chamado Lampião, por favor, que este se encontra acima das suspeitas. Nosso problema de gênero diz respeito ao vernáculo: nem todos os substantivos, infelizmente, são do gênero masculino, de sorte que fica inviável defender a macheza do Rei do Cangaço sem o auxílio de palavras femininas. Macheza é substantivo feminino. Virilidade também é palavra fêmea. Hombridade, valentia, todos vocábulos femininos. Vai soar como provocação, mas a língua embaralha o feminino e o masculino, a maldita. Fazer o quê? Talvez ela não esteja à altura de descrever o destemido cangaceiro, encarnado pelo pernambucano Virgulino Ferreira da Silva (1897-1938). Ele, sim, não tinha nada que fosse emasculado; não há de ter tido, nunca, jamais, uma "porção mulher", para adotar aqui a expressão consagrada pelo cancioneiro.

E que ninguém discuta. Cumpra-se. Foi assim que a Justiça decidiu. Foi assim que despachou o juiz Aldo Albuquerque, da 7ª Vara Cível de Aracaju, Sergipe, há pouco mais de uma semana, ao proibir a publicação e a comercialização do livro Lampião – o Mata Sete, de autoria de Pedro de Morais, em atendimento ao pedido da família do temível Virgulino. A família se declarou ofendida porque, na obra, Virgulino aparece como homossexual. Não é só. Ele teria sido um marido traído, uma vez que sua companheira, Maria Bonita, teria sucumbido ao adultério nos braços de um sujeito do mesmo bando, de nome Luiz Pedro. E mais: com suas perneiras de couro enfeitado, seu paletó azul e sua testeira salpicada de medalhinhas, o próprio Virgulino caiu de amores pelo mesmo Luiz Pedro.

Aí também não dá, raclamaram em juízo os descendentes. Os historiadores podem dizer à vontade que Lampião estuprava garotas indefesas, que lhes marcava o rosto com ferro quente, que sangrava lentamente os desafetos, cravando-lhes o punhal entre a clavícula e o pescoço. Podem dizer que ele castrava seus reféns, que arrancava olhos, línguas e orelhas. Até aí, não se vê ofensa nenhuma. Mas essa conversa de triângulo amoroso com pitadas homoeróticas, essa sim, ultraja a honra familiar. Por isso, os familiares pleitearam a censura, que chegou veloz e escura, feito uma peixeira noturna.

No livro proibido, Virgulino é gay. Nada disso! Ele só pode estuprar as indefesas e castrar os desafetos...

O episódio parece uma crônica dos costumes, mas é sério. Embora o processo ainda admita recursos – a proibição do livro já começou a ser contestada na semana que passou –, o que temos aí não é uma peça meramente cômica, mas um caso de veto à expressão do pensamento. Sem trocadilho, esse veto ao pensamento deveria nos fazer pensar um pouco mais. De que honra, afinal, nós estamos falando aqui? Há tempos, na canção "Pecado original", Caetano Veloso cravou uma de suas boas verdades: A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo. Pois será que sabemos o lugar certo de colocar a honra?

Eis aí outra indagação difícil, moralmente difícil, além de muito perigosa. Esse conceito, o do macho viril, guarda um quê de animalesco, de irracional, de selvagem. Se macho, se incontestavelmente macho, o Rei do Cangaço teria uma licença para aterrorizar os humildes com suas brutalidades de facínora. Ele teria sido apenas mais macho que os demais, só isso. Daí que, ele que viveu como fora da lei, tem agora, depois da morte, a sua macheza – vai no feminino mesmo – tutelada pela própria Justiça. Ele pode ser chamado de homicida e de ladrão, tudo bem. Não de marido traído. Nem de homossexual.

Essa moral polar, "monopolar", esquarteja tudo o que seja ambíguo. E, no vasto mundo dos amores, o humano não é acima de tudo um forte, mas acima de tudo ambíguo, como a própria língua. Por isso, essa moral monopolar é desumana. Ela não sabe que, como o Diadorim de Guimarães Rosa, o jagunço valente guarda dentro de si uma mulher. E que outro jagunço valente, como Riobaldo, pode amá-lo sem entender porque ama, e suspirar, perdido: "Diadorim é minha neblina". O mito sem neblina de Lampião é um tributo à intolerância.


GOSTOSA


O bom moço vendia fuzil - REVISTA VEJA

REVISTA VEJA

Festejado por políticos, artistas e ONGs como humanista, líder comunitário é flagrado em vídeo negociando armas com traficantes

Leslie Leitão

A cena dura dezenove minutos e doze segundos e se passa na Rocinha, favela de 200 000 habitantes encravada em meio a bairros nobres da Zona Sul do Rio de Janeiro. Sentado à mesa onde repousam copos de plástico abastecidos com uísque está o chefão do tráfico, Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, recém-capturado pela polícia. Assessorado por um comparsa, ele negocia a compra de um fuzil de fabricação russa AK, estimado em 50 000 reais no mercado negro. O pagamento é feito com dezenas de maços de dinheiro vivo, dinheirama que toma a mesa inteira. O vídeo não deixa dúvidas quanto à identidade dos homens que vendem a arma. Um deles é William de Oliveira, 41 anos, latado no gabinete da vereadora e pré-candidata à prefeitura do Rio Andréa Gouvêa Vieira (PSDB-RJ), onde ganhava 5 300 reais. O assessor está entre as mais festejadas figuras no meio carioca de ONGs que se arvoram em prol dos direitos humanos. Ex-presidente da Associação de Moradores da Rocinha, até hoje uma liderança na favela, ele prefere se apresentar em seu blog como "William, o amigo das comunidades" .

Na última sexta-feira, de posse das imagens capturadas meses atrás por uma moradora que enviou o material sob anonimato, a polícia prendeu William e Alexandre Leopoldino da Silva, seu parceiro na venda do fuzil e braço direito na "vida comunitária". Há dois meses, Silva compunha a equipe de zeladoria do Palácio Guanabara, a sede do poder no Rio. Na delegacia, William negou com veemência o que o vídeo parece mostrar de forma inequívoca. Afirmou que o dinheiro que recebeu do traficante se destinava à campanha a deputado estadual na qual se lançou em 2010, sem sucesso. Quanto à arma, que Silva repassa às mãos de Nem, o assessor "não se lembra" de ter visto nada parecido. Dúvidas essenciais ainda pairam sobre o caso, investigado no inquérito de número 908-14422/2011. Suspeita-se que a arma tenha chegado à dupla por intermédio de PMs corruptos que atuam na região. Ao ser detido, Nem declarou que metade de seu faturamento no crime se destinava ao pagamento de propinas a esses agentes, que faziam vista grossa às barbaridades que praticava. Agora, a polícia vai ouvir as histórias de William e Silva para tentar dar um passo adiante. "Queremos desvendar uma possível teia de relações políticas mantida pela quadrilha de Nem", diz o delegado Maurício Demétrio, à frente das investigações.

Com um currículo de líder comunitário envernizado por cargos em uma dezena de associações e movimentos, William tornou-se uma das figuras mais preeminentes da Rocinha, onde nasceu. Sua reputação foi se construindo sobre duas bases: a popularidade entre os moradores e o bom convívio com os traficantes, fiadores de sua escalada. Um episódio anterior já indicava que seus laços com os marginais iam muito além da conivência que costuma marcar a atuação de organizações sociais em favelas subjugadas pelo crime. Em 2005, durante o reinado de terror implantado pelo antecessor de Nem, William foi flagrado em uma constrangedora escuta telefônica. Em nome do chefão, instruía bandidos a deixar dois fuzis roubados do Exército em uma favela dominada pela facção rival. Ficou preso por nove meses, mas conseguiu ser absolvido sob a alegação de que pretendia apenas fazer com que se livrassem dos tais fuzis, evitando um banho de sangue na Rocinha - então na iminência de uma ação policial. A emenda foi tão disparatada quanto o soneto, mas todo mundo fez que acreditou. William seguiu livre e solto, colecionando amizades nos mais diversos círculos, de políticos a artistas. Um de seus três filhos tem Flora Gil, a mulher do cantor Gilberto Gil, como madrinha.

Por sua atuação na Rocinha, ele era sempre procurado para abrir caminhos no morro - literalmente. Com a escolta de William, os obstáculos colocados pelos traficantes, de pilhas de pneus a carros velhos, eram removidos, deixando o visitante fazer seu périplo sem ser incomodado pela bandidagem. Em junho, ele ciceroneou o apresentador Luciano Huck e o ator americano Ashton Kutcher. Também já posou ali ao lado do governador Sérgio Cabral, do então presidente Lula e de Dilma Rousseff, que usou o morro como cenário de um de seus programas da campanha presidencial. Ao fundo, viam-se obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), cujo comitê na favela conta com William como integrante. A própria vereadora Andrea Gouvêa Vieira, atualmente no segundo mandato, teve em seu assessor parlamentar um passaporte valioso para fazer campanha na Rocinha. Após a prisão, dizendo-se profundamente decepcionada, a vereadora o demitiu.

A prisão de William derrama luz sobre a promiscuidade que impera entre as entidades sociais e o crime. Frequentemente, essas organizações funcionam como instrumentos do assistencialismo barato que trata de perpetuar o poder do tráfico. Na Rocinha, tal simbiose chegou ao ponto de a chapa eleita para a diretoria da maior associação de moradores da favela embalar a própria campanha com um funk em homenagem a Nem. Em prol de seus candidatos, o traficante sempre endereçou à população recado sucinto: "Não aceito derrota". Não é a primeira vez que alguém que se diz ardoroso defensor dos direitos humanos é flagrado em desavergonhada cumplicidade com bandidos responsáveis por todo tipo de barbaridade. Uma amostra dos efeitos perversos deixados por décadas de ausência do estado.

Na rota do dinheiro sujo

Quando a polícia ocupou o complexo do Alemão, o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro, vieram à tona cartas e extratos bancários até então bem guardados pelos bandidos naquele QG do tráfico. Com base em valioso material, que nos últimos meses esteve sob investigação, a Polícia Civil deflagrou, na semana passada, uma operação que se ramificou por cinco estados (Rio de Janeiro, Paraná, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e São Paulo). Nunca se havia rastreado de forma tão minuciosa o caminho percorrido pelo dinheiro de uma organização criminosa no país. Composta de centenas de contas em nome de laranjas e empresas-fantasma, a rede que alimentava as engrenagens do comércio de drogas foi arquitetada dentro da cadeia pelo traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, que fazia suas ordens chegar aos comparsas por meio de bilhetes escritos de próprio punho (suspeita-se que parentes e advogados se encarregavam de entregá-los).

Ainda que a investigação não esteja concluída, as cifras registradas em apenas cinco das empresas que serviam ao esquema já são espantosas: em um único ano, 62 milhões de reais passaram pelo caixa, para então seguir para uma turma de doleiros. Foi possível detectar remessas que eles faziam ao Paraguai, Bolívia e Colômbia para pagar por armas e drogas que abasteciam a quadrilha. O passo seguinte será tentar esquadrinhar a rota do dinheiro sujo até, quem sabe, chegar a esconderijos em paraísos fiscais espalhados pelo mundo - hipótese levantada pela polícia. "Há muito ainda que desbravar sobre a teia criminosa montada por Beira-Mar", diz o delegado responsável Flávio Porto. Com o que se tem até agora, já foi possível desarticular uma artéria vital do esquema.

Incidente em Limeira - J. R. GUZZO

REVISTA VEJA

Os políticos brasileiros, e gente que ocupa cargos públicos em geral, talvez devessem, para seu própno bem, prestar um pouco de atenção numa dessas histórias que aparecem e somem rapidamente do noticiário situado entre o mundo do crime e o da política - coisas cada vez mais parecidas, neste Brasil de hoje. Aconteceu na semana passada em Limeira, no interior do estado de São Paulo. A mulher, dois filhos e duas cunhadas do prefeito Silvio Félix, presos num rapa que dias antes havia colocado no xadrez onze pessoas ligadas à prefeitura, por denúncias de corrupção grossa, quase levam uma surra ao sair da cadeia; a Justiça, obviamente, mandou soltar todos assim que terminou o prazo de cinco dias da prisão temporária, e muita gente não gostou. Um grupo de cidadãos irados foi esperar os acusados na porta da delegacia, acertou umas pancadas em uns e outros e só não bateu mais porque a polícia não deixou. Sobrou, como imagem-símbolo dessa cena ruim, a cara apavorada da primeira-dama, refugiada no fundo de um carro da PM - além, é claro, do desconforto, comum a todos os outros, de ser chamado de "ladrão" e ter de ficar quieto.

Limeira está longe de ser um fim de mundo. Ao contrário, é um modelo daquilo que se costuma chamar, no interior, de "cidade boa". Fica a 150 quilômetros de São Paulo, tem um pouco menos de 300000 habitantes e faz parte do colar de comunidades prósperas que se estende pela região. É a mais rica do interior paulista. É a terra de nomes históricos da indústria nacional - Prada, Fumagalli, Varga. Sua economia combina as vantagens de uma área industrial dinâmica e os avanços do agronegócio. Tem boas faculdades e seu Índice de Desenvolvimento Humano, medido pela ONU, está na categoria "elevado", entre 0,800 e 0,900 - abaixo apenas do grau máximo que se pode alcançar. Infelizmente, não conseguiu ter, em termos de desenvolvimento político, os belos índices que construiu em termos de desenvolvimento humano. Limeira, nesse aspecto, é um retrato exemplar do desastre moral que marca a vida diária de tantos municípios pelo Brasil afora. Longe da atenção nacional, rouba-se numa quantidade cada vez maior de cidades e, pior ainda, rouba-se cada vez mais. Foi-se o tempo em que prefeito e vereadores se contentavam com mixaria - o dinheirinho ganho com a venda de certificados de "habite-se" ou de licenças para instalar um forno de pizza, em geral a preços moderados. Hoje em dia os delinquentes entram no ramo com a firme decisão de ficar ricos. Querem comprar fazenda, iate de 50 pés, SUV importado.

A conclusão é que Limeira vai ficando cada vez mais parecida com o Brasil da corrupção por atacado, e um número crescente de municípios vai ficando cada vez mais parecido com a Limeira de hoje. No caso que acabou explodindo na semana passada veio aos olhos do público uma história de horrores. A mulher do prefeito, os familiares e os demais envolvidos são acusados oficialmente de furto qualificado, lavagem de dinheiro, sonegação de impostos, falsificação e formação de quadrilha. Em seu período de atividades, segundo o Ministério Público, compraram mais de cinquenta imóveis e juntaram acima de 20 milhões de reais. O prefeito, por sua vez, não está numa situação muito melhor - foi afastado do cargo por noventa dias, por envolvimento na mesma trama. Imagina-se a recepção popular que terá se voltar à prefeitura. Quanto aos outros, o pior parece que já passou - o pior para eles, claro. Escaparam de ficar na cadeia, e é muito pouco provável que voltem para lá com uma condenação. Tudo o que podem esperar como castigo é o incômodo de ficar pagando advogado e se aborrecendo com o processo, coisa que promete ir longe; esse bonde, quando começa a andar, não para.

É muito pouco, para a população de Limeira - e é contra isso, justamente, que se levantou a sua cólera. O problema nem é tanto a corrupção. É a certeza de impunidade penal para os acusados, por conta de um Poder Judiciário e um sistema de leis organizados de maneira a impedir, na prática, que os corruptos recebam qualquer punição verdadeira, seja qual for o galho que ocupam na árvore pública; funcionam, dia e noite, exatamente para isso. Em Limeira não houve linchamento - como ocorreu, na mesma semana, com um motorista de ônibus de São Paulo, morto a pancadas depois de ter provocado um acidente, numa dessas quebradas da periferia aonde a polícia sempre chega depois. Mas a exasperação é a mesma.

É bom tomar nota.

Juízes contra o Estado de Direito - REVISTA VEJA



REVISTA VEJA

Para defenderem os invasores da USP, magistrados afirmam que algumas pessoas estão acima da lei

Carlos Graieb 

Fundada há pouco mais de dez anos, em 13 de maio de 1991, a Associação Juízes para a Democracia (AJD) se compromete, em seu estatuto, com "o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do estado democrático de direito". Não deveria ser preciso dizer isso de maneira explícita, em se tratando de juízes, mas está lá. E, estando lá, é motivo mais do que suficiente para que os magistrados, se tiverem alguma honestidade intelectual, se reúnam de imediato e dissolvam a sua entidade. Na semana passada, eles publicaram na internet um documento estarrecedor, que afronta justamente aquilo que prometem respeitar. Não há mistério no conceito de estado democrático de direito. Ele está fundado numa ideia cristalina: a de que todos são iguais perante a lei. E foi isso que os juízes decidiram negar, não nas entrelinhas ou com subentendidos, o que já seriam um escândalo, mas de maneira ululante, como diria Nelson Rodrigues.

O manifesto da AJD foi escrito em solidariedade à minoria de esquerdistas que invandiu e depredou a reitoria da Universidade de São Paulo no começo de novembro. Afirma que eles buscavam apenas "o aprimoramento da ordem jurídica, e não a sua negação". Segue-se um arrazoado assustador: "Não é verdade que ninguém está acima da lei, como afirmam os legalistas e pseudodemocratas: estão, sim, acima da lei todas as pessoas que vivem no cimo preponderante das normas e princípios constitucionais e que, por isso, rompendo com o estereótipo da alienação, e alimentados de esperança, insistem em colocar o seu ousio e a sua juventude a serviço da alteridade, da democracia e do império dos direitos fundamentais".

Convém traduzir. Em abstrato, os autointitulados juízes pela democracia asseveram que "jovens alimentados de esperança" estão acima da lei. Uma ideia tão ridícula quanto perigosa. Em concreto, os autointitulados juízes pela democracia afirmam que radicais encapuzados, que estocaram coquetéis-molotovs em um prédio público, são livres para fazer o que bem entenderem.

A ideia de um estado regido por leis que alcançam a todos, e não pelo arbítrio de um governante, nasceu no século XVII e levou mais de 200 anos para firmar raízes. É uma conquista da civilização ocidental, justamente por retirar de indivíduos, classes sociais ou partidos políticos o poder de decidir quem está acima da lei. No século XX, as nações que se afastaram desse pressuposto sofreram consequências calamitosas. Como mostra oo historiador inglês Richard Overy, tanto Hitler, na Alemanha nazista, quanto Stalin, na União Soviética, contaram com juristas dotados de um funesto desdém pelo império das leis para erigir suas ditaduras. A Alemanha deixou para trás uma extraordinária tradição jurídica ao adotar a máxima de Werner Best, chefe da divisão jurídica ao adotar a máxima de Wener Best, chefe da divisão jurídica da Gestapo, a polícia secreta nazista: "A lei e a vontade do Fuhrer são uma e a mesma coisa". Na União Soviética, Peter Stuchka, um preeminente filósofo do direito, declarou que a revolução bolchevique não significava "a vitória das leis socialistas, mas o triunfo do socialismo sobre todas as leis" (não é errado supor que Stuchka e os juízes da AJD se alimentem da mesma esperança).

Muitos indivíduos que ocuparam o poder sucumbiram, em algum momento, à tentação de acreditar que eles próprios e pessoas de seu círculo estavam acima da lei. Luiz Inácio Lula da Silva fez isso, em 2009, ao dizer que seu colega José Sarney, cercado de denúncias por todos os lados, não poderia ser tratado como "pessoa comum". O Brasil tem hoje instituições democráticas consolidadas. Os juízes - todos eles - estão entre os principais guardiões dessas instituições e do estado de direito no qual elas se alicerçam. É julgando que exercem essa guarda - e não fundando associações políticas. Quem ataca o estado de direito não pode usar toga.

Democracias fazem guerra a democracias? - RENATO JANINE RIBEIRO

VALOR ECONÔMICO - 05/12/11

Em fevereiro de 1979, a China, comunista, invadiu o Vietnã, também comunista. Quatro anos antes, o Vietnã tinha vencido os Estados Unidos após um conflito de duas décadas - a única derrota deste último país em sua história. O mundo se surpreendeu com o fato de dois Estados marxistas entrarem em guerra. Muitos disseram: em compensação, democracias não fazem guerra a democracias. Essa seria uma de suas grandes qualidades.

Mas será verdade? Na Grécia, onde começou o governo pela maioria do povo, Atenas guerreou várias outras cidades que eram igualmente democráticas. É possível que sua derrota na longa guerra do Peloponeso (431-404 antes de Cristo) - que coincidentemente é seguida pela execução de Sócrates, o modelo dos filósofos, e pela decadência da cidade-Estado - se deva em larga parte ao que hoje chamamos de "dupla moral": para os nossos tudo, para os outros, nada. O caso de Roma é ainda mais flagrante. Foi durante séculos uma república poderosa, em que o povo tinha voz, ainda que limitada, perante os aristocratas. Mas jamais soube - ou quis - reconhecer aos povos que conquistou fora da Itália os mesmos direitos que tinham os cidadãos romanos. Daí que fosse, como explicou Hobbes, uma democracia para uso interno, e uma monarquia (diríamos hoje: uma ditadura) na relação com os países colonizados.

Modernamente, é verdade que nenhum país democrático invadiu outro que também o fosse. Mas a questão ateniense e romana continua presente: várias democracias adotam um padrão para uso interno e outro, bem diferente, para uso externo. Todo o colonialismo e, por que não dizer, imperialismo modernos assim se explicam. No século XIX, a Grã Bretanha, a França e os Estados Unidos já eram Estados democráticos - menos do que hoje, mas bastante. No entanto, negavam a outros países os direitos de seus cidadãos. Há coisa pior, porém.

Refiro-me às intervenções de alguns desses países para eliminar movimentos democráticos em nações subdesenvolvidas. O caso talvez mais grave, até porque o feitiço se virou contra o feiticeiro, é o do Irã. Em 1953, o primeiro-ministro Mossadegh, favorável a uma democracia em estilo ocidental, é deposto por um golpe promovido pela CIA. O episódio é bem estudado por Stephen Kinzer, em seu excelente "All the Shah"s Men". O xá volta ao poder, reprime ferozmente os rebeldes, prende Mossadegh (não ousa executá-lo) e - um quarto de século depois - é deposto por uma oposição religiosa que sequer existiria, caso a oposição leiga dos anos 50 tivesse podido se expressar. O que se segue - a teocracia islâmica - é pura culpa dessa agressão de um país democrático a um que tentava tornar-se democrático.

Ou pensemos no apoio dos Estados Unidos ao golpe contra João Goulart, presidente do Brasil, ou Salvador Allende, do Chile. Nos dois casos, tratava-se de países democráticos, com governos escolhidos segundo a Constituição em eleições limpas. Ora, subverter um regime, apoiar a deposição de um governo não são formas de fazer guerra? Então um regime democrático, o americano, guerreou outros, o brasileiro e o chileno, para não falar em muitos mais. Portanto, democracias fazem sim, na Antiguidade ou na era moderna, guerras umas a outras.

Que consequências podemos tirar desse fato? Primeira, se isto é um consolo, que entre si as democracias não fazem guerras explícitas, declaradas, como invasões. Se é verdade que "a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude", porque o desonesto se envergonha de sua desonestidade, então - pelo menos - os governantes democraticamente eleitos sabem que é feio atacar um regime democrático ou que se está democratizando. Faz alguma diferença, mas talvez seja pouca, porque a hipocrisia não impede o delito.

A segunda consequência é mais complicada. Digamos que a democracia é contagiosa, no melhor sentido do termo. Ela atrai. Então, quando uma democracia se fecha sobre si e nega direitos - seja a negros, a árabes, a mulheres, a quem for - ela se torna vulnerável e, pior, começa a sabotar a si mesma. Parece que uma democracia tende a ser aberta, integral, em expansão: não só amplia os direitos de quem a integra como, também, alarga o número dos que reconhece como pessoas, titulares de direitos. Aqui entra em cena o cosmopolitismo: a ideia, que vem do filósofo grego Diógenes, o Cínico, de que existe algo como um "cidadão do mundo", um "kosmopolites". Uma polis confinada em si mesma não faz sentido. Indo mais longe: é ou deveria ser da natureza das polis, dos Estados democráticos, serem amigos.

Não vivemos num mundo de conto de fadas, onde todas as democracias são gentis entre si. Mas a história mostra que os regimes populares do mundo antigo - a democracia ateniense e a república romana - sucumbiram por não saber integrar o dentro e o fora, os direitos reconhecidos a seus membros e o desprezo e exploração votados ao estrangeiro. Se a democracia é atraente e por isso tende a se hiperpovoar, isso não se resolve fechando-se suas portas ou, pior, reprimindo-se outros povos para que não a ameacem. Até porque novas democracias podem ser diferentes das que já existem. A democracia brasileira, sustento há tempos, coloca a necessidade de um afeto político democrático que rompa com uma tradição nossa do afeto autoritário, que até poucos anos prevalecia em nosso país. As democracias árabes, que poderão existir ou não, formulam novas perguntas. Não temos ainda as respostas mas - com toda a certeza - ela não virá negando-se o que conseguiram de democracia, porém somente o aumentando. Mesmo que isso implique riscos.

O laranja do cartola - REVISTA VEJA

REVISTA VEJA

Ao aceitar assumir um cargo decorativo na organização da Copa, Ronaldo arrisca sua reputação e ajuda Ricardo Teixeira a continuar mandando nas sombras


Desde que ficou famoso, aos 17 anos de idade, Ronaldo Luís Nazário de Lima exerceu diversos papéis. Começou como o garoto-prodígio que fez parte da seleção brasileira tetracampeã mundial. Tornou-se o craque consagrado, eleito três vezes o melhor do mundo e o maior artilheiro da história das Copas. Encarnou o vilão da derrota do Brasil para a França na final do Mundial de 1998 e, quatro anos depois, virou o herói do pentacampeonato. Foi também a vítima de zagueiros violentos, que quase teve a carreira abreviada por contusões em série nos joelhos, e, por fim, "o gordo", que, próximo da aposentadoria, voltou para o Brasil, conquistou a torcida do Corinthians e se transformou em um empresário bem-sucedido: De todos os papéis que desempenhou, saiu, se não aplaudido, ao menos de cabeça erguida. Entre os picos e os abismos de sua carreira, construiu uma trajetória vitoriosa e uma reputação de honestidade e coragem. Agora, o ex-jogador arrisca-se a pôr tudo isso a perder. Na semana passada, aceitou assumir um novo papel - o de laranja de Ricardo Teixeira, um dos cartolas mais enrolados do futebol mundial.

Ronaldo foi nomeado por Teixeira para o conselho de administração do Comitê Organizador Local (COL) da Copa do Mundo de 2014. No papel, é um cargo pomposo. Na prática, apenas um biombo para o presidente da CBF continuar no controle da Copa sem ter tanta visibilidade. Na cerimônia de transmissão do cargo, ele disse ao novo aliado uma frase que revela com clareza suas intenções: "A imprensa é toda sua, Ronaldo". A nomeação do ex-jogador ocorre num momento em que Teixeira está na berlinda, rompido com a Fifa e com o governo federal. Ambos querem afastá-lo da organização da Copa. Joseph Blatter, o presidente da entidade que controla o futebol, ameaça divulgar novas acusações de corrupção contra Teixeira. A presidente Dilma Rousseff, que desde o início do mandato tem deixado evidente seu desprezo pelo chefe da CBF, recusou uma oferta de reaproximação intermediada pelo novo ministro do Esporte,Aldo Rebelo. Ameaçado de perder poder na organização da Copa, o cartola achou mais prudente se esconder nas sombras e trabalhar nos bastidores para sobreviver. Ou seja, escolheu perder os anéis para não perder os dedos - e, com os dedos intactos, manter o poder nas mãos.

A função de Ronaldo será de relações públicas, para não dizer decorativa. Tratará com a imprensa e será a estrela de eventos promocionais. Enquanto isso, os negócios da Copa continuarão tratados por aliados e subordinados de Teixeira, que nem mesmo se afastou formalmente do COL. A diretora executiva do comitê é Joana Havelange, sua filha. O diretor jurídico é Francisco Mtissnich, advogado da CBF. O coordenador de operações é Ricardo Trade, ex-funcionário de suas empresas. E o diretor de comunicação é Rodrigo Paiva, assessor de imprensa da CBF. Enquanto o laranja Ronaldo sorri e posa para fotos, essa turma comandará os contratos e as negociações bilionárias para a Copa, que deve movimentar mais de 100 bilhões de reais. A função do ex-jogador será parecida com a que Franz Beckenbauer teve na Copa da Alemanha em 2006, de embaixador do evento. E distante da exercida em 1998 pelo francês Michel Platini, que comandou de fato a Copa e, depois, se tornou um respeitado dirigente, cotado até para chefiar a Fifa.

A nomeação de Ronaldo não foi o único golpe de Teixeira para tentar sair das cordas. Ele tem se aconselhado com o ex-presidente Lula, em busca de apoios nos meios políticos e no mundo esportivo. Por sugestão do corintiano Lula, escolheu o presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, para ser o novo diretor de seleções da CBF - e, depois da Copa, seu candidato à presidência da entidade. Andrés tem a missão de quebrar as resistencias dos principais times brasileiros ao cartola e impedir que seja criada uma liga de clubes para organizar o Campeonato Brasileiro, o que colocaria ainda mais pressão sobre Teixeira. A estratégia do cartola, porém, parece não ter sido eficiente. Dilma, em conversas com assessores, adiantou que não pretende negociar as pendências da Copa com Ronaldo. Blatter segue empenhado em derrubar o rival do trono da CBF e impedir que ele dispute sua sucessão em 2015 - promete novas denúncias ainda nesta semana e quer fazer mudanças no estatuto da Fifa que impeçam a candidatura de "fichas-sujas".

Com as mudanças no COL, Teixeira continua como sempre esteve: com poder, sem credibilidade e envolvido em suspeitas. Já Ronaldo tem muito a perder. Além de meter as chuteiras no pantanoso terreno em que Teixeira chafurda há décadas, ele corre o risco de se dar mal nos negócios. Algumas das empresas que patrocinam jogadores agenciados por ele, como a Claro e a AmBev, são concorrentes das que patrocinam a CBF e a Fifa. Mesmo diante do conflito de interesses, Ronaldo se recusou a abandonar o comando da empresa para assumir o novo cargo. Já se disse de Pelé que, de boca fechada, era um poeta. Ronaldo está a caminho de provar que, fora dos campos, é o rei da bola fora.

Presente de Natal - PAULO GUEDES

O GLOBO - 05/12/11

O governo baixou um pacote fiscal para estimular as vendas de Natal e blindar o crescimento da economia brasileira contra a crise externa durante o ano eleitoral de 2012. A maior parte da redução de impostos é para incentivar a compra de imóveis de baixa renda, geladeiras, fogões, máquinas de lavar, pães e massas alimentícias. É uma tentativa de reeditar, em versão moderada, o bem-sucedido choque fiscal expansionista de 2009, que empurrou para 7% a taxa de crescimento em 2010.

Serão discretos os efeitos desse presente de Natal. As desonerações tributárias chegaram a quase R$25 bilhões em 2009, sendo agora estimadas em pouco mais de R$7 bilhões. Havia também naquela ocasião uma demanda reprimida por bens de consumo duráveis de uma população de baixa renda em ascensão para a classe média. Mas, apesar de seus modestos efeitos, o pacote de Natal, associado à queda das taxas de juros e ao reajuste de 14% do salário mínimo, tenta garantir um crescimento de 4,5% em 2012.

Merece registro o reconhecimento do governo de que a redução de impostos seja o caminho correto para estimular a produção e criar empregos. Afinal, a contração econômica global tornou-se um buraco negro, deflagrando a guerra mundial por empregos. E a frustrante inapetência da social-democracia por reformas só piora as coisas. As distorções em nossos mercados de trabalho são colossais. Os excessivos encargos previdenciários e a obsoleta legislação trabalhista já são responsáveis pela exclusão econômica e social de 50 milhões de brasileiros. A enorme cunha fiscal aumenta o custo do trabalho para as empresas, derruba o salário dos trabalhadores e exclui dos mercados formais exatamente os mais desfavorecidos.

Além disso, temos impostos indiretos abusivos, aumentando os preços para os consumidores e baixando as margens de lucro dos varejistas e dos produtores. Já é hora de pensarmos os impostos no contexto de uma reforma fiscal abrangente. Não há outro modo de garantir o crescimento sustentável e a geração de empregos que buscamos de pacote em pacote. É também a única forma de recuperar a credibilidade do governo. Afinal, o Ministério da Fazenda havia prometido maior superávit fiscal para que o BC baixasse os juros sem estourar a meta de inflação. E também afirmara aos estados produtores de petróleo que o governo federal não tinha recursos para evitar a guerra dos royalties.

Nocauteados pela lógica - REVISTA VEJA


REVISTA VEJA
Ao propagarem a desinformação em vídeo sobre a usina de Belo Monte, atores viram piada na web. Mas o papelão rendeu boas lições

André Eler e Laura Diniz



Você já ouviu falar da hidrelétrica de Belo Monte?" A pergunta, feita pela encantadora atriz Juliana Paes, foi ouvida 3,2 milhões de vezes nas últimas duas semanas. Ela abre um vídeo com cinco minutos de duração em que dezenove atores e atrizes do elenco da Rede Globo se revezam para discutir a construção de Belo Monte, a usina que está sendo erguida no Rio Xingu, no interior do Pará. Não é um assunto propriamente eletrizante nem algo que pareça capaz de arrebatar o público majoritariamente jovem da internet. Mas a popularidade dos atores, somada a uma peculiaridade do filme - o flagrante desconhecimento que seus protagonistas demonstraram sobre o assunto -, acabou por transformar o vídeo em um marco da internet brasileira. Se a disseminação do conhecimento é a mola propulsora da humanidade, a propagação da ignorância às vezes também funciona.

Foi o que aconteceu diante da tagarelice bem intencionada dos atores. Aos espectadores com um mínimo de familiaridade com o tema, as faias alarmistas em defesa "dos índios, dos rios e da Floresta Amazônica" soaram ingênuas e equivocadas, quando não francamente constrangedoras - como no momento em que um dos atores confunde o Pará com Mato Grosso e outra afirma que hidrelétricas não produzem energia Limpa. Esse desfile de desinformação incomodou outra turma, aquela que usa a cabeça também para pensar. Foi assim que o vídeo dos atores rendeu outros três sobre o mesmo tema, feitos por universitários que aprenderam ser a lógica o melhor balizador de opiniões. Munidos dessa ferramenta, os estudantes levaram a nocaute os atores, ou melhor, as "celebridades"- essa categoria "super conectada com esses assuntos de ecologia", como ironizou o humorista Rafinha Bastos, outro que se juntou à turma da razão em feliz imitação, também em vídeo, de celebridade-desmiolada-que-abraça-qualquer-causa-politicamente-correta, mesmo sem ter a mais pálida ideia do que se trata.

Os vídeos dos estudantes, ao contrário do filme dos atores, foram precedidos por pesquisas e trazem cálculos e informações hidrológicas e geográficas que ajudam a entender o que é Belo Monte e quais são as suas implicações. Completos e exatos, colocados no ar na internet na hora certa, os vídeos podem até levantar a suspeita de ter sido patrocinados pelos maiores defensores da usina, o governo e as suas construtoras. Não existe, porém, nenhum indício de que os estudantes não tenham reagido espontaneamente à baboseira dos artistas globais. O primeiro vídeo foi feito por Cassio Carvalho, um engenheiro de 25 anos que vive em Brasília. Na ponta de uma caneta hidrográfica, ele mostrou que o impacto ambiental da construção de Belo Monte que vem sendo alardeado é um exagero. Gravou seus cálculos, como em uma aula, e postou a sequência no YouTube. Em seguida, alunos de engenharia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), de São Paulo, entraram na discussão. "Quando vimos tantas informações erradas divulgadas por atores famosos, ficamos assustados. As pessoas confiam neles. Fizemos o vídeo para esclarece-las", diz a estudante Roberta Valezio, de 19 anos, que participou da gravação da Unicamp. Outra turma de engenharia, desta vez da Universidade de Brasília (UnB), fez o mesmo. Somados, o vídeo dos atores e as respostas a ele alcançaram 4,3 milhões de visualizações em quinze dias. Para efeito de comparação, registre-se que o hit humorístico Tapa na Pantera (2006), um dos maiores sucessos da internet brasileira, foi visto até hoje 7 milhões de vezes. Com a fundamental diferença de que se tratava de uma deliciosa e rematada bobagem, feita (propositadamente) para provocar risos. A série de filmes sobre Belo Monte é de outra natureza: trata-se de uma discussão de interesse público e que foi reconhecida como tal pelos frequentadores da rede, como mostra o impressionante número de acessos aos vídeos. "O que aconteceu é algo totalmente inédito no Brasil", afirma Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas. A internet já havia servido de palco para um debate nacional em 2010, quando 2 milhões de pessoas assinaram a petição da Lei da Ficha Limpa. Neste ano, nova mobilização na rede ajudou a divulgar o Movimento contra a Corrupção, que levou milhares de brasileiros às ruas. A diferença é que, naqueles casos, havia um consenso em torno do tema. Desta vez, o que ocorreu foi um debate. "Foi a primeira vez que pessoas se reuniram na internet para discutir um assunto controverso e de relevância nacional", diz Daniel Domeneghetti, fundador do E-Consulting Group, empresa líder em estratégia de comunicação pela internet.

Ao se consolidar, a discussão sobre Belo Monte passou a girar em torno de três eixos: 1) A usina é necessária? 2) Há alternativas melhores do que ela? 3) Qual será o real impacto de sua construção? Cálculos simples deixam claro que a resposta à primeira questão é um peremptório sim. Sem novas fontes de energia, o Brasil não poderá crescer 5% ao ano na próxima década, como prevê o governo e esperam os brasileiros. Diz o economista e ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega: "A humanidade passou quase 3000 anos com renda e expectativa de vida estagnadas. Três fatores mudaram esse cenário: o fortalecimento das instituições, o avanço da ciência e o aumento na produção de energia. Um mundo sem energia é um mundo de trevas". Sob esse aspecto, Belo Monte é um gigantesco farol: terá potência média de 4571 megawatts - o suficiente para prover 40% de todo o consumo residencial do Brasil. No país, só Itaipu produz mais energia.

Quanto à segunda questão, a que trata da possibilidade de fontes alternativas, a resposta é simples: aenergia produzida pelas águas dos rios amazônicos é hoje a mais limpa e mais barata das opções. "Países desenvolvidos usaram todo o seu potencial hidráulico e só depois buscaram outras fontes. No Brasil, usamos apenas um terço do que podemos", diz Maurício Tomalsquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). As outras fontes, ou são mais poluentes, como o carvão, ou mais caras, como a energia solar. "Para instalar painéis capazes de captar a mesma energia que será produzida em Belo Monte, seria preciso investir 274 bilhões de reais - dez vezes o custo da usina", diz Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura. A energia eólica é uma aposta mais realista para o futuro. Na última década, o seu custo de produção caiu pela metade. Hoje, ela ainda é mais cara do que a hidrelétrica, mas deve tornar-se competitiva assim que condições técnicas e financeiras possibilitarem a ampliação da sua escala de produção. As hélices, porém, exigem condições de vento muito favoráveis, só encontradas em alguns pontos geográficos, e nunca serão a única fonte de energiade um país, pois o regime de ventos é incontrolável.

Qual será o real impacto de Belo Monte? É risível a argumentação de que as tribos indígenas da região serão "arrancadas como uma mandioca da terra", como disse o ator Sérgio Marone, que escreveu o roteiro do vídeo dos atores com base em informações fornecidas por uma ONG Primeiro porque nenhum dos 2200 índios da região vive na área a ser alagada. Aliás, eles estão satisfeitos com a obra. "A usina vai melhorar a nossa vida", disse a VEJA o cacique Manuel Juruna. de 68 anos "Ela vai trazer mais progresso para nossa aldeia.

Quase metade da área de 520 quilômetros quadrados a ser inundada por Belo Monte faz parte do próprio leito do rio. A outra metade é coberta por pasto, lavouras de cacau e mata nativa Ainda assim, será inevitável a remo - e em condições que em nada lembram o cenário idítico das novelas. As casas da região, equilibradas sobre palafitas, não têm saneamento básico. A água usada e os dejetos que os moradores produzem vertem de canos de PVC diretamente no Rio Xingu. Num desses trechos, na semana passada, a dona de casa Sandra Cardoso de Lima lavava a louça e limpava um peixe, com metade do tronco submerso no rio. Perto dali, outras mulheres faziam o mesmo, rodeadas por crianças que brincavam em meio aos dejetos despejados pela vizinhança. "Não sei ainda onde vão me botar, mas sei que a nossa vida vai melhorar", diz Sandra.

A reação via internet dos estudantes que sabem fazer contas é um fenômeno que já produziu boas lições. Uma delas é pelo filósofo Denis vez mais, quem fala sem saber o que está dizendo fica sujeito a ser desmentido rapidamente". Outra é que o ambiente virtual não altera uma lei que sempre vigorou no mundo físico: à luz da razão, não há sombra que consiga se fazer passar por realidade - nem quando envolvida pelo talento de bons atores.

Os impasses e a História - CARLOS MELO e JOSÉ MENDONÇA DE BARROS

O ESTADÃO - 05/12/11

Em 25 anos, o Brasil saiu da moratória e da superinflação, da dívida e da recessão para uma economia vigorosa e moderna; livrou-se dos militares e superou o impeachment a caminho da democracia que se consolida. Os anos Itamar, FHC e Lula foram admiráveis em mudanças e grandes transformações: privatizações, concorrência, estabilização, distribuição de renda - com a inclusão de novos grupos de consumidores - e formação de um pujante mercado interno.

O potencial do País é enorme e os bons tempos não acabaram. O desafio, porém, é aproveitá-lo: os últimos anos mostram que o crescimento que se pode sustentar, sem elevar a inflação, não é superior a 4%, até porque o investimento tem ficado teimosamente abaixo de 20% do PIB. Além disso, o mundo mudou e há um esgotamento dos instrumentos do passado. É ilusão imaginar que os impasses possam se resolver sozinhos.

O processo carece de renovação. O foco quase exclusivo na tríade "juros, câmbio e ajuste fiscal" denuncia a mesmice do debate. É importante crescer, mas de modo sustentável. O exemplo argentino talvez seja eloquente de uma longa perda de dinamismo e importância do país, cada vez mais fechado e provinciano, relevante apenas como produtor de soja. Não basta apenas querer o crescimento, gargalos precisam ser alargados e entraves, removidos. Urge iniciar um novo ciclo de mudança.

Isso não se fará por acomodação, sociedade é conflito. Os "16 anos de ouro" de FHC e Lula estão irremediavelmente para trás; foi o tempo em que qualquer melhora se traduzia num significativo salto. Hoje, a agenda é mais complexa. Há um sério problema na expansão da oferta: a produtividade, total e do trabalho, está estagnada; os custos de produção e de investimento sobem velozmente; a competitividade sistêmica cai nas classificações internacionais, como o Doing Business do Banco Mundial; o investimento perde vigor. A despeito disso, a grande resposta do governo é estimular a demanda.

Precisamos de poupança, investimento, infraestrutura, ambiente de negócios, regulação e formação de capital humano - e mais investimento. Precisamos muito de uma substancial melhora na governança pública; precisamos recuperar a credibilidade do sistema político e fazer reformas. Precisamos crescer de uma vez por todas e a isso se dá o nome de maturidade.

Há um conhecido rol de propostas, ainda não totalmente desenvolvidas e articuladas. Diante do esmaecimento do processo, seria de supor que o momento de implementá-lo chegou. Todavia, sua oportunidade política parece cada vez mais distante. A conciliação - virtude de FHC e Lula - se configura num vício, nestes tempos de Dilma. Aumentar a capacidade produtiva implicará remover entulhos, contrariar interesses... Não se fará sem algum grau de trauma.

Governadores e prefeitos, por exemplo, são refratários a reformas tributárias; sindicatos são avessos a alterações na legislação trabalhista e previdenciária; corporações e movimentos sociais não aceitam racionalizações e cortes de gastos; à burocracia não interessam sistemas simplificados; esquemas se organizam contra a transparência; políticos reagem a reduções de espaços de poder e à reforma da organização e representação políticas.

Não é fácil fazer reformas. A presidente, mesmo que as quisesse - e aparentemente não quer -, dificilmente conseguiria emplacar agenda nessa direção. Sua base política é enorme, porém fragmentada e contraditória; seus aliados, beneficiados do status quo, são reativos; e mesmo seu "Estado maior" - incluindo aí o ex-presidente Lula - se mostra temeroso de conflitos capazes de afetar o obsessivo indicador da popularidade.

Eis o impasse: a história indica que chegou o momento de seguir em diante, mas a falta de consenso e disposição para o enfrentamento paralisa o processo. Não há, ainda, o dínamo da mudança e talvez só mesmo a crise, quando chegar, possa vir a sê-lo. Evitá-la diminuiria custos, mas para isso seria necessário arbitrar impasses, redefinir regras. A isso chamam de "A Política". Mas o sistema se deteriora, sua turbulência gera gigantescas ondas de escândalos e descrédito. O País perde instrumentos políticos.

Os impasses permanecem e a perspectiva é de que se mantenham por mais algum tempo. Na História, contudo, não há águas para sempre paradas. Em algum momento, a força represada se liberta pela emergência do novo, com nova disposição e propostas. Um líder ou um aventureiro, outra institucionalidade ou o caos, ninguém sabe. O novo ainda não surgiu.

No final da década de 1980, num ambiente de crise mais aguda, o impasse pariu Fernando Collor de Mello, cuja história é conhecida - FHC e Lula aprenderam e superaram o infortúnio do antecessor. Nesta segunda década dos anos 2000, quem ou o que será o novo? As alternativas que a História gera podem ser boas, mas nem sempre são necessariamente boas.


Escravos do sucesso - JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO


O Estado de S.Paulo - 05/12/11


A quantidade de prefeitos eleitos por um partido está correlacionada ao que acontece com sua bancada de deputados federais dois anos depois. Em 2008, os principais partidos de oposição ao governo federal elegeram menos prefeitos. Não por coincidência, viram suas cadeiras federais minguarem quase na mesma proporção em 2010.

No sentido inverso, o ciclo eleitoral passado favoreceu petistas e aliados: ganharam prefeitos e, na eleição seguinte, deputados. Mas também aumentou a dispersão partidária. Mais legendas conquistaram espaço nas prefeituras e isso levou à pulverização ainda maior do poder na Câmara dos Deputados. A base de sustentação do governo federal ficou mais fluida, movediça.

Só por isso, o governo Dilma Rousseff já teria muito interesse no que vai acontecer nas eleições de 2012. Mas não fica aí. O pleito será o primeiro teste real de popularidade da presidente. Mesmo que os problemas locais sejam mais relevantes na decisão do voto de prefeito do que as ações federais, o resultado das urnas será creditado ou debitado parcialmente na conta de Dilma. Sua imagem sairá fortalecida ou enfraquecida. É uma prévia de 2014.

O governo federal influencia a eleição de prefeitos com transferências preferenciais de verbas, priorizando obras, alimentando ONGs - como fazem também os governos estaduais. Mas Brasília tem um poder a mais, o de influir no clima geral da opinião pública, pelo que faz com a economia. Otimismo ou pessimismo nascem no bolso e dali se espalham até chegar ao dedo que tecla "confirma" na urna eletrônica.

Um eleitor otimista é mais propenso a reeleger seus governantes. O pessimista é mais aberto a mudanças. Portanto, é do interesse geral dos prefeitos candidatos à reeleição que a economia esteja aquecida no próximo ano. Assim como é do interesse de Dilma.

É difícil encontrar algo que se correlacione mais com a popularidade do presidente no Brasil do que a confiança do consumidor. Se esse índice sobe, a avaliação do governo federal tende a melhorar, e vice-versa. Dentre os itens que compõem a versão do índice divulgada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), dois têm correlação ainda maior: a situação financeira do entrevistado hoje (comparada ao período imediatamente anterior), e a expectativa do que deve acontecer com essa mesma situação financeira no futuro próximo.

A combinação desses dois indicadores, pesquisados mensalmente em sondagem CNI/Ibope, tem um coeficiente de correlação de 0,9 com o saldo de aprovação do governo federal. Grosso modo, é possível antecipar com 90% de acerto a tendência da popularidade de um presidente a partir desse índice composto - que poderia ser batizado de "bolso eleitoral".

O mais surpreendente é o quão mais forte é essa correlação entre o bolso e a popularidade presidencial do que entre a imagem do governo e os outros indicadores que compõem o índice de confiança do consumidor. O medo do desemprego tem correlação, mas significativamente mais fraca do que o "bolso eleitoral". E a expectativa de inflação simplesmente não se correlaciona com a popularidade presidencial. Oscilam frequentemente em direções opostas.

É mais um sinal de que o discurso da estabilidade econômica perdeu para o do crescimento. Talvez porque os últimos oito anos mostraram ser possível crescer sem perder o controle da inflação. Mais do que isso, esses anos de bonança criaram na opinião pública uma expectativa de que a capacidade de consumo não só pode como deve aumentar continuamente.

Quando o governo reativa o crédito, corta impostos sobre operações de financiamento e diminui a taxa de juros básica ele está tomando medidas para tentar reaquecer a economia e gerar mais consumo. O eventual aumento da atividade tem vários efeitos positivos para o próprio governo: aumenta a arrecadação de impostos e a disponibilidade de recursos para gastar.

Mas não dá para ignorar que a retomada do ritmo da atividade econômica também paga bônus eleitoral aos governantes ao elevar o nível de confiança do consumidor. Toda ação governamental gera uma reação na opinião pública. Não existe o ato de governar exclusivamente técnico. Quem governa são os políticos, não os tecnocratas.

Nem toda medida com impacto eleitoral é ruim em si. A adaptação da política econômica às circunstâncias é do jogo. Entre as circunstâncias estão o ambiente político e a opinião pública. Um governo com popularidade em baixa perde sustentação política e, por tabela, graus de liberdade para determinar sua própria política econômica.

O problema acontece quando os interesses eleitoreiros de curto prazo se chocam com o que é melhor para o País no longo prazo. Por ora, o governo Dilma tem espaço para administrar as contradições entre a pressão inflacionária e o ritmo do consumo. Mas nem sempre é assim.

Logo após o massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, Fernando Henrique Cardoso experimentou seu único momento de impopularidade durante o primeiro mandato presidencial. Logo que as mortes saíram das manchetes, FHC recuperou a boa imagem conquistada pela estabilidade econômica. Reelegeu-se meses depois. Porém, ele nunca recuperou a popularidade perdida pela desvalorização abrupta do real, logo no início do segundo mandato.

Os governantes se tornam escravos do próprio sucesso. Quando não o seguem, pagam por isso.






Falta transparência - ANTONIO PENTEADO MENDONÇA



O ESTADÃO - 05/12/11

Operadoras de planos de saúde privados devem deixar o ‘juridiquês’ e o ‘segurês’ de lado e melhorar a forma de comunicação para facilitar o entendimento dos clientes

Faz poucos dias o desembargador Alceu Penteado, doTribunal de Justiça de São Paulo, com longa prática no trato com leis e contratos de todos os tipos,me telefonou pedindo se eu poderia auxiliá-lo com uma correspondência recebida de uma operadora de plano de saúde privado.

Solicitei a ele que me enviasse a correspondência e, não porque ela fosse clara, mas por conta de muitos anos de prática profissional lidando com os planos de saúde privados, entendi que se tratava de uma proposta de adequação de um plano antigo às disposições da Lei 8656/98, que regulamentou a matéria e padronizou os atendimentos mínimos a serem oferecidos pelas operadoras de planos de saúde aos seus clientes.

A Lei dos Planos de Saúde Privados é uma lei ruim, que vai sendo melhorada, dentro da capacidade normativa infralegal da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), visando a efetiva proteção do consumidor de um produto que se tornou indispensável para o equilíbriodaspolíticas sociais brasileiras. Por conta disto, ao longo do tempo, com erros e acertos, a ANS tem baixado normas para a operacionalização do sistema, dando parâmetros mínimos dentro dos quais as operadoras devem atuar.

Agora mesmo está para entrar em vigor regra para a manutenção de funcionários que deixam a antiga empregadora em plano de saúde similar, na operadora do plano de saúde para o qual ele, como funcionário da estipulante do plano, contribuía.

Ao longo do ano, a ANS baixou várias outras regras que exigiram a comunicação entre a operadora do plano de saúde e sua massa de clientes. É exatamente aí que, com base na correspondência encaminhada ao desembargador Alceu Penteado, fica claro que está faltando clareza nas informações prestadas por pelo menos algumas operadoras para os seus consumidores.

Um desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo é alguém familiarizado com termos técnico/jurídicos e com contratos em geral. Quando um deles– para ser exato, o próximo presidente do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo – não entende o que está escrito numa correspondência, que deveria ser a mais simples possível, propondo modificar parcialmente as condições de um plano de saúde,é porque,com certeza, o texto está mal redigido.

Nada que não aconteça regularmente nos mais variados campos da vida nacional, a começar pelas leis que nos regem e que invariavelmente têm uma redação no mínimo dúbia,quando não absolutamente contraditória.

O problema é que os planos de saúde privados atendem mais de 50 milhões de brasileiros, a imensa maioria deles sem a formação jurídica ou o conhecimento do idioma de um tarimbado desembargador. Se ele tem dificuldade para entender o que a operadora do plano de saúde está propondo, imagine o que acontece com os outros milhares e milhares de brasileiros que também possuem planos de saúde na mesma situação. A não compreensão de uma proposta desta natureza pode ter consequências muito sérias. Antes de tudo, no caso específico,era indispensável a comparação entre as coberturas do plano antigo e as oferecidas para sua adequação às regras da lei.

Como a correspondência realmente não apresentava as mudanças sugeridas de forma transparente, através da comparação de como o produto era e como ficava, telefonei para o desembargador e fiz uma série de perguntas sobre o plano antigo. Com base nelas, por eu conhecer a lei e a normatização específica para o caso, chegamos à conclusão de que a adaptação, ainda que encarecendo o plano, era interessante.

Mas há situações em que, por uma série de razões, é melhor ficar com o plano antigo. Então, para que eventuais mudanças de coberturas e preço, em nome de regulamentações da ANS, não acabem gerando problemas ou divergências ruins para todos, é indispensável que as operadoras de planos de saúde privados deixem o “juridiquês” e o “segurês” de lado. A melhor forma de comunicação é a simples e direta e mesmo ela nem sempre fica clara.


Vira-latas - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 05/12/11

O brasileiro tem complexo de vira-lata. Adora bancar o chique falando mal de si mesmo.
Principalmente quando alguém chique (leia-se, europeu) fala mal do Brasil. Um modo específico de nosso complexo de vira-lata é achar a Europa o máximo.
Quem conhece bem a Europa e ultrapassou a caipirice de achar tudo lindo por lá sabe que os europeus são (também) arrogantes, metidos, preconceituosos e exploradores e pensam, ainda hoje, que somos uns "índios" mal alimentados, ignorantes e mal-educados.
Claro que há exceções, portanto, não se faz necessário que europeus me escrevam jurando que são legais, ou que seus avós são legais, ou que seus cachorros são criados com todos os direitos humanos, mesmo porque, apesar de que isso não é sabido, ninguém pode ajuizar sobre sua própria virtude.
Lamento pela gente que se julga "crítica e consciente", mas todo mundo que se acha legal por definição é um mentiroso.
Se você for uma leitora que um dia mochilando pela Europa transou com um europeu (europeus costumam adorar brasileiras, porque acham nossas mulheres fáceis e doces, coisa rara nas mulheres europeias de hoje em dia, que a cada dia se tornam mais chatas, competitivas e estéreis), não confunda o papo que teve com ele antes do coito com o fato de que os europeus nos acham subdesenvolvidos. Inclusive porque para eles você é fácil porque é subdesenvolvida.
Sim, achar a Europa o máximo é coisa de gente caipira e brega. Se você pensa assim, tome um remédio. Ou minta.
Recentemente, um intelectual europeu em visita ao Brasil fez críticas ao país. Nada que não saibamos sobre nós mesmos. Mas, logo, alguns intelectuais e artistas vira-latas tiveram um orgasmo porque o "sinhozinho" falou mal das "zelites".
Sim, a elite brasileira pode ser bem brega na sua condição de elite de colônia. E horrorosa na sua ignorância "luxuosa". Aqui, ostentação é destino. Pessoas educadas sabem que a felicidade (seja lá no que for) deve ser guardada a sete chaves. Só gente brega "mostra" que é feliz. Neste caso, um toque de melancolia é elegância.
Por exemplo, o hábito de cultuar restaurantes pretensiosos como "de Primeiro Mundo" porque são caros é comum entre nós.
Dizer que você esteve em tal restaurante "caríssimo" (sempre pretensioso) é atestado de breguice. Mas julgar alguém "superinteligente" porque vem da Europa também é brega.
É fácil posar de "culto e crítico" e ficar horrorizado com nossas injustiças sociais quando se teve a chance de ganhar muito dinheiro ao longo da história à custa das injustiças sociais dos outros. Europeu que se faz de rogado pela injustiça no mundo só cola em vira-lata.
Por outro lado, se a riqueza cultural europeia é óbvia, e não se trata de negar este fato, ela se deve em grande parte às injustiças sociais europeias do passado e não ao seu "estado de bem-estar social" atual. Este tipo de "estado" produz apenas banalidades e monotonias de classe média.
Uma grande falácia é supor que injustiça social e riqueza cultural sejam excludentes, pelo contrário. Ou que justiça social produza necessariamente originalidade intelectual.
Não sou um "patriota", patriotismo é para canalhas. Calabar - que optou pelos holandeses em detrimento dos portugueses no Pernambuco colonial - pode ter razão. Falo aqui apenas de nosso complexo de vira-lata.
É muito comum que grandes intelectuais estrangeiros venham a nossa terra inculta e falem um "feijão com arroz" básico supondo que somos ignorantes mesmo e por isso não precisam suar a camisa diante de nossas plateias que sacodem seus ouros, exibem seus decotes e orelhas de livros.
Já vi isso acontecer várias vezes. Também no mundo acadêmico isso acontece, não só no mundo da filosofia de luxo.
Um grande professor que tive e que vive na Europa há anos me disse certa feita que até hoje os europeus não acreditam que "na volta das caravelas que colonizaram as Américas" pode haver algum "índio" que seja igual ou melhor do que eles.
A afetação moral em europeus não é muito diferente da afetação intelectual de nossos decotes de marca.



Classificação indicativa - EDITORIAL FOLHA DE SP


FOLHA DE SP - 05/12/11

O Supremo Tribunal Federal caminha, ao que tudo indica, para diminuir a interferência do Estado na programação de rádio e TV.

Ao analisar a validade de um artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente que prevê multa e até suspensão temporária da veiculação para emissoras que infrinjam a determinação de horário específico para seus programas, 4 dos 11 ministros do STF manifestaram-se pelo fim da chamada classificação indicativa obrigatória.

O julgamento foi interrompido por pedido do ministro Joaquim Barbosa, que requisitou mais tempo para analisar a questão. Se o encaminhamento dado até aqui pela Corte prevalecer, a decisão representará uma vitória do princípio de liberdade de expressão, que o Supremo tem ajudado a sedimentar no país.

As emissoras continuarão obrigadas a anunciar aos espectadores e ouvintes a classificação etária para os programas que veiculam -se adequados para audiências de 12, 14, 16 ou 18 anos. No entanto não estarão mais sujeitas à anuência do Ministério da Justiça, que até aqui tem poder para exigir a reclassificação ou até impor sanções em casos de conteúdo considerado impróprio para o horário.

Para o relator da matéria, o ministro José Antonio Dias Toffoli, não compete ao Estado "substituir os pais na decisão sobre o que podem ou não os filhos assistirem". O poder público passaria a exercer apenas uma espécie de pressão moral sobre os adultos, por meio da exigência de classificação indicativa, levando-os a refletir acerca da conveniência de deixar que os mais jovens assistam a este ou àquele programa.

São compreensíveis e justificadas, por outro lado, as preocupações sobre a exposição de crianças e adolescentes a determinados conteúdos, pois nem sempre os pais podem monitorar os filhos.

Cumpre notar, por exemplo, que a classificação indicativa, mantida no território abrangido pelo horário de Brasília, é com frequência desrespeitada em Estados cujo fuso fica em defasagem em relação ao da capital federal, uma vez que as emissoras resistem a adaptar sua grade nesses locais.

O caso exige, portanto, compromisso ético dos veículos. Se não desejam ser submetidos a interferências do Estado, precisam reforçar seus mecanismos de autorregulamentação de modo a estreitar os laços de confiança com o público -mesmo que para isso tenham de sacrificar interesses comerciais.



Os sapatos de seu Laganá - JOSÉ DE SOUZA MARTINS


O Estado de S.Paulo - 05/12/11


Consolato Laganá não passará à história de São Paulo pela coragem de um segundo casamento aos 101 anos de idade. Passará como o artesão dos sapatos anatômicos que calçaram os pés de mulheres e homens da São Paulo elegante por várias décadas. Mais do que interessado no sapato que os outros veem, o dono do pé é interessado no sapato que seus pés sentem.

Para caminhar sem sofrer, os ricos lhe pagavam tributo e pedágio. Calo, joanete, unha encravada, tudo que faz o pé sofrer tinha solução na oficina em que Laganá fazia suas obras de arte. Criou uma pedestre "filosofia do pé" ao se insurgir contra o costume de que os pés devem se adaptar aos sapatos: os sapatos é que devem se adaptar aos pés.

Na São Paulo das primeiras décadas do século 20, ainda havia sapateiros remendões que também faziam artesanalmente sapatos ajustados ao tamanho e aos defeitos dos pés de seus clientes. Mas aos poucos esses sapatos artesanais iam sendo preteridos, dada a preferência consumista por calçados industrializados, como os calçados Clark, de marca inglesa, fabricados também aqui em São Paulo, desde 1904. Os velhos sapateiros ficaram confinados no artesanato da meia-sola.

Mas as velhas oficinas eram uma instituição, concorrentes das farmácias, pois era ali que circulavam os fuxicos e intrigas locais e vicinais. Era ali que as grandes notícias do mundo eram mastigadas e reduzidas à compreensão que podia dar-lhes a lógica das crônicas de vizinhança. É verdade que os clientes falavam e o sapateiro apenas ouvia: a boca cheia de preguinhos de sapateiro, da qual tirava um a um para pregar a sola nova no sapato gasto. Não podiam falar os discípulos de São Crispim, sob risco de, em vez de pregar sapatos, pregar as próprias tripas.

Gente poderosa e agradecida, do prefeito ao governador, ia cumprimentar Laganá na oficina de segundo andar de um prédio da Praça da República, no lado oposto ao do Instituto Caetano de Campos. Eram os donos de pés felizes. Laganá conhecia a intimidade dos pés de mulheres e homens da grã-finagem.

O segredo do sapateiro estava em literalmente esculpir os pés de seus clientes em moldes de madeira, que mantinha guardados e identificados. Quando o cliente precisava de um sapato novo, simplesmente o encomendava, não precisava levar os próprios pés até o sapateiro. Laganá entregava sapatos em casa do cliente, pagos na caderneta, como fazia o padeiro com o pão.

Da Calábria. Consolato Laganá nascera em 1904, na Calábria, em Adami, uma aldeia idílica imortalizada em Terra Amada, belíssimo livro de sua sobrinha, Liliana Laganá, professora de Geografia, na Universidade de São Paulo (USP). Chegou a Santos, em 1922, foi com o pai para fazendas de café do interior e finalmente veio para a cidade aprender o ofício de sapateiro. Fez a América a seu modo: a elite colocou os pés em suas mãos.


O dever da clareza - EVERARDO MACIEL


O Estado de S.Paulo - 05/12/11


O filólogo Celso Cunha, responsável pela revisão do texto da Constituição de 1988, renunciou à tarefa, desapontado com a imprecisão e o barroquismo das proposições. Em discurso pronunciado na Assembleia Constituinte em 20 de setembro de 1988, salientou: "Estilisticamente, é uma Constituição sui generis, que parece duvidar da eficácia da lei. Deveria ser escrita na língua culta normal dos brasileiros - culta sem ser preciosa, normal sem ser vulgar". Arrematou, parodiando o que Ortega y Gasset afirmara em relação à filosofia: "Clareza é a cortesia do legislador para com seu povo".

Predicado do bom estilo, clareza é o que não contrapõe obstáculo ao pensamento, sem tomar em conta a complexidade e a sutileza do tema. O que é claro não necessariamente é simples ou trivial, como assinala André Comte-Sponville, mas é uma indispensável cortesia aos que leem. Quando a clareza do enunciado implica repercussões sobre direitos e obrigações, então ela se torna crucial, assumindo caráter de dever para os que respondem pela enunciação.

A legislação tributária brasileira, muitas vezes, não prima pela clareza, em virtude da pretensão de confundir, ignorância ou falta de polidez do legislador.

Uma pérola da obscura linguagem tributária brasileira, como bem assinalaram os professores Eurico Di Santi e Isaías Coelho, é retratada no art. 150, § 1.º da Constituição: "A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I; 153, I, II, IV e V; e 154, II; e à vedação do inciso III, c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I; 153, I, II, III e V; e 154, II; nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I".

O significado dessa norma é relativamente simples para os profissionais da área tributária, mas sua construção é um primor de hermetismo, com proliferação de remissões cruzadas, pontos e vírgulas - quase uma linguagem de máquina, para usar um vocabulário da informática.

A linguagem obscura se torna mais iníqua quando se inscreve no contexto de uma profusão de normas, decorrente de uma fúria legiferante que, no propósito de tudo controlar, nada controla. Serve bem, todavia, ao arbítrio, à prepotência e, não raro, à corrupção.

O Código Tributário Nacional (CTN) estabelece, no art. 212, que as administrações fiscais da União, dos Estados e municípios deverão consolidar, anualmente, as respectivas legislações tributárias. Os Fiscos, porém, desconhecem solenemente essa obrigação, no entendimento insubsistente de que se trata de norma meramente programática. Essa descortesia merece ser corrigida, por alteração no CTN, instituindo-se sanções, em caso de inobservância da regra.

As dúvidas dos contribuintes, ao menos em tese, deveriam ser respondidas prontamente pela administração fiscal. Mas não é assim que tem ocorrido. Consultas têm tido respostas lentas e, muitas vezes, pouco qualificadas, sem falar da abusiva alegação de ineficácia. Conheço casos tão estarrecedores, que poderiam ser incluídos em edição atualizada de O Processo, de Kafka.

Há rumores críveis de que se pretende tornar mais restritivo o instituto da consulta. Caso sejam procedentes, trata-se de verdadeiro atentado à dignidade do contribuinte, correspondendo a uma compensação torpe à ineficiência do Estado.

A combinação da abundância de normas, nem sequer consolidadas, com a inépcia no esclarecimento das dúvidas dos contribuintes representa um verdadeiro abuso de autoridade, por omissão.

Há também outra espécie de omissão que produz uma zona cinzenta, onde tudo é possível. É a que se opera no campo das leis com baixa densidade normativa, a exemplo da legislação aplicável a ágio e a dissimulação. Em ambos os casos, é tempo de rever a legislação, procedendo-se à eliminação das brechas fiscais e do potencial de litigiosidade.

As regras tributárias relativas a ágio foram construídas num momento histórico em que se pretendia incentivar a privatização de serviços de infraestrutura, sem que existissem muitos atrativos para inversões estrangeiras. Hoje, o contexto é completamente diferente, ainda que a privatização de determinados serviços públicos seja um processo inconcluso. Ao longo do tempo, essas regras se converteram tão somente em repulsivo instrumento de planejamento tributário abusivo.

Ainda que pendente de disciplinamento por lei ordinária, a regra estabelecida no art. 116, parágrafo único, do CTN, produziu um lamentável campo de batalhas entre o Fisco e o contribuinte. Institutos do Código Civil, como a fraude à lei ou abuso de forma, são transpostos para os procedimentos de fiscalização, sem que se reconheça a barreira fixada por aquela norma. É o pior dos mundos possíveis, em que se abrigam a arbitrariedade e a insegurança jurídica.

Legislações obscuras, omissões na divulgação de normas ou silêncio como resposta a consultas são vícios deploráveis, que demandam tipificação como infrações administrativas. Clareza, em verdade, integra o conceito de moralidade do Estado.


A incultura totalitária - CLÁUDIO L. N. GUIMARÃES DOS SANTOS


FOLHA DE SP - 05/12/11
A internet só é útil para quem dela se serve com inteligência e discernimento; empregada com más intenções, ela pode levar ao oposto da liberdade

No conto "A Hora e Vez de Augusto Matraga", Guimarães Rosa nos fala de um homem perdido pelas veredas da vida, mas que, no dia da sua morte, imprime à própria história um sentido que jamais tivera.
Quantos de nós, quando chegar o momento, conseguirão fazer o mesmo? Trata-se, sem dúvida, de questão crucial, pois, como seres semióticos, não nos é dado viver sem perseguir significados -muito menos sem sermos por eles perseguidos.
Assediados por informações redundantes, a maioria dos humanos pós-modernos a elas reagem de maneira catastrófica: ora absorvem as notícias como se fossem parasitas, alimentando-se de "bits" que já chegam digeridos, ora engolem, sem critério, toneladas de conteúdos, para depois sofrerem de pantagruélica indigestão.
A internet é um caso exemplar. Por meio dela -creem os fiéis mais ardorosos- seria possível transmitir ao cidadão informações não distorcidas pelo "filtro pernicioso" da imprensa e também elevar o nível cultural do povo (há mesmo visionários que já sonham com democracias plebiscitárias, onde as questões relevantes seriam decididas, "de casa mesmo", pelo tamborilar obediente de milhões de dedos operosos no teclado místico da pátria).
Será isso verdade?
Não creio. A internet só é útil para os que dela se servem com inteligência e discernimento e que sabem, de antemão, o que desejam encontrar. Graças a ela, por exemplo, o amante de música pode ter rápido acesso a gravações diferentes da sua obra predileta.
Um indivíduo, porém, que não tiver recebido uma boa educação musical -com professores vocacionados, competentes e bem pagos-, dificilmente optará por ouvir a "Grande Fuga", de Beethoven ou "As Rosas não Falam", de Cartola, ignorando até que existam. Ele preferirá se divertir com algum lixo midiático que lhe tiver sido inculcado de maneira sorrateira.
De nada lhe servirá a hipertextualidade da internet, com as suas infinitas possibilidades semânticas, que é tão incensada por "ciberfilósofos" iludidos com o fetiche da técnica. O mais das vezes, navegará pelas rotas congestionadas "por onde vai todo mundo", reafirmando o gregarismo acrítico que marca esta época em que avultam a solidão coletiva e a servidão voluntária.
É por isso que a internet, se empregada com más intenções, pode levar ao oposto da liberdade e conduzir, pela ladeira do populismo conformista, ao pântano dos regimes totalitários.
Neste mundo tão "virtual", onde tudo parece ser o que não é, vale a pena lembrar que o meio não é nunca a mensagem, apesar do que dizia McLuhan (mais citado que lido).
Para além dos apelos da rapidez insensata e da novidade banal, brilha a sabedoria profunda das verdadeiras obras-primas, a única capaz de dar sentido à "hora e vez" de cada pessoa.
Um grande conto será sempre grande, descortinando panoramas insuspeitados, esteja escrito em papel de pão, embutido num holograma ou estampado numa tela polvilhada de hyperlinks. Guimarães Rosa, sem nunca ter visto a internet, sabia disso muito bem.


Homo transparens - LEE SIEGEL


O ESTADÃO - 05/12/11


Um amigo estava numa livraria de Manhattan recentemente, papeando com uma moça que encontrou ali. Ele lhe disse que gostava de ir a livrarias só para folhear. Ela sorriu pesarosamente. "Não consigo me lembrar da última vez que fiz alguma coisa que não tivesse um pretexto social", disse ela. E desapareceu.

Na era de Facebook, Twitter e outras incontáveis redes de relacionamento,o ato de decidir fazer algo por si, e apenas para si, está se tornando cada vez mais raro. As pessoas reagem à vontade do grupo assim como as flores giram para ficar de frente para o sol.

Lá pelos idos de1950, a grande preocupação da sociedade americana era a de que estava ficando excessivamente "conformista". As pessoas temiam que o individualismo, esse poderoso motor que havia criado a civilização americana,estivesse submergindo em um novo ethos que celebrava a massa.

Os Estados Unidos de hoje encontram-se muito além da ameaça da chamada cultura de massa.As redes de relacionamento social, com duas gerações de suspeita a qualquer pessoa com poder ou autoridade, tornaram o conceito de individualismo americano tão exótico como o telefone de discar ou a máquina de escrever.

Apresentar-se hoje como indivíduo equivale a declarar-se sofrendo de alguma doença social. Não demorará para médicos diagnosticarem pacientes com "individualitis" como costumavam diagnosticar pessoas com sífilis.

Porém, em vez de prescrever penicilina como cura, os médicos recomendarão "transparência". Transparência - esse jargão enormemente popular hoje em dia - virou a nova confiabilidade.

Transparência significa que quando as pessoas tentam imaginar quem você é, elas não se voltarão contra a sua discrição, modéstia ou seu instinto natural para manter em segredo a sua vida privada.Ao contrário,elas olharão diretamente através de você em busca das

forças que o criaram.

O 'novo transparente' terá publicado pelo menos um livro de memórias, de preferência dois. Terá um blog no qual confessará suas experiências e pensamentos mais íntimos de hora em hora. Terá uma conta no Tweeter na qual confessará experiências e pensamentos mais íntimos de minuto em minuto.

E terá uma página no Facebook na qual ele estará disponível, dia e noite, para adicionar algo sobre qualquer das experiências e dos pensamentos íntimos sobre os quais tuitou ou "blogou".

Polido para ficar com um lustro fino e diáfano, o homo transparens não mais revelará aquela potencial pedra no caminho de uma personalidade, com seus nichos e frestas, desvios e surpresas. Você olhará para esse novo tipo de pessoa e verá um atlas de desejos e obsessões, suas influências familiares e experiências emocionais formadoras - até mesmo sua história econômica. Reduzido a uma pilha de dados públicos, o homo transparens não terá o poder de prejudicar.

Você o verá se aproximando a um quilômetro de distância. A menos, é claro, que ele aprenda a manipular o novo estilo de transparência e a transformá-lo emum novo estilo de opacidade.

Esse parece ser o caso na vida política americana. Há apenas cinco anos,as alegações de que Herman Cain - pré-candidato republicano à Presidência até o último sábado - molestara sexualmente algumas mulheres e também, embora casado, mantivera uma relação adúltera com outra por 13 anos, teriam prontamente afundado sua campanha.

Mas Cain hoje está por aí. "Lá vamos nós de novo", disse ele em resposta às mais recentes acusações. Mais cedo ou mais tarde, ele cairá fora da disputa, mas o fato de sua persistência não criar uma tempestade de indignação é significativo. Em vez de um choque, as alegadas revelações sobre sua vida privada são parte do novo tipo de currículo do homo transparens.

Talvez Cain tenha se inspirado também no exemplo de outro potencial candidato republicano, Newt Gingrich, que confessou abertamente pelo menos dois casos extraconjugais enquanto estava casado. Gingrich está até melhor que Cain nas sondagens eleitorais, e sua vida pessoal não parece ser um problema.

Talvez a sociedade americana tenha atingido um ponto de virada. Pode-se tolerar praticamente tudo que um dia foi considerado socialmente inaceitável, contanto que a

pessoa seja transparente a esse respeito. A pessoa pode até mesmo ser antissocial,contanto que sua confissão de "antissocialidade" tenha, como colocou aquela moça misteriosa da livraria, um pretexto social.


De fora pra dentro - MÔNICA BERGAMO

FOLHA DE SP - 05/12/11

Os desembarques internacionais no Brasil devem bater novo recorde. Eles podem chegar a 9 milhões até o fim do ano, contra 7,9 milhões de 2010, de acordo com projeções do Ministério do Turismo, tendo em vista o movimento de novembro. Já entraram no país, junto com os turistas, quase US$ 7 bilhões, contra US$ 5,9 bilhões de 2010.

NOSSA TERRA

Já os desembarques nacionais de passageiros podem chegar a 79 milhões, contra 78,5 milhões no ano passado.

BATENTE

Lula avisou seus auxiliares mais próximos que pretende despachar nesta semana em seu instituto. Ele passa bem depois da segunda sessão de quimioterapia. No dia 12, começa a terceira dose do tratamento.

PICOLÉ

O sabor dos alimentos continua um problema. Lula comprou recentemente um balde de sorvete de limão para testar sua sensibilidade. É que o picolé deste sabor é ao mesmo tempo doce, azedo e gelado. Provou. E nada sentiu. Beber água tem sido um problema. Lula precisa ingerir três litros por dia, para evitar desidratação.

BARBA E CABELO

Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, que desde sexta prometia anúncio bombástico para hoje sobre a empresa, deixou o seguinte recado em seu celular: "Fui cortar o cabelo. Volto segunda-feira. Obrigado".

NA VEIA

O Ministério da Saúde anuncia até o fim do mês a inclusão de trombolíticos, medicamentos usados na rápida dissolução de trombos sanguíneos, nos tratamentos do SUS (Sistema

Único de Saúde). O uso do remédio, nas primeiras horas do infarto, reduz a mortalidade. A expectativa é que ela caia dos 12% atuais registrados no sistema público para 5%, média dos melhores serviços particulares.

AULA

Equipes do Incor (Instituto do Coração) de São Paulo devem treinar médicos de todo o país na aplicação do medicamento, já usado no hospital.

HOTEL COELHO
A estilista Gloria Coelho apresentou uma prévia de sua próxima coleção de inverno no fim da semana. O desfile aconteceu na suíte presidencial de 750 m² do hotel Tivoli Mofarrej. Entre os convidados, a modelo Cassia Avila.

NOITE DA PIZZA

O advogado criminalista Alberto Toron lançou sua candidatura à presidência da OAB-SP com uma pizzada. O ex-ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, e o advogado Pierpaolo Bottini compareceram à pizzaria Veridiana, no fim da semana.

TABELA

O governo vai anunciar, no programa de combate ao crack, nesta semana, que aumentará o valor da diária paga aos hospitais nos leitos destinados a pacientes com problema de alcoolismo e drogas. Como condição, eles terão que instalar os doentes em enfermarias específicas para esse tipo de tratamento. Assim, receberão R$ 200 por dia. Ou quatro vezes o valor que o SUS paga hoje, R$ 50, para leitos psiquiátricos.

PEDAÇO

A expectativa é que, de 30 mil leitos psiquiátricos, 4.500 passem a ser destinados para problemas de drogas e alcoolismo.

QUER CASA

Depois de 18 anos como diretora da MTV e mais dois como consultora, Anna Butler deixou a emissora. Se dedicará à sua agência, a Conteúdo Musical. E pretende abrir uma casa no Baixo Augusta, em SP, para workshops, exposições e shows.

PIRATAS DO TIETÊ

Em litígio com a prefeitura, que quer reaver o terreno usado pela agremiação, em Santana, o clube Tietê cobra na Justiça R$ 493 mil da Faculdade Zumbi dos Palmares, instalada no local. Diz que são contas não pagas de água, luz e taxa de ocupação da área. Atualizada, a dívida superaria R$ 1 milhão.

PIRATAS DO TIETÊ 2

José Vicente, reitor da Zumbi e corréu na ação, não foi citado. Diz que a faculdade não deve ao Tietê, porque a concessão da área pública ao clube venceu em 2009. "Tentam achincalhar a Zumbi por causa da derrota que tiveram para a prefeitura."

VAI SAIR NO TACO

E a prefeitura faz planos para outro terreno ocupado pelo clube Tietê, em Guarapiranga: transformar o espaço, de 700 mil m², em um campo público de golfe. O secretário Bebetto Haddad (Esportes) convidou Ronaldo Fenômeno, fã do esporte, para atrair patrocinadores.

CURTO-CIRCUITO

Nelson Motta autografa amanhã, a partir das 19h, o livro "A Primavera do Dragão - A Juventude de Glauber Rocha", no MIS.

O infografista Alberto Cairo dá hoje, às 8h30, a palestra "O Futuro da Infografia na Comunicação Digital", no Instituto Internacional de Ciências Sociais, na Bela Vista.

O desembargador Fausto De Sanctis recebe hoje, às 19h, a Medalha Anchieta e o Diploma de Gratidão de SP, na Câmara Municipal.

Marcelo Grassmann abre hoje mostra de gravuras no Espaço Cultural Citi.

Malena Russo promove bazar de Natal no dia 17, no Espaço Bastidores.

com DIÓGENES CAMPANHA, LÍGIA MESQUITA e THAIS BILENKY




O espólio de Wagner Rossi - EDITORIAL O ESTADÃO


O Estado de S.Paulo - 05/12/11


Em agosto, quando Wagner Rossi se viu forçado a pedir exoneração do Ministério da Agricultura em face de denúncias da atuação franca e desimpedida de um lobista na pasta e na Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e de outras irregularidades, a presidente Dilma Rousseff disse que ele deixava "uma herança de bons resultados". Ao mesmo tempo, porém, a presidente determinou que a Controladoria-Geral da União (CGU) realizasse auditorias no Ministério e na Conab para apurar as denúncias envolvendo a pasta. Os resultados da gestão de Rossi vieram à luz essa semana, revelando fraudes em licitações e desvios de verbas no Ministério e na Conab no valor de nada menos que R$ 228 milhões.

No relatório da CGU há de tudo: contratos irregulares com a Fundação São Paulo (Fundasp), que teria indicado o lobista Júlio Fróes para trabalhar dentro do Ministério; suposta cobrança de propinas por dirigentes da Conab; empresas registradas em nome de "laranjas", com sedes de fachada, que recebiam pagamentos do órgão; fraude em leilão de milho de produtor falecido há meses; graves problemas no transporte de grãos; aquisição de bens de informática e contratação de empresas de seguro-saúde para servidores - tudo sem licitação; e irregularidades na análise laboratorial para verificação de resíduos agrotóxicos em alimentos.

Em nota, o Ministério da Agricultura informou que recebeu o relatório e que o material será analisado e, dentro de dez dias, serão definidos os "encaminhamentos". Inquéritos na área administrativa devem ser instaurados para apuração das responsabilidades, mas, em alguns aspectos, o relatório poderia surtir efeitos imediatos. Por exemplo, se já não o foram, os cursos de treinamento ministrados pela Fundasp deveriam ser suspensos. E devem ser devolvidas as verbas pagas irregularmente, como recomenda a CGU. A Fundasp esclarece que, antes da conclusão da auditoria, já havia se colocado à disposição para devolver "os valores que tenham porventura sido recebidos indevidamente". Os números agora são fáceis de calcular. A Fundação recebeu R$ 5 milhões pelo convênio e, segundo o relatório, serviços de consultoria desnecessários prestados pela entidade geraram prejuízo de R$ 1,1 milhão aos cofres públicos.

A CGU também analisou denúncia de que o lobista teria pedido propina de 10% à Gráfica Brasil para assegurar a renovação de um contrato com o Ministério, sem que houvesse ao menos a demonstração da necessidade do serviço. O Ministério da Agricultura também poderia pedir reembolso desse dinheiro.

Quanto à Conab, a confirmação das denúncias feitas pela imprensa é da maior gravidade. O relatório afirma que a empresa Commerce Comércio de Grãos Ltda., registrada em nome de "laranjas", recebeu da Conab cerca de R$ 6,5 milhões em 2011 e outros R$ 916 mil em 2010. Os verdadeiros proprietários da Commerce possuem outras empresas, também em nome de "laranjas", que receberam mais de R$ 16,6 milhões.

A CGU considera "urgente" a reestruturação da área jurídica da Conab, cujo chefe já foi substituído, mas é estranhável que todo o restante da diretoria do órgão venha sendo mantida até hoje e que seus titulares não tenham se licenciado, pelo menos, enquanto são conduzidas as investigações nas esferas administrativa e policial. A CGU afirmou não poder confirmar denúncias de cobrança de propina por dirigentes da Conab, devendo para isso haver uma investigação policial, com a quebra de sigilos telefônico e bancário. As suspeitas, porém, são fortes, tanto assim que a CGU recomendou a "suspensão dos processos em curso para alienação de imóveis, até que novas diretrizes e avaliações sejam formuladas", e verificação dos preços pagos por serviços.

O ex-ministro Wagner Rossi e o ex-secretário executivo do Ministério da Agricultura Milton Ortolan não foram indiciados pela Polícia Federal e não se sabe nem mesmo se o lobista Júlio Fróes será chamado a depor. A apuração de responsabilidades depois da substituição de um ministro e seus auxiliares diretos, acusados de corrupção, é um avanço, mas há justificada desconfiança de que a impunidade acabe por prevalecer.