FOLHA DE SP - 24/07
Um aumento da oferta de papel pintado é incapaz de tornar a sociedade mais próspera
A devastação econômica produzida pelos gestores keynesianos da Nova Matriz Econômica do governo Dilma perdurará por um longo tempo. Em termos reais, a renda per capita em 2019 permanece 8% abaixo do nível de 2013.
É uma década perdida: serão necessários três anos de crescimento do PIB de 3% anuais tão somente para o brasileiro retomar a renda de 2013! Como de costume, o mais prejudicado é o pequeno que não encontra emprego, não consegue pagar suas contas e segue endividado.
A política econômica adotada por Guido Mantega e companhia desde 2009 assentou-se no drástico "estímulo da demanda agregada" por meio das políticas fiscal e monetária. Os gastos do governo cresceram bem acima da inflação e do PIB, e os bancos estatais e o BNDESlideraram uma expansão de crédito irresponsável com ajuda do BC. Em suma, a fórmula do governo foi imprimir e gastar, endividar-se e gastar ainda mais.
A inconsequente equipe econômica descumpriu até mesmo seus manuais keynesianos que recomendam tal receita apenas quando há substancial ociosidade produtiva. Longe disso, o PIB havia crescido 4% em média no triênio 2008-2010, indicando baixa ociosidade a despeito da "marolinha" herdada pela crise internacional de 2008.
Em razão do legado maldito das contas públicas, o Congresso responsavelmente instituiu o teto de gastos a partir de 2017 e agora deve aprovar a reforma da Previdência.
No entanto, os viúvos da Nova Matriz desejam ressuscitá-la. Mantega recomendou no fim do ano passado crédito abundante criado a partir do nada por bancos públicos. E seu ex-secretário-executivo Nelson Barbosa, em coluna da semana passada, nesta Folha, propôs alterar a Constituição e revogar o teto de gastos.
Deixo aqui duas lições de ciência econômica para gestores públicos.
Sobre política monetária, a lição 1: um aumento da oferta de papel pintado, ou seja, de moeda fiduciária tais como papel-moeda ou crédito, é incapaz de tornar a sociedade mais próspera.
Não é sabido que todo e qualquer banco central pode criar a quantidade de dinheiro e de crédito que desejar? Por que então ainda persiste pobreza no mundo? Devemos tentar a política hiperinflacionária de Maduro? Não, o Brasil aprendeu a lição 1 a duras penas. A impressão de papel pintado sem contrapartida em aumento de produção gera inflação de preços, lucros para os bancos e distribuição de renda de pobres para ricos.
Sobre política fiscal, a lição 2: cada tostão gasto pelo Tesouro saiu primeiro do bolso do povo.
O Tesouro não cria dinheiro. Se o governo consegue gastar R$ 1, é porque o tomou antes de um brasileiro, por meio de impostos ou voluntariamente por empréstimo, como no caso do Tesouro Direto. Ademais, tudo que houver contraído por empréstimos eventualmente repagará empregando impostos futuros, que sairão uma vez mais do bolso do brasileiro.
Portanto, se o governo consumar um gasto, terá necessariamente frustrado gasto do brasileiro em igual montante. Se o governo gasta, eu, você, nós deixamos de gastar. Os efeitos se cancelam, e não há estímulo agregado para a economia.
O gasto politicamente decidido beneficia quem o embolsar, mas você deixa de ter o dinheiro que atenderia sua necessidade mais urgente. Essa não parece ser uma boa fórmula para a prosperidade do brasileiro, embora até o seja para o governante.
Sob essa ótica, a liberação do FGTS em análise é positiva. O FGTS, poupança forçada, é direcionada por critérios políticos para o setor de construção. O cotista do fundo, o trabalhador, faria melhor uso do recurso. Há dúvida? Convém ouvir o cotista.
Helio Beltrão
Engenheiro com especialização em finanças e MBA na universidade Columbia, é presidente do instituto Mises Brasil.
quarta-feira, julho 24, 2019
Se Jesus der certo no Fla, incomodará críticos de Sampaoli - TOSTÃO
FOLHA DE SP - 24/07
Técnico do Santos é o que melhor une desempenho e resultado
Uma correção: na última coluna, citei Ziraldo como o criador do personagem Ubaldo, o paranoico. Não é dele. É de Henfil.
No futebol brasileiro, aumentaram as bem-vindas discussões sobre desempenho e resultado e sobre as estratégias usadas pelos treinadores, algumas, modernas e eficientes, e outras, obsoletas, viciadas.
Não podemos perder o senso crítico nem o bom senso. Uma situação é a desconexão, esporádica ou em poucas seguidas partidas, entre o desempenho e o resultado. Outra é a falada desvinculação, mesmo a médio e longo prazo, às vezes, em todo o campeonato, entre jogar bem e ganhar. Isso não existe. Times que conseguem grandes resultados, por um tempo maior, possuem também ótimo desempenho.
O Palmeiras, por ter ficado 33 jogos sem perder no Brasileiro, teve, obrigatoriamente, na média, um ótimo desempenho, de acordo com suas características, que podemos gostar ou não. Prefiro outro estilo. Nas vitórias, tão ou mais importante que o conceito e as características de jogo é a capacidade de os jogadores executarem bem o que foi planejado.
Mesmo que o Palmeiras tenha perdido nesta terça (23), na Argentina, para o Godoy Cruz, pela Libertadores, as duras críticas de torcedores e de parte da imprensa por causa de duas derrotas são incompreensíveis após a longa invencibilidade no Brasileiro, além de ter sido o primeiro colocado geral da fase de grupos da Libertadores.
Já o Fluminense, dirigido por Fernando Diniz, independentemente do jogo de terça, contra o Peñarol, pela Copa Sul-Americana, assim como era o Athletico, comandado pelo mesmo treinador, tem resultados ruins, por um bom tempo, porque, ao contrário do que ouço todos os dias, o desempenho é também fraco. Jogar bem não é apenas trocar passes e ter muita posse de bola. Falta equilíbrio, melhor marcação, pois os defensores, raramente, são protegidos por três ou quatro do meio-campo, e ataques eficientes, pelo pouco número de infiltrações na área.
Evidentemente, desempenho e resultado têm a ver com qualidade individual. O Fluminense tem um elenco mediano, porém, superior a várias equipes que estão à sua frente no Brasileiro. Poucos times têm uma dupla, como Ganso e Pedro.
No futebol e em todas as atividades, muitas pessoas, para mostrar sua indignação com determinados conceitos e preconceitos, agem de maneira oposta, radical, como se tivesse de ser uma coisa ou outra. Ao criticar a estratégia de muitos treinadores brasileiros —faço isso há mais de 20 anos—, alguns comentaristas e torcedores passam a exaltar, exageradamente, o que é diferente. Fernando Diniz, uma promessa ainda inconsistente, é tratado como se fosse um revolucionário.
No Brasileiro, Sampaoli é, até o momento, o técnico que melhor une desempenho e resultado e que joga futebol de uma maneira prazerosa, com muitas variações táticas, mesmo com um elenco pequeno e inferior ao de vários outros grandes do Brasil. Sampaoli não é um bom técnico porque é estrangeiro. Ele é bom, porque é criativo, ousado e inquieto, embora sua agitação, às vezes, prejudique o desempenho do time.
Alguns treinadores brasileiros estão incomodados com Sampaoli. Ficarão ainda mais se Jorge Jesus der certo no Flamengo. É uma mistura de ambição com inveja, dois sentimentos habituais e compreensíveis, desde que não prejudiquem ninguém e não atinjam níveis inaceitáveis e antiéticos. Parafraseando Caetano Veloso, "de perto, ninguém é santo".
Tostão
Cronista esportivo, participou como jogador das Copas de 1966 e 1970. É formado em medicina.
Técnico do Santos é o que melhor une desempenho e resultado
Uma correção: na última coluna, citei Ziraldo como o criador do personagem Ubaldo, o paranoico. Não é dele. É de Henfil.
No futebol brasileiro, aumentaram as bem-vindas discussões sobre desempenho e resultado e sobre as estratégias usadas pelos treinadores, algumas, modernas e eficientes, e outras, obsoletas, viciadas.
Não podemos perder o senso crítico nem o bom senso. Uma situação é a desconexão, esporádica ou em poucas seguidas partidas, entre o desempenho e o resultado. Outra é a falada desvinculação, mesmo a médio e longo prazo, às vezes, em todo o campeonato, entre jogar bem e ganhar. Isso não existe. Times que conseguem grandes resultados, por um tempo maior, possuem também ótimo desempenho.
O Palmeiras, por ter ficado 33 jogos sem perder no Brasileiro, teve, obrigatoriamente, na média, um ótimo desempenho, de acordo com suas características, que podemos gostar ou não. Prefiro outro estilo. Nas vitórias, tão ou mais importante que o conceito e as características de jogo é a capacidade de os jogadores executarem bem o que foi planejado.
Mesmo que o Palmeiras tenha perdido nesta terça (23), na Argentina, para o Godoy Cruz, pela Libertadores, as duras críticas de torcedores e de parte da imprensa por causa de duas derrotas são incompreensíveis após a longa invencibilidade no Brasileiro, além de ter sido o primeiro colocado geral da fase de grupos da Libertadores.
Já o Fluminense, dirigido por Fernando Diniz, independentemente do jogo de terça, contra o Peñarol, pela Copa Sul-Americana, assim como era o Athletico, comandado pelo mesmo treinador, tem resultados ruins, por um bom tempo, porque, ao contrário do que ouço todos os dias, o desempenho é também fraco. Jogar bem não é apenas trocar passes e ter muita posse de bola. Falta equilíbrio, melhor marcação, pois os defensores, raramente, são protegidos por três ou quatro do meio-campo, e ataques eficientes, pelo pouco número de infiltrações na área.
Evidentemente, desempenho e resultado têm a ver com qualidade individual. O Fluminense tem um elenco mediano, porém, superior a várias equipes que estão à sua frente no Brasileiro. Poucos times têm uma dupla, como Ganso e Pedro.
No futebol e em todas as atividades, muitas pessoas, para mostrar sua indignação com determinados conceitos e preconceitos, agem de maneira oposta, radical, como se tivesse de ser uma coisa ou outra. Ao criticar a estratégia de muitos treinadores brasileiros —faço isso há mais de 20 anos—, alguns comentaristas e torcedores passam a exaltar, exageradamente, o que é diferente. Fernando Diniz, uma promessa ainda inconsistente, é tratado como se fosse um revolucionário.
No Brasileiro, Sampaoli é, até o momento, o técnico que melhor une desempenho e resultado e que joga futebol de uma maneira prazerosa, com muitas variações táticas, mesmo com um elenco pequeno e inferior ao de vários outros grandes do Brasil. Sampaoli não é um bom técnico porque é estrangeiro. Ele é bom, porque é criativo, ousado e inquieto, embora sua agitação, às vezes, prejudique o desempenho do time.
Alguns treinadores brasileiros estão incomodados com Sampaoli. Ficarão ainda mais se Jorge Jesus der certo no Flamengo. É uma mistura de ambição com inveja, dois sentimentos habituais e compreensíveis, desde que não prejudiquem ninguém e não atinjam níveis inaceitáveis e antiéticos. Parafraseando Caetano Veloso, "de perto, ninguém é santo".
Tostão
Cronista esportivo, participou como jogador das Copas de 1966 e 1970. É formado em medicina.
Vamos esquecer o nome CPMF e fazer o E-tax, diz dono da Riachuelo - ENTREVISTA COM FLÁVIO ROCHA
FOLHA DE SP - 24/07
Empresário afirma que IVA é proposta dos anos 1980 de acadêmico que nunca encostou a barriga no balcão
O empresário Flávio Rocha, da Riachuelo, defende uma proposta de reforma tributária com um imposto único sobre movimentação financeira, que vem sendo atrelado à ideia da CPMF.
O antigo “imposto do cheque”, como era conhecida a CPMF, ficou estigmatizado e precisará mudar de nome, para E-tax, segundo Rocha.
Mas é um modelo que elimina distorções e combate a informalidade porque atinge todas as transações, mesmo as irregulares, avalia o empresário. É o “imposto do futuro”, segundo ele.
Rocha critica a outra via, tocada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP) na Câmara com base no modelo pensado pelo economista Bernarda Appy, do IVA (Imposto sobre Valor Agregado).
Como o sr. vê esse surgimento de tantas propostas de reforma tributária?
Há dois caminhos. Um é o imposto da economia uberizada, da economia não linear. O outro é o IVA, que é um imposto dos anos 1980, quando a economia era linear.
O IVA pressupõe um imposto declaratório de alta complexidade em que o governo precisa rastrear milhares de deslocamentos físicos da mercadoria, entre a confecção e a loja.
O caminhão de algodão vai para a fiação e depois vem a tecelagem, depois o caminhão de tecido vai para a confecção e sai um outro que vai para a loja. Mas hoje a economia é uberizada. Há uma demanda estratificada e uma oferta estratificada, com a tecnologia fazendo milhões de conexões.
Por exemplo?
Você vai no Mercado Livre. Eu entrei aqui, tinha Rolex de R$ 150. Está crescendo violentamente o roubo de carga, porque hoje você tem escoamento fácil para todo tipo de mercadoria.
As empresas C to C se dizem apenas uma plataforma de comunicação. Essa operação é imune a IVA porque não identifica o fluxo de mercadoria. Mas poderia ser tributado na transação porque tudo acontece no sistema bancário.
O modelo de vocês vai atingir as transações feitas entre familiares? O filho que pede R$ 500 para o pai?
Sim. O que estamos propondo funcionou magistralmente, apesar do estigma que se criou. E durante 12 anos foi o imposto com o menor impacto e menor distorção na economia.
Vamos deixar de lado esse nome que está estigmatizado, que é CPMF. Seria o E-tax, que é uma marca mais moderninha, mais simpática.
Em 12 anos, é o único imposto que não tem contencioso. É a adoção da base mais universal que existe, que é a soma de todos os débitos e créditos eletrônicos.
Você deixa de falar de base de R$ 10 a R$ 30 bilhões e passa a falar de base de trilhões de reais.
Por isso você deixa de falar de alíquotas de 17%, 18%, horripilantes 25%, como Bernard Appy está falando, e dizem que vai ser até mais. É uma coisa devastadora. Isso vai ser um desastre. Isso vai ter um efeito na volta da informalidade.
Mas também falam isso do modelo de vocês?
Mas eu estou falando de um imposto de zero vírgula alguma coisa. Ele está falando de imposto de 25%. É uma proposta de um acadêmico que nunca encostou a barriga no balcão e está anos-luz da realidade de mercado.
Fiquei assustado com a ingenuidade da proposta. Não tem a menor possibilidade de ser colocada em prática. Cada elo da cadeia produtiva tem um grau de tolerância ao desaforo tributário. É a curva de Laffer.
Chega a um momento em que compromete a arrecadação?
Teve notícia do Rio de Janeiro baixando a alíquota do ICMS de bares e restaurantes de 12% para 4%, coisa que São Paulo fez há alguns anos e teve aumento de arrecadação. Isso é a curva de Laffer já na fase descendente.
Esse imposto já tinha avançado o sinal. Por que o restaurante é 4% e telecomunicação é 40% em alguns casos?
Alguns setores são muito fronteiriços com a informalidade. Uma loja de calça e camisa na rua José Paulino tem um informal do lado, um camelô na frente. É uma coisa muito delicada. Qualquer ponto a mais mata essa empresa ou joga ela para a informalidade. Mata a competitividade.
Já o setor automobilístico tem um grau de tolerância ao desaforo tributário muito grande porque não tem indústria informal de carros.
O de vocês também é pesado porque tem o 2,8% em cada ponta?
Não é isso. Eu fui o autor da emenda do imposto único em 1993, quando o Marcos Cintra [hoje secretário especial da Receita Federal] era professor na FGV. Eu era um jovem deputado e transformei em uma emenda constitucional. Lá nasceu o nome de imposto único. E era 1%.
Hoje nós não sabemos ainda onde está o ápice da curva de Laffer desse imposto. Ele já foi testado a 0,38%, com uma performance fantástica e sem nenhuma distorção. É o imposto do futuro.
O governo gasta para cobrar os coitados dos contribuintes. Gasta para arrecadar. É uma loucura. A ideia é começar gradualmente. O Paulo Guedes falou em 0,6%.
E aí?
Nossa! Isso já dá para substituir contribuição patronal sobre a folha, dá para substituir PIS Confins. O Marcos Cintra mesmo diz [que] não existe ninguém que entenda de PIS/Cofins. Cada fiscal tem a sua interpretação.
Vai ser difícil vocês levarem adiante essa história de CPMF?
Tem que mudar o nome. Está estigmatizado, mas nós vamos explicar. Não vai ser CPMF. Eu vivi bem esse assunto. Houve quase um levante brasileiro, eu fui até candidato a presidente com essa bandeira lá atrás.
Havia muito desejo do imposto único. E foi também a maior frustração política da minha vida. De repente, o que era para ser imposto único virou o quinquagésimo nono imposto brasileiro. Isso foi uma frustração.
Por isso que a CPMF já nasceu com essa marca, e nas mãos de um governo gastador. Esse é o perigo desse imposto. Eu reconheço. Tem de ter as travas. Porque ele é um imposto indolor.
Na mão do governo gastador, você vai aumentando e quando vê está arrancando 50% do PIB [Produto Interno Bruto], porque ele é tão eficiente e tão indolor que você não percebe que está pagando.
Ele é um aspirador de pó que tem de ser usado com muita responsabilidade e travas para não passar de determinado patamar.
Vocês dizem que o modelo de vocês inibe a sonegação, mas ele também não pode levar para informalidade as transações?
Um imposto de 17%, como o ICMS, tem um senhor estímulo para migrar para informalidade. Mas esse imposto aqui é insonegável. Eu não sei até qual alíquota. Vamos ter de testar.
Mas garanto que até 1%, com certeza, ele é insonegável porque qualquer alternativa para se evadir do pagamento custa mais de 1%.
Como?
Se você hoje paga 3% ou 4% pela conveniência de usar o cartão de crédito no sistema bancário moderno, sem ter de andar com malas de dinheiro, porque é que você vai passar a andar com malas de dinheiro para economizar o 1% do imposto?
Se você começar a fazer como o Geddel [Vieira Lima, ex-ministro de Michel Temer] e botar um monte de dinheiro em casa, tem uma erosão, imposto inflacionário.
Eu não sei por que voltam nessa crítica. Isso mostra deslealdade intelectual.
Vocês estão se colocando nessa guerra de iniciativas de reforma tributária, com a proposta do movimento Brasil 200. Aonde vocês acham que vão chegar? Porque a proposta do governo é a do secretário Marcos Cinta, que já disse que a dele é outra?
É praticamente a mesma.
O Marcos Cintra já falou que a dele não é de vocês. O Senado tem uma outra e a Câmara tem outra?
Eu não vou entrar nessa briga fulanizada. Tem egos demais nesse negócio.
O vice-presidente Hamilton Mourão foi ao evento de lançamento da proposta de vocês do grupo de empresários Brasil 200, mais no dia seguinte disse que achava que isso não ia passar.
Para mim, essas propostas não têm rosto. Essa disputa não interessa.
Existe uma oportunidade de virada de página na metodologia, na tecnologia de financiamento do estado. Existe o risco de se investir em uma proposta de reforma tributária que tende a caminhar rapidamente para obsolescência porque é a proposta do imposto que fazia sentido para a economia dos anos 1980.
Segundo Appy, nenhum país do mundo que está usando o IVA está desembarcando.
Como existia a inflação inercial, existe também uma informalidade inercial. Qualquer deslize, essa informalidade aflora.
Nós tivemos uma grande conquista de redução da informalidade desde a substituição tributária. Setores como proteína animal, microinformática, tinham uma informalidade de 90%.
Com a substituição tributária, tirou a tributação do boteco da esquina, do restaurante, e trouxe a tributação para a Coca-Cola, para Ambev, que tem endereço conhecido, que é mais fácil de tributar.
Imagine o efeito de se acabar com a substituição tributária. O doutor Bernard Appy disse explicitamente que não vai mais tributar o contribuinte substituto.
Em vez da Nestlé, vão fiscalizar 4 milhões de pequenos mercados e botecos. É inexequível, é a volta galopante da informalidade. Imagine se a tributação da Coca-Cola for feita na ponta. Uma lata de Coca-Cola tem 75% de imposto, que é cobrado predominantemente na engarrafadora.
O IVA é um imposto sobre valor adicionado cobrado na ponta, no destino, que é o elo mais vulnerável da informalidade. É aí que se dá a concorrência desigual entre o formal e o informal.
O grupo Brasil 200 quer fazer manifestação em defesa da reforma tributária, como foi com a Previdência. Já foi um fenômeno ver as pessoas na rua pedindo a reforma da Previdência. Vamos ver pessoas na rua pedindo CPMF?
E-tax. CPMF eu não acredito, não. Mas, pelo E-tax, eu acho que vai. O eleitor acordou, galgou um novo patamar de cidadania. Deixou de ser um eleitor-súdito, pedinte do Estado, para ser o eleitor-cidadão.
Essa é a real mudança. A mudança não é ter eleito [Jair] Bolsonaro. Foi essa mudança de chave. É um eleitor consciente.
O modelo de vocês também vai tributar a doação de igreja que for feita no cartão de crédito?
A beleza desse imposto é ele ser universal. Não pode ter exceção para ele funcionar. A CPMF teve muitos problemas... Problemas não: foi o melhor imposto que a gente já teve, não gerou nenhuma distorção. Tudo aquilo que se dizia que ia acontecer, de integração vertical, que os bancos iam quebrar, nada disso aconteceu.
Então esse imposto tem de ser realmente universal, porque ele pega a igreja, mas pega a economia informal, pega a venda sem nota, pega doleiro, bicheiro, conta fantasma, o que for.
O sr. esteve com Appy. Que critica ele fez ao seu modelo?
Ele falou que é um imposto que gera distorções, imposto cumulativo. Estão criando chavões e estigmas.
Imposto cumulativo de alíquota baixa não é necessariamente ruim. Ruim é um imposto de alíquota alta em setor que tem informalidade. Muito mais perigoso do que um imposto de 1,5% cumulativo, mas que todo mundo paga.
Seu modelo beneficia empresas verticalizadas como a Riachuelo?
São empresas diferentes. A Guararapes vende para a Riachuelo. Tem transações. [Na cadeia, o fio é vendido para fazer o tecido] e depois faz o pano, depois vende para a Confecções Guararapes, que vende para a Riachuelo [empresas do grupo].
Nós temos o mesmo número de transações que tem uma Renner ou uma C&A, que compram de um fornecedor da malharia de Santa Catarina, que comprou o tecido não sei de quem, que comprou o fio não sei de quem.
Essa crítica foi feita lá atrás na CPMF, quando diziam que a indústria automobilística toda ia se integrar. As montadoras iam ter fábricas de pneus e autopeças. Nada disso aconteceu porque o efeito é muito pequeno.
O empresário Flávio Rocha, da Riachuelo, defende uma proposta de reforma tributária com um imposto único sobre movimentação financeira, que vem sendo atrelado à ideia da CPMF.
O antigo “imposto do cheque”, como era conhecida a CPMF, ficou estigmatizado e precisará mudar de nome, para E-tax, segundo Rocha.
Mas é um modelo que elimina distorções e combate a informalidade porque atinge todas as transações, mesmo as irregulares, avalia o empresário. É o “imposto do futuro”, segundo ele.
Rocha critica a outra via, tocada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP) na Câmara com base no modelo pensado pelo economista Bernarda Appy, do IVA (Imposto sobre Valor Agregado).
Como o sr. vê esse surgimento de tantas propostas de reforma tributária?
Há dois caminhos. Um é o imposto da economia uberizada, da economia não linear. O outro é o IVA, que é um imposto dos anos 1980, quando a economia era linear.
O IVA pressupõe um imposto declaratório de alta complexidade em que o governo precisa rastrear milhares de deslocamentos físicos da mercadoria, entre a confecção e a loja.
O caminhão de algodão vai para a fiação e depois vem a tecelagem, depois o caminhão de tecido vai para a confecção e sai um outro que vai para a loja. Mas hoje a economia é uberizada. Há uma demanda estratificada e uma oferta estratificada, com a tecnologia fazendo milhões de conexões.
Por exemplo?
Você vai no Mercado Livre. Eu entrei aqui, tinha Rolex de R$ 150. Está crescendo violentamente o roubo de carga, porque hoje você tem escoamento fácil para todo tipo de mercadoria.
As empresas C to C se dizem apenas uma plataforma de comunicação. Essa operação é imune a IVA porque não identifica o fluxo de mercadoria. Mas poderia ser tributado na transação porque tudo acontece no sistema bancário.
O modelo de vocês vai atingir as transações feitas entre familiares? O filho que pede R$ 500 para o pai?
Sim. O que estamos propondo funcionou magistralmente, apesar do estigma que se criou. E durante 12 anos foi o imposto com o menor impacto e menor distorção na economia.
Vamos deixar de lado esse nome que está estigmatizado, que é CPMF. Seria o E-tax, que é uma marca mais moderninha, mais simpática.
Em 12 anos, é o único imposto que não tem contencioso. É a adoção da base mais universal que existe, que é a soma de todos os débitos e créditos eletrônicos.
Você deixa de falar de base de R$ 10 a R$ 30 bilhões e passa a falar de base de trilhões de reais.
Por isso você deixa de falar de alíquotas de 17%, 18%, horripilantes 25%, como Bernard Appy está falando, e dizem que vai ser até mais. É uma coisa devastadora. Isso vai ser um desastre. Isso vai ter um efeito na volta da informalidade.
Mas também falam isso do modelo de vocês?
Mas eu estou falando de um imposto de zero vírgula alguma coisa. Ele está falando de imposto de 25%. É uma proposta de um acadêmico que nunca encostou a barriga no balcão e está anos-luz da realidade de mercado.
Fiquei assustado com a ingenuidade da proposta. Não tem a menor possibilidade de ser colocada em prática. Cada elo da cadeia produtiva tem um grau de tolerância ao desaforo tributário. É a curva de Laffer.
Chega a um momento em que compromete a arrecadação?
Teve notícia do Rio de Janeiro baixando a alíquota do ICMS de bares e restaurantes de 12% para 4%, coisa que São Paulo fez há alguns anos e teve aumento de arrecadação. Isso é a curva de Laffer já na fase descendente.
Esse imposto já tinha avançado o sinal. Por que o restaurante é 4% e telecomunicação é 40% em alguns casos?
Alguns setores são muito fronteiriços com a informalidade. Uma loja de calça e camisa na rua José Paulino tem um informal do lado, um camelô na frente. É uma coisa muito delicada. Qualquer ponto a mais mata essa empresa ou joga ela para a informalidade. Mata a competitividade.
Já o setor automobilístico tem um grau de tolerância ao desaforo tributário muito grande porque não tem indústria informal de carros.
O de vocês também é pesado porque tem o 2,8% em cada ponta?
Não é isso. Eu fui o autor da emenda do imposto único em 1993, quando o Marcos Cintra [hoje secretário especial da Receita Federal] era professor na FGV. Eu era um jovem deputado e transformei em uma emenda constitucional. Lá nasceu o nome de imposto único. E era 1%.
Hoje nós não sabemos ainda onde está o ápice da curva de Laffer desse imposto. Ele já foi testado a 0,38%, com uma performance fantástica e sem nenhuma distorção. É o imposto do futuro.
O governo gasta para cobrar os coitados dos contribuintes. Gasta para arrecadar. É uma loucura. A ideia é começar gradualmente. O Paulo Guedes falou em 0,6%.
E aí?
Nossa! Isso já dá para substituir contribuição patronal sobre a folha, dá para substituir PIS Confins. O Marcos Cintra mesmo diz [que] não existe ninguém que entenda de PIS/Cofins. Cada fiscal tem a sua interpretação.
Vai ser difícil vocês levarem adiante essa história de CPMF?
Tem que mudar o nome. Está estigmatizado, mas nós vamos explicar. Não vai ser CPMF. Eu vivi bem esse assunto. Houve quase um levante brasileiro, eu fui até candidato a presidente com essa bandeira lá atrás.
Havia muito desejo do imposto único. E foi também a maior frustração política da minha vida. De repente, o que era para ser imposto único virou o quinquagésimo nono imposto brasileiro. Isso foi uma frustração.
Por isso que a CPMF já nasceu com essa marca, e nas mãos de um governo gastador. Esse é o perigo desse imposto. Eu reconheço. Tem de ter as travas. Porque ele é um imposto indolor.
Na mão do governo gastador, você vai aumentando e quando vê está arrancando 50% do PIB [Produto Interno Bruto], porque ele é tão eficiente e tão indolor que você não percebe que está pagando.
Ele é um aspirador de pó que tem de ser usado com muita responsabilidade e travas para não passar de determinado patamar.
Vocês dizem que o modelo de vocês inibe a sonegação, mas ele também não pode levar para informalidade as transações?
Um imposto de 17%, como o ICMS, tem um senhor estímulo para migrar para informalidade. Mas esse imposto aqui é insonegável. Eu não sei até qual alíquota. Vamos ter de testar.
Mas garanto que até 1%, com certeza, ele é insonegável porque qualquer alternativa para se evadir do pagamento custa mais de 1%.
Como?
Se você hoje paga 3% ou 4% pela conveniência de usar o cartão de crédito no sistema bancário moderno, sem ter de andar com malas de dinheiro, porque é que você vai passar a andar com malas de dinheiro para economizar o 1% do imposto?
Se você começar a fazer como o Geddel [Vieira Lima, ex-ministro de Michel Temer] e botar um monte de dinheiro em casa, tem uma erosão, imposto inflacionário.
Eu não sei por que voltam nessa crítica. Isso mostra deslealdade intelectual.
Vocês estão se colocando nessa guerra de iniciativas de reforma tributária, com a proposta do movimento Brasil 200. Aonde vocês acham que vão chegar? Porque a proposta do governo é a do secretário Marcos Cinta, que já disse que a dele é outra?
É praticamente a mesma.
O Marcos Cintra já falou que a dele não é de vocês. O Senado tem uma outra e a Câmara tem outra?
Eu não vou entrar nessa briga fulanizada. Tem egos demais nesse negócio.
O vice-presidente Hamilton Mourão foi ao evento de lançamento da proposta de vocês do grupo de empresários Brasil 200, mais no dia seguinte disse que achava que isso não ia passar.
Para mim, essas propostas não têm rosto. Essa disputa não interessa.
Existe uma oportunidade de virada de página na metodologia, na tecnologia de financiamento do estado. Existe o risco de se investir em uma proposta de reforma tributária que tende a caminhar rapidamente para obsolescência porque é a proposta do imposto que fazia sentido para a economia dos anos 1980.
Segundo Appy, nenhum país do mundo que está usando o IVA está desembarcando.
Como existia a inflação inercial, existe também uma informalidade inercial. Qualquer deslize, essa informalidade aflora.
Nós tivemos uma grande conquista de redução da informalidade desde a substituição tributária. Setores como proteína animal, microinformática, tinham uma informalidade de 90%.
Com a substituição tributária, tirou a tributação do boteco da esquina, do restaurante, e trouxe a tributação para a Coca-Cola, para Ambev, que tem endereço conhecido, que é mais fácil de tributar.
Imagine o efeito de se acabar com a substituição tributária. O doutor Bernard Appy disse explicitamente que não vai mais tributar o contribuinte substituto.
Em vez da Nestlé, vão fiscalizar 4 milhões de pequenos mercados e botecos. É inexequível, é a volta galopante da informalidade. Imagine se a tributação da Coca-Cola for feita na ponta. Uma lata de Coca-Cola tem 75% de imposto, que é cobrado predominantemente na engarrafadora.
O IVA é um imposto sobre valor adicionado cobrado na ponta, no destino, que é o elo mais vulnerável da informalidade. É aí que se dá a concorrência desigual entre o formal e o informal.
O grupo Brasil 200 quer fazer manifestação em defesa da reforma tributária, como foi com a Previdência. Já foi um fenômeno ver as pessoas na rua pedindo a reforma da Previdência. Vamos ver pessoas na rua pedindo CPMF?
E-tax. CPMF eu não acredito, não. Mas, pelo E-tax, eu acho que vai. O eleitor acordou, galgou um novo patamar de cidadania. Deixou de ser um eleitor-súdito, pedinte do Estado, para ser o eleitor-cidadão.
Essa é a real mudança. A mudança não é ter eleito [Jair] Bolsonaro. Foi essa mudança de chave. É um eleitor consciente.
O modelo de vocês também vai tributar a doação de igreja que for feita no cartão de crédito?
A beleza desse imposto é ele ser universal. Não pode ter exceção para ele funcionar. A CPMF teve muitos problemas... Problemas não: foi o melhor imposto que a gente já teve, não gerou nenhuma distorção. Tudo aquilo que se dizia que ia acontecer, de integração vertical, que os bancos iam quebrar, nada disso aconteceu.
Então esse imposto tem de ser realmente universal, porque ele pega a igreja, mas pega a economia informal, pega a venda sem nota, pega doleiro, bicheiro, conta fantasma, o que for.
O sr. esteve com Appy. Que critica ele fez ao seu modelo?
Ele falou que é um imposto que gera distorções, imposto cumulativo. Estão criando chavões e estigmas.
Imposto cumulativo de alíquota baixa não é necessariamente ruim. Ruim é um imposto de alíquota alta em setor que tem informalidade. Muito mais perigoso do que um imposto de 1,5% cumulativo, mas que todo mundo paga.
Seu modelo beneficia empresas verticalizadas como a Riachuelo?
São empresas diferentes. A Guararapes vende para a Riachuelo. Tem transações. [Na cadeia, o fio é vendido para fazer o tecido] e depois faz o pano, depois vende para a Confecções Guararapes, que vende para a Riachuelo [empresas do grupo].
Nós temos o mesmo número de transações que tem uma Renner ou uma C&A, que compram de um fornecedor da malharia de Santa Catarina, que comprou o tecido não sei de quem, que comprou o fio não sei de quem.
Essa crítica foi feita lá atrás na CPMF, quando diziam que a indústria automobilística toda ia se integrar. As montadoras iam ter fábricas de pneus e autopeças. Nada disso aconteceu porque o efeito é muito pequeno.
As ameaças de tributar transações financeiras - MAÍLSON DA NÓBREGA
O Estado de S. Paulo - 24/07
Felizmente, parecem muito baixas as chances de vigorar a nova CPMF ou o imposto único
Renasceu a ideia de tributar as transações financeiras, uma incidência disfuncional e prejudicial à produtividade. Ela tem o patrocínio do secretário especial da Receita Federal, Marcos Cintra, que defende uma CPMF repaginada para compensar a eliminação de contribuições previdenciárias sobre a folha de pagamentos. Indo mais longe, um grupo de empresários, o Brasil 200, propõe a substituição do sistema tributário por um imposto único sobre transações financeiras. O impacto sobre a eficiência da economia passaria de negativo (no caso da proposta federal) a desastroso.
O imposto único sobre transações financeiras foi defendido pioneiramente na década de 1980 pelo economista americano Edgard Feige, da Universidade de Wisconsin-Madison. A ideia chegou ao Congresso dos Estados Unidos, mas foi rejeitada com base em parecer do Federal Reserve (o banco central norte-americano), que apontou seus inconvenientes econômicos e sociais.
Feige parece ter inspirado Cintra, que lançou a ideia no Brasil em 1989 e a tornou uma espécie de obsessão pessoal. Na época, o Ministério da Fazenda manifestou-se contrário à proposta, mas ela encantou parte do empresariado, que criou campanha em favor do imposto único. O empresário Flávio Rocha, ora membro do Brasil 200 e então deputado federal, apresentou emenda constitucional para adoção da medida – com base na qual se lançou candidato à Presidência da República nas eleições de 1994 –, da qual desistiu.
O imposto único prometia radical simplificação do sistema tributário e, assim, a redução dos custos de pagar impostos. A nova incidência, arrecadada nas transações financeiras, dispensaria formulários e outras obrigações. A Secretaria da Receita Federal seria extinta. A emenda não foi adiante. Eram muitos os seus graves defeitos.
O imposto único seria uma incidência cumulativa, em cascata, que impregnaria cada etapa do processo produtivo. Haveria incentivos para a integração vertical. As empresas procurariam reduzir ao máximo suas aquisições de insumos, promovendo internamente sua produção. Haveria séria redução da eficiência. Ficaria impossível desonerar as exportações, pois não se teria como calcular o imposto incidente na cadeia produtiva.
A medida atentaria contra a Federação, pois Estados e municípios passariam a depender exclusivamente da União para financiar seus orçamentos. Seria inconstitucional. Governadores e prefeitos combateriam a proposta. Mais, o imposto único agravaria as desigualdades, pois os pobres pagariam mais do que os ricos como proporção de sua renda.
Sob o aspecto creditício, ao incidir sobre as transações com uma alíquota de 2,5% nos recebimentos e pagamentos, o imposto único criaria uma cunha de 5% sobre o custo dessas transações. O spread bancário, já em si alto, aumentaria ainda mais. A elevação da taxa de juros ao tomador final pioraria a atividade de produzir bens e serviços, com efeitos deletérios sobre a produtividade da economia. O Brasil 200 reivindica uma medida suicida.
Desde a criação do Imposto de Renda, a grande inovação foi o imposto de consumo sobre o valor agregado em cada etapa do processo produtivo (IVA). Implementado inicialmente na França em 1954, o IVA permitiu a completa eliminação da cumulatividade, incentivando ampla descentralização econômica. Seu efeito positivo na eficiência e na produtividade inspirou vários países a adotá-lo. Hoje, o IVA é adotado em mais de 160 países e se tornou a regra na União Europeia.
Flávio Rocha voltou a defender o imposto único. Em artigo na Folha de S.Paulo (11/7) tachou o IVA de imposto de nossos avós. Foi sua resposta ao projeto de emenda constitucional do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), que prevê a criação do imposto sobre bens e serviços (IBS), uma espécie de IVA. Sua base é o estudo realizado pelo Centro de Cidadania Fiscal, liderado pelo economista Bernard Appy.
Nenhum país cogitou de substituir o “avô” IVA por um imposto único sobre transações financeiras. Muito recentemente (2018) a Índia implementou um IVA moderno, em substituição ao caótico sistema de tributação do consumo. Estima-se que a medida tenha acrescentado dois pontos porcentuais ao PIB potencial indiano.
Rocha defende o imposto único, por ele agora denominado e-tax. Para ele, “com uma economia cada vez mais uberizada, não faz sentido se cogitar uma tributação dos tempos das charretes”. Seu entusiasmo se baseia na ideia de que a revolução digital teria aposentado as formas tradicionais de cobrança de impostos. E isso poderia implicar, como se dizia antes, a extinção da Secretaria da Receita Federal.
A era digital está revolucionando o sistema de pagamentos e a forma de produzir, comprar e vender, mas os atos comerciais continuam os mesmos. As pessoas adquirem bens e serviços de consumo e investimento exatamente como antes, apenas de forma mais eficiente. As compras de pão, leite, vestuário, eletrônicos, automóveis e da ampla gama de serviços passaram a ser feitas mediante o uso de cartões de crédito ou débito, via comércio eletrônico e pelo uso de códigos QR. Mas, do mesmo jeito, elas continuam agregando valor em cada etapa do processo produtivo.
Acresce notar que nenhum país, nem mesmo os desenvolvidos e a China, onde se originou e evoluiu a revolução digital, e onde é vasta a produção acadêmica associada ao tema, até hoje tenha discutido a criação de uma e-tax. Eles não perdem tempo com ideias esfuziantes, mas injustificáveis e perigosas. Do lado federal, custa a crer que uma equipe econômica composta de liberais e ultraliberais apoie a recriação da CPMF. O próprio presidente rejeitou a ideia.
Por tudo isso parecem muito baixas, felizmente, as chances de vigorar a nova CPMF ou a barbaridade do imposto único.
Renasceu a ideia de tributar as transações financeiras, uma incidência disfuncional e prejudicial à produtividade. Ela tem o patrocínio do secretário especial da Receita Federal, Marcos Cintra, que defende uma CPMF repaginada para compensar a eliminação de contribuições previdenciárias sobre a folha de pagamentos. Indo mais longe, um grupo de empresários, o Brasil 200, propõe a substituição do sistema tributário por um imposto único sobre transações financeiras. O impacto sobre a eficiência da economia passaria de negativo (no caso da proposta federal) a desastroso.
O imposto único sobre transações financeiras foi defendido pioneiramente na década de 1980 pelo economista americano Edgard Feige, da Universidade de Wisconsin-Madison. A ideia chegou ao Congresso dos Estados Unidos, mas foi rejeitada com base em parecer do Federal Reserve (o banco central norte-americano), que apontou seus inconvenientes econômicos e sociais.
Feige parece ter inspirado Cintra, que lançou a ideia no Brasil em 1989 e a tornou uma espécie de obsessão pessoal. Na época, o Ministério da Fazenda manifestou-se contrário à proposta, mas ela encantou parte do empresariado, que criou campanha em favor do imposto único. O empresário Flávio Rocha, ora membro do Brasil 200 e então deputado federal, apresentou emenda constitucional para adoção da medida – com base na qual se lançou candidato à Presidência da República nas eleições de 1994 –, da qual desistiu.
O imposto único prometia radical simplificação do sistema tributário e, assim, a redução dos custos de pagar impostos. A nova incidência, arrecadada nas transações financeiras, dispensaria formulários e outras obrigações. A Secretaria da Receita Federal seria extinta. A emenda não foi adiante. Eram muitos os seus graves defeitos.
O imposto único seria uma incidência cumulativa, em cascata, que impregnaria cada etapa do processo produtivo. Haveria incentivos para a integração vertical. As empresas procurariam reduzir ao máximo suas aquisições de insumos, promovendo internamente sua produção. Haveria séria redução da eficiência. Ficaria impossível desonerar as exportações, pois não se teria como calcular o imposto incidente na cadeia produtiva.
A medida atentaria contra a Federação, pois Estados e municípios passariam a depender exclusivamente da União para financiar seus orçamentos. Seria inconstitucional. Governadores e prefeitos combateriam a proposta. Mais, o imposto único agravaria as desigualdades, pois os pobres pagariam mais do que os ricos como proporção de sua renda.
Sob o aspecto creditício, ao incidir sobre as transações com uma alíquota de 2,5% nos recebimentos e pagamentos, o imposto único criaria uma cunha de 5% sobre o custo dessas transações. O spread bancário, já em si alto, aumentaria ainda mais. A elevação da taxa de juros ao tomador final pioraria a atividade de produzir bens e serviços, com efeitos deletérios sobre a produtividade da economia. O Brasil 200 reivindica uma medida suicida.
Desde a criação do Imposto de Renda, a grande inovação foi o imposto de consumo sobre o valor agregado em cada etapa do processo produtivo (IVA). Implementado inicialmente na França em 1954, o IVA permitiu a completa eliminação da cumulatividade, incentivando ampla descentralização econômica. Seu efeito positivo na eficiência e na produtividade inspirou vários países a adotá-lo. Hoje, o IVA é adotado em mais de 160 países e se tornou a regra na União Europeia.
Flávio Rocha voltou a defender o imposto único. Em artigo na Folha de S.Paulo (11/7) tachou o IVA de imposto de nossos avós. Foi sua resposta ao projeto de emenda constitucional do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), que prevê a criação do imposto sobre bens e serviços (IBS), uma espécie de IVA. Sua base é o estudo realizado pelo Centro de Cidadania Fiscal, liderado pelo economista Bernard Appy.
Nenhum país cogitou de substituir o “avô” IVA por um imposto único sobre transações financeiras. Muito recentemente (2018) a Índia implementou um IVA moderno, em substituição ao caótico sistema de tributação do consumo. Estima-se que a medida tenha acrescentado dois pontos porcentuais ao PIB potencial indiano.
Rocha defende o imposto único, por ele agora denominado e-tax. Para ele, “com uma economia cada vez mais uberizada, não faz sentido se cogitar uma tributação dos tempos das charretes”. Seu entusiasmo se baseia na ideia de que a revolução digital teria aposentado as formas tradicionais de cobrança de impostos. E isso poderia implicar, como se dizia antes, a extinção da Secretaria da Receita Federal.
A era digital está revolucionando o sistema de pagamentos e a forma de produzir, comprar e vender, mas os atos comerciais continuam os mesmos. As pessoas adquirem bens e serviços de consumo e investimento exatamente como antes, apenas de forma mais eficiente. As compras de pão, leite, vestuário, eletrônicos, automóveis e da ampla gama de serviços passaram a ser feitas mediante o uso de cartões de crédito ou débito, via comércio eletrônico e pelo uso de códigos QR. Mas, do mesmo jeito, elas continuam agregando valor em cada etapa do processo produtivo.
Acresce notar que nenhum país, nem mesmo os desenvolvidos e a China, onde se originou e evoluiu a revolução digital, e onde é vasta a produção acadêmica associada ao tema, até hoje tenha discutido a criação de uma e-tax. Eles não perdem tempo com ideias esfuziantes, mas injustificáveis e perigosas. Do lado federal, custa a crer que uma equipe econômica composta de liberais e ultraliberais apoie a recriação da CPMF. O próprio presidente rejeitou a ideia.
Por tudo isso parecem muito baixas, felizmente, as chances de vigorar a nova CPMF ou a barbaridade do imposto único.
Boom de negócios virá quando preço do gás cair pela metade - PAULO PEDROSA
FOLHA DE SP - 24/07
Como na Previdência, precisamos buscar a modernidade e olhar para a população
O que o governo anuncia nesta semana com a abertura domercado do gás é a melhor notícia para a economia brasileira.
Os benefícios deste movimento não ficam só no segmento da energia e podem se expandir para vários setores da economia.
O que acontece é emblemático das escolhas que o Brasil fez nos últimos anos.
Como na Previdência, o país precisa buscar o caminho da modernidade e olhar para a sua população, que quer emprego, renda e desenvolvimento.
A nova onda de oferta de gás natural que vai chegar com o pré-sal nos próximos anos pode mudar a paisagem da indústria brasileira, que viu o consumo desse insumo permanecer estagnado desde 2011.
As altas tarifas, maiores do que em países como Argentina, México, Estados Unidos e Reino Unido, explicam por que o setor produtivo nacional, para conseguir produzir, substitui o gás por insumos alternativos e mais poluentes, como óleo combustível ou carvão.
Além disso, o custo competitivo pode gerar 4 milhões de empregos.
O modelo que funcionou até hoje é baseado em uma lógica antiga, de país importador.
O gás é considerado uma alternativa aos combustíveis fósseis e tem uma regulação que estimula sua universalização por meio de subsídios cruzados, garantindo a remuneração dos ativos e aumentando custos aos consumidores.
Agora, com o olhar de modernidade, o Brasil passa a promover o crescimento do consumo pela lógica da competição, a partir do pré-sal, que dobrará a oferta disponível em território nacional.
O movimento do governo é decisivo para garantir que, em vez de ser reinjetado, ou liquefeito e exportado, o gás do pré-sal venha para o país, gerando riquezas e emprego.
Para mudar o atual quadro, é inegável a necessidade de aprimorar a regulação dos monopólios naturais e gerar competição para tornar o uso do insumo economicamente viável.
Em um país que, no setor de energia, houve muito desrespeito à racionalidade, a ação do governo para o mercado de gás se suporta justamente na valorização da lógica econômica.
Decisões voluntárias de produtores e consumidores precisarão ser tomadas e materializadas em contratos privados, de forma que façam sentido para vendedores e compradores.
De um lado, a opção dos produtores tem de ser segura e mais rentável do que a simples reinjeção ou exportação. De outro, o gás só será comprado pela indústria se garantir a produção a um preço que desloque o concorrente importado e permita que se olhe para o mercado internacional.
Da mesma forma, a produção de energia elétrica a partir de gás deve se mostrar competitiva frente às inovações do setor e a redução do custo das renováveis.
Hoje o MMBTU (unidade térmica usada como unidade de medida da energia para o gás) está em cerca de US$ 14. Avaliações econômicas demonstram que os negócios se darão na faixa entre US$ 3,50 e US$ 8/MMBTU.
Para que isso aconteça, distribuição e transporte terão de evoluir da lógica atual, que promove a ociosidade dos ativos, para a de sua racionalização e ganhos de escala.
Será isso ou seremos condenados a repetir o passado, ter um crescimento marginal do mercado de gás e fazer do Brasil um país exportador de desenvolvimento.
Presidente da Abrace (associação dos grandes consumidores de energia) e ex-secretário do MME
Como na Previdência, precisamos buscar a modernidade e olhar para a população
O que o governo anuncia nesta semana com a abertura domercado do gás é a melhor notícia para a economia brasileira.
Os benefícios deste movimento não ficam só no segmento da energia e podem se expandir para vários setores da economia.
O que acontece é emblemático das escolhas que o Brasil fez nos últimos anos.
Como na Previdência, o país precisa buscar o caminho da modernidade e olhar para a sua população, que quer emprego, renda e desenvolvimento.
A nova onda de oferta de gás natural que vai chegar com o pré-sal nos próximos anos pode mudar a paisagem da indústria brasileira, que viu o consumo desse insumo permanecer estagnado desde 2011.
As altas tarifas, maiores do que em países como Argentina, México, Estados Unidos e Reino Unido, explicam por que o setor produtivo nacional, para conseguir produzir, substitui o gás por insumos alternativos e mais poluentes, como óleo combustível ou carvão.
Além disso, o custo competitivo pode gerar 4 milhões de empregos.
O modelo que funcionou até hoje é baseado em uma lógica antiga, de país importador.
O gás é considerado uma alternativa aos combustíveis fósseis e tem uma regulação que estimula sua universalização por meio de subsídios cruzados, garantindo a remuneração dos ativos e aumentando custos aos consumidores.
Agora, com o olhar de modernidade, o Brasil passa a promover o crescimento do consumo pela lógica da competição, a partir do pré-sal, que dobrará a oferta disponível em território nacional.
O movimento do governo é decisivo para garantir que, em vez de ser reinjetado, ou liquefeito e exportado, o gás do pré-sal venha para o país, gerando riquezas e emprego.
Para mudar o atual quadro, é inegável a necessidade de aprimorar a regulação dos monopólios naturais e gerar competição para tornar o uso do insumo economicamente viável.
Em um país que, no setor de energia, houve muito desrespeito à racionalidade, a ação do governo para o mercado de gás se suporta justamente na valorização da lógica econômica.
Decisões voluntárias de produtores e consumidores precisarão ser tomadas e materializadas em contratos privados, de forma que façam sentido para vendedores e compradores.
De um lado, a opção dos produtores tem de ser segura e mais rentável do que a simples reinjeção ou exportação. De outro, o gás só será comprado pela indústria se garantir a produção a um preço que desloque o concorrente importado e permita que se olhe para o mercado internacional.
Da mesma forma, a produção de energia elétrica a partir de gás deve se mostrar competitiva frente às inovações do setor e a redução do custo das renováveis.
Hoje o MMBTU (unidade térmica usada como unidade de medida da energia para o gás) está em cerca de US$ 14. Avaliações econômicas demonstram que os negócios se darão na faixa entre US$ 3,50 e US$ 8/MMBTU.
Para que isso aconteça, distribuição e transporte terão de evoluir da lógica atual, que promove a ociosidade dos ativos, para a de sua racionalização e ganhos de escala.
Será isso ou seremos condenados a repetir o passado, ter um crescimento marginal do mercado de gás e fazer do Brasil um país exportador de desenvolvimento.
Presidente da Abrace (associação dos grandes consumidores de energia) e ex-secretário do MME
A hora da responsabilidade - HENRIQUE MEIRELES
O GLOBO - 24/07
Um passo imprescindível é reincluir os estados na reforma
Depois de ampla negociação entre diferentes atores políticos, finalmente foi aprovada, em primeiro turno na Câmara dos Deputados, a reforma da Previdência, marcando um avanço muito importante para o país. Uma grande notícia para o Brasil. Dentre os méritos do texto aprovado, o mais relevante é que manteve uma economia robusta.
Apesar disso, nem tudo merece ser comemorado. A não inclusão de estados e municípios no texto final traz consequências muito negativas para o país. É importante revertê-la se quisermos evitar graves problemas fiscais nos próximos anos.
Na proposta original, o pacote para estados e municípios era significativo: traria uma economia de R$ 350 bilhões em dez anos, somente para estados, segundo estimativas do Ministério da Economia. Algo, portanto, que poderia aumentar o ganho de todo o setor público com a reforma em mais de 40%.
Mas a relevância não se dá somente pela economia. Muitos estados brasileiros vivem uma situação fiscal grave. Para vários deles, há alguns anos as despesas superam as receitas, o que acaba resultando no atraso de salários, queda nos investimentos e retração na oferta de serviços públicos de qualidade.
Segundo dados do Tesouro Nacional, são 14 os estados que não atendem ao limite de despesa com pessoal definidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, de 60% da receita. Na verdade, nos casos mais dramáticos, esse comprometimento chega a 80%, indicando que sobram pouquíssimos recursos para outros gastos do governo além de pagar salários e aposentadorias.
Olhando para essa métrica, felizmente o Estado de São Paulo pode se orgulhar: tem a menor relação dentre todos os estados. Nossas contas estão equilibradas, diferentemente da maioria das unidades da Federação. No entanto, São Paulo também terá problemas se não fizermos hoje a reforma da Previdência estadual.
Nos últimos anos, além do gasto com servidores ativos, a despesa com inativos também se tornou um problema grave para os estados e municípios. Isso ocorre porque grande parte de seus funcionários tem direito a aposentadorias especiais.
É por isso que o déficit da Previdência nos estados tem crescido substancialmente nos últimos anos. Esse déficit, que representava algo como 0,4% do PIB entre 2007 e 2010, já alcança 1,4% do PIB, segundo dados oficiais. Para os próximos anos, a tendência é de piora, em linha com o envelhecimento da população. Em realidade, alguns estados já possuem mais servidores na aposentadoria do que em atividade.
É importante lembrar que o desequilíbrio nas contas públicas estaduais não é novidade. Nos últimos anos, renegociamos a dívida dos estados com a União, alongando por 20 anos e reduzindo as parcelas com juros por 24 meses. Criamos o Regime de Recuperação Fiscal, desenhado sob medida para atender àqueles entes em pior situação fiscal. Recentemente, o governo federal voltou a socorrê-los, através da criação do Plano de Equilíbrio Fiscal, que busca dar um alívio de curto prazo para estados com problemas mais graves.
Essas soluções, sempre temporárias e emergenciais, poderão continuar sendo demandadas nos próximos anos caso não aproveitemos a oportunidade, que temos hoje, de realizar um ajuste mais estrutural nas finanças públicas subnacionais. Portanto, se quisermos solucionar de fato o problema fiscal do Brasil, voltando a pagar contas em dia e oferecer serviços de maior qualidade à população, um passo imprescindível é reincluir os estados na reforma. Chegou a hora da responsabilidade.
Henrique Meirelles é secretário de Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo e foi ministro da Fazenda e presidente do Banco Central
Um passo imprescindível é reincluir os estados na reforma
Depois de ampla negociação entre diferentes atores políticos, finalmente foi aprovada, em primeiro turno na Câmara dos Deputados, a reforma da Previdência, marcando um avanço muito importante para o país. Uma grande notícia para o Brasil. Dentre os méritos do texto aprovado, o mais relevante é que manteve uma economia robusta.
Apesar disso, nem tudo merece ser comemorado. A não inclusão de estados e municípios no texto final traz consequências muito negativas para o país. É importante revertê-la se quisermos evitar graves problemas fiscais nos próximos anos.
Na proposta original, o pacote para estados e municípios era significativo: traria uma economia de R$ 350 bilhões em dez anos, somente para estados, segundo estimativas do Ministério da Economia. Algo, portanto, que poderia aumentar o ganho de todo o setor público com a reforma em mais de 40%.
Mas a relevância não se dá somente pela economia. Muitos estados brasileiros vivem uma situação fiscal grave. Para vários deles, há alguns anos as despesas superam as receitas, o que acaba resultando no atraso de salários, queda nos investimentos e retração na oferta de serviços públicos de qualidade.
Segundo dados do Tesouro Nacional, são 14 os estados que não atendem ao limite de despesa com pessoal definidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, de 60% da receita. Na verdade, nos casos mais dramáticos, esse comprometimento chega a 80%, indicando que sobram pouquíssimos recursos para outros gastos do governo além de pagar salários e aposentadorias.
Olhando para essa métrica, felizmente o Estado de São Paulo pode se orgulhar: tem a menor relação dentre todos os estados. Nossas contas estão equilibradas, diferentemente da maioria das unidades da Federação. No entanto, São Paulo também terá problemas se não fizermos hoje a reforma da Previdência estadual.
Nos últimos anos, além do gasto com servidores ativos, a despesa com inativos também se tornou um problema grave para os estados e municípios. Isso ocorre porque grande parte de seus funcionários tem direito a aposentadorias especiais.
É por isso que o déficit da Previdência nos estados tem crescido substancialmente nos últimos anos. Esse déficit, que representava algo como 0,4% do PIB entre 2007 e 2010, já alcança 1,4% do PIB, segundo dados oficiais. Para os próximos anos, a tendência é de piora, em linha com o envelhecimento da população. Em realidade, alguns estados já possuem mais servidores na aposentadoria do que em atividade.
É importante lembrar que o desequilíbrio nas contas públicas estaduais não é novidade. Nos últimos anos, renegociamos a dívida dos estados com a União, alongando por 20 anos e reduzindo as parcelas com juros por 24 meses. Criamos o Regime de Recuperação Fiscal, desenhado sob medida para atender àqueles entes em pior situação fiscal. Recentemente, o governo federal voltou a socorrê-los, através da criação do Plano de Equilíbrio Fiscal, que busca dar um alívio de curto prazo para estados com problemas mais graves.
Essas soluções, sempre temporárias e emergenciais, poderão continuar sendo demandadas nos próximos anos caso não aproveitemos a oportunidade, que temos hoje, de realizar um ajuste mais estrutural nas finanças públicas subnacionais. Portanto, se quisermos solucionar de fato o problema fiscal do Brasil, voltando a pagar contas em dia e oferecer serviços de maior qualidade à população, um passo imprescindível é reincluir os estados na reforma. Chegou a hora da responsabilidade.
Henrique Meirelles é secretário de Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo e foi ministro da Fazenda e presidente do Banco Central
A face oculta de Bolsonaro - JOSÉ NÊUMANNE
ESTADÃO - 24/07
Antes de Toffoli blindar filho Flávio, presidente insinuou que indicará protegido dele para STF
Nos 200 dias de governo do capitão reformado e deputado federal aposentado, além do Bolsonaro óbvio das declarações sobre o Nordeste reduzido a “paraíba” e da insistência descabida em fazer o filho caçula embaixador em Washington, há outro, cuidadosamente escondido para evitar perdas. Por falta de espaço nesta página e excesso de exposição de seu acervo de frases infelizes, convém tentar lançar uma luz sobre o que ele, subordinados, prosélitos e fanáticos não conseguem mais esconder de sua face oculta.
Aos 23 dias iniciais do mandato, Bolsonaro disse a um repórter da agência Bloomberg em Davos, na Suíça: “Se, por acaso, ele (o filho Flávio) errou e isso ficar provado, eu lamento como pai, mas ele vai ter que pagar o preço por essas ações que não podemos aceitar”. De volta ao Brasil, contudo, tirou a máscara de “isentão” (definição preferida de outro filho, Carlos, para desqualificar quem ouse discordar após concordar com algo) para fazer exatamente o contrário. Após decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, proibindo o compartilhamento de dados da Receita Federal, do Banco Central e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), com Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Federal (PF), ele até tentou escapulir de comentar, argumentando: “Somos Poderes harmônicos independentes. Te respondi? Ele é presidente do STF. Somos independentes, você acha justo o Dias Toffoli criticar um decreto meu? Ou um projeto aprovado e sancionado? Se eu não quisesse combater a corrupção, não teria aceitado o Moro como ministro”. Mas terminou deslizando em truísmos e platitudes, ao afirmar: “Pelo que eu sei, pelo o (sic) que está na lei, dados repassados, dependendo para quê, devem ter decisão judicial. E o que é mais grave na legislação. Os dados, uma vez publicizados (sic), contaminam o processo”. O quê?
O feroz cobrador das falhas do PT não explicou por que o caçula interrompeu o inquérito, em vez de provar inocência.
A revista Crusoé, do site O Antagonista, revelou que clientes da banca da mulher de Toffoli, Roberta Rangel, do qual este foi sócio, foram procurados pela Receita para explicar depósitos. Dias antes um colega por quem o presidente do STF tem manifestado apreço (e vice-versa), Gilmar Mendes, comparara o MPF e a PF à Gestapo, polícia política nazista, após averiguações sobre a contabilidade da banca de Sérgio Bermudes, de quem sua mulher, Guiomar, é sócia. Essa descoberta pode lançar um véu de suspeição sobre a decisão de Toffoli de suspender todos os inquéritos (segundo consta, 6 mil) de lavagem de dinheiro no País. Mas não altera a origem da decisão, tomada a partir da defesa de Flávio Bolsonaro.
Pode ser mera coincidência, até prova em contrário, mas o fato é que recentemente, a pretexto de reclamar de uma decisão do STF criminalizando a homofobia, o presidente, do alto de sua prerrogativa de indicar os membros do colegiado, queixou-se de não haver ali um ministro “terrivelmente evangélico”. Na segunda vez o fez saudando um dos ministros numa reunião com vários membros de titulares na Esplanada dos Ministérios, o advogado-geral da União, André Mendonça. Na última vez em que apelou para a expressão, originalmente usada pela ministra da Família, Damares Alves – uma impropriedade, pois “terrível” é definido no Houaiss como algo “que infunde ou causa terror” –, em 11 de julho, disse que ele é cotado para preencher essa lacuna, 16 meses antes da prevista aposentadoria do decano, Celso de Mello. Não seria o caso de indagar se é hora de tratar do assunto antes de ser aprovada a reforma da Previdência, tida e havida como a primeira providência a ser tomada para destravar a economia e reduzir as mais relevantes taxas de desemprego?
Aos 46 anos, há 19 na Advocacia-Geral da União (AGU), Mendonça está longe de ser popular como Moro e Bretas.
De Mendonça só se sabe que dirigiu o Departamento de Patrimônio Público e Probidade Administrativa da AGU, indicado pelo presidente do STF, antes de migrar para a Controladoria-Geral da União, no governo Temer (!), representando a AGU em acordos de leniência com empresas acusadas de corrupção. Dali foi promovido a advogado-geral por Bolsonaro, que o anunciou em novembro. Segundo fontes ouvidas pelo UOL, o presidente do STF já trabalha pela aprovação dele na sabatina do Senado, caso seja indicado para o STF.
Sua conexão com o PT, do qual o ex-advogado-geral foi subordinado em toda a carreira, é revelada em artigo publicado na Folha de Londrina de 30 de outubro de 2002, resgatado pela repórter Constança Rezende, do UOL. No texto Mendonça não cita o nome de Lula, mas afirma, três dias após a vitória do petista, que o triunfo “enchia os corações do povo de esperanças”. Além disso, escreveu à época que as urnas haviam revelado “o primeiro presidente eleito do povo e pelo povo”. “O fato é notório e não admite discussões e assim o coração do povo se enche de esperança, o mundo nos assiste com um misto de surpresa e admiração, embora alguns confiem desconfiando, mas certamente convictos que o Brasil cresceu e seu povo amadureceu, restando consolidada a democracia não só porque o novo presidente foi eleito pelo povo, mas porque saiu do próprio povo”. Criacionista, ele diz respeitar quem não é, mas no texto revela dogmas sobre os quais “não admite discussões”. Tolerante até a página 2.
Pode-se dizer que o também pastor presbiteriano nunca foi ingrato. Mesmo já estando sob ordens de Bolsonaro, foi o único chefe de uma instituição importante relacionada ao Direito a assinar parecer defendendo o decreto do padrinho para impedir críticas a seus pares (além de censurar a Crusoé) e a compra por este de lagostas e vinhos premiados para os banquetes da casa. Só em 16 meses o Brasil saberá se, de fato, a espécie não evoluiu e se Darwin, afinal, tinha ou não razão.
JORNALISTA, POETA E ESCRITOR
Antes de Toffoli blindar filho Flávio, presidente insinuou que indicará protegido dele para STF
Nos 200 dias de governo do capitão reformado e deputado federal aposentado, além do Bolsonaro óbvio das declarações sobre o Nordeste reduzido a “paraíba” e da insistência descabida em fazer o filho caçula embaixador em Washington, há outro, cuidadosamente escondido para evitar perdas. Por falta de espaço nesta página e excesso de exposição de seu acervo de frases infelizes, convém tentar lançar uma luz sobre o que ele, subordinados, prosélitos e fanáticos não conseguem mais esconder de sua face oculta.
Aos 23 dias iniciais do mandato, Bolsonaro disse a um repórter da agência Bloomberg em Davos, na Suíça: “Se, por acaso, ele (o filho Flávio) errou e isso ficar provado, eu lamento como pai, mas ele vai ter que pagar o preço por essas ações que não podemos aceitar”. De volta ao Brasil, contudo, tirou a máscara de “isentão” (definição preferida de outro filho, Carlos, para desqualificar quem ouse discordar após concordar com algo) para fazer exatamente o contrário. Após decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, proibindo o compartilhamento de dados da Receita Federal, do Banco Central e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), com Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Federal (PF), ele até tentou escapulir de comentar, argumentando: “Somos Poderes harmônicos independentes. Te respondi? Ele é presidente do STF. Somos independentes, você acha justo o Dias Toffoli criticar um decreto meu? Ou um projeto aprovado e sancionado? Se eu não quisesse combater a corrupção, não teria aceitado o Moro como ministro”. Mas terminou deslizando em truísmos e platitudes, ao afirmar: “Pelo que eu sei, pelo o (sic) que está na lei, dados repassados, dependendo para quê, devem ter decisão judicial. E o que é mais grave na legislação. Os dados, uma vez publicizados (sic), contaminam o processo”. O quê?
O feroz cobrador das falhas do PT não explicou por que o caçula interrompeu o inquérito, em vez de provar inocência.
A revista Crusoé, do site O Antagonista, revelou que clientes da banca da mulher de Toffoli, Roberta Rangel, do qual este foi sócio, foram procurados pela Receita para explicar depósitos. Dias antes um colega por quem o presidente do STF tem manifestado apreço (e vice-versa), Gilmar Mendes, comparara o MPF e a PF à Gestapo, polícia política nazista, após averiguações sobre a contabilidade da banca de Sérgio Bermudes, de quem sua mulher, Guiomar, é sócia. Essa descoberta pode lançar um véu de suspeição sobre a decisão de Toffoli de suspender todos os inquéritos (segundo consta, 6 mil) de lavagem de dinheiro no País. Mas não altera a origem da decisão, tomada a partir da defesa de Flávio Bolsonaro.
Pode ser mera coincidência, até prova em contrário, mas o fato é que recentemente, a pretexto de reclamar de uma decisão do STF criminalizando a homofobia, o presidente, do alto de sua prerrogativa de indicar os membros do colegiado, queixou-se de não haver ali um ministro “terrivelmente evangélico”. Na segunda vez o fez saudando um dos ministros numa reunião com vários membros de titulares na Esplanada dos Ministérios, o advogado-geral da União, André Mendonça. Na última vez em que apelou para a expressão, originalmente usada pela ministra da Família, Damares Alves – uma impropriedade, pois “terrível” é definido no Houaiss como algo “que infunde ou causa terror” –, em 11 de julho, disse que ele é cotado para preencher essa lacuna, 16 meses antes da prevista aposentadoria do decano, Celso de Mello. Não seria o caso de indagar se é hora de tratar do assunto antes de ser aprovada a reforma da Previdência, tida e havida como a primeira providência a ser tomada para destravar a economia e reduzir as mais relevantes taxas de desemprego?
Aos 46 anos, há 19 na Advocacia-Geral da União (AGU), Mendonça está longe de ser popular como Moro e Bretas.
De Mendonça só se sabe que dirigiu o Departamento de Patrimônio Público e Probidade Administrativa da AGU, indicado pelo presidente do STF, antes de migrar para a Controladoria-Geral da União, no governo Temer (!), representando a AGU em acordos de leniência com empresas acusadas de corrupção. Dali foi promovido a advogado-geral por Bolsonaro, que o anunciou em novembro. Segundo fontes ouvidas pelo UOL, o presidente do STF já trabalha pela aprovação dele na sabatina do Senado, caso seja indicado para o STF.
Sua conexão com o PT, do qual o ex-advogado-geral foi subordinado em toda a carreira, é revelada em artigo publicado na Folha de Londrina de 30 de outubro de 2002, resgatado pela repórter Constança Rezende, do UOL. No texto Mendonça não cita o nome de Lula, mas afirma, três dias após a vitória do petista, que o triunfo “enchia os corações do povo de esperanças”. Além disso, escreveu à época que as urnas haviam revelado “o primeiro presidente eleito do povo e pelo povo”. “O fato é notório e não admite discussões e assim o coração do povo se enche de esperança, o mundo nos assiste com um misto de surpresa e admiração, embora alguns confiem desconfiando, mas certamente convictos que o Brasil cresceu e seu povo amadureceu, restando consolidada a democracia não só porque o novo presidente foi eleito pelo povo, mas porque saiu do próprio povo”. Criacionista, ele diz respeitar quem não é, mas no texto revela dogmas sobre os quais “não admite discussões”. Tolerante até a página 2.
Pode-se dizer que o também pastor presbiteriano nunca foi ingrato. Mesmo já estando sob ordens de Bolsonaro, foi o único chefe de uma instituição importante relacionada ao Direito a assinar parecer defendendo o decreto do padrinho para impedir críticas a seus pares (além de censurar a Crusoé) e a compra por este de lagostas e vinhos premiados para os banquetes da casa. Só em 16 meses o Brasil saberá se, de fato, a espécie não evoluiu e se Darwin, afinal, tinha ou não razão.
JORNALISTA, POETA E ESCRITOR
Bolsonaro errou o tiro no ‘melancia’ - ELIO GASPARI
FOLHA DE SP/O GLOBO - 24/07
O capitão precisa ouvir o conselho do general Médici e, todo dia, botar água na cabeça para esfriá-la
Com 13 milhões de desempregados, a economia andando de lado e a projeção de mais um ano de pibinho, o Brasil já tem problemas suficientes, não precisa trazer de volta o fantasma da anarquia militar. Com idas e vindas, ele assombrou a vida do país dos últimos anos do século XIX até o final do XX.
Jair Bolsonaro elegeu-se presidente da República pela vontade de 57,8 milhões de brasileiros. Teve o apoio público de dezenas de oficiais das Forças Armadas e formou um ministério com oito militares. Fez um agradecimento ao ex-comandante do Exército dizendo que “o que nós já conversamos morrerá entre nós, o senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui, muito obrigado, mais uma vez.” Sabe-se lá o que conversaram, mas desde o primeiro momento o capitão reformado associou seu governo às Forças Armadas. Como agradecimento, tudo bem. Além disso, é uma perigosa impropriedade.
Bolsonaro deixou a tropa depois de dois episódios de ativismo e indisciplina. Referindo-se ao capitão, o ex-presidente Ernesto Geisel classificou-o como “um mau militar”. Quem está no Planalto é um político com 30 anos de vida parlamentar e uma ascensão meteórica. Em seis meses de presidência, demitiu três oficiais-generais e na semana passada disse que outro, Luiz Eduardo Rocha Paiva, aliou-se ao PCdoB: “Descobrimos um ‘melancia’, defensor da Guerrilha do Araguaia em pleno século XXI”. Ele havia criticado a escolha de Eduardo Bolsonaro para a embaixada em Washington e a fala dos governadores “de Paraíba”.
Esse general de brigada chefiou a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e, na reserva, em março foi nomeado para integrar a Comissão da Anistia. Chamá-lo de “melancia” (verde por fora, vermelho por dentro) foi um despautério. Em 2010, Rocha Paiva acusou o PT de “querer implantar um regime totalitário no Brasil”. Dois anos depois, lembrou as execuções praticadas pelo PCdoB no Araguaia. Foram pelo menos três. (Esqueceu-se das execuções de guerrilheiros que se renderam, mas ninguém é obrigado a se lembrar de tudo.)
Tanto o general Rocha Paiva como Bolsonaro deram suas opiniões por meio desse instrumento diabólico que são as redes sociais. Num caso, falou um general da reserva que ocupa um cargo público. Noutro, o presidente da República. Juntos, produziram um inédito curto-circuito.
A presença de militares no governo gerou a compreensível curiosidade em torno de suas preferências e ansiedades. General da reserva é uma coisa; da ativa, outra. Muito outra é general da reserva que ocupa cargo civil. Os chefes militares raramente falavam, de Dutra até comandantes mais recentes, passando por Castelo Branco, Médici e Geisel. O atual comandante do Exército, Edson Pujol, não tem conta no Twitter.
Na dia 12 de outubro de 1977, quando o presidente Geisel demitiu o ministro do Exército, general Sylvio Frota, um grupo de oficiais tentou sublevar-se, e um general ligou para o ex-presidente Médici, que vivia no Rio, calado. Queria seu apoio e ouviu o seguinte: “Põe água na cabeça. Põe água para esfriar a cabeça.”
(O general Augusto Heleno, que era capitão e ajudante de ordens de Frota, lembra-se de alguns episódios desse dia.)
Bolsonaro precisa pôr água na cabeça para cuidar de seu governo, deixando os quartéis em paz e silêncio.
O capitão precisa ouvir o conselho do general Médici e, todo dia, botar água na cabeça para esfriá-la
Com 13 milhões de desempregados, a economia andando de lado e a projeção de mais um ano de pibinho, o Brasil já tem problemas suficientes, não precisa trazer de volta o fantasma da anarquia militar. Com idas e vindas, ele assombrou a vida do país dos últimos anos do século XIX até o final do XX.
Jair Bolsonaro elegeu-se presidente da República pela vontade de 57,8 milhões de brasileiros. Teve o apoio público de dezenas de oficiais das Forças Armadas e formou um ministério com oito militares. Fez um agradecimento ao ex-comandante do Exército dizendo que “o que nós já conversamos morrerá entre nós, o senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui, muito obrigado, mais uma vez.” Sabe-se lá o que conversaram, mas desde o primeiro momento o capitão reformado associou seu governo às Forças Armadas. Como agradecimento, tudo bem. Além disso, é uma perigosa impropriedade.
Bolsonaro deixou a tropa depois de dois episódios de ativismo e indisciplina. Referindo-se ao capitão, o ex-presidente Ernesto Geisel classificou-o como “um mau militar”. Quem está no Planalto é um político com 30 anos de vida parlamentar e uma ascensão meteórica. Em seis meses de presidência, demitiu três oficiais-generais e na semana passada disse que outro, Luiz Eduardo Rocha Paiva, aliou-se ao PCdoB: “Descobrimos um ‘melancia’, defensor da Guerrilha do Araguaia em pleno século XXI”. Ele havia criticado a escolha de Eduardo Bolsonaro para a embaixada em Washington e a fala dos governadores “de Paraíba”.
Esse general de brigada chefiou a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e, na reserva, em março foi nomeado para integrar a Comissão da Anistia. Chamá-lo de “melancia” (verde por fora, vermelho por dentro) foi um despautério. Em 2010, Rocha Paiva acusou o PT de “querer implantar um regime totalitário no Brasil”. Dois anos depois, lembrou as execuções praticadas pelo PCdoB no Araguaia. Foram pelo menos três. (Esqueceu-se das execuções de guerrilheiros que se renderam, mas ninguém é obrigado a se lembrar de tudo.)
Tanto o general Rocha Paiva como Bolsonaro deram suas opiniões por meio desse instrumento diabólico que são as redes sociais. Num caso, falou um general da reserva que ocupa um cargo público. Noutro, o presidente da República. Juntos, produziram um inédito curto-circuito.
A presença de militares no governo gerou a compreensível curiosidade em torno de suas preferências e ansiedades. General da reserva é uma coisa; da ativa, outra. Muito outra é general da reserva que ocupa cargo civil. Os chefes militares raramente falavam, de Dutra até comandantes mais recentes, passando por Castelo Branco, Médici e Geisel. O atual comandante do Exército, Edson Pujol, não tem conta no Twitter.
Na dia 12 de outubro de 1977, quando o presidente Geisel demitiu o ministro do Exército, general Sylvio Frota, um grupo de oficiais tentou sublevar-se, e um general ligou para o ex-presidente Médici, que vivia no Rio, calado. Queria seu apoio e ouviu o seguinte: “Põe água na cabeça. Põe água para esfriar a cabeça.”
(O general Augusto Heleno, que era capitão e ajudante de ordens de Frota, lembra-se de alguns episódios desse dia.)
Bolsonaro precisa pôr água na cabeça para cuidar de seu governo, deixando os quartéis em paz e silêncio.
Taxa de juros: uma oportunidade histórica - CRISTIANO ROMERO
Valor Econômico - 24/07
Inflação baixa, PIB em marcha lenta e reforma derrubam taxa Selic
A combinação de uma conjuntura interna e externa favorável criou oportunidade histórica para o Banco Central (BC) reduzir ainda mais a taxa básica de juros (Selic), que está em 6,5% ao ano desde março de 2018, o menor patamar em 25 anos de Plano Real. O BC já havia indicado que, se a reforma da Previdência fosse aprovada pela Câmara dos Deputados, a Selic voltaria a ser cortada, provavelmente, em 25 pontos-base (0,25 ponto percentual, para 6,25% ao ano).
O cenário mudou. A reforma foi aprovada em primeiro turno, na Câmara, por votação que mostrou a força no parlamento não do governo Bolsonaro, mas do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e seus aliados. O aceno do BC, porém, foi feito antes de o Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, deixar claro que iniciará novo ciclo de alívio monetário. Por essa razão, é possível, na reunião da próxima semana, o BC brasileiro faça um corte maior, de 0,5 ponto percentual, na taxa Selic, para 6% ao ano.
Quando o Fed toma uma decisão como essa, provoca uma onda que muda a maré de todas as economias. Se o Fed vai reduzir os juros, a tendência é que os investidores globais diminuam o que o mercado chama de aversão a risco. O objetivo aqui é procurar mundo afora aplicações razoavelmente seguras e com retorno superior ao dos títulos do tesouro americano. Mesmo reduzindo juros, o Brasil continuará oferecendo retornos em renda fixa superiores aos encontrados na maioria dos mercados. Sendo assim, o dólar deve perder valor nos quatro cantos do planeta e, por conseguinte, moedas locais, como real, vão se valorizar. Isso também ajuda a manter pressão baixista na inflação.
A expectativa é que o juro básico no Brasil, referência para toda a economia e também para o custo de financiamento do Tesouro Nacional, feche 2019 fixado em 5% ao ano - economista experiente, com passagem pela diretoria do BC, acredita haver espaço para chegar a dezembro com a Selic abaixo de 5%. As condições para esse cenário se materializar são, de fato, excepcionais, algo como o alinhamento dos cinco planetas mais brilhantes do sistema solar, um fenômeno raro.
Calculados de variadas formas, os núcleos de inflação, medida pelo IPCA-15, têm se mostrado, desde fevereiro de 2018, em níveis "apropriados", "baixos" ou "confortáveis". Desde abril, estão "apropriados". A medida de núcleo é importante porque retira do índice a variação de preços de produtos com forte sazonalidade, como os produtos agrícolas. Geralmente, os bancos centrais olham mais para os núcleos antes de calibrar a taxa de juros necessária ao controle da inflação. O Fed, por exemplo, só observa os núcleos.
Mesmo a inflação cheia está bem comportada. Nos 12 meses até junho, o IPCA teve variação de 3,37%. O risco hoje é o país completar três anos, em 2109, com o índice de preços oficial abaixo da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Num país com histórico de hiperinflação, inflação crônica e memória inflacionária, esse parece ser um bom problema. É verdade, mas, no regime de metas, descumprir os limites do regime, para cima ou para baixo, é igualmente passível de crítica.
Neste momento, em que há 13 milhões de desempregados, o Produto Interno Bruto avançando a passos de cágado há três anos, depois de suceder a um triênio recessivo, o Banco Central pode ser acusado de ter sido excessivamente conservador na condução da política monetária, uma vez que a inflação tem ficado abaixo do objetivo escolhido pelo CMN.
Concentração de renda
Não se resolve a problema da concentração de renda no país via reforma tributária, mas, sim, por meio do gasto. Decisões de governos eleitos pelo povo é que têm o poder de distribuir renda.
Governantes são eleitos para isso: decidir onde alocar os sempre escassos recursos pagos pelos contribuintes. Cabe ao eleitor escolher quem considera melhor para essa tarefa.
O eleitor define se quer um governante que invista mais em educação e saúde do que em áreas onde a presença do Estado não é ou nunca foi crucial.
Eleitor escolhe se o governante deve ser mais intervencionista na economia ou não. A política se move em torno dessas escolhas. E a história nos ensina que os movimentos políticos são cíclicos.
Os brasileiros não estão imunes ao pêndulo da história. Com o fim da Guerra Fria nos estertores da década de 1980 e início dos anos 90, a vitória dos EUA e a derrocada do socialismo real promoveram onda liberalizante na América Latina, no Leste Europeu é mesmo na Europa Ocidental.
Governantes de perfil mais liberal foram eleitos para enfrentar processos de inflação crônica e hiperinflação e promover reformas econômicas em diversos países.
A derrubada do Muro de Berlim em 1989 e o esgotamento do modelo de substituição das importações pavimentaram o caminho para a abertura das contas de capital e à chamada globalização. Jogava-se o jogo dos vencedores da Guerra Fria, os americanos.
No momento seguinte, na primeira década deste século, os ventos foram na direção contrária: embora a intensificação do comércio tenha sido vantajosa para os países em desenvolvimento (a China é o melhor exemplo) - além de necessária porque, ao expor as economias à concorrência de produtos estrangeiros, ajudou a estabilizar os preços de países como o Brasil -, a eclosão de crises de balanço de pagamentos desde o México, em 1994, até a Ilha de Vera Cruz em 1999, passando pelos tigres asiáticos em 1997 e a Rússia em 1998, desgastou politicamente a onda liberalizaste e isso fomentou a eleição de vários presidentes de esquerda, principalmente, na América Latina.
A combinação de uma conjuntura interna e externa favorável criou oportunidade histórica para o Banco Central (BC) reduzir ainda mais a taxa básica de juros (Selic), que está em 6,5% ao ano desde março de 2018, o menor patamar em 25 anos de Plano Real. O BC já havia indicado que, se a reforma da Previdência fosse aprovada pela Câmara dos Deputados, a Selic voltaria a ser cortada, provavelmente, em 25 pontos-base (0,25 ponto percentual, para 6,25% ao ano).
O cenário mudou. A reforma foi aprovada em primeiro turno, na Câmara, por votação que mostrou a força no parlamento não do governo Bolsonaro, mas do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e seus aliados. O aceno do BC, porém, foi feito antes de o Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, deixar claro que iniciará novo ciclo de alívio monetário. Por essa razão, é possível, na reunião da próxima semana, o BC brasileiro faça um corte maior, de 0,5 ponto percentual, na taxa Selic, para 6% ao ano.
Quando o Fed toma uma decisão como essa, provoca uma onda que muda a maré de todas as economias. Se o Fed vai reduzir os juros, a tendência é que os investidores globais diminuam o que o mercado chama de aversão a risco. O objetivo aqui é procurar mundo afora aplicações razoavelmente seguras e com retorno superior ao dos títulos do tesouro americano. Mesmo reduzindo juros, o Brasil continuará oferecendo retornos em renda fixa superiores aos encontrados na maioria dos mercados. Sendo assim, o dólar deve perder valor nos quatro cantos do planeta e, por conseguinte, moedas locais, como real, vão se valorizar. Isso também ajuda a manter pressão baixista na inflação.
A expectativa é que o juro básico no Brasil, referência para toda a economia e também para o custo de financiamento do Tesouro Nacional, feche 2019 fixado em 5% ao ano - economista experiente, com passagem pela diretoria do BC, acredita haver espaço para chegar a dezembro com a Selic abaixo de 5%. As condições para esse cenário se materializar são, de fato, excepcionais, algo como o alinhamento dos cinco planetas mais brilhantes do sistema solar, um fenômeno raro.
Calculados de variadas formas, os núcleos de inflação, medida pelo IPCA-15, têm se mostrado, desde fevereiro de 2018, em níveis "apropriados", "baixos" ou "confortáveis". Desde abril, estão "apropriados". A medida de núcleo é importante porque retira do índice a variação de preços de produtos com forte sazonalidade, como os produtos agrícolas. Geralmente, os bancos centrais olham mais para os núcleos antes de calibrar a taxa de juros necessária ao controle da inflação. O Fed, por exemplo, só observa os núcleos.
Mesmo a inflação cheia está bem comportada. Nos 12 meses até junho, o IPCA teve variação de 3,37%. O risco hoje é o país completar três anos, em 2109, com o índice de preços oficial abaixo da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Num país com histórico de hiperinflação, inflação crônica e memória inflacionária, esse parece ser um bom problema. É verdade, mas, no regime de metas, descumprir os limites do regime, para cima ou para baixo, é igualmente passível de crítica.
Neste momento, em que há 13 milhões de desempregados, o Produto Interno Bruto avançando a passos de cágado há três anos, depois de suceder a um triênio recessivo, o Banco Central pode ser acusado de ter sido excessivamente conservador na condução da política monetária, uma vez que a inflação tem ficado abaixo do objetivo escolhido pelo CMN.
Concentração de renda
Não se resolve a problema da concentração de renda no país via reforma tributária, mas, sim, por meio do gasto. Decisões de governos eleitos pelo povo é que têm o poder de distribuir renda.
Governantes são eleitos para isso: decidir onde alocar os sempre escassos recursos pagos pelos contribuintes. Cabe ao eleitor escolher quem considera melhor para essa tarefa.
O eleitor define se quer um governante que invista mais em educação e saúde do que em áreas onde a presença do Estado não é ou nunca foi crucial.
Eleitor escolhe se o governante deve ser mais intervencionista na economia ou não. A política se move em torno dessas escolhas. E a história nos ensina que os movimentos políticos são cíclicos.
Os brasileiros não estão imunes ao pêndulo da história. Com o fim da Guerra Fria nos estertores da década de 1980 e início dos anos 90, a vitória dos EUA e a derrocada do socialismo real promoveram onda liberalizante na América Latina, no Leste Europeu é mesmo na Europa Ocidental.
Governantes de perfil mais liberal foram eleitos para enfrentar processos de inflação crônica e hiperinflação e promover reformas econômicas em diversos países.
A derrubada do Muro de Berlim em 1989 e o esgotamento do modelo de substituição das importações pavimentaram o caminho para a abertura das contas de capital e à chamada globalização. Jogava-se o jogo dos vencedores da Guerra Fria, os americanos.
No momento seguinte, na primeira década deste século, os ventos foram na direção contrária: embora a intensificação do comércio tenha sido vantajosa para os países em desenvolvimento (a China é o melhor exemplo) - além de necessária porque, ao expor as economias à concorrência de produtos estrangeiros, ajudou a estabilizar os preços de países como o Brasil -, a eclosão de crises de balanço de pagamentos desde o México, em 1994, até a Ilha de Vera Cruz em 1999, passando pelos tigres asiáticos em 1997 e a Rússia em 1998, desgastou politicamente a onda liberalizaste e isso fomentou a eleição de vários presidentes de esquerda, principalmente, na América Latina.
Coice na liturgia - RUY CASTRO
FOLHA DE SP - 24/07
O cargo de presidente implica e exige respeito. Mas não é o caso de Bolsonaro
A chapa está esquentando. Jair Bolsonaro, o presidente mais boquirroto da história da República, tem se superado ultimamente em sua especialidade de atacar adversários, ofender aliados, ignorar protocolos, diminuir instituições, promover crises, agredir minorias, comprar brigas gratuitas, humilhar seus próprios amigos, mentir com grande convicção, desdizer-se na maior cara dura e, de modo geral, escoicear a liturgia do cargo.
Formalmente, é um presidente. Tem ao seu redor pessoas para protegê-lo, transportá-lo, abrir-lhe portas, fazer seus ternos, cortar-lhe o cabelo, corrigir sua postura, preparar sua agenda, escrever seus discursos e, principalmente, orientá-lo sobre as grandes questões, a atitude a tomar sobre este ou aquele problema, a oportunidade de manifestar-se ou manter-se neutro diante de certos assuntos. Bolsonaro deve ter todos esses profissionais para servi-lo. Mas, ou são uns incompetentes ou é ele quem os desqualifica, passando por cima de seus conselhos e metendo os pés pelas mãos por conta própria.
Durante a campanha, quando batia boca com os adversários, dava-se um desconto. Campanha é assim mesmo, pode-se falar qualquer coisa, só os bobos acreditam. Mas, a partir do momento em que se enverga a faixa —e há uma foto do dia da posse, em que Bolsonaro, deslumbrado, aponta para a dita cuja—, impõe-se uma compostura. O cargo implica e exige respeito.
Apenas nos últimos dias, Bolsonaro chamou os nordestinos de “paraíbas”, rotulou um general como “melancia” —verde por fora, vermelho por dentro— e tachou um importante órgão de pesquisa, que nem deve saber para o que serve, de divulgar dados “mentirosos”. Mas, nesta, levou um troco: foi acusado de falar como se estivesse “em uma conversa de botequim”.
Como não se dá ao respeito como presidente, Bolsonaro logo não poderá exigir que seus presididos o tenham por ele.
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues
O cargo de presidente implica e exige respeito. Mas não é o caso de Bolsonaro
A chapa está esquentando. Jair Bolsonaro, o presidente mais boquirroto da história da República, tem se superado ultimamente em sua especialidade de atacar adversários, ofender aliados, ignorar protocolos, diminuir instituições, promover crises, agredir minorias, comprar brigas gratuitas, humilhar seus próprios amigos, mentir com grande convicção, desdizer-se na maior cara dura e, de modo geral, escoicear a liturgia do cargo.
Formalmente, é um presidente. Tem ao seu redor pessoas para protegê-lo, transportá-lo, abrir-lhe portas, fazer seus ternos, cortar-lhe o cabelo, corrigir sua postura, preparar sua agenda, escrever seus discursos e, principalmente, orientá-lo sobre as grandes questões, a atitude a tomar sobre este ou aquele problema, a oportunidade de manifestar-se ou manter-se neutro diante de certos assuntos. Bolsonaro deve ter todos esses profissionais para servi-lo. Mas, ou são uns incompetentes ou é ele quem os desqualifica, passando por cima de seus conselhos e metendo os pés pelas mãos por conta própria.
Durante a campanha, quando batia boca com os adversários, dava-se um desconto. Campanha é assim mesmo, pode-se falar qualquer coisa, só os bobos acreditam. Mas, a partir do momento em que se enverga a faixa —e há uma foto do dia da posse, em que Bolsonaro, deslumbrado, aponta para a dita cuja—, impõe-se uma compostura. O cargo implica e exige respeito.
Apenas nos últimos dias, Bolsonaro chamou os nordestinos de “paraíbas”, rotulou um general como “melancia” —verde por fora, vermelho por dentro— e tachou um importante órgão de pesquisa, que nem deve saber para o que serve, de divulgar dados “mentirosos”. Mas, nesta, levou um troco: foi acusado de falar como se estivesse “em uma conversa de botequim”.
Como não se dá ao respeito como presidente, Bolsonaro logo não poderá exigir que seus presididos o tenham por ele.
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues
Palavras ao vento POR MERVAL PEREIRA
O Globo - 24/07
A falta de cuidados com as palavras pode trazer grandes prejuízos políticos, como mostram precedentes
O presidente Jair Bolsonaro vai levar muito tempo para se livrar do "lapsus linguae" que cometeu chamando os nordestinos de “paraíbas”, numa conversa com microfone aberto sem que soubesse.
As distrações na linguagem falada podem revelar preconceitos arraigados, ou serem simplesmente equívocos desastrados. Sujeitas a manipulações políticas. Ontem, na sua primeira viagem ao Nordeste, Bolsonaro teve que se explicar diversas vezes, e o fez com criatividade.
Dizer que “somos todos paraíbas” foi uma boa saída. Já usar um chapéu de boiadeiro foi repetir um gesto político tradicional. No Rio, onde Bolsonaro fez sua vida política, embora seja paulista, chamar nordestinos de “paraíbas” tem um sentido pejorativo histórico, devido às migrações nordestinas para a Região Sudeste do país, em busca de emprego e fugindo da seca.
Em São Paulo, o menosprezo vai para os “baianos”, pela mesma razão. Bolsonaro também falou “somos todos baianos” ontem, bem orientado para que a tentativa de correção de seu lapso de linguagem tivesse alcance nacional.
O general Hamilton Mourão, vice de Bolsonaro, sofreu muito com esse tipo de erro durante a campanha, ou revelando desejos recônditos como acabar com o décimo terceiro salário, ou tratando de temas tóxicos, como torturas ou autogolpes.
No poder, o general Mourão passou a ser cuidadoso com as palavras, refletindo uma posição mais moderada que o próprio presidente Bolsonaro, que, incentivado pelo filho Carlos, considerou parte de uma campanha para colocá-lo como alternativa viável.
Carlos chegou a dizer que havia gente no entorno do pai que queria sua morte. Bolsonaro ecoou esse sentimento paranoico ao perguntar a Mourão por telefone, quando estava internado devido à tentativa de assassinato: “Quer me matar?”.
Recentemente, deu parabéns a Mourão por ter conseguido ficar sem dar entrevistas por uma semana. Como tem mandato pelo voto, tanto quanto Bolsonaro, Mourão é indemissível, ao contrário de outros militares que trabalhavam no governo e foram defenestrados, geralmente vítimas de intrigas palacianas da família do presidente.
Ontem, os dois chegaram abraçados para uma cerimônia no Palácio do Planalto, com Bolsonaro dizendo que estavam “namorando”. Outra brincadeira frequente do presidente, que distribui beijos e abraços “héteros”.
A falta de cuidados com as palavras pode trazer grandes prejuízos políticos, como mostram precedentes históricos já relatados aqui na coluna. Desde o caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que tachou de “vagabundos” quem se aposentava cedo, e acabou marcado como tendo classificado todos os aposentados de vagabundos.
Mas o mais famoso aconteceu em 1945, quando o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato a presidente pela UDN com larga vantagem sobre o candidato getulista, o general Eurico Dutra, fez um duro discurso contra Getúlio.
Disse que não precisava dos votos “desta malta de desocupados que apoia o ditador”. Segundo relato da historiadora Alzira Alves de Abreu, do CPDOC da Fundação Getulio Vargas, o getulista Hugo Borghi descobriu no dicionário que “malta”, além de significar “bando ou súcia”, o que já era ofensivo, também denominava trabalhadores que levavam suas marmitas nas linhas férreas, o que atingia mais diretamente os eleitores pobres.
Daí a dizer que o brigadeiro não queria os votos dos “marmiteiros”, menosprezando os pobres, foi um passo, e o general Dutra venceu uma eleição perdida. No caso atual, como o lapsus linguae foi cometido fora da campanha eleitoral, Bolsonaro ainda terá muito tempo e tinta na caneta para se aproximar dos “paraíbas” e “baianos”.
Já anunciou o décimo terceiro para o Bolsa Família, e estuda um abono para os que o recebem. Uma tentativa de retomar um reduto eleitoral petista, prejudicada pela fala revelada.
O presidente Jair Bolsonaro vai levar muito tempo para se livrar do "lapsus linguae" que cometeu chamando os nordestinos de “paraíbas”, numa conversa com microfone aberto sem que soubesse.
As distrações na linguagem falada podem revelar preconceitos arraigados, ou serem simplesmente equívocos desastrados. Sujeitas a manipulações políticas. Ontem, na sua primeira viagem ao Nordeste, Bolsonaro teve que se explicar diversas vezes, e o fez com criatividade.
Dizer que “somos todos paraíbas” foi uma boa saída. Já usar um chapéu de boiadeiro foi repetir um gesto político tradicional. No Rio, onde Bolsonaro fez sua vida política, embora seja paulista, chamar nordestinos de “paraíbas” tem um sentido pejorativo histórico, devido às migrações nordestinas para a Região Sudeste do país, em busca de emprego e fugindo da seca.
Em São Paulo, o menosprezo vai para os “baianos”, pela mesma razão. Bolsonaro também falou “somos todos baianos” ontem, bem orientado para que a tentativa de correção de seu lapso de linguagem tivesse alcance nacional.
O general Hamilton Mourão, vice de Bolsonaro, sofreu muito com esse tipo de erro durante a campanha, ou revelando desejos recônditos como acabar com o décimo terceiro salário, ou tratando de temas tóxicos, como torturas ou autogolpes.
No poder, o general Mourão passou a ser cuidadoso com as palavras, refletindo uma posição mais moderada que o próprio presidente Bolsonaro, que, incentivado pelo filho Carlos, considerou parte de uma campanha para colocá-lo como alternativa viável.
Carlos chegou a dizer que havia gente no entorno do pai que queria sua morte. Bolsonaro ecoou esse sentimento paranoico ao perguntar a Mourão por telefone, quando estava internado devido à tentativa de assassinato: “Quer me matar?”.
Recentemente, deu parabéns a Mourão por ter conseguido ficar sem dar entrevistas por uma semana. Como tem mandato pelo voto, tanto quanto Bolsonaro, Mourão é indemissível, ao contrário de outros militares que trabalhavam no governo e foram defenestrados, geralmente vítimas de intrigas palacianas da família do presidente.
Ontem, os dois chegaram abraçados para uma cerimônia no Palácio do Planalto, com Bolsonaro dizendo que estavam “namorando”. Outra brincadeira frequente do presidente, que distribui beijos e abraços “héteros”.
A falta de cuidados com as palavras pode trazer grandes prejuízos políticos, como mostram precedentes históricos já relatados aqui na coluna. Desde o caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que tachou de “vagabundos” quem se aposentava cedo, e acabou marcado como tendo classificado todos os aposentados de vagabundos.
Mas o mais famoso aconteceu em 1945, quando o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato a presidente pela UDN com larga vantagem sobre o candidato getulista, o general Eurico Dutra, fez um duro discurso contra Getúlio.
Disse que não precisava dos votos “desta malta de desocupados que apoia o ditador”. Segundo relato da historiadora Alzira Alves de Abreu, do CPDOC da Fundação Getulio Vargas, o getulista Hugo Borghi descobriu no dicionário que “malta”, além de significar “bando ou súcia”, o que já era ofensivo, também denominava trabalhadores que levavam suas marmitas nas linhas férreas, o que atingia mais diretamente os eleitores pobres.
Daí a dizer que o brigadeiro não queria os votos dos “marmiteiros”, menosprezando os pobres, foi um passo, e o general Dutra venceu uma eleição perdida. No caso atual, como o lapsus linguae foi cometido fora da campanha eleitoral, Bolsonaro ainda terá muito tempo e tinta na caneta para se aproximar dos “paraíbas” e “baianos”.
Já anunciou o décimo terceiro para o Bolsa Família, e estuda um abono para os que o recebem. Uma tentativa de retomar um reduto eleitoral petista, prejudicada pela fala revelada.
Verdades encobertas - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 23/07
Além de obscurantismo, Bolsonaro indica intento de mascarar dado do desmatamento
O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) nunca primou por alarmismo ao lidar com dados sobre o desmatamento na Amazônia. Ao contrário: quando sofreu críticas de ambientalistas, foi por apego intransigente à metodologia e ao calendário de divulgação.
Estatísticas oficiais são informações de Estado, não deste ou daquele governo. Institutos federais como IBGE, Ipea e Inpe são curadores das séries históricas; compete-lhes preservá-las do ímpeto manipulador que não raro acomete o governante de plantão.
Jair Bolsonaro (PSL) nada tem de original ao agastar-se com o registro quantitativo de fenômenos que contrariam sua narrativa. Na ditadura militar houve manipulação de índices de inflação; já na democracia, prestidigitação com cifras de desmate nos governos José Sarney (MDB) e Dilma Rousseff (PT).
O atual presidente da República implicou, no final de abril, com a taxa de desemprego do IBGE. Disse que o número de desocupados, na sua opinião, era muito maior que o apurado pelo instituto.
No cargo de Bolsonaro, não existe lugar para opinião quando há dados objetivos à mão, obtidos com metodologia desenvolvida por técnicos e exposta a debate público por décadas. O mandatário não hesita, entretanto, com atos e palavras impensados, em lançar descrédito sobre o saber acumulado por órgãos do próprio Executivo.
O Inpe publica anualmente, desde os anos 1980, as taxas de desmatamento amazônico. Registrou tanto as altas acachapantes de 1994 e 2004 quanto a queda vertiginosa entre 2005 e 2012.
Desde então a derrubada vem subindo, com sinais evidentes de recrudescimento da taxa de aumento neste ano. As indicações não partem de uma diretoria a serviço de ONGs, como acusou de maneira irresponsável o presidente, mas de imagens de sensores de satélites.
Elas alimentam o sistema de alerta de desmatamento Deter, que serve para dirigir as ações de fiscalização do Ibama. Durante anos o Inpe relutou em usar dados mensais para projetar aceleração ou desaceleração do desmate, porém eles fornecem um indicativo do que está por vir, em novembro, no cômputo anual do sistema Prodes.
Eis o que incomoda Bolsonaro: a comparação dos últimos meses com igual período de 2018 aponta que a devastação está crescendo. Lamentável é ver o ministro da Ciência, Marcos Pontes, alinhar-se com a atitude obscurantista do presidente, e não com a transparência e a reputação científica cultivadas pelo instituto sob sua pasta.
Presepadas do gênero só pioram a imagem do país —com a qual Bolsonaro disse estar preocupado ao reivindicar acesso prévio aos dados, de modo a não ser pego “de calças curtas” pelas más notícias.
À sanha contra a preservação ambiental se soma, ao que parece, a intenção de encobrir a verdade.
Além de obscurantismo, Bolsonaro indica intento de mascarar dado do desmatamento
O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) nunca primou por alarmismo ao lidar com dados sobre o desmatamento na Amazônia. Ao contrário: quando sofreu críticas de ambientalistas, foi por apego intransigente à metodologia e ao calendário de divulgação.
Estatísticas oficiais são informações de Estado, não deste ou daquele governo. Institutos federais como IBGE, Ipea e Inpe são curadores das séries históricas; compete-lhes preservá-las do ímpeto manipulador que não raro acomete o governante de plantão.
Jair Bolsonaro (PSL) nada tem de original ao agastar-se com o registro quantitativo de fenômenos que contrariam sua narrativa. Na ditadura militar houve manipulação de índices de inflação; já na democracia, prestidigitação com cifras de desmate nos governos José Sarney (MDB) e Dilma Rousseff (PT).
O atual presidente da República implicou, no final de abril, com a taxa de desemprego do IBGE. Disse que o número de desocupados, na sua opinião, era muito maior que o apurado pelo instituto.
No cargo de Bolsonaro, não existe lugar para opinião quando há dados objetivos à mão, obtidos com metodologia desenvolvida por técnicos e exposta a debate público por décadas. O mandatário não hesita, entretanto, com atos e palavras impensados, em lançar descrédito sobre o saber acumulado por órgãos do próprio Executivo.
O Inpe publica anualmente, desde os anos 1980, as taxas de desmatamento amazônico. Registrou tanto as altas acachapantes de 1994 e 2004 quanto a queda vertiginosa entre 2005 e 2012.
Desde então a derrubada vem subindo, com sinais evidentes de recrudescimento da taxa de aumento neste ano. As indicações não partem de uma diretoria a serviço de ONGs, como acusou de maneira irresponsável o presidente, mas de imagens de sensores de satélites.
Elas alimentam o sistema de alerta de desmatamento Deter, que serve para dirigir as ações de fiscalização do Ibama. Durante anos o Inpe relutou em usar dados mensais para projetar aceleração ou desaceleração do desmate, porém eles fornecem um indicativo do que está por vir, em novembro, no cômputo anual do sistema Prodes.
Eis o que incomoda Bolsonaro: a comparação dos últimos meses com igual período de 2018 aponta que a devastação está crescendo. Lamentável é ver o ministro da Ciência, Marcos Pontes, alinhar-se com a atitude obscurantista do presidente, e não com a transparência e a reputação científica cultivadas pelo instituto sob sua pasta.
Presepadas do gênero só pioram a imagem do país —com a qual Bolsonaro disse estar preocupado ao reivindicar acesso prévio aos dados, de modo a não ser pego “de calças curtas” pelas más notícias.
À sanha contra a preservação ambiental se soma, ao que parece, a intenção de encobrir a verdade.
O Tesouro arrastado na crise - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S. Paulo - 24/07
Com negócios emperrados e longas filas de gente em busca de emprego, a arrecadação é fraca e está difícil conter em R$ 139 bilhões o buraco das contas da União.
Também o governo paga um preço alto pelo agravamento da crise econômica, assunto menosprezado nos primeiros seis meses de mandato do presidente Jair Bolsonaro. Com negócios emperrados e longas filas de gente em busca de emprego, a arrecadação é fraca e está difícil conter em R$ 139 bilhões o buraco das contas primárias da União.
Centenas de bilhões de reais de juros ficam fora do cálculo primário. Com o custo financeiro o quadro é muito pior, mas por enquanto o Ministério da Economia tenta cuidar do dia a dia da operação da máquina federal. O novo bloqueio de R$ 2,27 bilhões é parte do ajuste para impedir o estouro da meta e manter algum controle sobre um Orçamento já muito precário.
Cerca de R$ 30 bilhões já haviam sido bloqueados no primeiro bimestre. A palavra usada no jargão oficial é contingenciamento. Isso sempre ocorre, nos primeiros meses, por segurança. Pode haver até liberação de dinheiro, nos meses seguintes, se aparecer espaço nas contas. Desta vez isso parece muito improvável.
As expectativas econômicas têm piorado sensivelmente desde o começo do ano. Nos primeiros dias o governo projetava uma expansão de 2,5% para o Produto Interno Bruto (PIB) em 2019. A estimativa caiu para 1,6% no meio do semestre. Há poucos dias foi cortada para 0,8%, um número tão ruim quanto a mediana das projeções do mercado.
Com a economia emperrada, a arrecadação no segundo semestre deve ficar abaixo das previsões iniciais, comentou em Brasília o chefe do Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita Federal, Claudemir Malaquias. No ano, o total da arrecadação administrada pela Receita Federal deve ser entre 1% e 1,5% maior que o de 2018, segundo o coordenador de previsão e análise do Fisco, Marcelo Gomide. No primeiro semestre, o aumento real, isto é, descontada a inflação, ficou em 1,17% para essa classe de receitas.
O desempenho da arrecadação total, incluída a parcela gerida por outros órgãos, foi pouco melhor, superando por 1,80% o valor coletado nos primeiros seis meses do ano passado. O resultado fica menos promissor quando se consideram alguns detalhes, como o recolhimento atípico de R$ 700 milhões de receita previdenciária (efeito de um processo judicial) e a baixa arrecadação de junho do ano passado (reflexo da crise do transporte em maio de 2018). O confronto entre os meses de junho dos dois anos mostra um aumento real de 4,68%, explicável principalmente pelo baixo nível da base de comparação.
Diante da perspectiva de um segundo semestre ainda muito ruim, o governo reagiu de duas formas. A resposta mais direta é o contingenciamento de R$ 2,27 bilhões confirmado nesta segunda-feira. O bloqueio efetivo, no entanto, será de apenas R$ 1,44 bilhão. O bloqueio dos demais R$ 809 milhões vai resultar simplesmente no fim de uma reserva embutida no Orçamento sem destinação específica. Agora a reserva desaparece e, com ela, mais uma fonte possível de recursos.
Só no fim do mês, quando for anunciada nova atualização das contas, o governo deverá explicar como será executado o bloqueio da verba de R$ 1,44 bilhão. Não se informou, de início, se a medida atingirá só um ou mais de um Ministério. Se apenas um for atingido, ficará, como se comentou em Brasília, praticamente impedido de qualquer nova ação.
A outra reação do governo à indisfarçável piora das condições econômicas foi a decisão de liberar recursos de duas fontes para estimular o consumo e reanimar os negócios. O dinheiro deve sair do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e do PIS-Pasep. A apresentação dos detalhes foi adiada da quinta-feira passada para esta semana. Não há como avaliar o efeito dessa iniciativa antes da divulgação oficial das condições de saque e dos limites permitidos.
Durante um semestre o presidente Jair Bolsonaro e sua equipe trataram o drama de 13 milhões de desempregados como problema sem urgência ou, pior, como estímulo adicional para a aprovação da reforma da Previdência. Quando reconheceram o desastre, seus efeitos já haviam arrasado as contas do Tesouro Nacional.
Com negócios emperrados e longas filas de gente em busca de emprego, a arrecadação é fraca e está difícil conter em R$ 139 bilhões o buraco das contas da União.
Também o governo paga um preço alto pelo agravamento da crise econômica, assunto menosprezado nos primeiros seis meses de mandato do presidente Jair Bolsonaro. Com negócios emperrados e longas filas de gente em busca de emprego, a arrecadação é fraca e está difícil conter em R$ 139 bilhões o buraco das contas primárias da União.
Centenas de bilhões de reais de juros ficam fora do cálculo primário. Com o custo financeiro o quadro é muito pior, mas por enquanto o Ministério da Economia tenta cuidar do dia a dia da operação da máquina federal. O novo bloqueio de R$ 2,27 bilhões é parte do ajuste para impedir o estouro da meta e manter algum controle sobre um Orçamento já muito precário.
Cerca de R$ 30 bilhões já haviam sido bloqueados no primeiro bimestre. A palavra usada no jargão oficial é contingenciamento. Isso sempre ocorre, nos primeiros meses, por segurança. Pode haver até liberação de dinheiro, nos meses seguintes, se aparecer espaço nas contas. Desta vez isso parece muito improvável.
As expectativas econômicas têm piorado sensivelmente desde o começo do ano. Nos primeiros dias o governo projetava uma expansão de 2,5% para o Produto Interno Bruto (PIB) em 2019. A estimativa caiu para 1,6% no meio do semestre. Há poucos dias foi cortada para 0,8%, um número tão ruim quanto a mediana das projeções do mercado.
Com a economia emperrada, a arrecadação no segundo semestre deve ficar abaixo das previsões iniciais, comentou em Brasília o chefe do Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita Federal, Claudemir Malaquias. No ano, o total da arrecadação administrada pela Receita Federal deve ser entre 1% e 1,5% maior que o de 2018, segundo o coordenador de previsão e análise do Fisco, Marcelo Gomide. No primeiro semestre, o aumento real, isto é, descontada a inflação, ficou em 1,17% para essa classe de receitas.
O desempenho da arrecadação total, incluída a parcela gerida por outros órgãos, foi pouco melhor, superando por 1,80% o valor coletado nos primeiros seis meses do ano passado. O resultado fica menos promissor quando se consideram alguns detalhes, como o recolhimento atípico de R$ 700 milhões de receita previdenciária (efeito de um processo judicial) e a baixa arrecadação de junho do ano passado (reflexo da crise do transporte em maio de 2018). O confronto entre os meses de junho dos dois anos mostra um aumento real de 4,68%, explicável principalmente pelo baixo nível da base de comparação.
Diante da perspectiva de um segundo semestre ainda muito ruim, o governo reagiu de duas formas. A resposta mais direta é o contingenciamento de R$ 2,27 bilhões confirmado nesta segunda-feira. O bloqueio efetivo, no entanto, será de apenas R$ 1,44 bilhão. O bloqueio dos demais R$ 809 milhões vai resultar simplesmente no fim de uma reserva embutida no Orçamento sem destinação específica. Agora a reserva desaparece e, com ela, mais uma fonte possível de recursos.
Só no fim do mês, quando for anunciada nova atualização das contas, o governo deverá explicar como será executado o bloqueio da verba de R$ 1,44 bilhão. Não se informou, de início, se a medida atingirá só um ou mais de um Ministério. Se apenas um for atingido, ficará, como se comentou em Brasília, praticamente impedido de qualquer nova ação.
A outra reação do governo à indisfarçável piora das condições econômicas foi a decisão de liberar recursos de duas fontes para estimular o consumo e reanimar os negócios. O dinheiro deve sair do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e do PIS-Pasep. A apresentação dos detalhes foi adiada da quinta-feira passada para esta semana. Não há como avaliar o efeito dessa iniciativa antes da divulgação oficial das condições de saque e dos limites permitidos.
Durante um semestre o presidente Jair Bolsonaro e sua equipe trataram o drama de 13 milhões de desempregados como problema sem urgência ou, pior, como estímulo adicional para a aprovação da reforma da Previdência. Quando reconheceram o desastre, seus efeitos já haviam arrasado as contas do Tesouro Nacional.
Mais uma inútil tentativa de tabelar o frete - EDITORIAL O GLOBO
O GLOBO - 24/07
Não deveria haver dúvidas de que é impossível fixar preços em um mercado com milhares de agentes
A reunião marcada para ontem em Brasília entre governo e representantes de caminhoneiros tinha desfecho previsível, como todas as outras em que se discutiu a tabela de fretes.
Mesmo que seja anunciada alguma alternativa que agrade aos proprietários autônomos de caminhões e a transportadoras, mantendo-se o tabelamento, não dará certo. Por ser impossível fixar um preço em um mercado em que existem milhares de agentes, em disputa por um produto escasso — carga, numa fase de estagnação econômica.
O drama dos caminhoneiros é uma aula prática dos estreitos limites do intervencionismo. O início da história remonta ao final do segundo mandato de Lula, com Dilma Rousseff chefe da Casa Civil, quando os reflexos da crise mundial deflagrada em 2008 em Wall Street tornaram preponderante o espírito intervencionista do PT.
Com ativo apoio de Dilma, que aprofundaria a política em seu governo, foi delegada ao BNDES a função de reativar a economia com um tsunami de crédito. Um dos segmentos beneficiados foi o de caminhões, por meio de generosos financiamentos subsidiados para a sua aquisição.
As montadoras podem ter ampliado sua força de trabalho, para atender à demanda, mas a geração de cargas depende de fatores mais amplos, como o próprio crescimento da economia. O que não aconteceu, e quase 3 milhões de veículos passaram a disputar um produto escasso, enquanto o preço do diesel subia.
O resultado foram caminhões ociosos e, por consequência, queda no valor do frete, como ensinam os manuais de economia. Como sempre acontece nessas crises, os prejudicados reivindicam tabelamento. Aproveitaram-se das debilidades políticas do governo Temer, aprovaram uma desastrosa greve — que paralisou parte da economia —, e arrancaram do Planalto uma fantasiosa tabela de preços mínimos para o transporte de cargas.
Como esperado, não funcionou, porque a economia está em virtual estagnação. Continua a não haver carga suficiente. Caminhoneiros acabam de forçar a suspensão pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) de uma tabela de que discordaram, e foram a Brasília em busca de um reajuste nos fretes entre 30% e 35%.
Se alguma revisão para cima for feita, primeiro, o reajuste não será praticado amplamente; depois, reforçará o incentivo a que grandes donos de cargas adquiram frota própria, ou aluguem caminhões, o mais frequente. No sábado, reportagem do GLOBO revelou que o faturamento da Vamos, empresa que atua neste mercado, aumentou 25% sobre o mesmo período do ano passado.
Pode ser que seja necessário esperar que o Supremo julgue ações diretas de inconstitucionalidade impetradas por entidades empresariais, para que a questão passe a ser tratada com o mínimo de racionalidade. A Carta define o regime econômico como de mercado, com livre concorrência.
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