Quanto vale o blog de Bethânia?
Danilo Venticinque, Luís Antônio Giron e Marcelo Rocha
REVISTA ÉPOCA
A cantora pediu R$ 1,3 milhão de incentivo fiscal para construir um site que custaria menos de um décimo do preço " e recebeu vaias da plateia
O cantor e compositor baiano Gilberto Gil viajou na semana passada para uma turnê no exterior. Levará a plateias da Europa e da Ásia o show Concerto de cordas, em que interpreta canções acompanhado de duas guitarras e um violoncelo. Desde que deixou de ser ministro da Cultura, em 2008, Gil ficou à vontade para exercer o ofício em que é considerado um dos maiores do Brasil. Mas Gil não se desligou tanto assim do governo. Para financiar o Concerto de cordas, ele foi ao ministério em busca de incentivos fiscais. Não foi a única vez. Desde que Gil deixou a Pasta, a Gege Produções Artísticas, empresa criada por ele em 1982, enviou ao governo cinco projetos para captar dinheiro público para financiar seus projetos. Três deles, que somam R$ 4 milhões, foram autorizados. Os outros dois, que somam R$ 3 milhões, estão em análise. Gil também foi autorizado a buscar dinheiro para digitalizar seu acervo e criar um site biográfico. Companheira de Gil no grupo Doces Bárbaros nos anos 1970, a cantora baiana Maria Bethânia trilhou o mesmo caminho. Como Gil, Bethânia acostumou-se a ser aplaudida ao longo de quase cinco décadas de carreira. Na semana passada, ela recebeu sonoras vaias ao dar os primeiros passos na tentativa de estrear no palco virtual. A notícia de que o Ministério da Cultura aprovara a captação de R$ 1,3 milhão pela Lei Rouanet para a criação do blog da cantora, O Mundo Precisa de Poesia, provocou alvoroço. Antes da primeira publicação, o blog já era um fenômeno de audiência. O nome de Bethânia chegou à lista dos dez assuntos mais comentados no Twitter. O orçamento do projeto despertou revolta entre os tuiteiros " alguns famosos, como o cantor Lobão (leia o quadro). No mercado, estima-se que manter um blog do tipo custe em torno de R$ 100 mil por ano. Os projetos de Gil e Bethânia esquentam o debate sobre o uso do incentivo fiscal por artistas. A Lei Rouanet, de 1991, se tornou uma maneira acessível de levantar recursos para projetos culturais. Para ter direito ao benefício, os artistas enviam um projeto ao Ministério da Cultura. A Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) analisa os pedidos e autoriza o artista a captar uma quantia estabelecida. Ele procura pessoas físicas ou jurídicas, que topam financiar o projeto e, em troca, podem destinar, respectivamente, até 6% ou 4% de seu Imposto de Renda para financiar a produção de CDs, DVDs, espetáculos musicais, teatrais, de dança, filmes e livros.
Números do governo revelam que a renúncia fiscal chegou a R$ 6,6 bilhões em duas décadas. Nos últimos dez anos, o volume de dinheiro que deixou de ser recolhido aos cofres públicos saltou quase seis vezes, de R$ 186 milhões para R$ 1,1 bilhão. A Lei Rouanet aumentou a quantidade de recursos disponíveis para os projetos culturais ao transformar a cultura em bom negócio para as empresas " e para os artistas. Como os investimentos são maiores, cresce o número de projetos contemplados. Os críticos da lei afirmam, porém, que o Estado só deveria oferecer renúncia fiscal a projetos que não dão lucro e não poderiam ser financiados de outra forma. Mas é natural que as empresas prefiram financiar produtores e artistas de renome. "A lei favoreceu mais os produtores e patrocinadores do que o público", diz a ministra da Cultura, Ana de Hollanda. Ela aposta na criação do Programa Nacional de Fomento à Cultura, que tramita no Congresso, para transformar o Fundo Nacional de Cultura no mecanismo central de financiamento ao setor. Para a ministra, a isenção fiscal deveria beneficiar os projetos com "contrapartida social", como redução de preços. Mas isso excluiria os maiores clientes do benefício (nomes consagrados como Caetano Veloso ou o Cirque du Soleil) e com certeza reduziria a oferta cultural ao público brasileiro. O maior problema da Lei Rouanet não é a quantidade de artistas famosos contemplados com o benefício. É a abertura de espaço para influências políticas ou mesmo pessoais em sua concessão. No ano passado, a própria Bethânia enviou ao ministério um projeto para captar R$ 1,8 milhão para uma turnê. A área técnica do ministério deu parecer contrário. O então ministro e conterrâneo de Bethânia, Juca Ferreira, contrariou o parecer e autorizou a artista a captar R$ 1,5 milhão.
No caso do blog de Bethânia, a maior razão da polêmica não foi a fama da artista, mas o tamanho do orçamento. Segundo a assessoria da cantora, o motivo seria o uso de recursos multimídias. O projeto aprovado prevê que o blog apresente todos os dias um vídeo com um número de Bethânia, dirigido pelo cineasta Andrucha Waddington. O custo de cada vídeo seria de cerca de R$ 3.500. O orçamento inicial de R$ 1,8 milhão, alterado pela CNIC, previa a remuneração de R$ 600 mil para o diretor artístico (leia-se Bethânia). Nem Waddington nem Bethânia quiseram revelar quanto cada um receberia. Em nota, o Ministério da Cultura afirma que os critérios para a aprovação dos projetos são "técnicos e jurídicos", e que "rejeitar um proponente pelo fato de ser famoso, ou não, configuraria óbvia e insustentável discriminação". Está certo. Mas contrariar o parecer dos técnicos para aceitá-lo também é.