domingo, novembro 11, 2012

O perigoso autismo de Cristina - CLÓVIS ROSSI

FOLHA DE SP - 11/11


Atribuir a uma conspiração da direita o megapanelaço de quinta é ignorar os fatos e a história da Argentina


Entrava a madrugada de 24 de março de 1976. A presidente da Argentina, Isabelita Perón, deixava de helicóptero a Casa Rosada, a sede do governo.

Logo em seguida, toca o telefone no escritório de Flávio Tavares, então correspondente do jornal mexicano "Excelsior" e "free-lancer" do "Estadão", para o qual eu trabalhava à época. Assessores da presidente nos ofereciam uma entrevista exclusiva, na Quinta de Olivos, a residência oficial.

Olhamo-nos perplexos. Sabíamos que um golpe militar estava em marcha há dias e tínhamos todas as razões para crer que o helicóptero não estava levando Isabelita para Olivos mas para algum dependência militar, como prisioneira. De fato, o golpe consumou-se minutos depois.

Conto o episódio para ilustrar a capacidade que têm muitos governantes, em especial na Argentina, de isolar-se da realidade que os rodeia. Temo que Cristina Fernández de Kirchner possa estar sendo vítima de idêntico autismo político, a julgar por sua reação à impressionante manifestação da quinta-feira em Buenos Aires, com atos menos espetaculares em vários outros pontos do país.

Antes que os hidrófobos do kirchnerismo me fuzilem, deixo claro que não há termo de comparação entre Isabelita e Cristina. A atual presidente é uma política de raça, goste-se ou não dela, e Isabelita nunca passou de uma cantora de cabaré que chegou à Presidência pelo compartilhamento da cama com o general Juan Domingo Perón.

Mas o risco de não entender os ruídos da rua é permanente, para todos os governantes, de raça ou não. Atribuir a uma suposta conspiração da direita o megapanelaço de quinta é fingir desconhecer a história. A direita argentina jamais teve capacidade de mobilização popular. Sempre que ficava descontente, mobilizava os militares, como o fez contra Isabelita.

A manifestação de quinta leva todo o jeito de uma repetição dos panelaços espontâneos de 2001 que forçaram outro presidente, Fernando de la Rúa, a fugir, também de helicóptero, depois de decretar um estado de sítio tão irrealista quanto a entrevista que a assessoria de Isabelita nos prometia.

Cristina não tem o direito de ignorar que a popularidade que lhe permitiu reeleger-se, em 2011, está sendo crescentemente corroída pelos problemas econômicos visíveis até a olho nu.

Basta lembrar que, se o crescimento econômico em seus cinco anos de governo foi de apreciáveis 5,5% ao ano na média (mais que a média de Lula no Brasil), agora a economia está praticamente estancada (crescimento de 1,4% de agosto-2011 a agosto-12). Sem falar na maquiagem da inflação ou nos problemas de energia elétrica ou nos controles cambiais, que nunca funcionaram na Argentina, ainda que repetidamente ensaiados.

Cercar-se de incondicionais e brigar com o resto dos argentinos pode não levar a presidente a fugir de helicóptero, mas é a melhor maneira de enterrar os sonhos, dela ou de seus próximos, de uma re-reeleição e de levar o kirchnerismo a não fazer sucessor em 2015.

Velha direita - ANCELMO GOIS

O GLOBO - 11/11

Veja como o conservadorismo é forte nos EUA.
Como lembrou a historiadora Isabel Lustosa, os estados americanos que adotavam oficialmente a segregação racial no século passado são os mesmos onde o Partido Republicano é mais forte.

Acupuntura liberada
O juiz Joaquim de Almeida Neto, do IX Juizado Especial Criminal da Barra, no Rio, mandou arquivar processo do CRM contra o chinês Yu Tin, que exerce acupuntura desde 2004.
O CRM alegava que, no Brasil, acupuntura é atividade privativa de médico. Mas, segundo o magistrado, não há legislação que determine isso.

Sucessão na Marfrig
A escolha de Sérgio Rial, ex-diretor da Cargill, para presidir a Marfrig não foi unânime entre os sócios.
O BNDES preferia Antonio Maciel, que está na Suzano.

Caso médico
Mais uma servidora do Itamaraty morreu de malária e febre tifoide. Foi dia 7. Teria contraído as doenças em Malabo, Guiné Equatorial.

Anistia para Regina
Houve quem estranhasse a ausência do nome de Regina Duarte, no ano em que completa 50 anos de carreira, na lista dos artistas homenageados por Dilma com a Ordem do Mérito Cultural, semana passada.
Teme-se que seja ainda retaliação por causa do apoio da grande atriz a Serra, em 2002, e por ter afirmado na TV, ter medo de Lula.

Aliás...
Regina, em recente entrevista à “Folha de S. Paulo”, fez grandes elogios a Dilma:
— Eu tenho encantamento por ela desde o início, sabe?

Barra pesada
A pesquisadora Ana Amélia Camarano, do Ipea, estima que 1,3 milhão de mulheres brasileiras cuidam de idosos dependentes sem receber nenhuma renda e sem contribuir para a Seguridade Social:
— Se essas cuidadoras familiares de idosos estivessem no mercado de trabalho, poderiam gerar uma renda mensal de R$ 857 mil, o que significa um acréscimo de 0,4% do PIB. A renda mensal familiar passaria de R$ 408 para R$ 577.

Segue...
Para Ana Amélia, resta uma questão importante:
— Como essas mulheres vão sobreviver, pois não terão direito a aposentadoria?

Carta ao filho
A Editora Record vai lançar, em 2013, o livro “Carta ao filho”, da psicanalista Betty Milan.
São memórias, na forma de uma conversa com o filho. Betty lembra a chegada de sua família libanesa ao Brasil, os tempos de faculdade de Medicina em São Paulo, a prisão na ditadura e seu longo processo de análise com Jacques Lacan.

O DOMINGO É...
...de MarianaXimenes, a formosa atriz de 31 anos, que brilha em “Guerra dos sexos”, a novela das 19h da TV Globo. A personagem é uma das cinco campeãs da Central de Atendimento ao Telespectador da emissora. A maioria das ligações é de mulheres que pedem detalhes de seu figurino. Na trama, a bela é Juliana, que machuca (ai...) o coração dos homens. Machuca eu 


‘Esse cara sou eu’
Corre na internet uma brincadeira com “Esse cara sou eu”, a música de Roberto Carlos, tema da novela “Salve Jorge”,
da TV Globo.
Na montagem acima, uma das tantas que fazem sucesso nas redes sociais, a piada é: “Se tem alguém esperando o final de semana... esse cara sou eu.”

Banho turco...
Aliás, a novela tem criado modismos.
Mais de 50 mulheres foram ao W Spa, no Rio, semana passada, tomar... banho turco.

Por falar nisso...
Existe mesmo um mal-estar na polícia do Rio pelo fato de a trama de Glória Perez creditar ao Exército a ocupação do Complexo do Alemão.
Para ser justo, quem primeiro entrou ali foram as polícias Militar e Civil, com apoio de blindados da... Marinha.

Calma, santas
Os policiais civis e militares que atuam em Copacabana serão treinados, quarta, para atender a turma da Parada do Orgulho LGBT-Rio 2012, dia 18.

Feliz 1958, o musical
O livro do coleguinha Joaquim Ferreira dos Santos “Feliz 1958 — O ano que não devia terminar” vai virar musical.
O projeto é da atriz Andréa Veiga.

Avenida Dias Gomes
O prefeito Eduardo Paes adorou a ideia de Ferreira Gullar de o Rio homenagear Dias Gomes (1922-1999).
A nova avenida do Porto Maravilha onde ficará o Centro de Mídia dos Jogos de 16 será batizada com o nome do grande teatrólogo. Merece.

TREM DE FERRO
Depois de cinco anos totalmente fechado ao público (desde janeiro de 2007), o Museu do Trem, com seu rico acervo, que inclui a Baroneza (com “z” mesmo), primeira locomotiva do Brasil, começa a entrar nos trilhos. O Iphan, que administra o museu, iniciou este ano um programa de visitas agendadas por escolas. E a boa notícia é que o presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), José do Nascimento Júnior, vai receber do Iphan o museu e pretende reabri-lo até junho de 2013, antes da Copa das Confederações.

Inaugurado em 1984, o museu tem mais de mil peças nas antigas oficinas da Rede Ferroviária, na Rua Arquias Cordeiro, ao lado do Engenhão, no subúrbio carioca do Engenho de Dentro. Além da Baroneza, importada da Inglaterra há 160 anos, os destaques do acervo são o carro imperial de Dom Pedro II, outro carro feito para transportar o rei Alberto, da Bélgica, em visita ao Brasil, e o do presidente Getulio Vargas, de 1935.

Apesar de o local ter segurança 24 horas, o aspecto externo é de abandono (veja as fotos), com o prédio em mau estado e com pichações. Os presidentes da Associação dos Amigos do Museu do Trem, Hélio Suêvo, e da Associação Fluminense de Preservação Ferroviária, Antonio Pastori, protestam contra o fechamento.

A recuperação do museu pelo Ibram será um capítulo importante na história das nossas ferrovias, que encolheram muito a partir da década de 1950 com o Plano Nacional de Erradicação dos Ramais Ferroviários. Projetos como o do trem-bala só agora começam a sair do papel. Mas aí é outra história.

Uma CPI sob forte suspeita - PEDRO SIMON

O GLOBO - 11/11


A CPI do Cachoeira, como ficou conhecida a Comissão Parlamentar de Inquérito criada no Congresso Nacional para "investigar práticas criminosas do senhor Carlos Augusto Ramos desvendadas pelas operações Vegas e Monte Carlo da Polícia Federal’,’ chega ao fim. Sem surpresas, sem investigar com seriedade, sem dignidade, figurino que caracterizou praticamente toda a sua atividade desde o dia 25 de abril deste ano, data da primeira reunião de trabalho.

O Congresso Nacional não vive sua melhor fase em termos de imagem pública, mas deixou passar uma ótima oportunidade de demonstrar à nação que compreende o sentido de urgência manifestado pela sociedade brasileira por uma vida pública fortemente associada à ética. A intensa mobilização popular pela aprovação da Lei da Ficha Limpa já demonstrou que o povo anseia por isso. É também esse o caminho apontado pelo julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Figuras públicas que exerceram altos cargos na República, independentemente de partido político, empresários e banqueiros estão sendo punidos. Seria exagero considerar que "o Brasil mudou’, mas é certo que o tribunal indica um rumo diferente a ser trilhado pelas instituições.

Indiferente, o Parlamento mantém práticas viciadas e impermeáveis à influência da opinião pública, oferecendo à nação um triste espetáculo. Foram evitados de toda a forma os depoipresa, a Delta, construtora que, embora declarada inidônea pela Corregedoria Geral da União (CGU), continua recebendo pagamento milionário do governo, repassou, comprovada-mente, R$ 421 milhões a 18 empresas "fantasmas”, dinheiro que alimentou campanhas eleitorais e promoveu o enriquecimento pessoal de indivíduos e grupos. Apesar das evidências, a CPI enviou ao arquivo cerca de 500 requerimentos de quebra de sigilo fiscal e bancário dessas empresas e de pessoas envolvidas. Tudo já conhecido e comprovado nos inquéritos da Polícia Federal, um conjunto de informações mantidas na gaveta da CPI.

Numa tentativa, que alguns consideram desesperada, de evitar a desmoralização da CPI — e suas consequências para a credibilidade já abalada do Congresso —, solicitei investigações sobre a conduta da comissão ao Conselho de Ética e à Corregedoria do Senado. Nos pedidos aponto irregularidades praticadas de forma ostensiva pela CPI, a sabotagem dos trabalhos, o arquivamento de requerimentos e os adiamentos que esvaziaram completamente o objetivo da comissão investigatória.

A CPI está sob forte suspeita, e a atuação de integrantes coniventes com as irregularidades precisa ser investigada. Esperava-se que a comissão investigasse especialmente as relações de Cachoeira com o Estado brasileiro, mas ela se restringiu à atuação da quadrilha em Goiás e o Distrito Federal.

Nesse aspecto, a história se repete. Por ocasião das CPIs do Impeachment e dos Anões do Orçamento, que afastaram um presidente da República e cassaram os mandatos de seis parlamentares — enquanto outros quatro renunciaram para não enfrentar processos —, surgiu pela primeira vez a oportunidade de investigar os corruptores. Havia um farto material resultante das investigações, e a criação de uma CPI dos Corruptores se apresentava como a consequência natural do trabalho. Em livro recente, "O momento supremo do Brasil — A Justiça conquistada: das CPIs ao julgamento do men-salão”; analiso aquelas CPIs, entre outras, e faço um paralelo histórico com a CPI do Cachoeira.

Aquelas foram comissões de inquérito que deram certo. Como aconteceu com a CPI dos Correios, que deu origem ao processo e ao julgamento em curso no STF, que pelo ineditismo desperta tanto a atenção do país. Surgida inicialmente para investigar corrupção na estatal, acabou por desvendar uma rede de compra de votos no Congresso, mediante desvio de dinheiro público.

Hoje, quando nos deparamos com nova chance de acabar de vez com a sensação de impunidade, quando se localizam nome, endereço e CPF de pelo menos um poderoso corruptor, a CPI do Cachoeira não faz o seu trabalho e expõe lamentavelmente o Congresso Nacional como um poder alheio ao seu tempo.

A Selic e os superávits primários - AFFONSO CELSO PASTORE


O Estado de S.Paulo - 11/11


Uma pessoa decide tomar um empréstimo de dez mil reais, destinando cinco mil para aumentar seus gastos correntes, e cinco mil para comprar um certificado de depósitos. Tem uma dívida bruta de dez mil reais, porém uma dívida líquida de apenas cinco mil reais. Ocorre que paga sobre o empréstimo uma taxa de juros de 10% ao ano, e recebe no certificado de depósitos um rendimento de 5% ao ano. A taxa de juros sobre a sua dívida bruta é de 10% ao ano, mas a taxa de juros sobre a sua dívida líquida é de 15% ao ano. Se essa pessoa cometer o erro de aumentar sua dívida bruta em mais cinco mil reais para comprar mais cinco mil reais em certificados de depósitos, terá mantido sua dívida líquida constante. Mas agora a taxa de juros implícita sobre a dívida líquida terá se elevado para 20% ao ano (o gasto de juros de mil e quinhentos reais sobre a dívida bruta menos a receita do certificado de depósitos de quinhentos reais, em proporção à dívida líquida de cinco mil reais). Nenhum ser racional faria esta operação.

Mas os países são diferentes. No Brasil, o governo acumula dívida pública bruta quer para atender à necessidade de financiamento do setor público - o déficit nominal -, quer para comprar ativos. Dois deles - os mais importantes - são as reservas internacionais e os créditos junto a instituições financeiras oficiais, como os repasses ao BNDES. Como estes são ativos líquidos (o que é certamente verdadeiro no caso das reservas), podem ser deduzidos da dívida bruta, gerando o conceito de dívida líquida, que é o único relevante para aferir a solvência do governo.

Mas, como no exemplo acima, quanto maior for a diferença entre a taxa de juros pagos sobre a dívida bruta e a taxa à qual são remunerados os ativos, e quanto maior for o tamanho dos ativos em relação à dívida líquida, maior será a taxa de juros implícita da dívida líquida.

Segundo os cálculos do Banco Central, a dívida pública brasileira líquida está, atualmente, em 35% do PIB. No gráfico 1 está a evolução dos dois ativos mencionados acima. Em 2006, os créditos contra instituições financeiras oficiais representavam 0,5% do PIB, e o estoque de reservas chegava a 7,7% do PIB, mas esses números cresceram: atualmente, os créditos contra instituições financeiras somam 8,5%; e as reservas, 17,5% do PIB. Os ativos totais representam 26% do PIB, enquanto a dívida líquida é de 35% do PIB. Não há dúvidas de que é grande a proporção dos ativos em relação à dívida líquida. Por outro, os créditos contra o BNDES rendem a TJLP, e, segundo os dados do relatório sobre a administração de reservas, do Banco Central, estas rendem uma taxa de juros inferior a 1% ao ano. Ambas são bem mais baixas do que a taxa Selic, que é a menor das taxas de juros sobre a dívida bruta. Não poderia haver surpresas, portanto, que a taxa de juros implícita da dívida líquida, no Brasil, fosse superior à taxa Selic.

No gráfico 2 são superpostas a taxa de juros implícita da dívida líquida e a taxa Selic. Em 2006, ambas situavam-se em 18% ao ano, e desde então a taxa Selic veio caindo e chegou, em setembro de 2012, a 7,25%. Já a taxa de juros implícita da dívida líquida oscilou em torno de um patamar estável, e está, atualmente, em 15,6% ao ano. Salta aos olhos que, enquanto a taxa Selic declinou continuamente, a taxa implícita da dívida líquida manteve-se oscilando em torno de um patamar estável. O descolamento entre as duas taxas deve-se à acumulação de ativos e à diferença entre as taxas de juros sobre a dívida bruta e sobre os ativos.

A equação de dinâmica da dívida nos ensina que, para estabilizar a dívida líquida em relação ao PIB, tem de ser gerado um superávit primário dado pelo produto da relação dívida/PIB pela diferença entre a taxa real de juros e a taxa de crescimento econômico. Admitindo que a taxa de inflação se mantenha (como tem ocorrido) em 5,5% ao ano, a taxa real de juros sobre a dívida líquida está, atualmente, em 10% ao ano (15,6% da taxa nominal sobre a dívida líquida menos 5,5% da inflação). Admitindo (com otimismo) um crescimento econômico de 4% ao ano, e uma dívida líquida de 35% do PIB, o superávit primário que atualmente estabiliza a relação dívida/PIB é de 2,1% do PIB. É um superávit primário menor do que a "meta" de 3,1% do PIB, mas ainda assim muito maior do que é apontado por exercícios nos quais é ignorado o efeito gerado pela acumulação de ativos e pelo diferencial entre as taxas de juros sobre a dívida bruta e sobre os ativos.

Em setembro, os dados do Banco Central mostraram que o superávit primário dos últimos 12 meses atingiu 2,3% do PIB, muito próximo da taxa calculada acima. A conclusão é de que, neste momento, praticamente não há mais espaço para a sua redução. O que esperar daqui para a frente?

A cada mês vence uma parcela de dívida contratada no passado, e como toda a estrutura de taxa de juros de mercado veio declinando, no processo de rolagem uma dívida mais barata irá gradualmente substituindo uma dívida mais cara. A tendência é que a taxa de juros da dívida bruta decline. Mas essa é uma equação incompleta, porque ignora a acumulação de ativos.

O governo vem forçando as instituições financeiras oficiais a ampliar os empréstimos, o que o obriga a capitalizá-las, tendo de realizar novas transferências. Segundo, recentemente o câmbio passou a ser utilizado como um instrumento para elevar a competitividade da indústria, e o Brasil migrou para o regime de câmbio fixo. Como após a adesão ao câmbio fixo os fluxos de ingressos têm sido praticamente nulos, o Banco Central não precisou realizar compras no mercado à vista, o que estabilizou as reservas.

Parte desse comportamento vem do encolhimento dos ingressos para a bolsa. O mau trato dado às ações vem deprimindo seus preços, gerando a queda nos ingressos. É o caso do subsídio ao preço da gasolina deprimindo a cotação das ações da Petrobrás; da ingerência na governança da Vale do Rio Doce acentuando a queda de suas ações provocada pela redução dos preços do minério de ferro; dos efeitos negativos sobre os preços das ações das geradoras de energia elétrica, devido à confusão na renovação das concessões; e da pressão sobre os bancos, reduzindo as cotações de suas ações. O resultado é que um ingresso em torno de US$ 45 bilhões por ano, em 2010, declinou para perto de US$5 bilhões, atualmente.

Mas este quadro de fluxos financeiros baixos não é eterno, e como já ocorreu incontáveis vezes no passado os ingressos de capitais deverão retornar. Se o governo se mantiver fiel à decisão de usar o câmbio como instrumento para melhorar a competitividade da indústria, o que parece ser uma decisão prioritária, terá de retomar a acumulação de reservas, elevando a taxa de juros implícita sobre a dívida líquida.

Há muito que são lançadas advertências de que a acumulação de reservas tem um custo fiscal, que não aparece no orçamento do governo, e sim na taxa de juros implícita da dívida líquida. Da mesma forma, sabe-se que a descoberta da nova versão do "moto perpétuo" - a elevação da dívida pública para transferir recursos ao BNDES - tem um custo fiscal, que também aparece na taxa implícita de juros sobre a dívida líquida. Um excelente trabalho de Sergio W. Gobetti (Política Fiscal e Sustentabilidade do Crescimento) expõe como a taxa implícita de juros sobre a dívida líquida é determinada endogenamente, sofrendo a influência da acumulação de ativos, e traça cenários, alguns dos quais são extremamente preocupantes. Vale a pena ler esse trabalho.

Recentemente, o governo redescobriu que a política fiscal tem potência elevada para ampliar a demanda, o que, ao lado de sua decepção com a falha da política monetária em libertar o espírito animal dos empresários, vem elevando a tentação de reduzir ainda mais os superávits primários. Um risco nessa estratégia é o de aumentar as pressões inflacionárias. Mas este é o menor dos problemas para um governo que é extremamente tolerante a inflações acima da meta. O outro risco, dependendo dos exageros quanto à acumulação de ativos, à nova meta do superávit primário e às manobras contábeis que escondam o seu verdadeiro tamanho, é produzir o retorno do crescimento da relação dívida/PIB.

A aritmética malfeita dos que teimam em ignorar os argumentos acima diria que não há nenhum problema: afinal, a taxa Selic caiu, o que abriria espaço para superávits fiscais menores. Mas não vivemos no mundo do "faz de conta", e sim no mundo real, no qual o monstro da sustentabilidade da dívida não foi destruído. Está apenas adormecido!

Ainda existe o tripé macroeconômico? - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS


O Estado de S.Paulo - 11/11


O chamado tripé macro é composto pelo regime de metas de inflação, fiscais e pelo câmbio flutuante. Acho que ninguém pode por em dúvida que ele foi fundamental para consolidar a estabilização e o maior crescimento da economia.

Também não se pode por em dúvida que nos dois ou três últimos anos sua forma de operação vem mudando, ainda que se aceite que a estabilidade macro continue sendo vista como essencial.

A questão, portanto, é entender o que mudou, se as mudanças fazem sentido e quais poderão ser suas consequências.

Política monetária. Desde a introdução do tripé, sempre prevaleceu a proposição de que a estabilidade abre a porta do crescimento, que seria complementado por outras políticas; na versão atual, é explícita a ideia que o crescimento tem de ser ativamente buscado em todas as áreas e, neste sentido, não se deve apertar a política monetária para chegar ao centro da meta quando o crescimento no curto prazo anda mais fraco que o desejado, como agora, mesmo quando os sinais de que a inflação está subindo sejam bastante claros. É importante ressaltar que a alta recente da inflação vai muito além dos efeitos do choque agrícola do início do ano. Mais de 25% das categorias de preços do IPCA estão subindo mais de 10%, em doze meses (chamamos na MB de índice de difusão forte).

Pelas mesmas razões a meta central de inflação não deve ser reduzida, para ser mais parecida com a inflação mundial, no horizonte visível. A convergência para 4,5% pode se espalhar no tempo. Na prática, isto significa que uma inflação de 5,5%, como a prevista atualmente, está de bom tamanho, embora as autoridades não digam isso em público. Isso não quer dizer que o BC não se preocupe com a inflação, mas sim que o sistema de metas está sendo operado de forma diferente. Também acredito que, se a inflação ameaçar romper o teto da banda (6.5%), a taxa de juros subirá, como já ocorreu no passado recente.

Então, está tudo bem? Não creio.

Vejo dois grandes problemas: a inflação brasileira está firmemente ancorada neste patamar de 5%-6% há um bom tempo, com o preço dos serviços flutuando ao redor de 8%, neste caso como resultado direto do ganho real dos salários (mínimo e de mercado), resultante da escassez generalizada de mão de obra. Nesta estrutura, um choque de oferta tem mais efeito irradiador do que se imagina. É por isso que, no primeiro semestre, com a economia quase parada, a inflação não recuou.

Ao longo do tempo, os riscos são crescentes, e reforçados pelo segundo problema com o sistema atual: as frequentes intervenções diretas do executivo visando segurar elevações de certos preços, a chamada administração do índice. Por exemplo, no ano passado a inflação só ficou menor que o teto da meta em virtude do adiamento do reajuste dos cigarros. Neste ano, o mesmo ocorreu com o reajuste nas cervejas. Existe ainda a incerteza sobre o eventual encerramento das reduções temporárias de IPI de autos e outras utilidades domésticas, que implicariam em elevações de preços.

O problema aparece quando a administração do índice passa a introduzir distorções que gerem custos para a economia.

O caso atual mais gritante é o dos preços de gasolina e diesel, que obriga a Petrobrás a importar gasolina ao preço internacional e vendê-la aqui dentro mais barato, em razão do controle de preços. Isto está destruindo o fluxo de caixa da Petrobrás, comprometendo seu programa de investimentos e afetando até a oferta de combustíveis, como já coloquei aqui mais de uma vez. Para ganhar 0,2 ou 0,3 no índice de inflação corrente, o futuro da produção de óleo, gás e etanol está sendo prejudicada.

O pior é que, muitas vezes, a tentativa de compensar os efeitos das intervenções pode colocar mais problemas no sistema. Por exemplo, não tenho dúvida que o atropelo para colocar em prática a desejada redução no preço da energia elétrica em janeiro, de sorte a afetar o IPCA de fevereiro e março, tem tudo a ver com a abertura de espaço para algum reajuste dos combustíveis. A questão é que a pressa de mudar pode levar a consequências danosas para as decisões do setor elétrico e seu futuro, coisa que me parece altamente provável.

Câmbio. O mercado de câmbio perdeu muito da sua liquidez, desde a introdução do IOF. Nessas condições o BC é soberano, até porque, além das grandes reservas, também opera no mercado futuro. A cotação do dólar hoje lembra a história do carro pioneiro na produção em massa, o Modelo T: Henry Ford dizia que o veículo poderia ter qualquer cor, desde que fosse preta. Da mesma forma, o dólar no Brasil pode flutuar, desde que pertinho de dois reais, e assim deve continuar até onde a vista alcança ou quando o Banco Central mudar de ideia.

Política fiscal. A aparência é de continuidade, pois existem metas de superávit primário. Entretanto, o regime fiscal está sendo lentamente destruído, a começar das estatísticas: é interminável a lista de truques, que melhoram os números, mas escondem a verdadeira situação econômica. Uma lista rápida, embora incompleta, inclui: a consideração de depósitos judiciais como receita própria, a capitalização da Petrobrás (que transformou dívida em superávit primário), a reclassificação dos subsídios do programa Minha Casa, Minha Vida como investimento, os subsídios envolvidos nas capitalizações do BNDES e agora da Caixa, a consideração dos dividendos das estatais que, simultaneamente, recebem aportes de recursos em montantes maiores, a crescente utilização dos restos a pagar para "fechar" a estatística do superávit (que o excelente Mansueto Almeida chamou de orçamento paralelo). Como resultado, não se sabe exatamente qual é o resultado fiscal que faça sentido econômico. Só sei que ele é menor que o oficial, que o gasto é maior, e que o regime fiscal é pior.

É evidente que o tripé da política econômica está operando de forma diversa daquele do passado. O futuro vai dizer se foi bem-sucedido. De minha parte, acredito que esteja se consolidando um nível desconfortável de inflação, sem que o crescimento se mostre mais robusto. Ao contrário, estamos numa armadilha de crescimento baixo, assunto ao qual voltarei proximamente.

Coisa de americano - PAULO SOTERO


O Estado de S.Paulo - 11/11


No fim de semana anterior às disputadíssimas eleições que deram o segundo mandato ao presidente Barack Obama, na última terça-feira, cenários de pesadelo preocuparam os analistas da grande imprensa americana. Em meio à polarização política que ameaça a governabilidade do país, e chegou ao paroxismo durante a interminável e caríssima campanha eleitoral deste ano, eles temeram que o pleito terminasse num empate no colégio eleitoral dos 538 chamados grandes eleitores que, constitucionalmente, escolhem o presidente do Estados Unidos. Num dos cenários, Obama e seu desafiante republicano, o ex-governador de Massachusetts Mitt Romney, acabariam com 269 votos cada um. As eleições, nesse caso, seriam decididas pela próxima legislatura do Congresso, a de número 113, que tomará posse no próximo dia 3 de janeiro, como manda a Constituição. A Câmara dos Representantes elegeria o presidente e o Senado, o vice. Como se previa que os republicanos continuariam no mando na Câmara e os democratas manteriam a maioria no Senado, como de fato aconteceu, os deputados elegeriam Romney para a presidência, os senadores confirmariam o vice-presidente Joseph Biden no cargo e a desgastante divisão que sufoca a política americana há quase duas décadas se instalaria na própria Casa Branca.

Outro cenário que preocupou os analistas até tarde na noite do dia 6 foi a inversão dos resultados da eleição popular e do colégio eleitoral. No envenenado ambiente da política americana - no qual narcisistas bilionários como o empresário e personalidade de televisão Donald Trump alimentam a mentira segundo a qual Barack Obama não nasceu nos Estados Unidos e não é, portanto, elegível à Casa Branca -, a inversão certamente ajudaria a alucinada direita republicana a levantar dúvidas sobre a legitimidade do presidente. Ocorreu quatro vezes na história do país, em 1824, 1876, 1888 e no ano 2000. No episódio mais recente, o vice-presidente Albert Gore, democrata, ganhou a votação popular por uma diferença de 543 mil votos num total de mais de 104 milhões. No entanto, o republicano George W. Bush recebeu a maioria dos votos do colégio eleitoral depois de uma controvertida decisão por 5 a 4 dos juízes da Suprema Corte, que lhe deu a vitória na Flórida. Em 18 eleições desde 1824, o vencedor foi eleito sem receber a maioria dos votos das urnas.

Como se sabe, Obama foi eleito com 332 votos no colégio eleitoral (incluídos os 29 da Flórida, onde a apuração incluiu uma recontagem dos votos populares), ou seja, 62 mais do que a maioria de 270. O presidente americano recebeu 2,5 milhões de sufrágios nas urnas mais do que Romney. Com o Congresso preocupado em evitar uma situação potencialmente calamitosa que a gigantesca dívida pública e o enorme déficit fiscal apresentam ao país - e ao mundo -, são remotas as chances de o susto da semana passada levar a mudanças do anacrônico sistema de eleição indireta do presidente dos Estados Unidos. Criado pelos founding fathers no apagar das luzes do congresso constitucional reunido em Filadélfia em 1787, o sistema resultou dos trabalhos de uma comissão de assuntos pendentes. É fruto de um compromisso negociado para dar maior peso nas decisões nacionais aos menores dos 13 Estados originais que se uniram para formar os EUA.

A lógica que criou o colégio eleitoral tem parentesco com a preocupação que levou os constituintes de 1988 no Brasil ao absurdo que determinou que os Estados da República tenham um mínimo de 8 e um máximo de 70 deputados na Câmara Federal, o que faz com que, considerado o tamanho das populações dos Estados, um voto para deputado em Roraima valha cerca de 150 vezes mais do que um voto para deputado em São Paulo.

No colégio eleitoral dos EUA, a representação dos Estados é igual ao tamanho de suas respectivas delegações no Congresso, ou seja, dois senadores mais um número variável de deputados que é ajustado a cada dez anos, de acordo com o censo populacional realizado nos anos que terminam em zero. Cada deputado representa aproximadamente 750 mil eleitores. Assim, Estados com pouca gente, como Montana e Wyoming, têm apenas três votos no colégio eleitoral, pois sua delegação no Congresso é composta por dois senadores e apenas um deputado. Já a Califórnia, que é o Estado mais populoso do país, tem 55 votos.

Não é por falta de oposição que o colégio eleitoral sobrevive. Alguns dos mais respeitados nomes da política americana defendem sua reforma ou extinção. "Deveríamos acabar com esse absurdo", afirmou recentemente Lee Hamilton, ex-presidente do Woodrow Wilson International Center for Scholars, um democrata moderado que representou por mais de 30 anos o distrito de Bloomington, Indiana, na Câmara dos Deputados. Para Hamilton e outros observadores experientes, o colégio eleitoral cria pelo menos dois problemas. Por um lado, diminui a credibilidade da narrativa nacional sobre a excepcional qualidade da democracia americana, compartilhada por democratas, republicanos e independentes. Além disso, distorce as campanhas, na medida em que faz com que os candidatos se concentrem nas disputas dos chamados battleground states, ou seja, os cerca de dez Estados que podem pender para um lado ou outro e decidir a eleição. Não há, por exemplo, campanha presidencial na Califórnia e em Nova York, Estados fortemente alinhados com os democratas, ou no Texas, onde é folgada a maioria de eleitores republicanos, pois sabe-se por antecipação o resultado. Os candidatos visitam esses Estados, que estão entre os mais ricos, apenas para participar de eventos de levantamentos de fundos para suas campanhas.

Passam de 700 as propostas apresentadas ao longo dos anos para reformar o colégio eleitoral e estabelecer o princípio democrático elementar segundo o qual a cada cidadão cabe um voto e esse tem o mesmo valor dos votos individuais de todos os demais cidadãos. O jeito mais simples de afirmar esse princípio seria eliminar o colégio eleitoral. Isso requereria uma emenda constitucional. A ideia, no entanto, é politicamente inviável, pois tal emenda não seria referendada pelas assembleias de dois terços dos Estados, depois de ser aprovada pela Câmara e o Senado. A razão é que os Estados menores não têm interesse em modificar um sistema que, embora seja reconhecidamente ultrapassado, os favorece.

A alternativa à emenda constitucional é o caminho apontado por Nebraska e Maine, que têm cinco e quatro votos no colégio eleitoral, respectivamente. Trata-se de Estados com perfis diferentes. O Maine é um Estado liberal típico da Nova Inglaterra. Nebraska, situado nas pradarias do meio-oeste, está entre os mais conservadores. Nos anos 1990, as assembleias legislativas de ambos inovaram na alocação de seus votos no colégio eleitoral presidencial. Pela fórmula que adotaram, o vencedor da eleição popular leva os dois votos do colégio presidencial que correspondem à sua representação no Senado. Os votos que correspondem ao número de deputados é alocado de acordo com o resultado nos distritos em que eles são eleitos. Não há obstáculos legais para que os demais Estados sigam o exemplo do Maine e de Nebraska. Mas é zero a expectativa de que venham a fazê-lo.

Partidos trincados - DENISE ROTHENBURG

CORREIO BRAZILIENSE - 11/11

Enquanto Dilma tenta fechar o cerco em torno do PMDB e do PSB, uma parcela expressiva do PDT se afasta. Cristovam Buarque, do DF, é um dos que declara não ter hoje candidato a presidente para daqui a dois anos

A presidente começa a juntar os partidos da base em torno de si, mas, via de regra, dificilmente evitará fissuras nessa barragem que tenta montar com vistas a 2014. Primeiro, é muito cacique para poucos espaços que demonstrem a capacidade gerencial de alguma legenda em termos de política pública de peso — ainda que o governo esteja perto dos 40 ministérios. Com o ministério da Pequena e Micro Empresa aprovado na semana passada serão 39 carros com bandeira verde e amarela transitando pelas ruas do Distrito Federal.

Em segundo lugar, há em meio à classe política a sensação de que o espaço para um candidato novo existe. Não por acaso, o governador da Bahia, Jaques Wagner, disse ao Correio Braziliense na semana passada que seu partido precisa pensar em abrir mão da cabeça de chapa em 2018. Citou inclusive o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, como um nome para esse projeto. O problema aí é saber se os partidos terão condições de esperar até lá ou se confiam na possibilidade de o PT aceitar ser o segundo da fila. A classe política está inquieta. Tanto é que Dilma chamou PMDB, PSB, e receberá esta semana Gilberto Kassab, do PSD. Tenta segurar todos ao seu lado pelos próximos dois anos e, de quebra, amarrar o futuro.

A dúvida é se ela conseguirá, uma vez que em todos os partidos há aqueles dispostos a seguir outros rumos. No PDT, por exemplo, uma parcela expressiva do partido se considera hoje mais oposição do que governo, embora o deputado Brizola Neto, do Rio de Janeiro, seja ministro do Trabalho. O senador Cristovam Buarque (PDT-DF) comentava dia desses os pilares que pretende ver num programa de governo para apoiar um candidato a presidente. O primeiro que ele cita é a democracia. Ok, no Brasil não há cheiro de ditadura, nem de esquerda, nem de direita, embora esteja difícil a tolerância com quem pensa diferente. O senador se refere ao compromisso com a reforma eleitoral que o país espera há 20 anos e não sai do papel.

O segundo pilar é, na avaliação de Cristovam, a estabilidade monetária, cujo modelo se esgota. “A inflação só não estoura porque Dilma tira imposto e mantém o preço da gasolina rebaixado artificialmente”, diz o senador, que é economista. Ele cita ainda como terceiro pilar o setor público, a falta da reforma do estado, o enxugamento do número de ministérios, a política salarial para o setor público que valorize o servidor nas mais variadas carreiras.

Um quarto pilar é a política de bolsas. “Tem que haver um candidato que diga às famílias que o melhor é viver sem bolsas, que construa portões de saída desse sistema via educação”, diz Cristovam, emendando com o quinto ponto: o modelo de desenvolvimento econômico. “Temos o mesmo há 50 anos, indústria metal/mecânica e o agronegócio exportador de commodities. Precisamos de um modelo econômico baseado na produção de alta tecnologia”, diz ele, citando a necessidade de redução do consumo de energia não renovável.

“Estou pronto para apoiar um candidato que carregue isso. Eu até gostaria de ser essa pessoa, mas vejo dificuldades. O PDT hoje não tem esse projeto”, diz ele, que não se esquece das agruras que passou como candidato pedetista a presidente em 2006, quando os filiados do PDT em vários estados apoiaram Lula. Cristovam, pelo que se vê, é um dos que integra um partido aliado ao governo, mas não estará no palanque de Dilma. Resta saber se outros seguirão o mesmo caminho.

Enquanto isso, na sala de despachos…
A área política do governo Dilma Rousseff não coloca o projeto dos royalties do petróleo como um teste para a fidelidade da base. A avaliação é a de que o alinhamento dos parlamentares nessa proposta foi mais estadual — produtores versus não-produtores — do que em termos de governo versus oposição. O mesmo caso não se repetirá, entretanto, na Medida Provisória 579, que trata do novo modelo de concessão do setor elétrico e que tem como relator na Comissão Mista o líder do PMDB no Senado, Renan Calheiros (AL). É aí que está o grande teste da base aliada nesse período pós-eleitoral. Vamos acompanhar.

Despreparo para a nova classe média - SUELY CALDAS


O Estado de S.Paulo - 11/11



O País inteiro comemora a ascensão de 35 milhões de brasileiros pobres à nova classe média. Na contabilidade da Secretaria de Assuntos Estratégicos, essa parcela do estrato social soma hoje 105 milhões de pessoas, um salto de 38% para 53% da população nos últimos dez anos. Comprar uma casa, um carro, uma televisão moderna, matricular o filho em escola privada, ter um plano de saúde, tudo isso deixou de ser sonho e virou realidade. E aí começaram outros problemas.

Nestes dez anos o País não se preparou para suprir as demandas e aspirações desses 35 milhões de brasileiros. Na educação e na saúde, o descompasso está mais concentrado em cidades populosas, sobretudo as capitais, onde o déficit de escolas e hospitais públicos é elevadíssimo. Na educação, nem tanto: as escolas públicas são mal aparelhadas, alunos passam semanas sem aulas porque professores fazem greves, mas há vagas disponíveis. Com isso a migração para a escola privada não foi espetacular: nos últimos dez anos o número de alunos dos ensinos fundamental e médio matriculados na rede privada cresceu pouco, de 11% para só 16% do total.

Mas na saúde o déficit de hospitais se agigantou, pressionado pelo aumento do número de trabalhadores com carteira assinada, que, com sua família, passaram a usufruir de algum plano de saúde. Segundo a Agência Nacional de Saúde (ANS), hoje quase 60 milhões de brasileiros são atendidos por médicos e hospitais privados, mas o número de leitos, centros cirúrgicos e laboratórios estacionou ou cresceu muito pouco, gerando dilemas em que, dependendo do plano, virou rotina o usuário esperar semanas por uma cirurgia de urgência e meses para ter seu pedido de tomografia atendido. Médicos contam ser comum hoje fazer cirurgias de madrugada.

O presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados, Henrique Salvador, culpa as empresas operadoras, que fazem planos baratos para atrair a nova classe média, sem se preocupar se a rede hospitalar e os laboratórios credenciados têm ou não capacidade para atender à expansão. E a ANS, a quem cabe regular e fiscalizar as empresas privadas de saúde, não tem trabalhado para garantir atendimento adequado.

Além da educação e da saúde, onde são mais específicas e palpáveis as carências da nova classe média, há outra importante deficiência na infraestrutura do País que é ampliada e agravada pelo ingresso desses 35 milhões de brasileiros no mercado de consumo: a produção de energia, seja elétrica ou a partir do petróleo. Se antes não passava de sonho comprar um carro, uma geladeira ou mais um aparelho de TV, hoje isso virou realidade para 35 milhões de novos consumidores. Suprir essa demanda antes reprimida implica expandir a produção de combustíveis e energia elétrica. E nisso, seja por concepção errada ou falta de bom planejamento, o País está apanhando de goleada.

Enquanto o consumo de energia elétrica e de combustíveis cresce, a produção cai. O País tem rios, água em abundância, ventos e muito petróleo debaixo do mar - matéria-prima de graça para fazer expandir a produção. Mas a miúda interferência do governo Dilma nas regras de regulação e, no outro extremo, sua omissão (caso da exploração do petróleo do pré-sal) têm dificultado novos investimentos em expansão.

Como explicar o discurso de "tudo pelo investimento", se os governos Lula e Dilma passaram quase cinco anos sentados em cima da riqueza do petróleo do pré-sal sem realizar uma única licitação, apesar de haver investidores ávidos por explorá-la? É balela jogar a culpa no Congresso por só agora ter aprovado a lei da divisão dos royalties do pré-sal. Quando o governo quer, pressiona e o Congresso vota. No caso dos royalties, Lula e Dilma foram omissos. O projeto de redução das tarifas de energia tem sido contestado pelas empresas, inclusive a estatal Eletrobrás, que avisam que não conseguirão manter investimentos futuros em geração e manutenção. Os apagões se proliferam, o consumo continuará crescendo e a nova classe média vai comprar mais eletrodomésticos. Já os investimentos estão empacados.

Papai (de familia) Noel - MÔNICA BERGAMO


FOLHA DE SP - 11/11

Esquenta o mercado de trabalho de bons velhinhos, que devem falar até 3 línguas, têm de fazer check-up e não podem pegar criança no colo

"Vida de Papai Noel deveria ser fácil, é um dia só por ano. Mas nem um dia por ano eu tô conseguindo trabalhar", diz o taxista aposentado Armando Schon. Em 2011, quando completou 70 anos, ele decidiu começar nova carreira: tentou complementar a renda de fim de ano fazendo bico de bom velhinho.

Desistiu. "Fui a mais de 20 testes. Sou gordinho e tenho barba branca, mas ninguém me quis, só porque não tenho experiência." Pudera: o trabalho, que costuma durar um mês, tem salário entre R$ 5.000 e R$ 20 mil e está cada vez mais concorrido, dizem postulantes à vaga ao repórter Chico Felitti.

Não há dados oficiais sobre o desemprego na categoria nem um sindicato de profissionais natalinos. Mas, só no mercado paulistano, há mais de dez agências especializadas em locar candidatos. A tropa de velhinhos para atender a crianças em shoppings e em casas de família chega a 400, calculam os empresários do setor.

"Estão exigindo cada vez mais deles", diz Jorge Occhiuzzio, da agência Papai Noel Brasil. "Mas a principal exigência ainda é ter jogo de cintura", diz Silvio Ribeiro, da agência Claus.

Ribeiro dá aulas de como exercer a função. E usa exemplos pessoais, como quando uma mulher adulta pediu para se sentar no seu colo. Papai Noel não pode dizer não, é uma das regras ensinadas, mas ele negou. "Meia hora depois, veio o motorista dela avisar que ela estava me esperando no carro. E que pagaria uma boa grana se eu fosse." Não foi.

A qualificação inclui também saber reagir a situações inusitadas. Uma delas é como se portar quando o cliente coloca o cachorrinho no colo do ator e pede para fazer fotos do mascote "pedindo" presente. "É cada vez mais comum. Tem que tratar o pet como se fosse criança, ensino", diz Paulo Mendes, da agência Companhia do Bafafá.

Há 13 anos no shopping Market Place, Paulo Palazzini, 64, precisou se reciclar para este ano. As crianças pediam tablets, smartphones e outras parafernálias tecnológicas. "Eu tinha dificuldade de entender." Foi, então, ler anúncios de loja de informática para se atualizar sobre os novos presentes desejados.

Não é só o tipo de apelo que evoluiu com o tempo. O jeito de pedir prenda para o Papai Noel também está diferente. O shopping Cidade Jardim decidiu proibir que as crianças se sentem no colo. "Haverá um trono para elas ao lado do Papai Noel", explica Debora Lucki, do marketing shopping.

Outra exigência é manter a saúde durante a jornada de trabalho, que vai de oito horas ao dia até 16 para alguns bravos (e sortudos) senhores que pegam dois empregos.

Todos os 50 sósias de são Nicolau da agência de Silvio terão de fazer exame médico antes de assumir seus tronos. "No ano passado, o do shopping Higienópolis passou mal enquanto estava trabalhando", explica Ribeiro. O Higienópolis diz que manterá o profissional do ano passado e que "solicita atestado de saúde" de quem trabalha na temporada de Natal".

Mas imprevistos acontecem mesmo com os mais experientes e precavidos. O shopping Iguatemi trabalhava com o mesmo Noel há mais de uma década. Na semana passada, ele teve problemas de saúde que o impediram de labutar. Foi substituído em cima da hora.

Nada que tenha causado sufoco. "Temos um banco de currículos dos profissionais que nos procuram", diz Eduardo Audrá, gerente do shopping. O Noel pinçado desse banco é Jeorge, 70, que é fluente em italiano e em inglês, além de em português.

Alguns senhores ainda são achados em público e não passam por "vestibular". José Carlos Bertochi, 65, foi ao West Plaza pagar uma conta no ano passado. Foi interpelado na fila com a pergunta "O sr. é Papai Noel?". Não era, mas passou a ser na mesma hora. E pegou gosto pela coisa: neste ano foi chamado por dois centros de compras. Escolheu um em Taubaté (SP), com cachê de R$ 8.000 por um mês mais pousada.

Mas nem todos conseguem assinar com um shopping. "É como se fosse a primeira divisão", diz Armando Peçanha, 69, que ainda não chegou lá. Em seu segundo ano, ele só conseguiu agendar casas de família. E muitas: "São seis na véspera e quatro no Natal". As agências servem Noeis para shoppings e também para famílias.

As ceias caseiras têm outro tipo de problemas. "Tem aquelas festas a que você vai, e o pessoal já está alcoolizado, passa a mão no seu bumbum e diz: 'Ô, Papai Noel gostoso!'. Tem sempre um engraçadinho", conta Jorge Occhiuzzio. A recomendação é cobrar o cachê, que vai de R$ 400 a R$ 1.000, adiantado.

"No fim, a festa da minha família começa só na noite do dia 25", diz Paulo Schinde, 72, que largou as agências e agora trabalha por conta, só em casas de família. "Mas vale a pena", diz o autônomo, que volta para casa com o saco cheio com R$ 10.000 que ganha das 20 casas que visita entre o dia 24 e o 25.

Agruras do Papai Noel moderno

- Passar no exame médico pré-contratação

- Ter de tirar foto com o cãozinho do cliente

- Estudar nomes e funções dos presentes tecnológicos que crianças pedem

- Esquivar-se de moças que tentam se sentar no colo

- Falar línguas estrangeiras para lidar com o público de fora do país

Nas barbas da multidão - HUMBERTO WERNECK


O Estado de S.Paulo - 11/11


Embora não fosse tiete, e muito menos uma autoridade, lá estava eu na fila do gargarejo, naquela praça apinhada, vendo o homem falar. A cidade era Sancti Spiritu, nas entranhas de Cuba, e o homem, inevitavelmente, Fidel Castro. Quanto a mim, antes que você me venha com insinuações, fazia o meu trabalho de repórter. E aproveitava para matar a vontade de ver como é que El Comandante funcionava nas barbas da multidão.

Funcionava bem. Fidel, que ainda não havia pedido o boné (o quepe, para ser mais exato), tinha então 60 anos, e estava com a corda toda naquele 26 de Julho, a grande data da Cuba revolucionária. Para alívio não só meu, teve a gentileza de ser breve - breve em termos fidelísticos, é claro: a arenga durou apenas quatro horas, metade do que duravam seus torrenciais discursos.

Eu já desconfiava que Fidel Castro não ia falar bem do imperialismo ou mal do socialismo, mas estava curioso - e não me decepcionei. Dessas coisas que você tem de ver uma vez na vida, pensava eu, ao mesmo tempo em que, às voltas com a cerveja do almoço, relutava em dar uma saidinha para ir desembarcá-la: seria uma indelicadeza com o homem, pois ele estava falando só para mim. Não, eu não estava acometido de apoteose mental: Fidel dava mesmo a impressão de estar falando para cada um.

Artista da comunicação de massa, ele alternava dois discursos, com destreza de cozinheiro que vira e revira a panqueca, fazendo-a cair de volta na frigideira sem jamais estorricar. Brandindo o punho no ar e fazendo fremir a barba já meio rarefeita (quase dava para ver o queixo insignificante), Fidel desatava uma ribombante retórica anticapitalista, para, na sequência, apoiando o mesmo braço no atril, enveredar por uma conversinha de dona de casa em porta de quitanda sobre o preço da dúzia de ovos. A encenação resultava tão envolvente que você, nesses momentos, até se esquecia das premências fisiológicas. Dali a pouco, sem transição, olha o homem atirando de novo a panqueca nas alturas, dessa vez para endereçar ao imperialismo uma nova saraivada de desaforos. Por manjado que fosse, o papo parecia mais urgente que o meu desembarque hídrico.

Lá pelas tantas, o relógio da torre no fundo da praça bateu três vezes, cortando no ponto mais incandescente uma descompostura no governo americano. A CIA não teria feito melhor. Uma onda de desconforto perpassou a plateia: e essa agora? Exímio na arte de manter-se firme nos arreios nas circunstâncias mais desfavoráveis, Fidel deixou no ar o punho crispado, vacilou, pareceu perder o fio - mas só por um segundo, após o qual se apoderou da deixa, revertendo a seu favor o incidente sonoro:

"É chegada para os povos a hora de tomar nas mãos o seu destino..."

E, a partir daí, cuidou de pôr o relógio a serviço de sua encenação. Quando, 60 minutos mais tarde, o carrilhão estava prestes a soar de novo, El Comandante desenrolou um tapetinho vermelho para que entrassem as quatro badaladas:

"Deixemos agora que fale o tempo..." - e o tempo falou: blém-blém-blém-blém.

Nem o maior inimigo há de negar: como orador, o homem era craque.

Não só como orador, reconheçamos, como pude comprovar numa tarde em que houve um princípio de incêndio no subsolo do hotel Habana Libre, no bairro de El Vedado. Eu passava por ali e me incorporei à multidão mesmerizada ante os rolos de fumaça grossa. Estávamos nisso, apreensivos, quando a nossas costas cantaram os pneus de um jipe, do qual, lépido, saltou Fidel Castro em pessoa. Mudança radical de script: já ninguém dava a mínima para as chamas que ameaçavam consumir o hotel onde o guerrilheiro-mor se aboletara após a tomada de Havana, em janeiro de 1959. O fogaréu teve de se resignar a um papel secundário, pois todos os olhares estavam em Fidel - inclusive o meu, já que por nada deste mundo eu perderia a chance de ver o líder incendiário no papel de bombeiro.

Uma volta no tempo - DANUZA LEÃO

FOLHA DE SP - 11/11


Teria ele se casado? Se lembraria de mim? Tive vontade de correr para ele, mas e a coragem?


Quem diria que anos depois -muitos anos depois- íamos nos cruzar numa rua de Paris.

Foi absolutamente inesperado; eu ia andando, ele vinha de outra rua, e quase nos esbarramos, o que felizmente não aconteceu. Apesar do passar do tempo, nem por um minuto duvidei de que fosse ele. Quando nos conhecemos, ele devia ter uns 30 anos, mais uns 20 tinham se passado e ele estava mais bonito do que havia sido. Os cabelos um pouco grisalhos, os traços mais firmes, de homem, e o corpo, o mesmo. Ah, que boa história foi aquela.

Não foi um caso de paixão, mas sim de amor, amor romântico. Terá durado um mês, dois? A verdade é que naquele tempo uma viagem a Paris tinha que ter, obrigatoriamente, um namoro. Nos víamos todos os dias e, quando o revi, lembrei do fim de semana que passamos em Deauville em pleno outono, as florestas que percorremos com as árvores em tons que iam do amarelo ao vermelho, passando por todos os tons de castanho, que lindas lembranças. Depois a volta, já com os dias contados para eu voltar.

Não se falava disso, claro, e houve a penúltima noite, e a última, e nos separamos sabendo que seria para sempre; calados, pois não havia nada a dizer, nem planos a fazer. Apenas sofremos, de mãos dadas e sem coragem de nos olhar. O tempo passou e a lembrança ficou.

Mas nunca me esqueci dele; não totalmente. Dos passeios no Luxembourg, dos cafés onde nos sentávamos durante horas contando nossas vidas, falando do passado, mas sem ousar falar de futuro, pois o futuro para nós era fora de questão. Foi um amor lindo, inesquecível, e nunca mais nos vimos nem nos escrevemos, nada. E ali estava ele, a dois passos de mim.

Teria ele se casado? Continuaria só? Se lembraria de mim, pelo menos às vezes? Tive vontade de correr para ele, mas e a coragem? Lembrei da música de Chico que diz que é desconcertante rever um grande amor. E como é.

Vi quando entrou num edifício e fiquei por ali, disfarçando, esperando que ele saísse, o que aconteceu uma meia hora depois. Durante esse tempo meu coração bateu loucamente, e eu pensava: falo com ele ou não? E se ele me der um olhar gelado? Afinal, tantos anos depois, tantas coisas devem ter acontecido em sua vida. Quando ele enfim saiu, ainda o segui por uns minutos, mas pensei: calma, Danuza, o que passou, passou. Não para todos, não para mim, mas coração de homem é diferente.

Ele parou na rua, fez sinal para um taxi. Era agora ou nunca, e foi nunca. Tive medo de que ele me tratasse friamente, como uma amiga, ou demorasse a me reconhecer.

Ou pior, que não me reconhecesse.

Esse encontro aconteceu há uns 15 anos ou até mais. Nunca mais nos cruzamos, e a vida seguiu, como costuma seguir, e escrevi esse registro aí em cima para nada, apenas um hábito que tenho.

Na última vez em que estive em Paris, comprei, como faço sempre, as revistas locais, inclusive a Paris Match, onde ele trabalhava. E, folheando a revista, vi um texto com uma pequena foto dele -que custei a reconhecer-, e o título: So Long, Bernard. Era uma despedida da revista onde ele trabalhou a vida toda.

Eu podia ter falado com ele, devia ter falado com ele. Ou não? Que mania, essa, de não aceitar que as coisas se acabem completamente, por que isso? E tenho pensado nele, muito mais do que quando nos separamos séculos atrás.

São tantas as perguntas, e tão poucas as respostas.

Falar em público - MARTHA MEDEIROS

JORNAL DE SANTA CATARINA 10/11


Uma amiga me pede socorro: foi convocada a falar por 20 minutos num evento profissional, ela que nunca palestrou ou participou de qualquer debate com plateia. Está assustada e me pede uns truques para combater o nervosismo. Sei que há cursos de oratória para ajudar as pessoas a relaxarem nessas situações, mas não há tempo hábil para tomar aulas. O evento é pra já – a essa altura, já foi, inclusive.

O que se diz a uma amiga nessa hora? Procure ter segurança sobre o conteúdo da sua fala, não se preocupe com o que os outros estão pensando (eles também não estariam à vontade no seu lugar) e, principalmente, tenha consciência de que uma palestra é só uma palestra, não serão por esses 20 minutos que você será avaliada no Juízo Final.

Mas é fácil falar. Melhor dizendo: não é fácil falar, não em frente a outras pessoas. Depois de anos de prática, hoje em dia já não me estresso, mas, no início, madrecita, era um castigo. A boca secava num grau que me impedia de articular as palavras com desenvoltura. No meio da conversa, eu ficava em pânico com a possibilidade de perder o fio da meada, e acabava perdendo, claro. Tinha pavor de estar sendo analisada pelo que estava dizendo, e mais ainda pelo que não era o assunto em pauta: minha excessiva gesticulação, por exemplo. Sempre falei rápido, e nessas ocasiões, aí é que virava uma metralhadora: tinha pressa em acabar logo com aquilo. E havia a tosse. Assim como as pessoas sentem compulsão de tossir durante peças de teatro, eu, lá pelas tantas, começava a sentir a garganta arranhar e a expectoração tinha início. Na maioria das vezes, eram pigarros inocentes, mas teve uma vez em que estava dando uma entrevista pra tevê e tive que encerrá-la por absoluta incapacidade de seguir adiante. Vexame, vexame.

Algumas pessoas se sentem mais seguras se há algum conhecido no recinto: a esposa, o marido, um colega. Eu, ao contrário, me sinto mais tranquila – ou menos aflita - diante de estranhos. Sempre me apavorou a ideia de decepcionar meus afetos mais íntimos. Logo, pode-se imaginar o meu estado de nervos quando, em 1999, recebi uma homenagem da Câmara dos Vereadores de Porto Alegre e na plateia se encontrava pai, mãe, irmão, cunhada, madrinha, tias e todas as melhores amigas: a máfia reunida. Na hora de agradecer os discursos feitos em plenário, falei por cronometrados dois minutos, nem um segundo a mais – e entre gaguejos. Vexame, vexame, vexame.

Não era timidez, e sim imaturidade. Não tolerava a ideia de errar, o que é uma autoexigência absurda. Ora, erramos. Trememos. Dizemos bobagens. Não somos doutores em nada, e sim pessoas esforçadas, o que já é um valor. Se alguém tem interesse no que temos a dizer, isso, por si só, já deveria tranquilizar: estamos apenas atendendo a um gentil convite para dividirmos nossa opinião e nosso conhecimento com os outros. Palco, púlpito e microfone são intimidantes, mas não passam de instrumentos para facilitar a comunicação. O segredo, que nem é segredo, é procurar se divertir e não levar esses poucos minutos de visibilidade tão a sério.

Minha amiga acabou se saindo muito bem. Já esqueceu o sofrimento e está pronta para outra. Sabia. Depois que os fantasmas são exorcizados, a vida destrava.

Malabarista de motéis - FABRÍCIO CARPINEJAR

ZERO HORA - 11/11


Tenho 30 anos, sou casado há seis com a mãe de dois garotinhos; namoro há três com uma mulher linda e, no momento, estou altamente balançado por uma advogada grávida de gêmeos. Estou sem saber o que faço. Meu casamento, meu namoro e o novo lance. Às vezes penso em internação. Algo do tipo: viciado em mulher para tratamento por 90 dias. Também penso que este sou eu e ponto final. Abraço forte! Roberto”

Querido Roberto,

Não se interessa em se aprofundar num relacionamento, mas conciliar vidas diferentes e mostrar que é capaz de cuidar de um harém como ninguém. Quanto maior a dificuldade e desencontro de horários, mais poderoso e viril você se sente. Um malabarista de motéis. Um executivo da intimidade.

O jeito que conta sua história não é triste, como se fosse um problema ou uma tragédia a resolver. Por baixo dos panos, elogia a própria versatilidade, o método de organização, a disciplina dos segredos, o aproveitamento do tempo.

Descreve sua rotina de três mulheres com descarado orgulho, com a naturalidade de um sultão. Não está pedindo um conselho, mas se vangloriando do excesso de opções, notou?

É óbvio que está completamente equivocado, e nem um pouco ressentido e disposto a alterar sua natureza compulsiva.

Recomenda sua internação de brincadeira, adotando o status de viciado em sexo. Algo como “me interna, não tenho conserto, sou mulherengo”. Está desligado do que as namoradas vêm pensando ou sofrendo. Não tem empatia com o dilema, crise de consciência, censura moral.

Vive na superfície, absolutamente desinteressado das notícias do fundo e de suas reais intenções. É uma superioridade que esconde fraquezas e medos.

A onipotência é um traveco. Você apresenta um lado feminino excessivamente acentuado que tenta abafar com um excesso de macheza. A caricatura disfarça a delicadeza dos traços.

Eu queria ver se fosse contigo. Se fosse traído pela sua esposa e cuidasse dos dois filhos enquanto ela se divertia com o outro, ou se fosse o pai dos gêmeos da amante que procura diversão com um terceiro.

Este é você, vírgula.

Esqueletos no armário - CARLOS HEITOR CONY

FOLHA DE SP - 11/11


RIO DE JANEIRO - Durante anos, habituamo-nos a admirar o PT em suas lutas pela justiça social e pela moralidade administrativa. Entre as suas especialidades, uma das mais notáveis era a de descobrir esqueletos em armários alheios.

Como tudo o que faz parte da miséria humana, sabíamos que também o PT tinha lá um baú de ossos não identificados, mas a luta maior pela justiça social impedia a opinião pública de investigar a origem macabra daqueles ossuários. E quando, além da metáfora, aparecia mesmo um esqueleto petista, como o dos prefeitos assassinados, o de Campinas e o de Santo André, abria-se a choradeira cívica e moral.

As vítimas eram apresentadas

como mártires da causa, e quando era impossível dar conotação política ao fato, apelava-se para o crime comum. O PT criava a aura de incorruptível, rebanho de eleitos, trigo florescente em meio ao joio imprestável da política nacional.

Desde que o prefeito de Santo André apareceu morto, surgiram especulações sobre a corrupção instalada numa das prefeituras-modelo do PT paulista. Mas somente os corruptos, os ladrões do erário nacional, os vendidos aos interesses escusos ousavam formular suspeitas.

Não se trata de manchar a memória dos prefeitos assassinados, pelo contrário. Até que o sacrifício deles, pelas causas que agora chegam a público, parecem atestar a probidade administrativa. Mas, com ou sem o conhecimento e apoio deles, armara-se naquelas prefeituras um esquema de corrupção que, ao tentar ser desfeito, custou-lhes a vida.

PS - Leitor de Campinas enviou-me xerox desta crônica de 10 de dezembro de 2003, sugerindo que a republicasse. Tendo criticado com violência os oito anos do governo de Fernando Henrique Cardoso, era natural que me julgassem um xiita do PT.

Quem seremos no futuro? - MARCELO GLEISER

FOLHA DE SP - 11/11


Segundo visionário, em 2020 computadores serão poderosos o suficiente para simular o cérebro humano


Acabo de assistir a uma palestra do inventor e futurista Ray Kurzweil, que está passando uns dias na minha universidade nos EUA. Kurzweil ficou famoso por suas várias invenções, desde sintetizadores que podem simular sons de piano e outros instrumentos até um software para cegos que transforma texto em voz.

Escreveu vários best-sellers, nos quais explora como o avanço exponencial da tecnologia transformará profundamente a sociedade, redefinindo não só o futuro mas a própria noção do que significa ser humano. Segundo Kurzweil a revolução não só já começou como avança rapidamente em direção a um ponto final, "a Singularidade", quando máquinas e seres humanos formarão uma aliança que poderá nos tornar seres super-humanos. Ele prevê que chegaremos lá em 2045.

Segundo Kurzweil, em 2020 computadores serão poderosos o suficiente para simular o cérebro humano. Baseando seus argumentos numa lei empírica chamada "Lei dos Retornos Acelerados", ele afirma que em 25 anos o progresso da internet e a velocidade de processamento de dados criarão tecnologias bilhões de vezes mais poderosas do que as que temos hoje.

Por exemplo, os computadores da década de 1970 eram 1 milhão de vezes mais caros e mil vezes menos eficientes do que o que temos hoje em nossos celulares, totalizando um aumento de bilhões de vezes em eficiência de computação por real.

Ele prevê que em 2029 teremos entendido o funcionamento do cérebro humano, ao menos o suficiente para simular seu funcionamento em computadores que, a essa altura, serão bem mais poderosos do que nossos cérebros.

A singularidade, no caso da física dos buracos negros, da qual Kurzweil tomou sua inspiração, é um ponto além do qual não sabemos o que pode ocorrer. É onde as leis que usamos para descrever as propriedades da matéria, do espaço e do tempo deixam de fazer sentido. Isso não significa que seja impossível compreender a singularidade, mas apenas que não temos as ferramentas teóricas para fazê-lo.

Já no caso da inteligência artificial, fica bem mais difícil prever o que poderá ocorrer. Toda tecnologia pode ser usada para o bem ou para o mal. Se, como Kurzweil, somos otimistas e vemos que a humanidade, em média, tem se beneficiado com o avanço tecnológico (vivemos mais e matamos melhor, mas matamos menos), a singularidade trará uma nova era na evolução da inteligência, na qual o corpo será supérfluo: o que importará será a informação que nos define.

Afinal, somos matéria arranjada segundo um plano, e esse plano é uma sequência de instruções, ou seja, um programa.

Se pudermos armazenar essas instruções, em princípio podemos recriá-las em qualquer máquina, como numa realidade virtual superavançada. Imagine um personagem do videogame Sims que é tão sofisticado que se considera vivo. Seremos ele. A realidade, tal qual a percebemos, pode ser simulada; basta mais informação, mais detalhes, mais velocidade de processamento.

Se é esse o nosso futuro, é bom começarmos a pensar nas suas várias consequências. E nos certificar de que nossa informação terá um backup que não falhará nem poderá ser destruído por forças malignas.

A japonesinha - LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO


O Estado de S.Paulo - 11/11


-A Iko matou a minha mãe.

Sempre que o Carlão dizia isto num grupo abria-se uma clareira de espanto. O quê? A Iko? A japonesinha com quem o Carlão se casara no Japão e trouxera para o Brasil? Aquele encanto? Aquele doce? Era impossível imaginá-la matando um mosquito, quanto mais a sogra

O Carlão explicava.

- Vocês já notaram que ela está sempre abanando a mão na frente do nariz?

Todos já tinham notado. Era um dos seus gestos mais graciosos. O consenso geral era que Iko ainda não se acostumara com o calor do Brasil. Por isto se abanava sem parar.

Não era o calor.

- Ela não suporta o nosso cheiro - disse Carlão.

- Como, "o nosso cheiro"? Nós quem, os homens?

- Não. Nós os ocidentais.

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O espanto do grupo só aumentava. Então os ocidentais tinham um cheiro diferente? E um cheiro ruim?

- Tem para os japoneses - disse Carlão. - Ou, pelo menos, para a Iko.

A Iko combinava uma sensibilidade olfatória rarefeita com uma sinceridade desconcertante. O Carlão já pedira para ela não repetir o gesto de abanar o nariz na frente dos outros. Ele já se acostumara com a crítica silenciosa da mulher ao seu cheiro, mas os outros poderiam não gostar. Ninguém gosta de ser chamado de fedorento, mesmo que só com um gesto. E que vida social seria possível, para o casal, se Iko continuasse fazendo aquilo?

Iko ouvia o pedido do marido e sorria. Estava sempre sorrindo, mesmo quando abanava o nariz. Mas, na presença de um ocidental, nunca deixava de se abanar. Sorrindo. Encantadora. Mas afastando o mau cheiro com sua mãozinha delicada.

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Carlão contava que no encontro da Iko com sua mãe acontecera o que ele temia. Iko recuara quando sua sogra tentara abraçá-la e dar as boas-vindas ao Brasil. E em seguida abanara a mão na frente do nariz. Sempre sorrindo.

- Que gesto é esse que ela faz?

- Nada, mamãe. É um costume japonês. Um gesto de felicidade. Ela está contente de conhecê-la.

- Ela não está dizendo que eu cheiro mal?.

- Não, mamãe. É que...

- Está sim. Está sim!

E a mãe do Carlão passara a tomar três banhos por dia, e a se perfumar mais do que de costume depois de cada banho, e nem assim escapava da repulsa muda da nora sempre que se encontravam. E aumentara a frequência dos banhos. E, com isto, as probabilidades de um acidente no banheiro. Que aconteceu. A mãe resvalara ao sair da banheira cheia de espuma aromática, batera com a cabeça e morrera. Iko sentira a morte da sogra mas não comparecera ao velório e ao enterro. Seriam muitos ocidentais juntos, ela não aguentaria

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No grupo ninguém perguntava, mas a dúvida passava pela cabeça de todos. Como, depois de tudo, o Carlão continuava com a Iko, com sua mãozinha intransigente abanando? E como seria a vida sexual dos dois? Imaginavam Carlão e Iko na cama, a Iko um encanto, a Iko um doce, a Iko uma amante fogosa, mas sempre apertando o nariz.

Fim da geração ideológica - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 11/11


O mensalão tirou da jogada algumas das figuras mais destacadas do petismo; às novas falta carisma


Até onde consigo compreender o quadro político brasileiro, percebo que nos aproximamos de uma mudança importante. É como se acabasse uma fase e começasse outra. Aliás, já tentei formular essa minha suposição quando escrevi que a geração ideológica, que lutou contra a ditadura militar, já cumpriu seu papel, e agora dará lugar a uma outra, posterior àquele conflito.

Não sou cientista político nem pretendo estar dizendo algo incontestável. No entanto, parece-me evidente que se inicia um novo período, com outros protagonistas. É claro que essas coisas não se dão com óbvia clareza nem como um corte abrupto, que assinale o fim de uma etapa e o início de outra. Mas a nova etapa já se insinua.

Em artigo aqui publicado há algum tempo, arrisquei afirmar que PT e PSDB -os dois partidos que, no apagar das luzes da ditadura militar, surgiram como oposição clara à política do regime- já cumpriram seu papel: o PSDB, com o governo Fernando Henrique Cardoso, e o PT, com o de Luiz Inácio Lula da Silva. O primeiro ajustou a economia e criou as condições para a manutenção do regime democrático; o segundo, embora tenha se oposto àquelas medidas, entendeu que o caminho certo era aquele e deu prosseguimento ao que havia sido implantado.

Se o PSDB chegou primeiro ao governo do país, foi porque sua atitude moderada atendia à visão da maioria do eleitorado. Lula, por seu radicalismo, sofreu três derrotas consecutivas e, em face disso, impôs a seu partido a moderação necessária na campanha política de 2002. Com isso, ganhou as eleições e assumiu a Presidência da República.

No governo, decidido a nele ficar para sempre, evitou a aliança com o PMDB, para não dividir com ele o poder, e comprou os deputados de partidos menores, aos quais ditava suas decisões. Como não teria cabimento impor ao país as medidas esquerdistas inviáveis, optou pelo populismo, ou neopopulismo, no estilo de Hugo Chávez.

E como esse, tentou mudar a Constituição, a fim de candidatar-se ao terceiro mandato, mas a pesquisa que encomendou com esse propósito o fez desistir da ideia. Elegeu Dilma Rousseff, que foi uma invenção sua, já que ela jamais disputara qualquer eleição.

O escândalo do mensalão tirou da jogada algumas das figuras mais destacadas do petismo, o que complicou, para Lula, escolher um candidato que lhe garantisse o poder. Por isso, escolheu Dilma como sua substituta eventual, o que torna particularmente inevitável o encerramento dessa etapa pós-ditadura.

Mesmo que a saúde de Lula o garanta, dificilmente voltará ao poder. Sem falar na delação premiada de Marcos Valério, que o apontaria como o verdadeiro chefe do mensalão. Dilma, por sua vez, após o segundo mandato, se houver, terá que se retirar de cena, uma vez que não tem muita vocação para líder.

Por sua vez, Fernando Henrique Cardoso, que prolongara seu governo com a reeleição em 1998, tentou passar o bastão a José Serra e depois a Geraldo Alckmin, que foram derrotados seguidamente por Lula. Na referida crônica em que tratei desse tema, afirmei que José Serra não teria chance de chegar à Presidência da República. Como se viu, não pôde chegar sequer à Prefeitura de São Paulo. Com isso, encerrou-se a possibilidade de o PSDB voltar à Presidência da República.

Assim, daquela geração ideológica, resta Dilma Rousseff, que certamente tentará reeleger-se em 2014. Quer ganhe, quer perca, com isso se encerrará a etapa dessa geração no governo do país.

É impossível determinar em que momento exato isso se consumará, mas parece evidente que novas lideranças políticas começam a se impor no cenário nacional, como Eduardo Campos, Aécio Neves, Sérgio Cabral Filho e Eduardo Paes.

Eles constituem uma geração não ideológica, caracterizada, por isso mesmo, pelo pragmatismo político, como se evidencia em suas respectivas atuações como governantes. A fase da ideologia passou.

É por perceber isso que Lula se preocupa, hoje, em dar força à candidatura de novas figuras do seu partido, com o propósito de não deixar que o lulismo termine com a sua morte e a aposentadoria de Dilma.

A dificuldade reside não apenas no pouco carisma dos candidatos que inventou, mas sobretudo na inconsistência da proposta petista, que só se manteve até aqui graças ao carisma do próprio Lula.

Grave crise existencial - JOÃO UBALDO RIBEIRO


O Estado de S.Paulo - 11/11


Peço desculpas por repetir observações que já fiz aqui há tempos, mas arrisco achar que a maioria dos leitores não vai lembrar e os poucos que lembrarem não se aborrecerão. É a respeito do peru. Não o peru que pode ter ocorrido aos maliciosos entre vocês e, sim, a injustiçada ave que leva esse nome, segundo muitos prima do faisão pelo lado pobre da família, ou seja plebeia, discriminada de nascença e com certeza recalcada. Mas isto está longe de resumir seu drama e creio conhecer o suficiente dele para expô-lo com a compaixão adequada.

O peru, que não se origina do Peru (embora, em Lima, as barracas de feira e os quituteiros de rua sirvam peru de todos os jeitos, como na Bahia servem acarajé; peru é comida popular no Peru) desenvolveu um problema de identidade. Deram-lhe o nome de peru porque se dizia em Portugal que vinha do Peru, mas, no próprio Peru, ele é chamado de pavo. Pavão é pavo real, ou seja, ainda sugerem, num trocadilho fácil, que o peru não é real, não existe, só existe o pavão. Ele vem da América do Norte, mas lá mesmo sua nacionalidade não foi reconhecida e o denominaram turkey, pois se acreditava que vinha da Turquia e talvez fosse chutado do país, se Romney tivesse vencido.

Na Alemanha, onde ele hoje é chamado de Puter, iniciou carreira crente que vinha da Ásia, pois todos o conheciam como kalikutischer Hahn, ou seja, galinha de Calicute. Fenômeno parecido aconteceu na França, onde hoje ele leva o nome afrescalhado de dindon, que vem de coq d'Inde, galo da Índia. Há mais o que dizer sobre o enroladíssimo psiquismo do peru, mas receio que até o mais paciente dos leitores declina da oportunidade de continuar no assunto.

Desculpo-me novamente, mas sem esse preâmbulo, não sei muito bem por que, eu teria dificuldade em descrever a situação em que, conjuntamente com outros escritores e artistas de modo geral, me vejo cada vez mais envolvido. Ainda que mal comparando, a situação de quem vive de direitos autorais é análoga à do peru. Ou pior, porque outro dia, não lembro mais onde, li que já morremos todos. O autor morreu, disse o pensador, não existe mais isso. Quer dizer, nem do que está reproduzido aqui eu posso pretender ser dono.

Um pouco intimidado e compreensivelmente confuso, tento soerguer-me na tumba e logo o sagrado direito à informação me sepulta de novo. O que escrevo pode, no sentido mais lato, ser qualificado de informação e, por conseguinte, se eu cobro pelo que escrevo, estou cerceando gravemente esse direito. Está certo, posso até concordar para não discutir, mas o direito a comer também é sagrado e, contudo, se o gerente do supermercado for solicitado a por essa razão dispensar o pagamento das compras, imagino que fará algumas objeções. Da mesma forma, o direito à saúde é universal, mas os médicos, dentistas e terapeutas insistem em ser remunerados por seus serviços.

O artista, diz aqui, deve ter generosidade intelectual, a arte é um bem que nasce de todos, para a livre fruição de todos. Como um monge franciscano, o artista deve despir-se não só da vaidade, como do apego aos bens terrenos. O artista não é um ser comum e já desilude bastante os admiradores, quando confessa que tem o hábito de comer todos os dias e que, vergonha mate-o, gosta de dinheiro. Não em demasia, mas gosta e a mulher, num momento de fraqueza, pode queixar-se de que faz tempo que não saem. Há que ter paciência com eles, eles acabam despertando para a inevitável realidade nova.

Porque a maioria dos escritores encara com relutância a ideia de santificação inanida, somente aqueles que têm fontes de renda poderão escrever. Quanto aos outros, que consigam empregos com os poderosos, que cavem uma sinecurazinha, que ganhem dinheiro nas bolsas de valores e escrevam nos momentos de lazer, mas não desçam à infâmia de cobrar pelo que escrevem. Além de tudo, tem muita gente por aí, mas muita gente mesmo, que gostaria de pôr no papel sua biografia ou alguma experiência marcante. Quantas vezes não se ouve a frase "minha vida daria um romance"? Pois é, pena de aluguel, aí está um mercado praticamente virgem. Se o indivíduo se diz escritor, então escreva. Sem querer privilégios e sem fazer chiquê, com profissionalismo.

Além disso, já circula a ideia de o Estado resolver esse problema com a eficácia de sempre e garantindo a sobrevivência do escritor. Para isso, alguns passos simples satisfariam. Primeiro, a regulamentação da profissão. Seria realizado um concurso e os aprovados passariam a portar carteira de escritor, com a qual teriam direito exclusivo de exercer a profissão. Depois seria criado o Conselho Editorial Nacional, ao qual os escritores apresentariam seus projetos, rápido e sem pistolões ou propinas, como é regra no Brasil. E o Conselho estabeleceria temas anuais do interesse do País, incentivando romances que tivessem como pano de fundo, por exemplo, a Saga do Pré-Sal ou o Mistério da Transposição de Águas do São Francisco. Aprovado cada projeto, seu autor passaria a receber um módico estipêndio mensal, pois não se pode ser pródigo com o dinheiro público, com a obrigação de periodicamente prestar contas do andamento do trabalho e obter a aprovação do Conselho, fazendo as alterações de forma e conteúdo que este determinar. Com isso, além de os escritores não terem mais do que reclamar, o interesse nacional estará servido. Todo mundo vai ter direitos sobre o que o autor escrever, menos ele próprio, até porque já morreu. Ninguém estranha quando uma BBB ganha um ou dois milhões para mostrar o traseiro e ministrar-nos palestras filosóficas. Contudo, se um escritor, depois de décadas de trabalho, ganha um prêmio de cem mil, há grande estarrecimento e olhão geral. Mas, pensando bem, é isso mesmo, onde é que acho que estou? Na próxima encarnação, vou tentar vir de Mulher Fruta-Pão.

Diversidade e contradição - TOSTÃO

FOLHA DE SP - 11/11


As pessoas costumam ser diferentes, contraditórias e incoerentes. Umas mais do que as outras


É absurda a demolição da Escola Pública Municipal Friedenreich, com 349 alunos, a quarta melhor da cidade, por causa de obras no Maracanã, para a Copa. No local, haverá a construção de duas quadras cimentadas, para aquecimento dos jogadores. Além da importância da escola, os vestiários do Maracanã são enormes, e os jogadores, geralmente, se aquecem, antes das partidas, no gramado.

Faltam ainda quase dois anos para a Copa e, por ter sido campeão do mundo, já recebi convites para participar de fan fests, encontros públicos de torcedores que não terão ingressos para ir aos estádios, talk shows e outros eventos relacionados ao Mundial. Sempre recuso. Muitas pessoas não entendem. Não sou ex-jogador que escreve sobre futebol. Sou um cidadão, colunista, que foi jogador. Não quero que uma coisa interfira na outra.

Apesar de a maioria das pessoas se dizer democrática, aberta, as opiniões diferentes, mesmo com conhecimento, costumam ser ignoradas, como se contrariassem uma verdade estabelecida. Elas não escutam nem querem aprender. As que sabem menos são, geralmente, as que têm mais certeza.

Um dos papos mais furados que ouço, desde a adolescência, é que o esporte de alto rendimento é um bom lugar para se aprender e desenvolver os valores éticos e morais. Nunca foi. A ambição, o desejo de ser herói e de ganhar muito dinheiro costumam ser mais fortes.

Há exceções.

Lance Armstrong, o mito do ciclismo, bastante elogiado por suas obras sociais, dopou-se durante toda a carreira. Dizem que a maioria se dopa no ciclismo. Na semana passada, o presidente da federação brasileira respondeu a um repórter sobre o assunto com uma pergunta: "Por que os ciclistas são excepcionais nos clubes e, quando chegam à seleção, caem bastante de produção?". Foi despedido.

No passado, por não haver exames antidoping, os jogadores de futebol se dopavam muito mais que hoje. Evidentemente, o doping era amador, menos sofisticado. Mas a intenção era a mesma.

Entre esportistas, empresários, políticos e profissionais de todas as áreas, muitas vezes, belos discursos e ações generosas e humanitárias convivem com uma desmedida ambição, de querer levar vantagem em tudo. O Brasil precisa muito mais de bons cidadãos que de filantropia.

É preciso separar a contradição e a incoerência humana do marginal, que se finge de honesto. Às vezes, as duas coisas se misturam.

Em um mundo tão contraditório, é esperar demais que um jogador, na emoção da partida e em uma fração de segundo, reprima e sublime seus impulsos agressivos e tenha sempre condutas educadas e éticas. Isso não o livra de pagar por seus erros. Se os infratores, em todas as atividades, não forem punidos, será o caos.

Civilização virtual - ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA

O GLOBO - 11/11

O ciberespaço é um rebatimento do mundo real, sem instituições, sem os interditos civilizatórios que domesticam a fera que dorme em cada um



Nos anos 60 os astronautas buscavam vida em outros planetas. Meio século depois é aqui mesmo que se descobre um outro tipo de vida: a incorpórea população que habita o ciberespaço.

As ideias, como as gerações, envelhecem e morrem. Maneiras de sentir e de ver o mundo têm prazo de validade. Confundidas com um trivial choque de gerações, as transformações profundas que estão em curso constituem uma mudança de era. São o sintoma da emergência de uma civilização desconhecida.

Em menos de duas décadas as tecnologias que revolucionaram a comunicação deram ao mundo uma forma inédita cujas consequências são de difícil apreensão, em particular pelas gerações que estão a cavaleiro entre esses dois tempos, antes e depois da internet. O mundo virtual tornou-se parte da vida real e já não é possível separá-los ou estabelecer, entre eles, uma hierarquia. A vida de cada um gira cada vez mais em torno de duas pequenas telas: o computador e o celular. Quem mergulha nestas telas cai, como Alice, do outro lado do espelho.

Testemunha-se qualquer fato onde quer que ele se passe. A globalização não é mais um conceito abstrato, é uma experiência cotidiana, irreversível, de um mundo vivido virtualmente. Quem não fala digital nativo passa seu tempo correndo atrás de tecnologias que, mal acabamos de dominar, já mudaram e cobram, em tempo, o preço do próprio tempo que elas prometiam nos poupar. Imigrantes no futuro, não estamos bem situados para entender essa civilização recém-descoberta. Tampouco sua incorpórea população, aderida alegremente ao seu múltiplo e lúdico fazer, entende a si mesma, já que não parece propensa a grandes interrogações sobre o sentido das coisas.

Paradoxo: essas tecnologias que supostamente nos aproximam do que é longínquo nos afastam dos mais próximos. A internet e os celulares nos oferecem tudo, salvo pessoas em carne e osso. O SMS economiza a viva voz como os twitters economizam os pensamentos. Conversamos com alguém do outro lado do mundo, vemos sua imagem, mas não sentimos o calor de sua presença.

Atropelando direitos, ignorando autores, Google age como uma superpotência e contra esse poder avassalador já se insurgem Estados como França e Alemanha. O ciberoráculo responde a qualquer questão, salvo de onde viemos e para onde vamos.

O mundo se expande e encolhe ao mesmo tempo. Arte e política se submetem ao novo modo de viver. No país de Proust um concurso literário desafia escritores a um conto de 140 toques. Políticos comprimem em frases amputadas receitas para salvar seus países do caos

Na ausência de comunidades reais como as famílias ou companheiros de um projeto político ou religioso que nos ultrapassa, quando os laços de pertencimento se esgarçam amplia-se o mercado das relações virtuais, a rede de amigos que se contam em milhares, virtualidades deletáveis em um clique indolor. Facebook — jogo divertido de comunicação sem relação — ultrapassou a cifra de um bilhão de usuários. O conceito qualitativo de amizade, privilégio durável de uns poucos escolhidos, nessa nova civilização dilui-se no quantitativo efêmero.

O ciberespaço abriga zonas de sombra. A identidade de sua população é improvável, lábil, cambiante. Pode ser e não ser. Qualquer um pode ser muitos, se desdobrar em quantas vidas adote. Um nunca acabar de encontros pode se dar entre personagens ficcionais, cada um escrevendo o romance de uma vida. No ciberespaço quem é o Outro com quem nos relacionamos sem que tenhamos por ele responsabilidade?

As balizas de tempo e de espaço não vigoram no ciberespaço. O lugar do interlocutor é indefinido, o tempo pode ser inventado, relativizando essas dimensões com que sempre trabalhara o pensamento na construção da ideia mesma de real.

Essa população que se delicia no anonimato se quer também inimputável, sem lei, sem superego, sem tabu. Em boa hora o Congresso brasileiro acordou para este problema, aprovando projetos que penalizam crimes praticados na Rede. Outros, em pauta, propiciam a discussão sobre os limites ao vale-tudo nessa terra de ninguém.

O ciberespaço é habitado por nós mesmos, desmaterializados, é um rebatimento do mundo real, sem instituições, sem códigos de moral ou ética, de relacionamento entre pessoas, sem os interditos civilizatórios que domesticam a fera que dorme em cada um.

Esse inventário de perplexidades é herdeiro de um tempo em que estas questões eram relevantes. Daqui para frente ainda encontrarão eco nos espíritos ou parecerão cada vez mais anacrônicas e desprovidas de sentido?