domingo, novembro 11, 2012
Antagonismo rigoroso - LEE SIEGEL
O Estado de S.Paulo - 11/11
NOVA JERSEY - Nunca me senti tão feliz por estar errado. Mesmo que Obama tenha assegurado seu segundo período na Casa Branca com vitórias apertadas nos chamados battleground states, os Estados em que a disputa é mais acirrada, pois o eleitorado oscila de eleição para eleição entre candidatos progressistas e conservadores, e ainda que em alguns desses Estados a vitória tenha sido obtida por margens reduzidíssimas, o importante é que ele ganhou. Que alívio. E que tragédia.
O alívio se deve ao fato de os EUA ficaram livres, por ora, de ser transportados de volta para o século 19 por um Partido Republicano que não tem peito para enfrentar os extremistas que o estão destruindo. E tragédia porque o ódio a Obama, que foi a força motriz por trás do surpreendente apoio angariado por um candidato amorfo como Romney, daqui para a frente só vai aumentar.
Obama conquistou expressiva quantidade de votos no colégio eleitoral, mas no eleitorado como um todo, sua vitória se deu por margem ainda mais estreita do que a observada nos battleground states. É surreal: no tocante a valores políticos e culturais fundamentais, os americanos estão divididos ao meio. O país não experimentava um racha dessa natureza desde a Guerra Civil.
Tal antagonismo tem inúmeras consequências, mas a que mais me preocupa é seu efeito corrosivo para o espaço público. Sem um consenso sobre o tipo de sociedade em que as pessoas desejam viver, esvai-se a crença num espaço de convivência que acolha a todos. Nos próximos quatro anos, aconteça o que acontecer na esfera política, o espaço público, que já vinha encolhendo, vai se contrair ainda mais.
Faz anos que o espaço público vem desaparecendo nos EUA. As garantias legais cada vez mais extensas para que as pessoas possam portar armas às escondidas transforma os espaços públicos em lugares perigosos. Quando as pessoas andam com revólveres ocultos sob o paletó ou atados ao tornozelo, um bar, uma rua movimentada, uma partida de basquete infantil assistida por pais extremamente competitivos, todos esses lugares se tornam locais em potencial de carnificinas. Os massacres que têm acontecido com frequência em escolas, locais de trabalho e cinemas são como um golpe após o outro à esfera pública.
O assalto ao espaço público se deve, em parte, à paixão que os republicanos têm por privatizações. Querem pôr tudo nas mãos de empresários privados: escolas, hospitais públicos, correio, universidades públicas, parques, zoológicos e até a arrecadação de impostos. Para muitos republicanos, a ideia de que algumas coisas existem para favorecer o bem-estar de todos, sem gerar lucros para ninguém, é insuportável. É como se, para eles, não houvesse vida fora do mercado. "Eu colonizaria as estrelas, se pudesse", disse certa vez o britânico Cecil Rhodes, aquele arqui-imperialista. Já os republicanos, se pudessem, poriam etiquetas de preço na estrelas, e depois as negociariam em Wall Street.
Até a devoção reacionária a valores cristãos é impregnada pelo fervor privatizante. Não há nada de cristão aí. A estranha obsessão dos republicanos com a questão do estupro, que fez duas de suas candidaturas ao Senado ir por água abaixo nesta eleição, é um reflexo disso. Para os verdadeiros cristãos, Deus revela Seu amor quando as pessoas abdicam de seus interesses e se preocupam com os outros. Para os republicanos, Deus é um CEO que dá ordens diretas aos funcionários. Só se pode dizer, como fez recentemente o coitado de um candidato republicano ao Senado, que a gravidez resultante de um estupro é "algo que Deus queria que acontecesse", quando se ignora por completo a existência de uma esfera pública habitada por pessoas que não são Deus. Para quem vê as coisas assim, as pessoas não levam vidas preciosas e únicas, depois morrem e vão para o céu. A ênfase aqui é na dimensão gerencial, não no trabalho. As pessoas não morrem: são demitidas da existência.
No entanto, o desejo que os republicanos têm de estruturar a vida como se fosse uma transação é só um lado da questão. As forças privatizantes parecem estar por toda parte, em todos os pontos do espectro político e social. Nada contribui mais para a divisão radical entre os americanos do que a chamada mídia "social", que na realidade é a própria antítese do social. Com frequência, vemos grupos de amigos pelas ruas, cada qual com seu dispositivo portátil. Para a esfera pública, o insondável espaço privado de um iPod ou iPad representa uma ameaça tão grande quanto uma pistola semiautomática. (Não preciso dizer que não conseguiria viver sem o meu dispositivo portátil, mas vivo muito bem sem uma pistola.)
Mas o fator que selará de vez a derrocada do espaço público será mesmo o antagonismo rancoroso entre as duas metades do país. A divisão continuará a fazer com que as pessoas desacreditem da política como uma instância capaz de mudar suas vidas, o que, por sua vez, levará à progressiva substituição da política por iniciativas privadas de mudança social, algumas positivas, como fundações benemerentes e grupos de caridade, outras profundamente negativas, como o incessante aparecimento de bilionários que se dedicam a distorcer o processo político, reduzindo-o à operação de máquinas de dinheiro rivais, cujo único objetivo é se destruir reciprocamente.
E o antagonismo continuará a empurrar as pessoas cada vez mais em direção ao ciberespaço, onde elas buscarão a afirmação mais estridente de seus pontos de vista e serão consoladas por comunidades movidas pelo rancor e pela paranoia. Esqueçam daquela história de um encontro fortuito num parque público que acaba em história de amor. O ódio é o instrumento mais ágil para criar intimidade.
Por fim, esse golfo intransponível entre "vermelhos" e "azuis" fará com que cada lado comece a sonhar com um país em que o outro não tenha lugar. Confesso que depois de passar quatro anos ouvindo os republicanos falar em reduzir os impostos dos muito ricos, aumentar os impostos da classe média, revogar a reforma do sistema de saúde aprovada pelo governo Obama e fazer da vida um negócio, esgotei o meu estoque de compreensão para com o outro lado. Se não compartilham da minha ideia de espaço público, não quero compartilhar o meu espaço público com eles. Torço para que Obama esteja se sentindo como eu.
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