Li com interesse a entrevista de Jason Brennan nesta Folha. Motivo duplo. Primeiro, porque escrevi sobre o seu "Against Democracy" (contra a democracia) menos de dois meses atrás. E, segundo, porque não é todos os dias que encontramos um cientista político sério a questionar os méritos do regime democrático.
Brennan acredita que a democracia premia a ignorância do eleitorado. Donde, a conclusão: epistocracia. Só deveria votar quem entende do assunto.
No livro, Brennan faz uma analogia –para mim, absurda– entre votar e dirigir um carro. Só podemos dirigir se tivermos licença. Em política, e uma vez cumprida a maioridade, todos podem votar. Faz sentido? Não faz, diz ele. Más escolhas democráticas provocam mais danos na vida de todos do que a incompetência rodoviária de alguns.
Não compro a tese. A política não é uma "ciência", ao contrário do que pensam os "cientistas políticos" (ridícula expressão); e pessoas politicamente analfabetas podem saber com lucidez aquilo que desejam para as suas vidas, mesmo que desconheçam macroeconomia ou sistemas eleitorais.
Além disso, e para retomarmos a metáfora do autor, pessoas com licença para dirigir continuam a provocar acidentes. Os sábios também falham. Quando o assunto é política, os sábios falham ainda mais.
E um desses sábios é Platão, o "pai espiritual" de Brennan (como Hélio Schwartsman escreveu com razão).
Depois de Atenas ter condenado à morte o seu mestre Sócrates; e depois da derrota traumática dos atenienses face a Esparta, Platão jogou a democracia no cesto dos regimes degenerados. Como é possível entregar os destinos da Cidade às paixões irracionais do povo?
A democracia só poderia ser corrigida pela emergência de um tirano que, após educação "epistocrática", talvez pudesse chegar ao trono do Rei-filósofo.
"A República" é um dos textos centrais da filosofia. Mas foi Aristóteles, discípulo de Platão, quem inaugurou as críticas à sua utopia.
Para dizer algo que, sem exagero, nunca mais foi esquecido na tradição democrática ocidental: a "pólis" precisa de saber equilibrar as paixões do povo com os interesses da elite.
Esse "regime misto", tão apreciado pelos romanos, encontrava-se no próprio funcionamento da República: os cônsules, os senadores e as assembleias populares, reunindo os elementos monárquico, aristocrático e democrático, permitiam que todas essas instituições se controlassem mutuamente.
Os "checks and balances" não nasceram com os Pais Fundadores dos Estados Unidos. Eles apenas aprenderam a lição com Políbio, Cícero e todos os seus herdeiros.
Hoje, as nossas democracias não são, ao contrário do que Jason Brennan acredita, regimes de "vontade geral" (para usar a sinistra expressão de Rousseau), em que as escolhas do povo são totais –e totalitárias.
Em qualquer democracia liberal civilizada, existem "elementos aristocráticos" (e epistocráticos) que complementam (e, claro, limitam) a mera vontade popular. Para ficarmos nos Estados Unidos, a existência de um Congresso bicameral ou de uma Suprema Corte são os melhores exemplos.
E, para lembrar Tocqueville, a existência de uma sociedade civil forte ou de uma mídia vigilante e livre também se assumem como "ilhas" independentes no meio da ignorância das massas.
Jason Brennan, para defender a sua proposta "epistocrática", apresenta uma versão de "democracia" que é uma caricatura das democracias liberais em que vivemos.
Alguém deveria informar esse "cientista político" que a democracia evoluiu muito desde Platão.
P.S. - Com as eleições americanas, a minha caixa de e-mail rebentou: havia leitores "conservadores" que se sentiam menos sós por eu não defender Trump; e havia leitores "conservadores" que me insultavam com vigor por eu não apoiar Trump.
O cenário divertiu-me porque revela um certo primitivismo no debate intelectual: para os fanáticos, a política não é uma conversa pluralista; é uma inquisição ideológica.
Na minha qualidade de herege, agradeço todos os insultos.
Eles são medalhas na lapela da minha liberdade.