domingo, junho 13, 2021

Maldição em dose dupla - ROLF KUNTZ

No país de Bolsonaro,desatinos agravam a praga do baixo potencial econômico

 O Estado de S.Paulo

12 de junho de 2021



Maldição sobre maldição pode parecer exagero, exceto num país sujeito ao desgoverno de Jair Bolsonaro. Se ele tiver sucesso em mais um desatino, a campanha para apressar o abandono da máscara, até o mísero avanço econômico estimado para 2022 estará em risco. Vacinação é hoje uma variável essencial em qualquer projeção econômica. É um tema citado nas primeiras linhas de qualquer estudo prospectivo do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional (FMI), de outras organizações multilaterais e, é claro, das instituições do mercado. Outras medidas preventivas, como o uso de máscara, também são mencionadas ou pressupostas como simples manifestações de bom senso. Mas nem o senso comum, menos brilhante que o bom senso, tem abrigo seguro no mundo bolsonariano.

A economia brasileira deve crescer 2,31% no próximo ano, segundo a pesquisa Focus, do Banco Central, de 4 de junho. Depois disso a expansão anual ficará em 2,5%, número familiar a quem segue as projeções de médio e de longo prazos. Mas até esse desempenho, muito modesto para um grande emergente, estará em risco se o coronavírus for de novo favorecido pela insensatez política. Mesmo sem referência à pandemia, no entanto, o crescimento mais forte estimado para 2021, cerca de 5%, some dos cálculos quando se trata dos anos seguintes. Pelas projeções, o vigor atual deve esgotar-se até o réveillon, sem deixar resíduos.

É como se a economia nacional estivesse sujeita a uma praga, uma espécie de maldição do ano seguinte ou dos anos seguintes. Surtos de crescimento mais vigoroso são acompanhados, nas projeções, de um rápido retorno à mediocridade, com taxas de expansão na faixa de 2% a 3%. Essa é a primeira praga, já experimentada há um bom tempo. A segunda maldição tem a marca bolsonariana.

Essa nova praga é uma combinação de políticas desumanas e desastrosas no front sanitário, de ações centradas nos interesses eleitorais e familiares do presidente e da negação do planejamento econômico. Não há definição de metas para modernização e crescimento, como se a economia real estivesse pouco presente nas pautas oficiais.

Não há sequer previsão de necessidades próximas. O projeto de Orçamento para este ano foi concluído, no final de agosto, como se fosse possível entrar em 2021 sem o auxílio emergencial e sem políticas anticrise. Tudo foi conduzido como se os problemas ligados à pandemia devessem desaparecer até 31 de dezembro. Além disso, nem mesmo se cuidou da tramitação da proposta orçamentária no prazo normal. A aprovação só ocorreu em abril, acompanhada de uma custosa confusão no manejo do dinheiro público.

Um governo preparado, sério e disposto a retomar o caminho do desenvolvimento teria cuidado, desde o início, de combater a maldição original. Bem conhecida há vários anos, essa maldição está associada ao baixo potencial de crescimento econômico do Brasil.

Investimento escasso em capital físico, educação deficiente, economia fechada, tributação disfuncional, insegurança jurídica, burocracia excessiva e finanças públicas engessadas são problemas conhecidos há muito tempo. São temas citados, há anos, em diagnósticos do Banco Mundial e do FMI, em relatórios de outras instituições multilaterais e na literatura econômica.

A maldição do ano seguinte, ou do baixo potencial, aparece claramente, por exemplo, numa tabela incluída num relatório do FMI publicado em julho de 2017. O documento, produzido no início da recuperação da crise de 2015-2016, apresenta num quadro as taxas de crescimento a partir de 2014 e indica as novas projeções: 0,3% em 2017, 1,3% em 2018 e 2% ao ano entre 2019 e 2022. Sim, a taxa de 2% aparece numa sequência de quatro anos.

Esse relatório trata da visita anual de um grupo técnico. É um trabalho regular de registro e de avaliação das condições e perspectivas de cada país-membro. O texto descreve o cenário depois da recessão, aponta uma recuperação muito moderada, registra o combate recente à inflação, menciona os desafios fiscais e cita o combate à corrupção. Também realça a importância do recém-criado teto de gastos e da esperada reforma da Previdência, assunto já avançado na gestão do presidente Michel Temer.

A maldição é visível também nas novas Perspectivas Econômicas Globais do Banco Mundial. O crescimento estimado para o Brasil em 2021 foi revisto de 3% para 4,5%, mas as previsões caem para 2,5% e 2,3% quando se trata dos dois anos seguintes.

Com vacinação atrasada e lenta, sem ação eficaz para conter os estragos da pandemia, sem planejamento e sem algo digno de ser chamado política econômica, a primeira maldição, a do baixo potencial produtivo, é agravada pela segunda praga, a do desgoverno e dos desatinos bolsonarianos. O presente seria, talvez, menos angustiante se todos pudessem seguir o conselho de Horácio a Leucônoe: desistir de saber o fim reservado a cada um pelos deuses, ter siso, desfrutar os vinhos e colher o dia de hoje, sem confiar no de amanhã. Mas o poeta Horácio parece ter pouca influência entre autores de projeções e leitores do boletim Focus.

JORNALISTA

O terceiro inverno do governo Bolsonaro - PEDRO MALAN

Os próximos 12 a 15 meses são cruciais para evitar outro salto no escuro em 2022

O Estado de S.Paulo

12 de junho de 2021


A cada início de inverno deste período de governo Bolsonaro venho publicando neste espaço textos voltados para o eventual leitor que preferiria não experimentar, em outubro de 2022, a polarização irrefletida que marcou a eleição de 2018 e julga ainda possível, desejável e salutar contribuir para tornar viável uma eventual coalizão ampliada de centro.

Como escreveu em texto recente Margareth Dalcomo, “aos cansados desses longos meses e que pretendem não se imiscuir nas querelas e desavenças políticas resta a lógica aristotélica, que lembra, aos que não gostam da política e permanecem neutros por convicção: somos e seremos sempre governados pelos que gostam e instados a arcar com as consequências dessa nada impune neutralidade”.

Há que levar em conta as sofridas memórias vividas por todos os brasileiros nos últimos dois anos e meio. Refiro-me não apenas à pandemia e à desastrosa postura do chefe do Executivo em relação a ela. É preciso que o País não perca sua memória – a memória do que alguns historiadores chamam do “passado recente”: aquele que continua influenciando o escopo das escolhas possíveis no presente.

Foram ações e omissões, erros e acertos, paixões e interesses, conflitos e compromissos que nos trouxeram, como país, ao que somos hoje. Entender como um país se tornou o que é, e o que poderia vir a ser, exige consciência do peso ou do empuxo do passado, como condição para viver criativamente no presente e, principalmente, para ter visão sobre o futuro, seu e de seu país no mundo.

O processo que nos trouxe até aqui está em curso há décadas. Estamos há mais de 130 anos em busca de uma República democrática digna desse nome. Por vezes, e particularmente agora, é preciso defender conquistas que julgávamos, realisticamente, em processo de consolidação.

O risco de retrocesso existe e vem se tornando menos obscuro ao longo dos últimos dois anos e meio. Acentuado pela propensão ao autoritarismo que vem marcando, a cada inverno que passa, a postura e a conduta daquele que deveria servir de exemplo a seus concidadãos – e não apenas àqueles que o têm como mito, como oráculo inquestionável.

Dizia o texto publicado aqui em junho de 2019 (início do primeiro inverno): “É difícil imaginar que possamos seguir com o grau de surpresas e incertezas que marcou os primeiros meses deste governo”. Por mais espantoso que pareça, elas se acentuaram nos 12 meses que se seguiram, com crescente atividade e influência do núcleo familiar e do núcleo ideológico do Palácio do Planalto nas redes sociais. No início do segundo inverno tentávamos ainda interpretar a escalada da estratégia bolsonarista, cada vez mais inspirada no sucesso de Trump nos EUA quanto ao uso, “como nunca antes no Brasil”, das redes sociais, crescentemente mobilizadas.

E desde então as incertezas, ansiedades e contradições só se acentuaram. A polarização acerba vem sendo a marca dos primeiros 18 meses do governo. Em 19 de abril de 2020 Bolsonaro discursou na manifestação de seus fiéis seguidores em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília, em meio a faixas pela restauração do AI-5 e contra o Congresso e o STF. Em fins de maio o País assistiu à íntegra do vídeo de uma surrealista reunião ministerial – a pandemia de covid-19 já fora declarada oficialmente pela OMS havia cerca de um mês e meio. Quem tinha dúvidas sobre o que era o presidencialismo de confrontação, à la Trump, deve tê-las perdido então. A partir daí, o instinto de sobrevivência política levou o presidente a fazer o que havia desprezado até então: tentar construir uma base de apoio no Congresso apta a permitir-lhe ganhar a reeleição em outubro de 2022.

Trump, o modelo de Bolsonaro, obteve em 2020 10 milhões de votos a mais do que havia obtido em 2016. Em belo artigo publicado neste jornal (23/11/20), Moisés Naim escreveu: “São 74 milhões que não se importaram em votar em um presidente que mente de forma compulsiva, constante e facilmente verificável. Que não acreditam que Trump seja mentiroso, ou não se importam com isso, ou têm necessidades e esperanças mais importantes”.

Mas o fato é que os eleitores norte-americanos decidiram, por uma diferença de 6 milhões de votos, não dar um segundo mandato a Trump. Que então se recusou a aceitar o resultado das urnas. Na verdade já declarava desde 2016, quando disputou pela primeira vez, que só reconheceria o resultado das urnas “if I win”. Em episódio inesquecível, insuflou seus seguidores a marchar contra o Congresso norte-americano. Era 6 de janeiro. A democracia norte-americana reagiu à invasão de seu Parlamento em plena sessão, e Biden tomou posse duas semanas depois.

A democracia venezuelana não resistiu a Chávez e Maduro. Há o risco de Bolsonaro ter em 2023 um quinto inverno. Seria o inverno de nossa desesperança, porque o Brasil teria dado em 2022 outro salto no escuro, como fez em 2018. Aqueles que desejam evitá-lo deveriam pensar na importância crucial dos próximos 12 a 15 meses. Para tanto muito ajudaria o uso da memória, que é, ou deveria ser, um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente.

ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC.