O Estado de S.Paulo
12 de junho de 2021
A cada início de inverno deste período de governo Bolsonaro venho publicando neste espaço textos voltados para o eventual leitor que preferiria não experimentar, em outubro de 2022, a polarização irrefletida que marcou a eleição de 2018 e julga ainda possível, desejável e salutar contribuir para tornar viável uma eventual coalizão ampliada de centro.
Como escreveu em texto recente Margareth Dalcomo, “aos cansados desses longos meses e que pretendem não se imiscuir nas querelas e desavenças políticas resta a lógica aristotélica, que lembra, aos que não gostam da política e permanecem neutros por convicção: somos e seremos sempre governados pelos que gostam e instados a arcar com as consequências dessa nada impune neutralidade”.
Há que levar em conta as sofridas memórias vividas por todos os brasileiros nos últimos dois anos e meio. Refiro-me não apenas à pandemia e à desastrosa postura do chefe do Executivo em relação a ela. É preciso que o País não perca sua memória – a memória do que alguns historiadores chamam do “passado recente”: aquele que continua influenciando o escopo das escolhas possíveis no presente.
Foram ações e omissões, erros e acertos, paixões e interesses, conflitos e compromissos que nos trouxeram, como país, ao que somos hoje. Entender como um país se tornou o que é, e o que poderia vir a ser, exige consciência do peso ou do empuxo do passado, como condição para viver criativamente no presente e, principalmente, para ter visão sobre o futuro, seu e de seu país no mundo.
O processo que nos trouxe até aqui está em curso há décadas. Estamos há mais de 130 anos em busca de uma República democrática digna desse nome. Por vezes, e particularmente agora, é preciso defender conquistas que julgávamos, realisticamente, em processo de consolidação.
O risco de retrocesso existe e vem se tornando menos obscuro ao longo dos últimos dois anos e meio. Acentuado pela propensão ao autoritarismo que vem marcando, a cada inverno que passa, a postura e a conduta daquele que deveria servir de exemplo a seus concidadãos – e não apenas àqueles que o têm como mito, como oráculo inquestionável.
Dizia o texto publicado aqui em junho de 2019 (início do primeiro inverno): “É difícil imaginar que possamos seguir com o grau de surpresas e incertezas que marcou os primeiros meses deste governo”. Por mais espantoso que pareça, elas se acentuaram nos 12 meses que se seguiram, com crescente atividade e influência do núcleo familiar e do núcleo ideológico do Palácio do Planalto nas redes sociais. No início do segundo inverno tentávamos ainda interpretar a escalada da estratégia bolsonarista, cada vez mais inspirada no sucesso de Trump nos EUA quanto ao uso, “como nunca antes no Brasil”, das redes sociais, crescentemente mobilizadas.
E desde então as incertezas, ansiedades e contradições só se acentuaram. A polarização acerba vem sendo a marca dos primeiros 18 meses do governo. Em 19 de abril de 2020 Bolsonaro discursou na manifestação de seus fiéis seguidores em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília, em meio a faixas pela restauração do AI-5 e contra o Congresso e o STF. Em fins de maio o País assistiu à íntegra do vídeo de uma surrealista reunião ministerial – a pandemia de covid-19 já fora declarada oficialmente pela OMS havia cerca de um mês e meio. Quem tinha dúvidas sobre o que era o presidencialismo de confrontação, à la Trump, deve tê-las perdido então. A partir daí, o instinto de sobrevivência política levou o presidente a fazer o que havia desprezado até então: tentar construir uma base de apoio no Congresso apta a permitir-lhe ganhar a reeleição em outubro de 2022.
Trump, o modelo de Bolsonaro, obteve em 2020 10 milhões de votos a mais do que havia obtido em 2016. Em belo artigo publicado neste jornal (23/11/20), Moisés Naim escreveu: “São 74 milhões que não se importaram em votar em um presidente que mente de forma compulsiva, constante e facilmente verificável. Que não acreditam que Trump seja mentiroso, ou não se importam com isso, ou têm necessidades e esperanças mais importantes”.
Mas o fato é que os eleitores norte-americanos decidiram, por uma diferença de 6 milhões de votos, não dar um segundo mandato a Trump. Que então se recusou a aceitar o resultado das urnas. Na verdade já declarava desde 2016, quando disputou pela primeira vez, que só reconheceria o resultado das urnas “if I win”. Em episódio inesquecível, insuflou seus seguidores a marchar contra o Congresso norte-americano. Era 6 de janeiro. A democracia norte-americana reagiu à invasão de seu Parlamento em plena sessão, e Biden tomou posse duas semanas depois.
A democracia venezuelana não resistiu a Chávez e Maduro. Há o risco de Bolsonaro ter em 2023 um quinto inverno. Seria o inverno de nossa desesperança, porque o Brasil teria dado em 2022 outro salto no escuro, como fez em 2018. Aqueles que desejam evitá-lo deveriam pensar na importância crucial dos próximos 12 a 15 meses. Para tanto muito ajudaria o uso da memória, que é, ou deveria ser, um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente.
ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC.
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