quarta-feira, maio 22, 2019

Bolsonaro, dólar e EUA contra China - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 22/05

Desvalorização segue tendência dos mercados emergentes; nem tudo é política

Jogaram a conta do dólar a R$ 4,10 no colo de Jair Bolsonaro. O presidente causa muita balbúrdia e talvez tenha seus dois centavos de culpa na desvalorização do real, mas “a verdade está lá fora”.

Desde abril, muitos países emergentes e assemelhados estão apanhando feio, em parte por causa do conflito sino-americano. Por exemplo, perderam valor as moedas de Brasil, Colômbia, África do Sul, Turquia e até do comportado Chile.

O real apanhou mais, como de costume, pois o mercado financeiro daqui é grande e uma das duas ou três melhores praças emergentes para especular com dinheiro grosso.

A partir deste maio, a desvalorização brasileira foi decerto um pouco mais acentuada, mas é difícil explicar minúcias de variações de preços da finança.

O tumulto de Bolsonaro e a horrível degradação da expectativa de crescimento brasileiro devem ter ajudado a puxar o real para baixo. A frustração com o PIB de outros países primos ajuda a provocar fuga de dinheiro dos emergentes. Também vamos nesse embalo da ladeira abaixo.

Desde maio, ao menos, o problema vem do reaquecimento da guerra fria econômica entre Estados Unidos e China. Como se sabe, Donald Trump prometeu cobrar ainda mais impostos sobre a importação de produtos chineses. Se o fizer, a barragem tarifária americana vai subir para níveis significativos, para não dizer históricos. O comércio mundial sofre e padece. Segundo a OCDE, a guerrilha comercial americana contribui para diminuir o crescimento mundial desde 2017.

A semana passada foi especialmente ruim por causa das sanções americanas contra a Huawei. A empresa chinesa é a maior do mundo no ramo de equipamentos de infraestrutura de telecomunicações, para 5G, por exemplo, e a segunda maior fabricante mundial de celulares, depois da Samsung.

Os americanos haviam na prática proibido a exportação de componentes e softwares para a Huawei, empresa-líder do avanço tecnológico chinês, acusada pelos EUA de pirataria, espionagem industrial etc.

Assim, as ações de fornecedores americanos e do setor de tecnologia em geral apanharam, ajudando a derrubar as Bolsas de lá e do mundo. Desde o início de maio, as taxas de juros mais longas dos EUA também baixam, sinal de procura extra de papéis americanos e de fuga de ativos financeiros de risco maior (de ações a papéis de países emergentes).

Nesta semana, o governo americano viu que dava também um tiro no pé de suas empresas e como que suspenderam o ataque contra a Huawei por três meses, prazo para que as firmas americanas se ajeitem com as novas regras. A medida aliviou um pouco os mercados financeiros, o que se viu também por aqui.

Mesmo com a balbúrdia bolsonarista, o pessoal do dinheiro se animou no Brasil.

No fim de junho, haverá encontro do G20. Especula-se pela mídia econômica mundial e em relatórios de bancões que esse seria um horizonte para ver se americanos e chineses acertam os ponteiros. Hum.

Trump não quer acertar os ponteiros. Quer acertar a China na cabeça. Quer punir o país por maracutaias industriais e, também, conter seu avanço e o de suas empresas-líderes, além de promover circo nacionalista para seu público doméstico.

A balbúrdia de Trump tende a perdurar, com surtos piores de vez em quando. A desaceleração econômica mundial continua. A gente discute, por exemplo, se vai distribuir mais pistolas pelo país. Nem seria preciso, né. Já encostamos um cano na cabeça.

A sutil persuasão - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 22/05

Bolsonaro tem uma tática para fazer com que as pessoas cheguem às suas —dele— conclusões

“Tirem suas conclusões”. “Analisem”. “Reflitam”. Assim terminam quase todas as mensagens, postagens e repasses de Jair Bolsonaro e filhos. É uma isca lançada aos seus seguidores e leitores para que eles pensem estar participando de uma linha de raciocínio. Não é de hoje —talvez sempre tenham usado essas expressões. É uma forma de sedução, transferindo às pessoas a possibilidade de chegar a conclusões que elas julgam próprias, mas que, sem que desconfiem, são as que já estão na cabeça dos Bolsonaro.

Não sei se é uma tática clássica ou conhecida de persuasão. Mas é, em tudo, semelhante à forma de Bolsonaro governar, parecendo transferir responsabilidades. Em vez de cuidar da segurança pública, “sugere” ao cidadão se defender por conta própria, botando um revólver no cinto. Em vez de cuidar da educação fundamental —já que declarou guerra ao ensino superior—, estimula os pais a “alfabetizar” pessoalmente os filhos, longe da professorinha comunista. Em vez de disciplinar as estradas e vias públicas, desliga os radares, evapora as multas e deixa a cada motorista a responsabilidade de atropelar e matar ou não.

Uma das últimas manifestações dessa tática foi há poucos dias, quando Bolsonaro divulgou o texto então ainda anônimo sobre a sua “impossibilidade de governar”. Ao repassá-lo na rede e pedir que fizessem o mesmo, já estava implicitamente endossando-o. Mas, ao final de sua mensagem, dizia: “Com o texto abaixo, cada um de vocês pode tirar suas próprias conclusões”.

Oferecer ao povo a ilusão de “tirar conclusões”, “refletir” ou “analisar” é uma forma sutil e eficiente de Bolsonaro assegurar apoio para seu cada vez mais óbvio objetivo: jogar o povo contra o Legislativo, o Judiciário e quem mais se meter na frente para, finalmente, governar sozinho.

Perdão pelo plágio, mas cada um de vocês pode tirar suas próprias conclusões. Analisem. Reflitam.


Desafio simples: faça o socialismo funcionar com um simples produto - e aí vamos dialogar - JEFFREY TUCKER

MISES BRASIL - 22/05

Se nem em um cenário tão simples assim o socialismo funciona, por que ampliá-lo?



Passei os últimos dias profundamente mergulhado na teoria e na história do socialismo do século XX, a pedido da revista National Review. De um lado, foi fascinante revisitar todos os argumentos em defesa do sistema; de outro, foi aterrador ler relatos detalhados sobre a experiência em todos os países que adotaram tal regime.

Se você já fez isso, irá concordar comigo como é insanamente estranho que o termo e o ideal ainda usufruam alguma credibilidade, especialmente entre pessoas jovens nascidas após 1989. Exceto a falta de interesse em história, é muito difícil descobrir qual é o cerne do erro.

Ainda assim, vou tentar.

Meu principal palpite é que as pessoas que acreditam defender o socialismo (no caso, pessoas que se identificam com a esquerda política; a direita tem outros problemas) nunca abordaram o problema da escassez como sendo uma realidade econômica.

Por escassez, não me refiro a desabastecimentos ou racionamentos. Antes, refiro-me à ausência de uma abundância infinita de tudo o que as pessoas querem em um determinado momento. Isso se deve a uma característica intrínseca do mundo material que impede que você e eu possamos exercitar exatamente o mesmo controle sobre o mesmo bem material ao mesmo tempo.

Nós dois não podemos calçar os mesmos sapatos ou beber água da mesma garrafa ao mesmo tempo. Ou você come aquele pedaço de picanha, ou eu como. Ou então dividimos ao meio (e aí um de nós não ficará saciado). Não há uma máquina mágica de reprodução que faça com que a carne surja do nada.

Escassez também ser refere àquela condição da vida que impede você de consumir tudo o que você deseja ao mesmo tempo. Cada escolha que você faz envolve um custo, que é aquilo que você deixou de fazer. Como muito bem diz o ditado, a cada escolha, uma renúncia. Você está lendo este texto agora em vez de estar fazendo outra coisa. O custo desta leitura é tudo aquilo de que você está abrindo mão neste momento. Igualmente, você não pode caminhar, pescar e nadar ao mesmo tempo. Tudo o que você compra requer o gasto de um dinheiro pelo qual você trabalhou, e que agora abriu mão de poupar.

É isso que os economistas rotulam de escassez, e é isso que gera a necessidade de economizar, isto é, escolher entre vários fins concorrentes. É parte irrevogável da realidade. Não importa qual seja a prosperidade que você esteja vivenciando, não interessa qual tipo de avanço tecnológico venha a surgir; a realidade da escassez sempre estará conosco. O mundo material dos seres humanos sempre irá exceder aquilo que está disponível, não importa quanta riqueza haja, simplesmente por causa da realidade da escassez.

Logo, é necessária uma maneira racional e pacífica para lidar com ela.

A solução
Foi a constatação desta realidade, ao longo da profunda história da experiência humana, que nos impeliu a uma solução melhor do que incessantes conflitos físicos para se conseguir algo para comer. Há aproximadamente 150.000 anos, gradualmente descobrimos os benefícios sociais da propriedade privada, do comércio, do cumprimento de contratos, da criação de complexas estruturas do capital, da liberdade de empreendimento, e da escolha do consumidor. Também descobrimos, muito gradualmente, que aderir a estas convenções sociais — minhas e suas — permitiu a divisão do trabalho, a acumulação de capital, a criação de complexas estruturas de produção, e, como consequência de tudo, aquele fenômeno incrivelmente mágico: a criação de mais riqueza.

Já os socialistas imaginam ter outra solução para o problema da escassez sem ter de recorrer à propriedade privada. Para eles, basta apenas dizer: "Que haja o socialismo!", e isso irá magicamente abolir o problema. No entanto, apenas isso pode não soar muito crível. Por que alguém aceitaria adotar tal arranjo sem uma explicação convincente sobre como ele funcionaria na prática?

Por isso, o truque utilizado no passado foi pegar todos os seu desejos por aquilo que lhe parecia impossível e adorná-los em uma pomposa teoria da história que misturava dialética e a inevitabilidade das forças sociais, a qual iria solucionar conflitos até então insolúveis que conduzem a meta-narrativa do progresso — ou algo nessas linhas. Se você insistir bastante nessa ideia convoluta e souber falar bonito, as pessoas irão finalmente ceder: "Ok, ótimo, vamos tentar o socialismo".

Tão logo você acredita que isso é possível, então várias outras coisas também magicamente se tornam dignas de ser experimentadas: serviços de saúde gratuitos, educação gratuita, renda universal garantida, bens e serviços gerais gratuitos, e tudo isso em conjunto com uma redistribuição universal de renda sem que isso prejudique a criação de riqueza.

O fato de tais idéias serem levadas a sério sem nenhuma consideração quanto aos custos, e sem nenhuma consideração de que tais estruturas poderiam criar problemas para o exercício da liberdade humana, é uma atitudes que podem ser rastreada à negação da escassez.

Na forma mais extrema, a cegueira coletiva em relação à escassez pode levar um indivíduo a acreditar que criar o comunismo é apenas uma questão de apertar um interruptor na máquina da narrativa da história.

Comece pelo indivíduo
Façamos um experimento mental. Vamos tentar criar o socialismo sobre um único bem. Vamos tentar fazer isso com sapatos em uma economia formada por apenas três pessoas. Você e dois amigos. Cada um de vocês possui um par de sapatos e vocês calçam sapatos do mesmo tamanho.

E aí um de vocês estala o dedo e diz: "Que haja o socialismo!".

No início, nada parece mudar. Mas aí então você observa que seu amigo tem sapatos mais elegantes, os quais você agora quer calçar. Ato contínuo, você diz: "Agora eu é que vou usar os seus sapatos".

E ele responde: "Mas aí eu não poderei calçá-los também". E então você retruca: "Sim, mas agora vivemos sob o socialismo, o que significa que você tem de abrir mão deles."

Mas isso é confuso. É fato que, só porque agora há o socialismo, isso não significa que uma pessoa tem o direito de possuir os sapatos de outra. Verdade. Porém, no mínimo, isso também significa que nenhum indivíduo pode reivindicar propriedade exclusiva sobre seus próprios sapatos. Neste caso, surgirão vários tipos de novas dúvidas sobre como decidir quem irá calçar os sapatos de quem.

Como decidir? Bom, há a possibilidade de se buscar a unanimidade. Ou então você pode instituir o voto da maioria. Dois de três. Uma pessoa certamente irá odiar os resultados. A consequência é que você agora passou a incentivar a manipulação dos resultados por meio da organização de facções. Isso tende a gerar mais desconfiança, mais intriga, mais conflitos, mais ressentimentos e mais brigas. E tudo isso pode, por sua vez, levar a outra consequência: o mais forte entre vocês três assumirá o poder de decidir.

Agora, você tem uma ditadura.

E todo esse arranjo totalitário foi muito facilmente criado, com apenas três pessoas, tão logo você decidiu impor o socialismo sobre um único bem.

Já está claro que aquela tão desejada utopia dos sapatos não prosperou. Anunciar a existência do socialismo não produziu nenhum sapato novo. Não mudou absolutamente nada na natureza dos seres humanos naquele ambiente. Não alterou nada do mundo material. Tudo o que ela fez foi remodelar as regras. Antes, as pessoas estavam satisfeitas com suas posses; agora, elas fervem de ressentimento e inveja daquilo que as outras pessoas têm.

Agora, minha proposição é esta: se o socialismo não é capaz de funcionar em um caso tão simples e pequeno quanto este, como pode alguém acreditar que todos estes problemas irão desaparecer caso a ideia de propriedade comunal seja expandida para toda a sociedade e para todos os bens existentes?

A lógica mostra que é bastante provável que a tentativa irá apenas expandir este problema fundamental para toda a sociedade.

A questão é simples
O socialismo, no sentido moderno, surgiu no século XIX como parte de uma revolta anti-liberal. A nova doutrina se subdividiu em várias facções: religiosa, sindicalista, nacionalista, utópica, científica, moralista, nacionalista etc. Você escolhe. Mas todas elas têm em comum este mesmo e inacreditavelmente simples erro: elas foram incapazes de reconhecer a necessidade de se economizar. Como consequência, todas elas acabaram criando caos e conflito (e homicídios em massa).

A alternativa à fantasia socialista é a propriedade, o livre comércio, a concorrência e a produção — e tudo por meios voluntários, sem usar de violência contra indivíduos pacíficos e suas respectivas propriedades. Se você deseja uma ordem social sensata e humana, realmente não há alternativa.

Que o socialismo como uma ideia tenha sobrevivido centenas de anos é um tributo à capacidade da mente humana de imaginar ser capaz de criar aquilo que a realidade sempre irá se recusar a tornar possível.


Jeffrey Tucker
é Diretor-Editorial do American Institute for Economic Research. Ele também gerencia a Vellum Capital, é Pesquisador Sênior do Austrian Economic Center in Viena, Áustria. Associado benemérito do Instituto Mises Brasil, fundador e Diretor de Liberdade do Liberty.me, consultor de companhias blockchain, ex-editor editorial da Foundation for Economic Education e Laissez Faire books, fundador do CryptoCurrency Conference e autor de diversos artigos e oito livros, publicados em 5 idiomas. Palestrante renomado sobre economia, tecnologia, filosofia social e cultura.

Grupo de Bolsonaro aposta em fanatismo e ataca os próprios aliados - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP - 22/05

Desentendimentos sobre protestos criam desconfianças mútuas em sua base política


Em julho do ano passado, Janaina Paschoal incomodou os apoiadores de Jair Bolsonaro. Convidada para discursar na convenção do PSL, a advogada alertou que os seguidores do então pré-candidato tinham “uma ânsia de ouvir um discurso inteiramente uniformizado”. “Pessoas só são aceitas quando pensam exatamente as mesmas coisas”, completou, em tom de crítica.

Os desentendimentos em torno dos protestos do próximo dia 26 mostram que o bolsonarismo continua sofrendo desse mal. Os aliados mais devotados do presidente estimulam o fanatismo e afastam parte de sua própria base política. Quem não bate continência a todo momento é tratado como inimigo.

Nos últimos dias, a líder do governo, Joice Hasselmann (PSL), tentou levantar uma bandeira branca na cruzada insana de Bolsonaro contra o Congresso e disse que as manifestações seriam um “tiro no pé”. Recebeu ataques nas redes e foi criticada até por deputados de seu partido.

Grupos de direita que se recusaram a aderir aos protestos com nuances golpistas também entraram na lista de traidores. O MBL e o Vem pra Rua se recusaram a emprestar suas marcas aos atos de domingo. “O movimento liberal não compactua nem com o fechamento do Congresso nem com o fechamento do Supremo”, disse Kim Kataguiri (DEM). Ele passou a ser chamado de comunista.

Sobraram na linha de frente das manifestações apenas as facções mais raivosas do bolsonarismo, que investem contra o Judiciário e contra os parlamentares de modo geral.

Janaina precisou voltar à cena. “Essas manifestações não têm racionalidade. O presidente foi eleito para governar nas regras democráticas. Propositalmente, ele está confundindo discussões democráticas com toma lá dá cá”, escreveu. Foi acusada de sabotar os protestos.

Bolsonaro fez uma jogada de risco ao incentivar as manifestações. Talvez as desavenças internas não rachem de vez seu núcleo de apoiadores, mas já alimentam um clima de desconfiança mútua.

Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA

O nacional populismo veio para ficar - RODRIGO CONSTANTINO

 GAZETA DO POVO - PR -22/05

 O nacional populismo é uma ideologia que prioriza a cultura e os interesses da nação


A ascensão do nacional-populismo é uma realidade, basta citar Trump, o Brexit, Viktor Orbán na Hungria, Le Pen na França, o avanço do movimento da direita radical na Itália, Bolsonaro no Brasil etc. Com suas diferenças, os denominadores comuns são a descrença na democracia liberal e suas instituições, o ataque ao globalismo, que enfraquece a soberania nacional diante de instituições supranacionais, e o receio com a imigração descontrolada.

Alguns tentam explicar o fenômeno como uma reação passageira a crises conjunturais e econômicas, como se fosse apenas o voto do homem branco de classe média, pouco culto, movido por ressentimento. Não é a opinião de Roger Eatwell e Matthew Goodwin, autores de National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy. Para os acadêmicos, com base em muitas pesquisas, o fenômeno é mais estrutural do que parece, e as reclamações desses eleitores, muitas vezes, legítimas. Ignorar isso só vai levar a previsões equivocadas.

A tendência de muitos analistas é priorizar o aspecto econômico, mas a questão cultural é tão ou mais importante para os que apoiam líderes nacional-populistas. Eles prometem dar voz àqueles que se sentem negligenciados pela política tradicional e os partidos estabelecidos. As elites corruptas dominaram a política de forma distante da população, e as lideranças populistas se apresentam como representantes diretas desse povo, contra essas elites.

O nacional populismo, portanto, seria uma revolta contra a política e a mídia mainstream, assim como os valores “liberais”. Críticos mais histéricos acusam esses líderes de fascistas, mas os autores rejeitam esse rótulo, admitindo que apenas uma pequena minoria deseja de fato implodir as instituições democráticas. O que a maioria procura é mudar tais instituições para que elas deem mais espaço aos que se sentem sem representação. Muitos pregam, por exemplo, uma forma de democracia direta, justamente por acreditarem que os congressistas não os representam mais.

A preocupação com o isolamento dessas elites políticas em suas bolhas, sem elo com a vida real do cidadão comum, não deve ser descartada como injusta. Assim como a preocupação com o enfraquecimento do Estado-nação não é desprovida de fundamento. As rápidas mudanças étnicas que têm ocorrido como resultado de uma imigração descontrolada, em especial com refugiados islâmicos, também geram insegurança, que tampouco deve ser descartada como paranoia ou xenofobia.

Ou seja, as agendas “liberais” cosmopolitas entram em conflito direto com valores mais tradicionais e conservadores enraizados na população, e não há nada absurdo em temer o ritmo dessas mudanças. Claro que há parcela racista e xenófoba que se aproveita desse clima, mas os autores reconhecem a legitimidade da maioria que adere a tais movimentos. Suas ansiedades não podem ser tratadas como simples rancor de “deploráveis”, e esse tem sido o grave erro dos “progressistas”.

Os autores apontam para os quatros “Ds” que estariam por trás desse sentimento profundo diante de mudanças radicais: a descrença no elitismo da democracia liberal; a destruição da identidade nacional promovida pela imigração desenfreada; a desigualdade criada pela globalização, mais no sentido de uma privação relativa e da perda da crença em um futuro melhor; e o desalinhamento entre partidos e eleitores.

Tudo isso, na era das redes sociais, tem produzido maior volatilidade política, e a oportunidade para o surgimento de líderes nacional-populistas. Ou seja, não se trata de um protesto relâmpago, mas sim de uma tendência duradoura, até porque essas questões são estruturais e devem se agravar à frente. Para os autores, “os movimentos nacional-populistas conquistaram o apoio bastante leal de pessoas que compartilham preocupações coerentes, profundamente sentidas e, em alguns casos, legítimas sobre como suas nações e o Ocidente estão mudando em geral”.

Nesse sentido, o fenômeno é uma reação a um quadro que efetivamente parece problemático. Não são fascistas no sentido tradicional, mas sim reacionários que querem resgatar um passado idealizado ou preservar valores ameaçados. Dos Estados Unidos à Europa, os movimentos nacional-populistas são vistos como refúgio para fanáticos irracionais, perdedores desempregados, eleitores que foram duramente atingidos pela Grande Recessão e velhos brancos irados que logo morrerão e serão substituídos por Millennials tolerantes. É uma visão simplista que ignora toda a complexidade do fenômeno, uma narrativa que conforta os “liberais”, pois seria preciso apenas aguardar para que a configuração etária desse a vitória para os “progressistas”.

Não é justo nem certo retratar essas pessoas como ignorantes, e esses estereótipos apenas reforçam a polarização na sociedade. O nacional populismo é “uma ideologia que prioriza a cultura e os interesses da nação, e que promete dar voz a um povo que se sente negligenciado, mesmo desprezado, por elites distantes e muitas vezes corruptas”. A forma se confunde com o fascismo às vezes, mas não o conteúdo. Há também muitas teorias conspiratórias, mas o ataque ao politicamente correto e à influência de globalistas como George Soros parece legítimo.

Os autores escrevem: “Há certamente um lado negro no nacional-populismo. Mas concentrar-se indevidamente nesse aspecto desvia a atenção da maneira como os populistas também levantam questões por vezes desconfortáveis, mas legítimas, que de outra forma permaneceriam sem solução”. Podemos – e acho que devemos – discordar de muitos métodos utilizados pelos nacional-populistas, mas não devemos descartar os problemas que eles apontam, pois são reais. Os autores ponderam: “Os otimistas podem argumentar que toda essa mudança ajudará a manter os antigos partidos em alerta e os tornará mais receptivos às demandas das pessoas. Os pessimistas podem responder que isso apenas tornará a política mais fluida e caótica, abrindo as portas para mais mudanças, mais partidos, mais grandes mudanças nas eleições, mais coalizões instáveis ​​e decisões políticas mais imprevisíveis”. Não sou otimista, pois considero o tribalismo presente nesses movimentos bastante prejudicial ao convívio em sociedade. Se suas receitas vão ou não produzir bons resultados, o tempo dirá.

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal."

Apertem os cintos, o presidente sumiu! - GUSTAVO NOGY

GAZETA DO POVO - PR - 22/05

O desgoverno Bolsonaro joga, e muito bem, com a produção antecipada de desmentidos e a manipulação calculada de anseios e frustrações. É uma espécie de governo ad hoc. Não que isso seja novidade política, mas impressiona como tem sido praticado com método e intensidade.

Em resumo, funciona mais ou menos assim: Bolsonaro dispara qualquer coisa sobre qualquer tema, assunto ou fato, e espera a reação correspondente; a depender de como público e imprensa reagem, ele projeta, retroativamente, o significado que melhor se ajuste à narrativa pretendida.

A demissão de Velez Rodriguez deu o tom: ele estava demitido quando a informação vazou. Em horas seria anunciado. No entanto, como a jornalista Eliane Cantanhede antecipasse a novidade, Bolsonaro achou por bem retardar o anúncio, com o nobilíssimo intuito de machucar a imprensa.

Outro exemplo é o decreto que, a rigor, libera o porte de armas para milhões de pessoas, feito sem estudo, cuidado ou debate. Mais uma dessas profecias autorrealizáveis: se fosse bem recebido, bem recebido seria.

Contudo, as reações à intempestividade do decreto não foram das melhores, e sua constitucionalidade está sendo questionada. É muito provável que seja derrubado no Congresso. Resultado? Bolsonaro se apressou a afirmar que acatará a decisão, caso seja mesmo inconstitucional.

Aqui, ele faz truque de mágico de bairro: de um lado, posa de obediente à Constituição (como se fosse mérito e tivesse outras opções); de outro, joga sobre o Congresso a responsabilidade pela eventual frustração da torcida organizada.

Esta semana Bolsonaro sancionou anistia de 70 milhões de reais a partidos políticos, mas jurou de pés juntos que tudo não passava de intriga da imprensa. O problema é que não, não se trata de intriga da imprensa. A decisão saiu no Diário Oficial, aquele jornalzinho de forrar gaiola de canário.

Agora, sua penúltima declaração (neste exato momento deve estar declarando outra coisa) é a de que o problema do Brasil é a classe política. Ouço daqui os aplausos da patuleia.

Me desculpem o latim, mas só mesmo a patuleia para aplaudir que um presidente eleito depois de sucessivos mandatos como deputado, e depois de apoiar os sucessivos mandatos de três dos seus filhos, reclame da classe política, como se a ela não pertencesse. Como se fosse um querubim, um mutante, um extraterrestre.

Se o problema do país é de fato a classe política, e sou tentado a concordar com o presidente, acredito que ele deveria começar dando o exemplo. Há profissões mais decentes, tenho certeza, há vocações mais nobres, estou convicto. Quem sabe ele não faz um bem a si mesmo e se descobre comediante, prestidigitador, encantador de serpentes?

Fica a sugestão."

Destruição de reputações - MICHEL TEMER

O Estado de S.Paulo - 22/05
Busca-se a incriminação sem provas e sem a possibilidade de fazê-las. Só ilações e suposições


Destroem-se reputações com a maior tranquilidade. E irresponsabilidade. Tenho uma longa e honesta carreira política, que terminou por me levar à Presidência da República, após ter sido vice-presidente e presidente da Câmara de Deputados por três vezes. Escrevo para me dirigir a todos os cidadãos de meu país, a quem sempre procurei honrar com meu trabalho e dedicação. O respeito pessoal e institucional deveria ser um valor máximo, porém o que temos visto em termos de excessos termina por desrespeitar a dignidade mesma da pessoa.

Faço depoimento de um homem que está sentindo na carne e na alma os seus direitos serem violados.

Uma das ignomínias reside em ser eu considerado perigoso chefe de quadrilha, tendo amealhado em 40 anos mais de R$ 1,8 bilhão. Dediquei, isso sim, 40 anos da minha vida a contribuir para o bem deste país e eis que, agora, jogam a minha reputação na sarjeta. Nem julgado fui e, no entanto, sou vítima de arbitrariedades.

Tenho 58 anos de trabalho duro, cotidiano, sem hora para começar ou terminar. Fiz a Faculdade de Direito com imenso esforço. Em 1964 trabalhei no gabinete do secretário de Educação de São Paulo. Advogado no Sindicato dos Vendedores Viajantes e Pracistas, em 1966 dediquei-me à advocacia do trabalho. Em 1968, fui docente na PUC-SP e na Faculdade de Direito de Itu. Em 1970 ingressei na Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, com liberdade para advogar. Daí por que, concomitante, procurador parte do dia, advogado com escritório próprio e professor universitário, quando pude amealhar patrimônio próprio, de vez que exerci a advocacia até 1984. Foram 21 anos de profissão! Na carreira universitária, doutorei-me pela PUC com a tese Territórios Federais na Constituição Brasileira. Depois, publiquei o livro Elementos de Direito Constitucional, com 25 edições. Depois, Constituição e Política e, ainda, Democracia e Cidadania e Anônima Intimidade.

Chegando à Presidência, iniciou-se o meu martírio. E isso apesar de ter conseguido tirar o País de uma sufocante recessão. O PIB, em maio de 2016, era negativo em 5,4%. Em dezembro de 2017 era positivo em 1,1%. Inflação e juros caíram substancialmente. As estatais foram recuperadas. Seguiram-se as reformas trabalhista, do ensino médio, do teto dos gastos públicos e outras tantas.

Apesar disso, os destruidores de reputação não atentam para o Texto Constitucional. Este é uma pauta de valores. O constituinte, ao criar o Estado brasileiro, define quais são as matérias de maior importância. Para dimensionar esses valores impõe-se verificar a forma de produção legislativa, tanto das normas infraconstitucionais como das alteradoras da Constituição. Veja-se que a lei ordinária é aprovável pela chamada maioria simples, que significa: presente a maioria absoluta na sessão, a aprovação se dá pela maioria dos presentes. Já as matérias versáveis por lei complementar devem ser aprovadas por maioria absoluta, o que dá a elas um valor mais elevado conferido pela Carta Magna.

Vamos ao caso da emenda à Constituição. Esta passa por um processo bastante dificultoso para sua apresentação e aprovação, que só se dará pela maioria qualificada de três quintos dos votos da Casa Legislativa. Significa que as matérias encartadas na Constituição são as de maior valor institucional. Mais do que as da lei ordinária ou da lei complementar. São valores que deverão ser levados em conta em toda interpretação de casos concretos.

Agora, os valores maiores atribuídos pelo constituinte estão nas chamadas cláusulas “pétreas”, que são as imodificáveis e previstas no artigo 60, parágrafo 4.º, da Constituição federal. Entre elas , “os direitos e garantias individuais”. E nestes ganha relevo o tema da liberdade: liberdade de pensamento, de consciência e de crença, atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, de trabalho, de locomoção, de associação e a física – todas previstas no artigo 5.º e em seus incisos da Constituição federal. O tema da liberdade é enaltecido pelo constituinte originário como decorrência da adoção do Estado Democrático de Direito. No caso da liberdade física, elevou à condição de princípio fundamental “a dignidade da pessoa humana”. É tão importante que foi criado um instrumento especial para garantir a liberdade de locomoção, que é o habeas corpus.

Por outro lado, no devido processo legal se incluem a ampla defesa e o contraditório, que são as garantias de um processo justo e equilibrado, no qual se devem formar as provas e contraprovas, para só depois, nas questões penais, absolver ou condenar. O rigoroso cumprimento da lei já vinha da dicção latina nullum crimen , nulla poena sine praevia lege. Hoje, no artigo 5.º , inciso XXXIX.

Já escrevi, em artigo anterior (Estado, 4/4/2019), sobre a trama que se montou em vários casos para denegrir a minha reputação. Vários exemplos foram mencionados naquele artigo. Eis aqui mais um: suposto “campeão nacional” produtor de proteína animal, autor de gravação criminosa com frase falsa, em matéria da Veja (10/4/2019, pág. 57) aspeou: “Eu fiz um negócio com o Estado brasileiro, com a maior autoridade do Ministério Público do país. Eu vendi um produto. Eles me pagaram”. O “produto” era eu. Ele fez “negócio” com o procurador-geral da República. “O Miller pediu a cabeça do Temer”, disse um dos participantes de gravação equivocadamente encaminhada à PGR. “E nós demos”, diz o outro. Menciono esse fato porque foi aí que se iniciou uma tentativa frustrada de me derrubar do governo. E, agora, a busca de incriminação sem provas e sem possibilidade de fazê-las. Só ilações e suposições.

Tenho sido vítima de medidas incompatíveis com as disposições constitucionais que expus acima. Sou vitorioso na vida profissional, acadêmica e pública. Juízes que defendem as garantias individuais e o Estado de Direito não permitirão o arbítrio. Confio no Judiciário.

Bolsonaro não sabe governar - MIRIAM LEITÃO

O Globo - 22/05

O fato é simples: o presidente Bolsonaro não sabe governar. É essa a razão da sua performance tão errática nestes quase cinco meses



Durante os anos em que foi parlamentar, Jair Bolsonaro não presidiu comissão, não relatou qualquer projeto, nunca liderou grupo algum. Ele não se interessava pelas matérias que passavam por lá, concentrando-se em questões do seu nicho. Sua preocupação era apenas a defesa dos interesses da corporação dos militares e policiais. Afora isso, ofendia colegas que considerasse de esquerda e dava declarações espetaculosas para ocupar espaço no noticiário. Com esse currículo ele chegou à Presidência. Hoje, não entende nem os projetos que envia ao Congresso, como se vê diariamente nas declarações que faz.

A informação de que ele não sabe o que faz é possível notar até nos pequenos detalhes. Cercado de crianças, ontem, ele disse que elas sustentariam a aposentadoria dos adultos ali presentes. O ministro Paulo Guedes teve que lembrar que o próprio governo propôs criar um novo sistema que em tese mudaria a lógica da repartição. Mais importante do que saber se ele vai aprovar a capitalização é constatar que ele não sabe que a incluiu no projeto da reforma. O seu decreto de armas tem tantas inconstitucionalidades que contra ele se levantam desde governadores até as companhias aéreas estrangeiras. Quando perguntado sobre a reação ao projeto, Bolsonaro declarou: “se é inconstitucional tem que deixar de existir”. Ora, ele deveria ter procurado saber da constitucionalidade do seu ato antes de editá-lo. Para isso existem, ou deveriam existir, o Ministério da Justiça e a Casa Civil.

Diariamente, Bolsonaro diz algo que contraria o espírito dos projetos que seu governo defende ou contradiz o que disse. De manhã, afirma que a “classe política” é o grande problema do país, de tarde, a adula. Navega por qualquer tema com a mesma superficialidade que demonstrava no exercício dos seus mandatos de deputado. Nenhuma surpresa nisso. Por que mesmo ele seria presidente diferente do parlamentar que foi?

A direita que o defendeu, e se surpreende agora com o péssimo desempenho da sua administração, demonstra, no arrependimento, a qualidade do próprio voto. Houve opções à direita que não colocariam o país nesta brutal incerteza em que se encontra.

O fato é simples: o presidente Bolsonaro não sabe governar. É essa a razão da sua performance tão errática nestes quase cinco meses. Sua relação tumultuada com o Congresso não deriva de uma tentativa de mudar a prática da política, mas da sua falta de aptidão para qualquer tipo de diálogo. Não sabe ouvir, não entende os projetos, não tem interesse em estudá-los. Repete frases feitas, porque são mais fáceis de decorar, como: “Tirar o governo do cangote do empresário”, “empresário no Brasil é herói”. E outras monótonas repetições.

O jargão “Mais Brasil e menos Brasília” não é apenas oco. Ele tem sido negado na prática. Este governo quer decidir de Brasília qual é o método de alfabetização em cada município, e do Planalto qual é o marketing do Banco do Brasil. Não fez rigorosamente nada para descentralizar coisa alguma. Não conseguiu entender até o momento qual é a lógica da formação de preços da Petrobras. Quando ele e seu ministro da Energia, Bento Albuquerque, afirmam que os preços serão mais baixos quando o país for autossuficiente em petróleo demostram que desconhecem que a estatal segue preços internacionais. Portanto, nem se a empresa produzir toda a gasolina e diesel consumidos internamente o país estará protegido das oscilações.

O texto avalizado por ele na última sexta-feira tem uma mensagem implícita contra o Congresso e as instituições democráticas. Inclui também a afirmação de que o Brasil é um “cadáver”. Com esse sentimento confuso de oposição a tudo, o presidente e os seus convocaram uma manifestação a favor dele mesmo, Bolsonaro. Lembra o chavismo, movimento iniciado por um coronel autoritário e que governou sempre convocando manifestações a favor do seu governo e demonizando todos os que se opunham aos seus métodos e decisões. Nada mais parecido com Hugo Chávez, em seu início, do que Bolsonaro.

Como Chávez e seu sucessor Maduro, Bolsonaro quer seus seguidores nas ruas, e nas redes sociais, constrangendo os políticos, os juízes e a imprensa, para culpá-los pela própria incapacidade de governar.

O risco da oclocracia - HELIO BELTÃO

FOLHA DE SP - 22/05

A oclocracia é a versão patológica do poder popular, em contraste com a democracia

O principal risco político no Brasil atual não é o despotismo; é a oclocracia, o regime da turba. Segundo Políbio, que escreveu no século 2 a.C., a oclocracia é a versão patológica do poder popular, em contraste com a versão positiva, a democracia. A degradação da democracia para a oclocracia ocorre quando um agente ou poder político empareda demais poderes políticos com apoio da multidão impulsiva, mobilizada por um discurso simplista.

Após décadas esmagados pela corrupção avassaladora que beneficiou os donos do poder, os brasileiros exigiram uma nova direção. Optaram pela plataforma conservadora-liberal de Jair Bolsonaro, que possui mandato para enfrentar os interesses organizados e a criminalidade, bem como para reduzir drasticamente a intrusão estatal.

O presidente tem avançado com essa agenda, com iniciativas como a PEC 6 da Previdência, a MP 881 da Liberdade Econômica, o pacote anticrime do Moro e o decreto que regulamenta o porte de armas.

Ao longo da história mundial, o poder foi tipicamente centralizado em um pequeno grupo de pessoas, inclusive na monarquia e na democracia representativa. Devido à concentração de poder, sempre havia o risco do descenso ao despotismo. De forma a prevenir a tirania, distribuiu-se o poder político entre certos Poderes institucionalizados (Executivo, Legislativo e Judiciário) e entre os cidadãos (por meio do voto), cada qual dotado de natureza e interesse particulares e esforçando-se para preservar seu próprio espaço contra a tirania dos demais.

Como dizia James Mackintosh sobre o regime de democracia representativa, cada agente político tem interesse em resistir às intrusões dos demais, caso contrário não há liberdade. E cada agente político tem interesse em cooperar com os demais, caso contrário não há governo funcional.

A premissa dessa distribuição de poder é que o exercício do autointeresse de cada poder político, ao controlarem-se mutuamente, melhor protege o cidadão comum tanto de seus governantes como de grupos organizados de seus concidadãos.

O regime de democracia representativa é falho, no entanto, pois o mecanismo de transmissão entre a vontade do cidadão expressa pelo voto e o que decide o Estado é deficiente, e consequentemente os Poderes possuem incentivo em cooperar para espoliar o cidadão. No Brasil, entre o Executivo e o Legislativo sempre faltou controle mútuo e sobrou cooperação simbiótica, em prejuízo da população.

O presidente está desafiando essa lógica de simbiose espúria. Pela primeira vez, os termos são distintos, o que gera atrito e frustração, pois a aprovação pelo Congresso não é mais semiautomática. É preciso negociar com o Congresso como em países desenvolvidos: de forma republicana.

No entanto, a estratégia de aliados do governo é a confrontação com vias a enfraquecer o controle parlamentar. O discurso tem sido a demonização do Congresso e do STF, o antagonismo frontal ao centrão e a convocação da manifestação de 26/5 com o objetivo de repactuar as forças relativas entre os Poderes, por meio desses métodos típicos da oclocracia.

Ocorre que o Brasil é maduro institucionalmente, e compete ao Congresso aprovar ou não as mudanças legais. Ademais, o centrão é composto por cerca de 300 deputados. Essa repactuação oclocrática não prosperará.

Embora não se perceba risco para a reforma da Previdência com potência adequada, o Congresso pode, em reação à ofensiva do Executivo, assumir o protagonismo e lamentavelmente reprovar reformas importantes. Apoio a agenda liberal do presidente Bolsonaro, mas não comparecerei à manifestação oclocrática.

Helio Beltrão
Engenheiro com especialização em finanças e MBA na universidade Columbia, é presidente do instituto Mises Brasil

A fatura universitária - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 22/05

Públicas ou privadas, alguém paga pelas universidades

O lado positivo de crises fiscais é que elas nos obrigam a repensar prioridades, oferecendo a possibilidade de nos livrarmos de dogmas. O governador da Bahia, Rui Costa, afirmou que estudantes de famílias ricas poderiam contribuir com a universidade pública pagando mensalidades. Costa, é importante frisá-lo, é do PT, partido que se destaca na defesa da chamada “universidade pública, gratuita e de qualidade”.

Universidades podem ser públicas ou privadas, podem exceler ou ser péssimas, mas não podem ser gratuitas. Alguém paga por elas. Ou a conta vai para o tesouro, recaindo sobre o conjunto dos contribuintes, ou fica com o aluno e sua família. É aqui que lógica e ideologia se divorciam.

A esquerda defende em bloco a gratuidade, para o estudante, do ensino superior, mas é difícil até imaginar um arranjo mais regressivo do que esse. Afinal, o sujeito que se forma em medicina ou engenharia ganhará, ao longo de toda a sua vida profissional, salários 15 a 20 vezes maiores do que a média nacional. Usar os impostos pagos pelos mais pobres para financiar os estudos de quem ocupará o topo da pirâmide social deveria ser visto como uma perversão por todos aqueles que pretendem combater as desigualdades. Curiosamente, não é o que ocorre.

É claro que nem toda a esquerda é assim tão míope. Karl Marx, na “Crítica ao Programa de Gotha”, detona a ideia de usar o fundo de impostos para custear o ensino superior, justamente porque configura um subsídio dos mais pobres aos mais ricos.

Obviamente, existem complicações. Nem toda formação universitária proporcionará salários tão elevados quanto os de médicos e engenheiros. Professores do ensino básico, por exemplo, recebem menos do que a média dos que têm diploma superior. É esse tipo de problema —e como lidar com eles— que deveríamos discutir, em vez de abraçar palavras de ordem que nunca fizeram muito sentido.

A Pastoral Carcerária, o pacote anticrime e o Catecismo - PAULO ROBERTO NOGUEIRA

GAZETA DO POVO - PR - 22/05

 Após a condenação em segunda instância, não existe mais dúvida pelo Judiciário quanto à autoria e à existência do crime


Em 4 de fevereiro, o ministro da Justiça, Sergio Moro, anunciou um conjunto de propostas de alterações legais com o objetivo de combater organizações criminosas, crimes violentos e corrupção, o chamado "pacote anticrime". Logo no dia seguinte, a Pastoral Carcerária Nacional (PCN), ligada à CNBB, publicou uma nota manifestando repúdio às medidas. Segundo a entidade, as mudanças pretendidas resultarão no “aumento do encarceramento em massa, do endurecimento penal e da letalidade policial”. O documento, entretanto, diverge da moral cristã, adotando ideias contrárias ao Catecismo da Igreja Católica.

O primeiro ponto combatido pela nota da PCN é questão das prisões após condenação em segunda instância, que, segundo a entidade, “ignoram o conceito da presunção da inocência e colocam atrás das grades muitas pessoas que não tiveram sua sentença condenatória”. O argumento da Pastoral Carcerária se baseia no inciso LVII do artigo 5.º da Constituição, que garante a presunção de inocência até o trânsito em julgado formal (o que possibilitaria recursos até quarto grau). Mas a Pastoral Carcerária desconsidera que, após a condenação em segunda instância, não existe mais dúvida pelo Judiciário quanto à autoria e à existência do crime. Ou seja, não há mais que se falar em inocência. Assim, aguardar o julgamento de recursos em terceira e quarta instâncias para a aplicação de pena, quando o juízo de culpa é formado até o segundo grau, contraia o bom senso.

A adoção desse entendimento permitiria que pessoas comprovadamente criminosas ficassem livres até o julgamento de recursos em quarta instância, ou até mesmo evitassem o cumprimento da pena, pela prescrição da punibilidade antes do trânsito em julgado formal. Desse modo, a execução de pena após condenação em quarto grau contribuiria apenas para a propagação do sentimento de impunidade, a difusão de comportamentos lesivos e o prejuízo da ordem pública e da segurança das pessoas.

Segundo o Catecismo, “a legislação humana não goza de caráter de lei senão na medida em que se conforma à justa razão; de onde se vê que ela recebe seu vigor de lei eterna”, e “na medida em que ela [a legislação humana] se afastasse da razão, seria necessário declará-la injusta, pois não realizaria a noção de lei; seria antes uma forma de violência” (par. 1902). Assim, nesse caso, o posicionamento adequado à Pastoral Carcerária seria a defesa do que é conforme a razão (e, portanto, justo), isto é, a aplicação de pena após condenação em segunda instância, e a consequente adequação da lei civil (constitucional ou infraconstitucional). Colocar-se a favor de uma legislação que se distancia do bom senso (e que, portanto, se afasta da lei moral) é uma atitude contrária à fé cristã e prejudica a realização da justiça na sociedade.

O segundo item a que a Pastoral Carcerária se opõe é a previsão da "excludente de ilicitude” no Código Penal (CP), por meio da alteração do artigo 25. Pela redação pretendida, considerar-se-iam em legitima defesa “o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem” e “o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”. Apesar de o pacote anticrime manter no Código Penal a responsabilidade do agente pelo excesso doloso ou culposo, e incluir no Código de Processo Penal a garantia de investigação para as ações de agentes inicialmente consideradas em legítima defesa, a Pastoral argumenta que a “excludente de licitude irá diminuir as investigações de mortes cometidas por policiais, dando margem para o aumento da letalidade policial”.

O parágrafo 2265 do Catecismo explica que “a legítima defesa pode ser não somente um direito, mas um dever grave, para aquele que é responsável pela vida de outros” e que “preservar o bem comum da sociedade exige que o agressor seja impossibilitado de prejudicar a outrem”. É importante observar aqui que Catecismo fala na ação de impossibilitar o agressor, ou seja, prevenir a agressão, que é exatamente o que propõe o pacote anticrime. E o mesmo parágrafo do CIC continua: “a este título os legítimos detentores da autoridade têm o direito de repelir pelas armas os agressores da comunidade civil pela qual são responsáveis”. Assim, além de desconsiderar a preocupação do pacote anticrime com o excesso do agente policial, o posicionamento da Pastoral Carcerária não leva em conta a doutrina da Igreja, que considerada a legítima defesa um dever para os responsáveis pela vida de outros, admite a ação de prevenir a agressão e considera um direto das autoridade o exercício da legítima defesa pelo uso de armas.

O terceiro ponto atacado é o encarceramento em si. Segundo a nota da Pastoral Carcerária, “para combater a violência efetivamente, é preciso combater o cárcere” e “[o sistema prisional] é uma questão de injustiça e desigualdade social, onde os mais vulneráveis são responsabilizados”. Esse item, mais especificamente, tem como plano de fundo a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, documento publicado em 2014 pela Pastoral Carcerária Nacional e outras organizações e que defende “a reversão do encarceramento em massa e (...) a redução gradativa e substancial da população prisional do país”.

Analisando o manifesto, observa-se que a Pastoral Carcerária baseia sua posição não na necessidade de garantir a defesa dos cidadãos, ou “no dever [da legítima autoridade pública] de infligir penas proporcionais à gravidade do delito”, conforme levanta o Catecismo (vide parágrafo 2266 e nova redação do parágrafo 2267), mas sim na “degradação do sistema prisional”, no seu “caráter seletivo” quanto a bens protegidos e pessoas encarceradas, na “criminalização das mulheres”, no patriarcalismo, no excesso de prisões cautelares, na presunção (formal, não material) da inocência e outros. Apesar de algumas das falhas apontadas pela Agenda serem objetivamente inegáveis, a existência delas não justifica a supressão do sistema prisional, pois a detenção se faz necessária para manter a proteção da sociedade e garantir a realização da justiça. Na verdade, o que se faz preciso é a melhora da estrutura e do funcionamento das prisões, de modo a garantir a dignidade do detento e a possibilidade de ele se redimir (conforme nova redação do parágrafo 2267 do Catecismo), e o aperfeiçoamento da legislação penal, a fim de assegurar a proteção das pessoas e a efetiva realização da justiça, conforme ambiciona o pacote do Ministério da Justiça.

A Pastoral Carcerária é um organismo da Igreja Católica e, como tal, tem o objetivo de continuar a ação salvadora de Jesus Cristo na realidade em que atua. A adoção, por ela, de ideias contrárias à doutrina da Igreja, como as utilizadas contra o pacote anticrime, é um contratestemunho a sua missão, gera confusão na formação moral dos fiéis e prejudica o desenvolvimento de uma sociedade sã.

Paulo Roberto Nogueira é contador"

Testando os limites - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 22/05


Jânio pensou que o povo impediria sua saída, Bolsonaro tenta usar o povo para não ter que sair



Estamos participando, já há algum tempo, de uma queda de braço institucional em que o presidente Bolsonaro testa seus limites, e não gosta do que vê.

A manifestação a favor, uma incoerência em termos numa democracia, só serve a ditadores que precisam mostrar força popular, como Nicolas Maduro na Venezuela.

Um presidente democraticamente eleito há cerca de cinco meses não precisa disso, a não ser, como acho que está acontecendo, que se sinta desconfortável com as limitações que as instituições democráticas lhe impõem.

Por isso a manifestação do próximo fim de semana é contra o Congresso e os políticos, contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e contra a imprensa, justamente as instituições que têm como finalidade impedir que o Poder Executivo exorbite de seus poderes, sobretudo em um presidencialismo como o nosso, que dá preponderância quase imperial ao presidente da República.

Ainda bem que o presidente Bolsonaro, apesar de ter publicado em sua rede social uma convocação para a manifestação, avalizando, portanto, seus objetivos, desistiu de participar, como chegou a ser aventado. E orientou seus ministros a não irem. Ao chamar à noite o presidente do STF, Dias Tofolli, para uma conversa sobre a conjuntura atual, o presidente Bolsonaro deu um sinal claro aos seus seguidores, confirmando o que seu porta-voz dissera: não autoriza manifestações que oponham seu governo aos outros poderes da República.

O que tira um ar oficialesco da convocação, que só o comprometeria. Desde o início, aliás, o presidente deveria ter se apartado desses movimentos que querem emparedar os demais poderes do Estado, mas esse parece ser a sua natureza.

Como é de seu feitio, a meu ver numa tentativa de testar até onde pode ir, o presidente desde o início de seu governo vem voltando atrás em uma série de medidas polêmicas, rejeitadas, ou pela opinião pública, ou pelos líderes políticos. Um exemplo dessa atitude cambiante, que atribuo a uma tática, é a autorização, vislumbrada no decreto de liberação de porte de armas, para a venda de um fuzil antes classificado como de uso restrito às forças de segurança do Estado.

A fábrica Taurus, que supostamente é especialista em decifrar normas e legislações para ampliar seu escopo de venda, entendeu que o decreto assinado por Bolsonaro a autorizava a vender tal fuzil.

O mercado para esse tipo de arma, cujo modelo mais sofisticado, com rajadas de balas, é muito usado por traficantes e milicianos, é tão grande que existem 2 mil pessoas na fila de espera.

Diante da reação negativa da maioria, que não pertence ao nicho eleitoral dos Bolsonaros, o governo voltou atrás e garantiu que esse tipo de fuzil continua de uso restrito. Vai ser necessário agora mudar o texto do decreto pelo Congresso para que essa vedação fique explícita.

É certo que Bolsonaro foi eleito também por esse nicho eleitoral que se prepara para sair às ruas em sua suposta defesa, como se estivesse sendo coagido por “forças terríveis”, quiçá as mesmas que levaram Jânio Quadros a denunciá-las e renunciar.

Era também um líder populista que não se enquadrava nas limitações que a democracia impõe. Jânio pensou que o povo impediria sua saída, Bolsonaro tenta usar o povo para não ter que sair.

Não há como negar que ele foi eleito também para aprovar a flexibilização do porte e posse de armas, o que vem fazendo com rapidez impressionante, ou para interferir no ensino numa direção oposta ao que considera ser o “marxismo cultural”.

Só que ele não foi eleito apenas por aqueles que concordam com esses e outros projetos. E é preciso negociar com a sociedade, através do Congresso e da opinião pública vista de maneira ampla, bases para um consenso nessas questões delicadas de valores e costumes.

Nesse ponto voltamos ao fulcro do debate, às tais limitações institucionais que Bolsonaro parece querer superar pela pressão popular. Ele tem razão em criticar as corporações que impedem as mudanças, mas não conseguiu que sua própria corporação, a dos militares, abrisse mão de muitas das condições especiais que tem.

Sem dúvida é preciso levar em conta as características específicas da atuação das Forças Armadas, mas há também outras corporações com especificidades a serem analisadas, como a dos professores, e esse é o problema das mudanças, em todos os países.

A negociação deve ser feita, então pelo Congresso, e, mais uma vez tem razão, não pode se dar em troca de favores menores. Mas não é desafiando o Congresso que o governo vai conseguir fazer as reformas.

Presidencialismo a custo zero - ROSÂNGELA BITTAR

Valor Econômico - 22/05

Um governo em agenda de entretenimento



Jair Bolsonaro se isolou e abriu duas frentes de confronto com quem poderia ajudá-lo a levar seu mandato até o fim: os militares de alta patente de quem se cercou na Presidência da República e o Congresso. Teria provocado essa situação por duas razões.

Ou melhor, por dois medos que o têm consumido, como traduz quem o conhece: as investigações sobre o filho Flávio, que por extensão atingem toda a família, estão chegando muito perto do presidente e seu modelo de campanha eleitoral, sem partido, sem negociação, sem base e sem equipe adequada.

Contrata pelos gabinetes um grupo de cabos eleitorais e leva adiante as disputas. Desses funcionários não quer enxergar a origem nem a biografia. A quebra de sigilo de um ameaça a todos.

Embora o presidente não vá ser investigado por fatos anteriores ao seu mandato, qualquer descoberta fora do padrão seria um tropeço que não poderia suportar.

O segundo medo que o faz tão reativo à relação política entre os Poderes é, se abrir o que imagina deva ser uma negociação com o Congresso, pode cair na partilha do governo com legendas do Centrão que, ninguém duvida, podem vir a cometer os erros de sempre. E ele, Bolsonaro, de repente, se ver envolvido em crime de responsabilidade e outras situações ilegais que podem levar, com facilidade, ao impeachment que o Congresso não negaria. Até porque não foi convidado a ter um compromisso político com o governo.

Caminhos tortuosos demais, mas realistas. Precisam ser corrigidos sob pena de o presidente considerar-se incapaz de estabilizar o país. Acuado, ele reage atacando os dois pilares que o deveriam sustentar, como instituições e instâncias de governo: a base no Congresso e os seus ministros mais próximos. Bolsonaro tenta inaugurar um presidencialismo de custo zero, esticando e afrouxando a corda quando lhe convém.

Nesse ambiente, os assuntos da administração não prosperam. O que preside o Brasil é a agenda do entretenimento. Bolsonaro viaja para cima e para baixo sem tratar de assuntos de Estado, apenas lançando pílulas ideológicas inoculadas pelos filhos, que são por sua vez ventríloquos do professor-guru que até agora não cobrou direitos autorais sobre insultos e provocações que alimentam a guerra do chefe do governo contra as instituições.

Os últimos conflitos foram tão bárbaros que, de repente, há uma semana, diante do risco, Carlos Bolsonaro e Olavo de Carvalho decretaram uma trégua, não se sabe até quando. Mas Jair Bolsonaro continuou no ataque na sexta, amainou o semblante na segunda, falou docilmente na terça, e não se sabe como estará hoje. Não é uma mudança de comportamento consolidada.

E nem poderia, pois não cessaram as razões da sua apreensão. A qualquer momento surgirão novas emoções, com certeza quando forem retomadas as atividades digitais do clã.

Ainda estão todos, no Planalto e na planície, impressionados com o mais forte sinal de desprezo de Jair Bolsonaro por quem é referência e está a seu lado. A última não foi a do tsunami nem a do país ingovernável, nem mesmo o violento ataque às corporações. Cena reveladora da índole bolsonarista foi a que indicou a iminência da demissão do ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto Santos Cruz. Um boato inspirado pelo próprio presidente. Estava Bolsonaro em uma reunião de três ou quatro autoridades, desinteressado da conversa, quando olhou para o celular, leu alguma mensagem e sentenciou: "Vou demitir o Santos Cruz". Falava do principal articulador do governo com o Congresso, o mais preparado dos ministros militares que o cercam. Imediatamente levantou-se e saiu repetindo a decisão, enquanto agiam os bombeiros, correndo atrás dele.

Santos Cruz foi ao Alvorada explicar-se com o presidente, dizer que não disse o que disseram que ele disse, mas quem ficou em péssima situação foi também o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, fiador número um do governo, o primeiro a acompanhar Bolsonaro na campanha.

O fato foi um marco negativo nas relações de Bolsonaro com a área militar, que já vinham claudicando. Hoje, fardados ou sem farda do governo têm um sentimento definido como decepção, que leva ao desalento e afrouxamento dos laços de compromisso que os uniam a Bolsonaro.

Quanto ao Congresso, não há freios na campanha para denegrir o resto de imagem institucional do Parlamento. Sempre há quem veja na situação o caminho para o parlamentarismo, um recurso inviável em um Congresso frágil e fragmentado como o atual. Mas o presidente segue inoculando em seu grupo de seguidores a ideia de que o Congresso só quer a troca espúria, o fisiologismo. O bolsonarismo pressiona o Parlamento a dar de graça o que quer o presidente da República. Para os seus, Bolsonaro é um herói, homem de bem que está sendo encostado à parede.

Decidido a tocar sua própria agenda segue o Congresso, fazendo o que o governo talvez não concorde, mas não pode ficar só assistindo à autocombustão de Bolsonaro e também se anular. Em visita semanal às bases, o parlamentar vê de perto o agravamento do desemprego e o temor da volta da inflação nesse ambiente de miséria e tensão. Volta a Brasília mais nervoso ainda com a condução do governo.

Vai tocando uma agenda possível. Saídas ainda não há, nem na imaginação. Em mesas de jogo de desocupados, numa conversa descompromissada, já se ouviu que, antes de dois anos, nada se fará, para que não seja necessária outra campanha presidencial, outra eleição para substituir o presidente. Depois de dois anos, vê-se a situação e discute-se como terminaria o atual mandato. Mas é conversa entre a compra de um curinga e um ás, não se trata de um movimento.

A perspectiva é continuar assistindo ao espetáculo em cartaz. É a apresentação de quem acha que pode governar sozinho, quem tem dificuldades para conviver com a diversidade política do país, entender a complexidade do Brasil e considerar a existência do ruralista ao evangélico, da região nordeste ao centro-sul, dos militares, dos civis, dos estudantes e professores, da esquerda e da direita. E procurar a conciliação. Bolsonaro prefere o confronto, mais grave porque é sensível e suscetível a qualquer informação provocativa que lhe envie sua família.

A crise é crônica na fase atual. Será melhor percebida por todos em fase aguda.

Crise fiscal amplia espaço para investimento privado - EDITORIAL VALOR ECONÔMICO

Valor Econômico - 22/05

O investimento federal caiu ao menor nível em pelo menos 13 anos, apontou o Valor na semana passada (17/5). Foi de apenas R$ 6,2 bilhões no primeiro trimestre, o equivalente a 0,35% do Produto Interno Bruto (PIB), de acordo com os dados mais recentes divulgados pelo Tesouro Nacional e cálculos preliminares do Banco Central (BC). Na comparação com levantamento feito pelos pesquisadores do Ipea, Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, que cobre desde os últimos dois anos do século passado, é o menor percentual desde os 0,33% de 2005. É metade dos 0,70% do PIB de 2014, ano de eleição presidencial, em que geralmente o governo dá um gás nos investimentos para conquistar eleitores, e que, por sua vez, havia sido o maior desde os 0,79% de 2010, outro momento eleitoral.

A forte queda dos investimentos é resultado da crise fiscal, que vem obrigando o governo a cortar os gastos. Neste ano, em consequência do desempenho da arrecadação, que está abaixo do esperado por conta do fraco ritmo de atividade, o aperto teve que ser intensificado para se conseguir atingir a meta de resultado primário. Já foi feito um contingenciamento de quase R$ 30 bilhões e algo mais poderá ser anunciado nos próximos dias. O próprio governo reconhece que o investimento é a despesa que mais tem sido sacrificada dado o elevado nível dos gastos obrigatórios, como os previdenciários.

Para complicar, os Estados estão em situação fiscal ainda pior e também estão cortando investimentos. Em outra reportagem, o Valor mostrou que os Estados investiram apenas R$ 934,8 milhões no primeiro bimestre, 64% a menos do que quatro anos antes. O valor não inclui os dados de quatro Estados que não haviam divulgado seus relatórios antes de a reportagem ter sido publicada (13/5).

Com esse desempenho, a média anual do investimento público de 2000 e 2017 foi de 1,92% do PIB, a segunda mais baixa no grupo de 42 países, de acordo com levantamento do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). No período, apenas na Costa Rica o investimento do governo foi menor. A média dos 42 países ficou em 3,51% do PIB; 3,9% do PIB na Rússia, 3,38% do PIB na Turquia e 2,95% do PIB na África do Sul.

Com investimento tão ínfimo, o Brasil não consegue conservar nem metade da infraestrutura existente. Calcula-se que, para atingir os padrões internacionais, o país deveria investir mais do que o dobro do patamar atual, ou 5% do PIB por ano durante duas décadas. Mas o percentual do investimento federal, excluindo as estatais, tem ficado pouco acima de 1% nos dois últimos anos, enquanto o país vê o desabamento de viadutos e desmoronamento de rodovias, entre outros desastres. Na última vez em que mais investiu foi em 2010, quando o índice chegou a 2,69% do PIB, o maior patamar desde a virada do século, em ambiente de folga fiscal, que abriu espaço para a criação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Cortar investimentos é uma faca de dois gumes. Investimentos têm efeito multiplicador sobre a economia, produzindo crescimento, emprego e arrecadação, com impacto positivo também na produtividade. Assim, é contraproducente apoiar o ajuste fiscal nesse tipo de despesa porque acaba contribuindo para esfriar a economia. Cálculos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mostram que o multiplicador do investimento chega a 2, ou seja, cada R$ 1 investido pode gerar R$ 2 a mais de PIB. Esse efeito é dez vezes maior ao gerado pelos gastos comuns do governo e o BID sugere que as regras fiscais sejam elaboradas de modo a conservar o investimento público, que é um gasto "bom".

No momento, porém, o governo não pode nem entrar nessa discussão. A esperança é abrir espaço para o investimento privado por meio das privatizações e concessões. Neste início de ano alguma coisa já foi realizada, mas havia sido encaminhada pelo governo anterior, de Michel Temer. Na primeira reunião do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), qualquer expectativa de uma ação rápida caiu por terra. Foram incluídos 59 projetos no PPI, mas muitos deles deverão ficar para 2020 ou até 2021. Ficou claro que leva tempo para se preparar uma empresa para a privatização. De toda forma, os números, como sempre, são grandiosos: os 59 projetos envolvem investimentos de R$ 1,6 trilhão nos próximos 30 anos, dos quais R$ 1,4 trilhão serão resultado dos leilões de petróleo e gás, incluindo o excedente do contrato de cessão onerosa firmado com a Petrobras.

Uma pauta inimiga das liberdades - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 22/05


Em muitos casos, objetivos das manifestações marcadas para o próximo domingo se colocam frontalmente contra a Constituição e as instituições de Estado.


Na internet, contas ligadas à rede bolsonarista têm convocado simpatizantes do presidente Jair Bolsonaro para as manifestações programadas para o próximo domingo, dia 26 de maio. Chama a atenção que, de acordo com as mensagens divulgadas, a pauta dos atos previstos para o próximo domingo vai muito além do apoio ao governo Bolsonaro. Em muitos casos, os itens da pauta se colocam frontalmente contra a Constituição e as instituições de Estado.

Por exemplo, um objetivo frequentemente anunciado para as manifestações do dia 26 de maio é protestar contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Mais do que apontar eventuais equívocos, o grito de ordem é de que Congresso e Supremo seriam “inimigos do Brasil”, dando a entender que o melhor seria fechá-los.

Não há dúvida de que tanto o Congresso como o Supremo estão coalhados de defeitos. Com frequência, a atuação dessas instituições merece reparos. Mas as críticas, num Estado Democrático de Direito, devem ter sempre como pano de fundo a melhora das instituições, e não a sua extinção. Trata-se de um ponto inegociável. Não existe democracia sem Congresso aberto, funcionando livremente. Não existe democracia sem Judiciário livre e independente.

É profundamente antidemocrático postular o fechamento dessas instituições sob o pretexto de que elas têm defeitos. Isso não é exercício da crítica, e tampouco da liberdade de expressão. É tentativa canhestra de emparedar instituições fundamentais para o Estado Democrático de Direito. Não há por que copiar aqui no Brasil o que se vê há algum tempo na Venezuela.

Em várias convocações, utilizou-se a hashtag #Artigo142Já, numa referência ao art. 142 da Constituição. Pelo teor das mensagens, a impressão é de que esse dispositivo constitucional permitiria fechar o STF. Trata-se de uma deslavada mentira.

O art. 142 refere-se às Forças Armadas e diz o seguinte: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

A Constituição atribui às Forças Armadas a tarefa de proteger – e não ameaçar, como fazem crer algumas mensagens de convocação para as manifestações do dia 26 de maio – os poderes constitucionais. Causa, portanto, imenso desserviço ao País quem difunde essa modalidade de fake news sobre a Constituição, num verdadeiro atentado contra a ordem democrática.

Diante desse estranho conjunto de objetivos, causou perplexidade o anúncio, feito dias atrás, de que o presidente Jair Bolsonaro compareceria às manifestações programadas para o próximo domingo. Ao assumir o cargo de presidente da República, ele jurou – não é demais lembrar – respeitar a Constituição. Ontem, Jair Bolsonaro disse que não irá participar dos atos do dia 26 de maio. Segundo assessores, o recuo teria a intenção de demonstrar “respeito pelo cargo e por suas responsabilidades”.

Infelizmente, o País não sabe o que o presidente Jair Bolsonaro fará de fato no domingo. Como ele tem feito questão de deixar claro, suas palavras pouco valem. Recentemente, ele disse que vetou uma lei, quando na verdade a tinha sancionado. O veto foi restrito a apenas um ponto.

“A imprensa está dizendo que eu sancionei uma lei para anistiar multas de R$ 60 milhões de partidos políticos. É mentira. Eu vetei. Grande parte da mídia só vive disso. Desinformando e atrapalhando”, disse o presidente Jair Bolsonaro no sábado. O Diário Oficial da União, na edição de segunda-feira, esclareceu os fatos. A Lei 13.831/2019, que, entre outros pontos, anistia partidos políticos, foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no dia 17 de maio.

Que todas as palavras, e muito especialmente as da Constituição, sejam devidamente valorizadas e respeitadas. Não há liberdade onde vige a ameaça. Liberdade de expressão é para se expressar, não para acossar.

Aonde vai Bolsonaro? - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 22/05

Ao alternar ataques e afagos, presidente deixa dúvidas quanto a sua estratégia


Com histórico de sete mandatos na Câmara, pai de um senador, um deputado federal e um vereador, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) afirmou que “o grande problema” do Brasil “é a nossa classe política”.

Em outras circunstâncias, a declaração talvez passasse por mera conversa fiada —mesmo porque o próprio autor se incluiu, aparentemente, na suposta classe, durante discurso na Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), na segunda-feira (20).

Mas Bolsonaro vive um momento de confronto com os partidos representados no Congresso, que tomou proporções mais preocupantes depois de o mandatário ter compartilhado há poucos dias um texto que chama o Brasil de ingovernável sem conchavos.

A sequência de atos e manifestações não poderia deixar de ser interpretada como uma pregação contra o Legislativo —composto, é necessário recordar, por representantes dos eleitores tão legítimos quanto o chefe do Executivo. Ou, por outro ângulo, como o ensaio de alguma ofensiva personalista.

Ainda mais porque forças bolsonaristas convocaram atos em defesa do governo para o domingo (26), com apelos que em muitos casos perigosamente se misturam com ataques a instituições.

Na mesma segunda, o presidente parece ter se dado conta dos excessos. Em cerimônia no Palácio do Planalto dedicada à campanha em defesa da reforma da Previdência, no final da tarde, tratou de afagar o Congresso. “Valorizamos, sim, o Parlamento brasileiro, que vai ser quem vai dar a palavra final nesta questão da Previdência.”

Bolsonaro ao menos demonstra entender que seu governo corre grande risco de malogro caso fracasse a tentativa de mudança do sistema de aposentadorias. Suas dificuldades nas negociações legislativas, entretanto, são mais comezinhas: há 11 medidas provisórias prestes a perder a validade nos próximos dias por falta de votação.

Entre elas há propostas tão relevantes quanto a abertura do setor aéreo ao capital estrangeiro, a nova regulação do saneamento básico, o combate a fraudes no INSS e a própria reorganização dos ministérios promovida pelo atual governo.

Em seu vaivém, o presidente talvez aposte que, dada a emergência econômica, os congressistas tomarão para si, sem necessidade de maiores negociações, a penosa tarefa de aprovar projetos que contrariam parcelas expressivas e setores influentes da sociedade.

Não se minimize a vocação fisiológica ou mesmo chantagista de boa parte da miríade de partidos nacionais. No entanto a estratégia do confronto, além de insuflar vozes antidemocráticas, não conta com exemplos bem-sucedidos na experiência recente do país.

Isso, claro, na hipótese de que exista mesmo uma estratégia.