quarta-feira, maio 22, 2019

Presidencialismo a custo zero - ROSÂNGELA BITTAR

Valor Econômico - 22/05

Um governo em agenda de entretenimento



Jair Bolsonaro se isolou e abriu duas frentes de confronto com quem poderia ajudá-lo a levar seu mandato até o fim: os militares de alta patente de quem se cercou na Presidência da República e o Congresso. Teria provocado essa situação por duas razões.

Ou melhor, por dois medos que o têm consumido, como traduz quem o conhece: as investigações sobre o filho Flávio, que por extensão atingem toda a família, estão chegando muito perto do presidente e seu modelo de campanha eleitoral, sem partido, sem negociação, sem base e sem equipe adequada.

Contrata pelos gabinetes um grupo de cabos eleitorais e leva adiante as disputas. Desses funcionários não quer enxergar a origem nem a biografia. A quebra de sigilo de um ameaça a todos.

Embora o presidente não vá ser investigado por fatos anteriores ao seu mandato, qualquer descoberta fora do padrão seria um tropeço que não poderia suportar.

O segundo medo que o faz tão reativo à relação política entre os Poderes é, se abrir o que imagina deva ser uma negociação com o Congresso, pode cair na partilha do governo com legendas do Centrão que, ninguém duvida, podem vir a cometer os erros de sempre. E ele, Bolsonaro, de repente, se ver envolvido em crime de responsabilidade e outras situações ilegais que podem levar, com facilidade, ao impeachment que o Congresso não negaria. Até porque não foi convidado a ter um compromisso político com o governo.

Caminhos tortuosos demais, mas realistas. Precisam ser corrigidos sob pena de o presidente considerar-se incapaz de estabilizar o país. Acuado, ele reage atacando os dois pilares que o deveriam sustentar, como instituições e instâncias de governo: a base no Congresso e os seus ministros mais próximos. Bolsonaro tenta inaugurar um presidencialismo de custo zero, esticando e afrouxando a corda quando lhe convém.

Nesse ambiente, os assuntos da administração não prosperam. O que preside o Brasil é a agenda do entretenimento. Bolsonaro viaja para cima e para baixo sem tratar de assuntos de Estado, apenas lançando pílulas ideológicas inoculadas pelos filhos, que são por sua vez ventríloquos do professor-guru que até agora não cobrou direitos autorais sobre insultos e provocações que alimentam a guerra do chefe do governo contra as instituições.

Os últimos conflitos foram tão bárbaros que, de repente, há uma semana, diante do risco, Carlos Bolsonaro e Olavo de Carvalho decretaram uma trégua, não se sabe até quando. Mas Jair Bolsonaro continuou no ataque na sexta, amainou o semblante na segunda, falou docilmente na terça, e não se sabe como estará hoje. Não é uma mudança de comportamento consolidada.

E nem poderia, pois não cessaram as razões da sua apreensão. A qualquer momento surgirão novas emoções, com certeza quando forem retomadas as atividades digitais do clã.

Ainda estão todos, no Planalto e na planície, impressionados com o mais forte sinal de desprezo de Jair Bolsonaro por quem é referência e está a seu lado. A última não foi a do tsunami nem a do país ingovernável, nem mesmo o violento ataque às corporações. Cena reveladora da índole bolsonarista foi a que indicou a iminência da demissão do ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto Santos Cruz. Um boato inspirado pelo próprio presidente. Estava Bolsonaro em uma reunião de três ou quatro autoridades, desinteressado da conversa, quando olhou para o celular, leu alguma mensagem e sentenciou: "Vou demitir o Santos Cruz". Falava do principal articulador do governo com o Congresso, o mais preparado dos ministros militares que o cercam. Imediatamente levantou-se e saiu repetindo a decisão, enquanto agiam os bombeiros, correndo atrás dele.

Santos Cruz foi ao Alvorada explicar-se com o presidente, dizer que não disse o que disseram que ele disse, mas quem ficou em péssima situação foi também o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, fiador número um do governo, o primeiro a acompanhar Bolsonaro na campanha.

O fato foi um marco negativo nas relações de Bolsonaro com a área militar, que já vinham claudicando. Hoje, fardados ou sem farda do governo têm um sentimento definido como decepção, que leva ao desalento e afrouxamento dos laços de compromisso que os uniam a Bolsonaro.

Quanto ao Congresso, não há freios na campanha para denegrir o resto de imagem institucional do Parlamento. Sempre há quem veja na situação o caminho para o parlamentarismo, um recurso inviável em um Congresso frágil e fragmentado como o atual. Mas o presidente segue inoculando em seu grupo de seguidores a ideia de que o Congresso só quer a troca espúria, o fisiologismo. O bolsonarismo pressiona o Parlamento a dar de graça o que quer o presidente da República. Para os seus, Bolsonaro é um herói, homem de bem que está sendo encostado à parede.

Decidido a tocar sua própria agenda segue o Congresso, fazendo o que o governo talvez não concorde, mas não pode ficar só assistindo à autocombustão de Bolsonaro e também se anular. Em visita semanal às bases, o parlamentar vê de perto o agravamento do desemprego e o temor da volta da inflação nesse ambiente de miséria e tensão. Volta a Brasília mais nervoso ainda com a condução do governo.

Vai tocando uma agenda possível. Saídas ainda não há, nem na imaginação. Em mesas de jogo de desocupados, numa conversa descompromissada, já se ouviu que, antes de dois anos, nada se fará, para que não seja necessária outra campanha presidencial, outra eleição para substituir o presidente. Depois de dois anos, vê-se a situação e discute-se como terminaria o atual mandato. Mas é conversa entre a compra de um curinga e um ás, não se trata de um movimento.

A perspectiva é continuar assistindo ao espetáculo em cartaz. É a apresentação de quem acha que pode governar sozinho, quem tem dificuldades para conviver com a diversidade política do país, entender a complexidade do Brasil e considerar a existência do ruralista ao evangélico, da região nordeste ao centro-sul, dos militares, dos civis, dos estudantes e professores, da esquerda e da direita. E procurar a conciliação. Bolsonaro prefere o confronto, mais grave porque é sensível e suscetível a qualquer informação provocativa que lhe envie sua família.

A crise é crônica na fase atual. Será melhor percebida por todos em fase aguda.

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