quinta-feira, abril 02, 2020

O mesmo de sempre - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 02/04

Para levar a metamorfose de Bolsonaro a sério, é preciso muita boa vontade - ou ingenuidade


Durou apenas algumas horas a suposta moderação do presidente Jair Bolsonaro ao lidar com a crise gerada pela epidemia de covid-19. Se na terça-feira à noite, em cadeia de rádio e TV, Bolsonaro deixou de lado o costumeiro tom raivoso e se esforçou para soar presidencial, defendendo “a união de todos, num grande pacto pela preservação da vida e dos empregos”, na quarta-feira de manhã o presidente voltou a ser o que sempre foi e, quem sabe, sempre será.

Bolsonaro publicou em suas redes sociais um vídeo em que um homem denuncia o suposto desabastecimento da Ceasa de Belo Horizonte. O homem, então, passa a ofender os governadores que determinaram o isolamento social como forma de conter a epidemia, chamando-os de “canalhas” interessados apenas em “ganhar nome e projeção política”, enquanto “o presidente está brigando incessantemente para uma paralisação responsável”.

Trata-se de fake news – mais uma patrocinada pelo presidente, que já protagonizou o vexame de ter algumas de suas postagens suspensas pelos administradores das redes sociais por colocarem em risco a saúde pública ao disseminarem falsas informações sobre a pandemia de covid-19. Em nota encaminhada à ministra da Agricultura, Tereza Cristina, a Secretaria de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais, que administra a Ceasa, informou que a denúncia do vídeo compartilhado por Bolsonaro “é inverídica”, pois não há desabastecimento.

A ministra Tereza Cristina já vinha dizendo reiteradas vezes que não há desabastecimento. O ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, informou na segunda-feira que a logística para distribuição de alimentos está funcionando. Ou seja, o presidente dá crédito ao que diz um desconhecido em vez de confiar em seus próprios ministros – como, aliás, ficou claro no caso do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, cuja amarga tarefa de convencer a sociedade sobre a necessidade de isolamento social é constantemente sabotada por Bolsonaro.

Assim, o presidente solene e conciliador do pronunciamento da terça-feira em rede nacional é um personagem de ficção. Horas antes de ir à TV para tentar convencer os brasileiros de que passaria a levar a sério o que diz a ciência sobre a pandemia, Bolsonaro – o verdadeiro – distorceu uma fala do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Ghebreyesus, em favor dos trabalhadores que perderam renda, para dizer que “a OMS se associa ao presidente Bolsonaro” na defesa do fim do isolamento social. A repercussão da declaração de Bolsonaro obrigou o diretor da OMS a deixar de lado suas atividades para desmentir o presidente brasileiro e dizer que continua a favor do isolamento.

Além disso, no mesmo dia em que Bolsonaro pretendeu se passar por estadista na TV, o País ficou sabendo que o vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente e articulador do chamado “gabinete do ódio”, passará a ter uma sala no Palácio do Planalto. Não se sabe o que o vereador faz na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, mas sabe-se muito bem o que ele fará junto com o pai em Brasília: continuará a alimentar as redes sociais do presidente com fake news destinadas a confundir a opinião pública e causar confusão, hábitat do bolsonarismo. A tentativa de disseminar o pânico a respeito de um suposto desabastecimento de alimentos no País é só um aperitivo do que essa turma é capaz.

Diante disso, é preciso muita boa vontade – ou ingenuidade – para levar a sério a metamorfose de Bolsonaro. Afinal, o que mudou desde que o presidente desdenhou dos mortos pela pandemia e atacou todos os que dele discordavam até horas antes do discurso na TV? Por que a “gripezinha” se transformou, de uma hora para outra, no “maior desafio de nossa geração”?

Pode-se acreditar que Bolsonaro, numa incursão pela Estrada de Damasco, tenha tido uma iluminação transcendental e se conscientizado subitamente da gravidade da crise, mas o mais provável é que o presidente, como sempre, só esteja pensando em si mesmo e na preservação de seu capital eleitoral. O ensurdecedor panelaço que acompanhou seu discurso na TV mostra que grande parte dos brasileiros não se deixou tapear.

Bolsonaro se sentiu ofendido com elogios à sua fala de terça; não vale mais - REINALDO AZEVEDO

UOL - 02/04

O presidente Jair Bolsonaro não gostou de terem apontado uma mudança de inflexão em seu pronunciamento. Na terça-feira, depois de um dia agitado, em que insuflou apoiadores contra a imprensa e inverteu o sentido de uma declaração de Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, o presidente falou em rede nacional de rádio e televisão. Deixou de lado, por oito minutos ao menos, a postura negacionista, reconheceu a gravidade da crise provocada pelo coronavírus e pregou a união nacional. Jornalistas e analistas políticos apontaram o óbvio: era outro discurso na comparação com aquele que vinha fazendo até então.

Mais: os que foram escarafunchar as razões da mudança ouviram o eco das vozes da caserna. Militares da ativa e mesmo os da reserva estão profundamente descontentes com o comportamento do presidente, que se tornou referência negativa no mundo inteiro. Pior: estamos só nos primeiros dias da devastação que o coronavírus provoca na vida das pessoas, no sistema de saúde e na economia, e os números não são nada animadores. Há, ademais, a lentidão da máquina pública e do próprio governo para fazer o dinheiro chegar às pessoas.

O pensamento já é um clichê, mas se aplica ao caso. O país precisa de alguém que ao menos se comporte como um estadista e que consiga dizer palavras que unam a nação. Que sentido faz provocar adversários políticos num cenário assim? A pergunta pode ser ainda pior: que sentido faz hostilizar aliados e transformar em alvo o ministro da Saúde, que vem fazendo um trabalho ancorado no que informa a epidemiologia, a Organização Mundial da Saúde e o consenso científico e político mundial para este momento da crise?

Sim, é verdade! Os militares conversaram com Bolsonaro e o alertaram para as arapucas que estava criando para si mesmo. Ora, se um ministro do Supremo, como fez Roberto Barroso, concede uma liminar impedindo a veiculação de uma campanha publicitária que incentiva o fim da quarentena, evidenciando que ela viola a Constituição, o que dizer, então, da pregação de um presidente com o mesmo conteúdo? Mais: ficou evidente ao presidente que os militares não endossarão aventura de nenhuma natureza se o seu comportamento tresloucado na crise resultar numa deposição, segundo as regras constitucionais, por crime comum ou crime de responsabilidade. Afinal, para tanto, a Constituição aponta uma saída: a posse do vice. E seu nome é Hamilton Mourão, um general.

Já escrevi aqui que invariavelmente perderam suas fichas todos aqueles que apostaram numa mudança de comportamento de Bolsonaro e na sua adequação à institucionalidade e ao decoro que exige o cargo. Eu também apontei a mudança de conteúdo do seu pronunciamento, revelei as razões, mas não desperdicei ficha nenhuma. Nunca vi a adesão do presidente a um parâmetro ao menos razoável durar 24 horas.

Não foi diferente desta vez. Bolsonaro se irritou com a tal "mídia" porque, segundo a sua perspectiva, não houve mudança nenhuma no discurso. Parece ofendê-lo a constatação da imprensa, de analistas e de especialistas de que sua fala foi, no geral, correta. E, afinal, lá está, vigilante, o tal Gabinete do Ódio.

Menos de 12 horas depois daquele discurso, postou em suas redes sociais um vídeo em que um homem aparece na Ceasa de Belo Horizonte relatando caos e desabastecimento. Era mentira. Uma nota oficial informava: "A CeasaMinas esclarece que não há qualquer desabastecimento em seus entrepostos em razão do coronavírus (Covid-19). A empresa reafirma que têm sido mantidas todas as atividades necessárias à comercialização das mercadorias nas suas seis unidades do Estado (Contagem, Uberlândia, Juiz de Fora, Governador Valadares, Caratinga e Barbacena)".

Em conversa com José Luiz Datena, Bolsonaro admitiu, fazendo o mesmo em suas redes sociais: "Quero me desculpar, não houve a devida checagem do evento. Pelo o que parece aquela central de abastecimento estava em manutenção. Quero me desculpar publicamente, foi retirado o vídeo rapidamente. Acontece, a gente erra na notícia. Eu tenho a humildade de me desculpar sobre isso". Destaque-se: não era uma notícia, mas uma falsa notícia. Um presidente não pode se dar a tal prática.

Adicionalmente, Bolsonaro recebeu um grupo de médicos — entre eles estava o ex-ministro Osmar Terra, um adversário da quarentena — para debater a crise do coronavírus. Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde, não foi convidado para o encontro. Bolsonaro estica a corda para ver se ele pede demissão. O titular da pasta resiste porque, por enquanto, o gabinete de crise, comandado por Braga Netto, chefe da Casa Civil, dá respaldo a suas ações. Tomara que não mude de ideia.

Imaginem se o presidente decidisse se encontrar com um grupo de economistas para debater a atuação do Ministério da Economia nessa fase turbulenta — e olhem que isso, sim, seria necessário —, mas sem convidar Paulo Guedes... Que Mandetta passe a encarar a tarefa como uma questão de vida ou morte de brasileiros — e é mesmo — e uma tarefa civilizatória.

Procura-se estadista - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 02/04

Em meio à crise da geração, Bolsonaro do discurso ponderado foi exceção fugaz


Por breves sete minutos e quatro segundos, na noite de terça-feira (31), o Brasil parecia ver o esboço de um presidente capaz de conduzi-lo em meio à imensa crise sanitária e econômica por que passa.

Foi essa a duração do discurso de Jair Bolsonaro em rede nacional, o nono de sua gestão e quarto desde o início da pandemia do coronavírus. Nele, foi ponderado, razoável e objetivo, adjetivos não comumente associados ao mandatário, a suas falas ou ações.

Chamou a atenção não só pelo que disse, mas pelo que deixou de dizer. Não houve espaço para as sandices de outrora, como classificar de gripezinha ou resfriadinho uma doença do impacto e da magnitude da Covid-19.

Não houve, igualmente, menção positiva à data em que o discurso era proferido, os 56 anos do golpe militar de 1964, que deu início a duas décadas de uma ditadura vil, em que milhares foram presos e torturados, e centenas, assassinados.

Nem mesmo a imprensa, alvo recorrente de ataques, foi lembrada.

No lugar, um irreconhecível Bolsonaro disse estarmos “diante do maior desafio de nossa geração” e acenou aos outros Poderes e aos governadores, com os quais vinha se atritando, ao exortar o país a buscar “grande pacto de preservação da vida e dos empregos”.

Mesmo ao falar de polêmicas recentes, como as recomendações da Organização Mundial da Saúde e a droga hidroxicloroquina, foi equilibrado. Quanto ao primeiro caso, à diferença do que fizera ao longo do dia, não distorceu o que disse o diretor-executivo da entidade, mas selecionou trechos em apoio de seu argumento: pensar igualmente em salvar vidas e empregos.

Sobre o segundo, adotou o tom de cautela e esperança que se exige ao tratar de um remédio ainda não devidamente testado.

Foi um sopro de normalidade de um presidente que se torna a cada dia um pária mundial por declarações e atos destrambelhados —e, no limite, criminosos. Infelizmente, a esperança durou pouco.

Minutos após terminar o pronunciamento, Bolsonaro publicou em suas redes sociais elogios à ditadura. Menos de 12 horas depois, voltou a criticar as medidas de isolamento recomendadas pela OMS e adotadas pelo mundo inteiro.

Reclamou dos governadores e espalhou fake news, agora sobre um desabastecimento no Ceasa de Belo Horizonte que não houve.

De fato, o Brasil passa pelo desafio de uma geração —a dos confinados, que têm de pagar as contas no fim do mês; a de seus filhos, isolados em casa; a dos idosos, privados do convívio familiar e social; a dos empobrecidos pela quarentena; a dos que vivem em condições subumanas em favelas.

Precisa-se de um estadista como o ex-premiê Winston Churchill, que dirigindo-se aos britânicos durante a Segunda Guerra disse que só tinha a oferecer “sangue, labuta, suor e lágrimas” —e conduziu seu país a uma vitória improvável.

Na falta de algo remotamente parecido, que ao menos o Brasil contasse com o presidente do discurso de terça à noite. Infelizmente, aquele era a exceção; o que voltou à ativa nas horas seguintes, a regra.

Um outro país - WILLIAM WAACK

ESTADÃO - 02/04

Bolsonaro precipitou mudanças institucionais, algumas contra ele


Entre os vários medos à disposição parece claro que as pessoas permaneceram apegadas ao medo de morrer, o mais natural de todos. A grotesca forçada de barra dos “gênios” de comunicação de Bolsonaro – a falsa dicotomia entre empregos ou saúde – voltou-se contra o próprio presidente. Em geral, ficou demonstrado que se confia mais no que dizem médicos e técnicos em saúde pública do que nas palavras do presidente.

O resultado, bastante previsível dada a correlação das forças políticas, foi mais um encurtamento da caneta presidencial. A diminuição do seus poderes vem de uma combinação de restrições institucionais que dificilmente desaparecerão quando a urgência da questão de saúde pública amainar, e ninguém sabe quando. Tem como mais recente exemplo a articulação para a aprovação do tal “orçamento de guerra”, que não é outra coisa senão a definição de responsabilidades políticas e administrativas na utilização de recursos para enfrentar uma situação de calamidade nacional.

Para ter acesso aos fundos com os quais pretende combater a inevitável recessão, o próprio ministro Paulo Guedes assinalou que precisa de uma PEC (sim, tudo no Brasil passa por mudar algum artigo da Constituição e, portanto, pelo Congresso) que regula rigidamente como o Executivo atuará, dando amplas prerrogativas ao Legislativo e ao Judiciário. Na prática, o chefe do Executivo não faz nada na gestão de crise sem consultar previamente os outros Poderes.

A chave para entender o que se convencionou chamar de “isolamento” do presidente está em dois fatos concomitantes, um de fundo e o outro bem escancarado. O de fundo é o Legislativo atuando diretamente em entendimento com governadores e prefeitos, além de uma série de entidades representando setores da economia, ao largo do Planalto. O Judiciário entrou nessa articulação desde o primeiro momento, há mais de 15 dias. O presidente ficou de lado.

O segundo foi o escancarado comportamento institucional do “dream team” de ministros (Sérgio Moro, Paulo Guedes e Henrique Mandetta), além dos militares. Prevaleceu entre eles a reiteração de que obedeceriam à norma técnica – para todos os efeitos práticos, deixaram Bolsonaro falando sozinho contra o isolamento social. Chegava a ser constrangedor assistir ao contorcionismo verbal com o qual esses ministros tratavam de “traduzir” bobagens ditas ou feitas pelo presidente ao mesmo tempo em que se esforçavam para não apoiá-las.

Os tais famosos “bastidores” (pedacinhos de informação a respeito dos quais nunca se sabe exatamente o que é fato e o que é fofoca) em Brasília indicam que Bolsonaro esteve, sim, à beira de provocar grave crise ao considerar decretos que suspenderiam medidas restritivas tomadas por governadores, preso à paranoica noção de que é alvo de conspirações e superestimando a claque de apoiadores que chama de “povo”. Ao mesmo tempo em que deflagrava campanha política usando também recursos públicos.

Tomou uma freada brutal em público e em privado. O STF o proibiu de seguir adiante com a campanha “O Brasil não pode parar”. Em conversas reservadas, mais de um ministro garantiu que o Judiciário derrubaria qualquer decreto de Bolsonaro que fosse contrário ao isolamento social. E, em privado, ele ouviu o seguinte recado de uma importante autoridade da qual dependem várias investigações de interesse direto também do presidente: “Não vou ser coautor de um genocídio”.

O fenômeno da contestação da autoridade presidencial, como aconteceu agora, pertence à categoria “gênio que não volta para dentro da garrafa”. Ou seja, trata-se de consequências políticas duradouras. Mas há outros gênios que não voltarão para a garrafa: em prazo recorde houve flexibilização de leis trabalhistas, suspensão do teto de gastos, alterações em regimes de contratação, desengessamento do Orçamento. Teremos um outro país.