domingo, maio 19, 2019

‘Viva la muerte!’ - ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

REVISTA VEJA


Com pouco mais de quatro meses de existência, o governo Bolsonaro já garantiu o favoritismo para empalmar o troféu Millán-Astray de obscurantismo. Millán-Astray é o general das hostes fascistas na Guerra Civil Espanhola celebrizado pelo brado “Abajo la inteligencia, viva la muerte”. O governo Bolsonaro, com sua ofensiva contra a universidade (“Abajo la inteligencia”) e seu festival de licenças e incentivos para que a população desfrute das melhores condições de matar-se entre si (“Viva la muerte”), cumpre à perfeição a dupla palavra de ordem do general.

São essas as duas iniciativas nas quais mais se empenha o governo. A reforma da Previdência não vale; é causa do governo paralelo do ministro Paulo Guedes, à qual Bolsonaro empresta apenas distraído cuidado. A investida contra a universidade ganhou tração com o anúncio de cortes em seus orçamentos, mas responde a uma característica central de Bolsonaro e do bolsonarismo. O antiesquerdismo é a motivação primária, mas alimenta­-se também de um anti-intelectualismo de fundo que a direita brasileira bebeu nas matrizes europeias e na América do modelo Trump. O avanço na batalha conheceu um tropeço na inépcia do primeiro escolhido para o Ministério da Educação, mas parece ter encontrado no atual, Abraham Weintraub, um soldado suficientemente bom de briga para encará-la.

O capítulo do culto à morte, adequado complemento ao desprezo pelo saber, tem merecido empenho ainda mais explícito do governo. Em janeiro Bolsonaro assinou decreto facilitando a posse das armas. O ministro Sergio Moro, sob cujas barbas brotam tais medidas, explicou na ocasião que posse, ou seja, ter armas guardadas em casa, difere de porte, que é circular com elas. “O porte é uma situação diferente, que precisa de análise mais profunda”, disse em entrevista à GloboNews. Mas quem se importa com Moro? Bolsonaro não, e neste mês, com a “análise mais profunda” relegada ao baú dos atropelos ao ministro da Justiça, assinou decreto credenciando diversas categorias profissionais a zanzar com armas na cintura. Tanto quanto o decreto em si, foi eloquente do bangue-bangue acalentado pelo governo o ambiente em que se deu sua assinatura, com deputados e senadores, eufóricos e boçais, a fazer os dedos de revólveres. Pelo grotesco, a cena ficará nos anais da truculência assim como, nos anais da corrupção, ficou a cena da turma de Sérgio Cabral de guardanapo na cabeça num restaurante de Paris.


A ofensiva de Bolsonaro contra a universidade alimenta-se também de anti-intelectualismo

O general Millán-Astray é lembrado pelo episódio em que contracenou com o então mais respeitado intelectual da Espanha, o filósofo Miguel de Unamuno. No dia 12 de outubro de 1936 comemorava-se no salão nobre da Universidade de Salamanca, da qual Unamuno era reitor, o dia da descoberta da América. Fazia três meses que o levante do general Franco contra o regime de Madri arrastara o país à guerra civil e à divisão em duas zonas, uma sob os franquistas, apoiados por Hitler (ué, ministro Araújo, mas ele não era de esquerda?), e a outra sob a resistência republicana. Salamanca ficava na zona franquista, e naquele dia a universidade estava coalhada de militares e membros da “Falange”, a versão local do nazismo e do fascismo. Millán-­Astray fez um discurso em que atacou o País Basco e a Catalunha como “cânceres no corpo da nação”. Sua fala foi celebrada por um “Viva la muerte” vindo da plateia (era o grito de guerra de Millán-­Astray) e saudações fascistas.

Unamuno, que até então apoiara o levante de Franco contra a bagunça dos governos republicanos e os ardis dos comunistas, tomou a palavra. “Todos me conhecem e sabem que sou incapaz de me calar. Há momentos em que calar é mentir”, começou. “Havia um silêncio cheio de medo”, narra o historiador Hugh Thomas. Unamuno continuou: “Acabei de ouvir um brado necrófilo e insensato”, e acrescentou que a Millán-Astray faltava “grandeza espiritual”. O general cortou-o: “Abajo la inteligencia! Viva la muerte”. Unamuno retomou: “Este é o templo da inteligência, e eu sou seu sacerdote mais alto. Vós profanais este sagrado recinto. Ganhareis, porque possuís a força bruta. Mas não convencereis, porque para convencer é necessário persuadir. E para persuadir é necessário possuir o que vos falta: a razão e o direito, em vossa luta”. Unamuno foi retirado do recinto sob escolta e até morrer, apenas dois meses e meio depois, ficou em prisão domiciliar. Ele tinha razão: ganhou a força bruta. Sobreviveu-lhe, como legado, seu discurso contra a barbárie e a irracionalidade, para ser lembrado onde for que pairem como ameaças.

Dinossauros e drones - ROBERTO RODRIGUES

REVISTA VEJA
Há uma revolução tecnológica em curso na agricultura — mas os pequenos produtores estão sendo excluídos dela. Ações urgentes precisam ser tomadas

Um dos principais responsáveis pelos avanços do agronegócio no Brasil tem sido, sem a menor sombra de dúvida, a tecnologia tropical sustentável aqui desenvolvida e aplicada extensivamente pelos produtores rurais. Ela é a causadora do aumento de produtividade agrícola, reduzindo a demanda por mais terras e, dessa forma, preservando áreas cobertas por vegetação nativa de qualquer natureza. Basta um número para exemplificar: da safra de 1976 até hoje, a produção de grãos cresceu 397%, enquanto a área plantada, segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, aumentou apenas 45%. Isso reduziu a demanda por áreas novas. Atualmente, temos 62 milhões de hectares cultivados com grãos. Se tivéssemos hoje a mesma produtividade da época do Plano Collor (março de 1990), seriam necessários mais 91 milhões de hectares para colher a safra deste ano, isto é, precisaríamos ter desmatado essa gigantesca área.

As novas tecnologias para a chamada “agricultura 4.0” vêm chegando aos borbotões: empresas públicas ou privadas investem continuamente em inovação na área de insumos menos agressivos ao meio ambiente, em equipamentos que consomem menos combustível e com sofisticados instrumentos ligados a satélites; agritechs e startups produzem novidades em gestão e informações que permitem decisões rápidas e precisas sobre o que e como fazer.

E aqui reside uma preocupação: são tantas e tão disruptivas as novas tecnologias que elas podem se transformar num fator de concentração de renda e riqueza no campo. Só grandes produtores com equipes interdisciplinares capacitadas conseguirão acessar o universo da internet das coisas (IoT) e da digitalização e transformar as informações ali geradas em elementos de gestão e de avanços técnicos.

É o que já está acontecendo na mecanização: nas principais feiras agropecuárias, que se multiplicam pelo país todo, estão expostas máquinas poderosas que colhem mais de 30 hectares de grãos por dia, drones que sobrevoam áreas enormes identificando os locais onde pulverizar qual produto, e assim por diante. A lamentável falta de conectividade que existe no país inibe a ampla digitalização no campo, e os grandes fabricantes de máquinas já estão vendendo pacotes com torres de transmissão de dados. Tanta novidade vai reduzir os custos de produção, aumentar a produtividade e melhorar a renda. Mas como fica aquele produtor que tem 20 hectares e não pode acessar tudo isso?

Há muitos novos fatores determinantes da competitividade no campo, começando com a própria sustentabilidade, claro. Mas hoje os temas centrais são tecnologia da informação (base para a digitalização), biotecnologia, nanotecnologia e gente preparada. A tecnologia da informação envolve componentes de software e hardware que facilitam a comunicação e os processos no âmbito da virtualidade. Dispositivos embarcados em máquinas ou fixos nos escritórios permitem a automação dos processos, otimizando resultados. A gestão se baseia em dados produzidos pelas tecnologias digitais e interpretados corretamente.

Sensores, nuvem, comunicação entre máquinas, técnicas de análise são as novas realidades. Nanossensores espalhados pelos diferentes talhões de uma grande propriedade vão informar em tempo real a temperatura e a umidade do ar e do solo, a direção e a velocidade do vento, assim mitigando uma das maiores incertezas do trabalho rural, a variação climática. As informações colhidas serão associadas às informações dos drones — controlados remotamente do chão — sobre debilidade de plantas ou ataque de pragas e doenças em áreas específicas, de modo que o combate a esses inimigos será cirurgicamente efetivado, com importante redução de custos e diminuição do uso de água e de defensivos.

O GPS acoplado a máquinas autônomas atua junto a sensores, acelerômetros e válvulas eletro-hidráulicas, funcionando com piloto automático, ampliando a janela de plantio e permitindo o trabalho nas 24 horas do dia, com espetacular aumento de rendimento, tudo supervisionado por técnicos a partir do escritório.

Também existem sensores de altura que ajudam a avaliar a topografia do terreno, melhorando muito as barras de pulverização sem perdas e sem a intervenção humana no trato com defensivos. A moderna biotecnologia explica melhor a fisiologia vegetal, o desenvolvimento das plantas e como as pragas e moléstias — tão intensas num país tropical — se propagam e são combatidas. E gera variedades mais resistentes às pragas e aos riscos de seca, mais ricas em nutrientes e mais rentáveis. Tudo isso tem efeito direto sobre a produtividade agrícola, com um monitoramento perfeito das operações no campo, reduzindo desperdícios e sobreposição de serviços: a máquina desliga automaticamente se passar de novo por uma área já trabalhada. E o outro efeito evidente é a redução drástica de custos.


“É preciso investir em conectividade para que as novas tecnologias sejam acessíveis a todos”

Ora, fica claro que os grandes produtores levarão uma vantagem abissal em relação aos pequenos: sua produção aumenta, a oferta cresce e os preços caem, regra elementar da economia rural. As margens por unidade produzida se estreitam e a escala passa a ser essencial para a formação da renda. E de novo os pequenos perdem competitividade.

Como solucionar esse problema? Tecnologia é fator de concentração em todos os setores econômicos, inclusive indústria e serviços. Mas no campo é muito mais grave, porque o excluído vai para a cidade, demandando mais serviços essenciais e pressionando o poder público. O tecido social do campo não pode prescindir dos pequenos e médios produtores: eles são fundamentais.

Pelo menos duas ações são necessárias, uma pelo setor público e a outra pelo privado. Na área pública, é preciso investir vigorosamente na conectividade, para que as novas tecnologias sejam acessadas por todos. Se o celular não funciona direito entre São Paulo e Campinas, como os pequenos produtores na fronteira agrícola receberão informações técnicas ou econômicas em tempo real ou, ainda mais, como as máquinas “conversarão entre si”? Os grandes produtores terão torres para garantir a conexão. Cabe ao Estado criar mecanismos (parcerias público-privadas para a instalação de redes, antenas etc.). Caso contrário, haverá uma clara diferença de acesso às inovações entre pequenos e grandes produtores, com evidentes desvantagens para os primeiros. Na atual conjuntura de aperto fiscal, o crédito para o pequeno e o médio não pode prescindir de subsídios, porque interessa à sociedade mantê-los na atividade, com chance de progresso.

Na área privada, está reservado um papel central às cooperativas agropecuárias e de crédito rural. Elas podem fazer, no conjunto dos cooperados, o papel de um grande produtor, seja com equipes treinadas para interpretar e difundir as novas tecnologias, seja construindo torres de retransmissão de dados que todos os associados possam acessar.

E, por fim, urge construir no Brasil um seguro rural digno do nosso evoluído Agro. Sem essas três condições, nossos produtores rurais em breve serão divididos em duas categorias: os dinossauros condenados ao desaparecimento, e os robotizados, inseridos competitivamente nos mercados globais.

Roberto Rodrigues é coordenador do Centro de Agronegócio da FGV. Foi ministro da Agricultura no governo Lula

Conversa com um leitor - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 19/05

Uma taxa de desemprego de 6% não constituiria um equilíbrio macroeconômico


Ricardo Knudsen, meu leitor assíduo e crítico feroz, fez diversos comentários à coluna anterior, que tratara do RGPS (Regime Geral de Previdência Social).

Argumentei que a redução do desemprego geraria no máximo R$ 30 bilhões (provavelmente bem menos) e que o sistema apresenta desequilíbrio. Para Knudsen, a receita adicional seria de R$ 60 bilhões.

Ponderei também que, se considerássemos o RGPS como um regime de capitalização —isto é, que o segurado investisse, ao longo da vida, a sua contribuição (ambas, patronal e do trabalhador) em uma aplicação financeira—, a taxa de juros, ou taxa interna de retorno (TIR), para garantir o equilíbrio teria
que ser de 5,32% ao ano.

Knudsen argumenta que, se nos restringirmos aos benefícios da aposentadoria por tempo de contribuição, a taxa será de 3,8%, média entre homens e mulheres. Se nos restringirmos aos homens, será um pouco menor.

Ambos nos baseamos no trabalho de Luís Eduardo Afonso, publicado na Revista Brasileira de Economia do primeiro trimestre de 2016. Nossas diferenças são, portanto, de hipóteses e de interpretação.

Voltando ao primeiro tema: qual será o ganho de receita da Previdência após a normalização do mercado de trabalho? Knudsen considera queda do desemprego de seis pontos percentuais, de 12% para 6%, e que todo o emprego gerado será formal com contrato de trabalho dado pela CLT. Sob essas hipóteses, o ganho de receita do RGPS será, segundo Knudsen, de R$ 60 bilhões.

Se os novos empregos gerados apresentarem o mesmo grau de formalização vigente hoje, de 50%, a receita deve aumentar metade, uns R$ 30 bilhões.

No entanto, as evidências que temos são que taxa de desemprego tão baixa não constitui um equilíbrio macroeconômico. Meu colega do Ibre Bráulio Borges calculou que a taxa natural de desemprego é de 9%, o que reduz a receita obtida pela Previdência com a normalização do mercado de trabalho (mantendo-se o grau de formalização atual) para R$ 15 bilhões.

Essas contas consideram que a alíquota média de contribuição de cada trabalhador é de 29%. Esse é o caso para o trabalhador CLT. Contudo, a alíquota média por trabalhador (CLT e não CLT) de contribuição efetiva ao RGPS é de 11,5%. O ganho de renda, se a queda do desemprego ocorrer mantendo-se as características do mercado de trabalho atual e sob a hipótese de taxa de desemprego de equilíbrio
de 9%, será de R$ 6 bilhões.

Encaminho o leitor interessado ao post no Blog do Ibre de Daniel Duque (bit.ly/2W7mVi5), que apresenta diversos exercícios contrafactuais. Como se verá, no cenário otimista chega-se aos R$ 30 bilhões mencionados no início desta coluna.

Com relação ao segundo ponto, minha divergência é que a taxa interna de retorno (TIR) somente é um indicador de equilíbrio se o sistema for de capitalização.

Para a Previdência por repartição, o critério de equilíbrio é dado pela demografia.

A capitalização considera contas individuais —faria sentido, portanto, olhar o equilíbrio contrato a contrato, como faz Knudsen— e que os recursos são acumulados na forma de juros compostos.

O nosso regime é de repartição, envolve uma série de benefícios —aposentadoria por tempo de contribuição, por idade, auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e pensão por morte, entre tantos outros—, além de haver um mútuo entre os segurados. Não faz sentido, penso eu, olhar o equilíbrio do sistema todo a partir da TIR deste ou daquele contrato.


Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.

Governo da guerra, pela guerra e para a guerra - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 19/05


Governo sem desavenças não existe. Mas Jair Bolsonaro exagera. Preside um governo da guerra, pela guerra e para a guerra. O apreço do capitão pelo conflito leva o governo a guerrear sobretudo consigo mesmo. Os apologistas do capitão podem considerar o argumento exagerado. Pois deveriam desperdiçar um pedaço do domingo tentando identificar uma política pública —apenas uma— capaz de aproximar ou distanciar os seguintes personagens:

— Jair Bolsonaro, presidente da República;

— Hamilton Mourão, vice-presidente;

— Olavo de Carvalho, guru e polemista;

— Flávio, Carlos e Eduardo Bolsonaro, filhos do presidente.

— Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil

— Major Vitor Hugo, líder do governo na Câmara

— Joice Hasseumann, líder do governo no Congresso

— Fernando Bezerra, líder do governo no Senado

Desde a estreia do governo do capitão essas dez pessoas percorrem a conjuntura vinculadas a conflitos —provocando-os, atiçando-os ou fugindo deles. Nenhuma política pública animou o surto de animosidade. Guerreou-se por ideologia e frações de poder. Nem sinal de programa governamental. Nada que impulsionasse uma reforma estrutural. Apenas a guerra pela guerra.

Bolsonaro implica com Mourão porque é um ser humano inseguro. E aprendeu com Michel Temer que os vices, como os ciprestes, costumam crescer à beira dos túmulos. Mourão oferece aos gravadores e microfones um punhado de contrapontos sóbrios aos despautérios do titular porque, embora tivesse solicitado, Bolsonaro não lhe confiou nenhuma missão capaz de preencher-lhe a ociosidade, mãe de todos os vices.

Flávio, o Zero Um, dedica-se a empurrar para dentro do governo do pai um escândalo que enferruja qualquer discurso baseado na ética. Carlos, o príncipe Zero Dois, exerce a função de intérprete do pensamento do rei. Esforça-se para provar que a melhor maneira de sair de um buraco é cavando um buraco ainda maior nas redes sociais. Eduardo, o Zero Três, estarrece o Itamaraty com seu desempenho como chanceler extraoficial.

Na articulação política, Onyx dá caneladas no Major Vitor Hugo para mostrar quem é que manda na tropa do Legislativo. O Major dá de ombros para o ministro para realçar que é Bolsonaro quem dá as cartas. Joice se achega a Rodrigo Maia e à turma do centrão porque percebeu que o importante é saber embaralhar, não distribuir as cartas. E Fernando Bezerra, egresso do ministério de Dilma, com um pé na Lava Jato, frequenta o palco como evidência de que o MDB não se retirou do pôquer.

Incapaz de administrar a troca de tiros doméstica, Bolsonaro declara guerra ao mundo. Em sua penúltima incursão, o capitão distribuiu pelo WhatsApp um texto sobre o Brasil terrível e "ingovernável" que ele ganhou das urnas de 2018. Pela lógica, um governante deveria buscar aliados e evitar brigas. Mas a única lógica que Bolsonaro conhece é a lógica do confronto.

Essa obsessão pela guerra tem suas raízes nos 28 anos de exercício de mandato parlamentar. O problema é que, na Câmara, o custo do destempero e dos xingamentos de Bolsonaro limitava-se ao desperdício de verbas públicas com o pagamento do seu contracheque e com a estrutura do seu gabinete. No governo, o custo é mais alto.

Suprimindo-se do enredo dos primeiros quatro meses do governo a brigalhada inútil, sobram a conversa fiada, a perda de tempo, a frustração das expectativas econômicas e a alta do desemprego. O que torna o Brasil ingovernável é um sujeito que se elege como a solução de 57 milhões de eleitores e vira um problema antes do quinto mês de mandato.

Gaiato no navio - LUIZ CARLOS AZEDO

CORREIO BRAZILIENSE - 19/05


“O “apelo às massas” é uma situação recorrente na política brasileira, quando presidentes se veem em dificuldades com a economia e o Congresso, mas não costuma dar certo. Bolsonaro lembra Jânio Quadros e Collor de Mello”


A aparente desorientação do presidente Jair Bolsonaro, que compartilhou de forma enigmática, na sua rede pessoal de WhatsApp, um texto do economista João Portinho, no qual o autor afirma que o país é ingovernável por causa das corporações, do Congresso e do Judiciário, lembra um velho rock de Os Paralamas do Sucesso, Melô do marinheiro, de Bi Ribeiro e João Barone: “Entrei de gaiato num navio/ Entrei, entrei, entrei pelo cano/ Entrei de gaiato/ Entrei, entrei, entrei por engano”, diz o refrão. É uma analogia quase perfeita com a situação: “Aceitei, me engajei, fui conhecer a embarcação/ A popa e o convés, a proa e o timão/ Tudo bem bonito pra chamar a atenção/ Foi quando eu recebi um balde d’água e sabão/ Tá vendo essa sujeira bem debaixo dos seus pés?/ Pois deixa de moleza e vai lavando esse convés!”

Sucesso na voz de Hebbert Vianna, a música prossegue: “Quando eu dei por mim eu já estava em alto-mar/Sem a menor chance nem vontade de voltar/Pensei que era moleza, mas foi pura ilusão/Conhecer o mundo inteiro sem gastar nenhum tostão/Liverpool, Baltimore, Bangkok e Japão/ E eu aqui descascando batata no porão!” A divulgação do texto por Bolsonaro, com um comentário que revelava sua frustração no cargo, provocou boatos e muita confusão política. Fontes palacianas vazaram para a imprensa que o presidente da República, desgostoso com as dificuldades que enfrenta, estaria disposto até a renunciar para não ceder às pressões do Congresso, por mais espaço no governo em troca da aprovação da reforma da Previdência. O vazamento foi atribuído a militares, que estariam em rota de colisão com Bolsonaro.

O diagnóstico foi catastrófico para o governo. Ao ser indagado sobre o texto ontem, em frente ao Palácio da Alvorada, Bolsonaro minimizou sua repercussão: “O texto? Pergunta para o autor. Eu apenas passei para meia dúzia de pessoas”. Entretanto, em linha com a narrativa de Portinho, apoiadores de Bolsonaro estão convocando uma manifestação para o próximo dia 26, cujo objetivo seria “invadir” o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Movimentos cívicos como Vem Pra Rua, liderado por Rogério Chequer, e Movimento Brasil Livre (MBL), de Kim Kataguiri, também nas redes sociais, porém, se manifestaram contra o movimento, que virou um dos assuntos quentes deste fim de semana.

Outro assunto é a quebra do sigilo bancário de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente da República. De janeiro a dezembro de 2016, a conta no Itaú aberta por Queiroz na agência Personnalité Freguesia, no Rio, movimentou R$ 1,23 milhão. Os depósitos em dinheiro representam um terço do total de R$ 605.652 que entraram na conta. Também terão as contas bancárias investigadas a esposa de Flávio, Fernanda Bolsonaro; uma empresa do casal, Bolsotini Chocolates e Café Ltda; as duas filhas de Queiroz, Nathalia e Evelyn; e a esposa do ex-assessor, Marcia. Outros 88 ex-funcionários do gabinete, seus parentes e empresas relacionadas a eles também terão as informações bancárias checadas. Entre os investigados estão Danielle Nóbrega e Raimunda Magalhães, irmã e mãe do ex-PM Adriano Magalhães da Nóbrega, o homem-forte do “Escritório do crime”, organização de milicianos suspeitos de envolvimento no assassinato da vereadora carioca Marielle Franco.

Ideologia
O “apelo às massas” é recorrente na política brasileira, quando presidentes se veem em dificuldades com a economia e o Congresso, mas não costuma dar certo. Bolsonaro lembra Jânio Quadros e Collor de Mello, simultaneamente. O primeiro renunciou ao mandato, acreditando que voltaria ao poder nos braços do povo; o segundo, convocou seus apoiadores a vestir verde e amarelo e acabou forçado a renunciar pela campanha do impeachment. A voz rouca das ruas, como dizia o falecido deputado Ulysses Guimarães, se manifestou na semana passada pela primeira vez após as eleições, por causa do contingenciamento de verbas das universidades federais, com forte repercussão no Congresso. A convocação de uma manifestação em apoio ao governo como resposta não vai resolver os problemas do país, apenas eleva a temperatura política e aumenta a radicalização.

O governo tem duas ordens de problemas: uma é estrutural, a crise fiscal, a estagnação econômica e o desemprego em massa demandam reformas econômicas, principalmente a da Previdência; a outra é política, passa por reformas nas instituições, que são contingenciadas pela Constituição, ou seja, pelo Congresso e o Judiciário. A maneira correta de lidar com isso é a apresentação de propostas tecnicamente robustas e politicamente exequíveis, não há outro caminho na democracia. O problema é que Bolsonaro está focado numa revolução conservadora, inspirada em certa nostalgia reacionária.

Houve, no mundo, uma revolução cultural bem-sucedida, com o feminismo, os direitos dos homossexuais e o declínio da autoridade patriarcal, mas não houve uma revolução política. A democracia representativa foi posta em xeque pelo globalismo e o multiculturalismo. É nesse cenário que autores reacionários, como Olavo de Carvalho, encontraram seu público e ajudaram políticos de direita do Ocidente a sair do isolamento e catalisar as insatisfações populares, chegando ao poder em alguns países, entre os quais os Estados Unidos. Toda ideologia, porém, é uma visão distorcida da realidade; diante da objetividade dos nossos problemas, o Brasil precisa é de coesão política para sair do atoleiro.

A recessão e a ameaça - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

Gazeta do Povo - PR - 19/05

Sem as reformas, mais cedo ou mais tarde estarão todos, em Brasília ou no Twitter, brigando apenas pelos escombros de um país falido


Na terça-feira, dia 14, a ata da última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), que decidiu pela manutenção da taxa Selic em 6,5%, fez um alerta grave: a retomada da atividade econômica parou. Para piorar a situação, é possível que o Produto Interno Bruto do primeiro trimestre de 2019 tenha recuado na comparação com o último trimestre de 2018 – o aviso que constava da ata foi reforçado pelo dado do Índice de Atividade Econômica (IBC-Br), do Banco Central, divulgado um dia depois do texto do Copom e que apontou retração de 0,68%. Se o recuo for confirmado pelo IBGE em 30 de maio, seria o primeiro desde o quarto trimestre de 2016 e, se houver nova retração neste segundo trimestre de 2019, estaríamos mais uma vez em recessão.

Antes da divulgação da ata do Copom e do IBC-Br, o mercado financeiro já havia reduzido mais uma vez suas expectativas para o crescimento da economia brasileira em 2019. O mais recente Relatório Focus, divulgado às segundas-feiras e que registra as previsões de dezenas de instituições financeiras, estima um crescimento de 1,45% para o PIB deste ano – é a 11.ª redução seguida na previsão, que superava os 2,5% em janeiro deste ano, durante os primeiros dias do governo Bolsonaro.

Os números preocupantes da economia nacional não deixam muitas dúvidas sobre qual é a grande ameaça para o Brasil de hoje. Não são os tuítes agressivos e desbocados do filósofo Olavo de Carvalho; nem a sanha da ala militar do governo, que busca ampliar sua influência (que já não é pequena) avançando sobre pastas como o MEC e o Itamaraty, como no caso recente das mudanças na Apex; nem a incontinência verbal dos filhos de Jair Bolsonaro; nem mesmo a esquerda, que mantém seu poder de mobilização – seria ingenuidade pensar o contrário –, mas não consegue esconder o fato de que seus protestos usam plataformas relevantes, a exemplo da educação, como mero pretexto para retomar o “Lula livre”. Todos esses elementos servem, sim, para causar e alimentar instabilidade, mas nada será tão fatal para o país quanto a paralisação total da economia.

Para tentar destravar a atividade econômica e estimular a geração de emprego, Bolsonaro tem feito o possível, como no caso da MP da Liberdade Econômica. As mudanças que o governo quer implantar nas normas de segurança do trabalho, se forem bem feitas, também podem tirar cargas desnecessárias das costas do setor produtivo, especialmente do microempresário. Mas o Executivo só pode agir por conta própria até certo ponto. As grandes mudanças dependem do Congresso, e não é segredo para ninguém que os investidores internos e externos continuam esperando o desfecho das reformas, especialmente a previdenciária.

No Legislativo, podemos até apontar a fraqueza de um PSL que, embora tenha a maior bancada na Câmara, não consegue se impor como bloco político coeso em defesa das plataformas de Bolsonaro. Mas o grande risco atende pelo nome de Centrão, aquele bloco difuso de legendas cuja única ideologia é o “farinha pouca, meu pirão primeiro”, e que tem número suficiente para bloquear o programa econômico de Bolsonaro e Paulo Guedes. Insatisfeito por não ver sua sede de cargos saciada pelo Planalto, o Centrão já fez uma demonstração de força – talvez “chantagem” seja uma palavra mais adequada – durante a tramitação da MP da reforma que mudava a estrutura do governo. O grupo impôs derrotas a Bolsonaro, forçando o retorno de alguns ministérios que tinham sido extintos e incluindo no texto mudanças que dificultam o combate à corrupção, em evidente retaliação contra o ministro Sergio Moro.

E o Centrão já deu mostras de que pode repetir a dose, impedindo o enxugamento do Estado, a pauta de privatizações e as reformas. Em 1.º de maio, o deputado e líder sindical Paulinho da Força (SD-SP) disse para quem quisesse ouvir que o objetivo era desidratar a reforma da Previdência de forma a impedir a reeleição de Bolsonaro em 2022 – em outras palavras, a reforma não poderia ser tão boa a ponto de gerar um crescimento econômico que rendesse dividendos eleitorais ao presidente. Por mais que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, tivesse rapidamente afirmado que a opinião de Paulinho não é majoritária no Centrão, só a tramitação da reforma na Comissão Especial e no plenário mostrará quem tem razão – e o sindicalista nem precisa convencer a maioria dos colegas; basta que traga para seu lado deputados suficientes para negar ao governo os votos de que ele necessita. E talvez nem seja preciso esperar tanto: a notícia, divulgada na tarde de sexta-feira, de que os deputados pretendem enviar um projeto alternativo de reforma da Previdência já entrega o jogo do Centrão.

É preciso trazer à luz a irresponsabilidade de quem se mostra disposto a sacrificar o país em nome dos próprios interesses. E o governo tem um desafio hercúleo, o de não abrir mão de seus princípios enquanto supera suas dificuldades de articulação e aprende a negociar com quem parece só entender a linguagem do fisiologismo – pois negociar é preciso, pelo simples fato de que hoje o governo não tem 308 votos na Câmara, nem 49 no Senado. Certo é que, sem as reformas, mais cedo ou mais tarde estarão todos, em Brasília ou no Twitter, brigando apenas pelos escombros de um país falido e pelas mentes de dezenas de milhões de desempregados que terão preocupações muito mais urgentes que qualquer guerra cultural que porventura esteja em curso.

A democracia e a nossa conjuntura - CELSO LAFER

 Estado de S.Paulo - 19/05

O forte facciosismo do governo no trato da sua inserção com a sociedade divide o País



Ao longo dos anos 1980, um abrangente consenso em torno da democracia uniu todas as vertentes da oposição ao regime autoritário-militar, favorecendo a redemocratização por meio de uma ação política que se valeu de brechas institucionais existentes. A Constituição de 1988 é expressão do consenso em torno da democracia, e a Constituinte, da qual emanou, traduziu em normas a imaginação e os sentimentos que impulsionaram o esforço coletivo abrangente de uma cidadania, que se tornou ativa no seu empenho em prol da redemocratização.

A Constituição de 1988 foi a moldura e o parâmetro no âmbito do qual transcorreu a vida política do país da Presidência Sarney à de Temer. Teve resiliência institucional para permitir que o País lidasse, em consonância com as regras da democracia, com uma complexa pauta e muitas tensões políticas.

Nesse contexto é importante realçar que a democracia é um método de convivência civil e pacífica, uma prática de aprendizagem permanente. Por isso pressupõe, como ensina Bobbio, confiança – “a confiança recíproca entre os cidadãos e dos cidadãos nas instituições”, que postula também a confiança no diálogo democrático, ou seja, o reconhecimento do Outro como adversário, e não como inimigo a ser dizimado, o que a convulsão dos sectarismos não favorece. Sectarismos excludentes e populismos de vários tipos são um dos dados que, em vários países, vêm levando à degeneração do poder democrático e à autocracias eletivas.

Os laços de confiança entre governos e governados foram se esgarçando em nosso país. Para isso contribuiu a revelação da corrupção. A corrupção, como dizia Políbio, é um tenaz agente da cupinização das instituições políticas. Daí a percepção de que a gestão da res publica estava se transformando na administração dos particularismos da res privata. No início, isso alcançou o PT e suas redes, porém nos desdobramentos impactou todo o espectro dos atores políticos.

A semente da desconfiança permeou as eleições de 2018. Todos os partidos que atuaram no pós-redemocratização foram derrotados. Padeceram a erosão de sua capacidade de vincular o indivíduo ao coletivo, PT incluído. Na dinâmica eleitoral, Bolsonaro soube valer-se das novas mídias da era digital, que diminuíram a prévia relevância da mídia tradicional no processo eleitoral. Catalisou um forte e significativo sentimento anti-PT existente na sociedade, para o qual contribuiu a inépcia da gestão do segundo mandato de Dilma. A isso se somaram no ano eleitoral a preocupação com a segurança e a violência, o desemprego e a falta de oportunidades.

Foi nesse caldo de sensibilidades que Bolsonaro, até então figura periférica e solitária na vida política, se viu catapultado para o âmago bem-sucedido das eleições. No Congresso, como deputado em várias legislaturas, não se destacou. Manifestou em suas intervenções grande simpatia pelo regime militar, foi muito crítico dos direitos humanos, altamente conservador em matéria de costumes, no que se viu respaldado pela visão e força política dos evangélicos, encontrando eco na sociedade.

Na campanha e nas constantes manifestações na Presidência, na qual se vale, como Trump, da preferência pelo sintético-não-argumentado do Twitter, tem arguido que ele e seu governo representam uma nova política. Esta, no seu tom e estridência, é uma contestação, para me valer de formulação de Fernando Henrique Cardoso, “ao terreno comum, público e privado, no qual o interesse das pessoas se encontram e em nome do qual um país cria um destino nacional”.
Esse terreno comum foi dado pela moldura da Constituição de 1988 e seus adquiridos axiológicos. A “nova política” questiona esse terreno comum e a respeitabilidade dos seus valores. É um deslocamento de paradigma do funcionamento da vida política brasileira, que, com todas as dificuldades e todos os conflitos, sustentou a democracia em nosso país.

A “nova política” poderá assegurar o bom governo? A dicotomia bom governo/mau governo é um dos temas clássicos da teoria política. Passa pelo “governo das leis” e pelo exercício do poder em prol de um ideal e de uma prática voltada para o bem comum. Um dos ingredientes que desde os gregos e de toda a literatura subsequente leva à desagregação do bom governo, como lembra Bobbio, é a prevalência da formação de facções e o estímulo à discórdia.

Uma das características da presidência de Bolsonaro é a formação de facções dentro de seu próprio governo, que nas suas discórdias fragmentam a nitidez dos rumos governamentais.

O espírito de facção inspira o cerne ideológico do governo, que, alinhado com o perfil do presidente, anima a sua comunicação com o País. Esta alimenta o núcleo duro dos seus seguidores, que é minoritário, mas afasta a maioria remanescente dos seus eleitores e também o vasto grupo de brasileiros que tiveram, no início, uma certa boa vontade com o “novo” que encarnava. Em síntese, o forte facciosismo do governo no trato da sua inserção com a sociedade divide o País e não contribui para a reconstituição dos laços de confiança entre governo e governados. Sustenta-se na ideia de que existem inimigos e conspirações no Brasil e no mundo que cabe combater com vocação de cruzados, que desconhecem a distinção entre fatos e ficção e os critérios do pensamento na lida com o verdadeiro e o falso.

Hobbes, no De Cive (XII, 13), analisa os riscos da multiplicação de facções dentro do Estado e da sociedade para a boa governança. Ilustra a questão com uma narrativa mítica. As filhas de Peleu, rei de Tessália, inspiradas pelo conselho de Medeia, cortaram o velho rei em pedacinhos, cozinharam-no no fogo, esperando, inutilmente, que ressuscitasse com o pleno vigor da juventude. Assim também, continua Hobbes, é a estultice das facções, que na sua conduta querem renovar o velho abrasando o governo, em vez de reformulá-lo. Esta cozinha do abrasar generalizado da “nova política” é um dos riscos da degeneração do poder democrático.

Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)

O que fazer de Bolsonaro - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 19/05

Presidente insinua que forças terríveis do sistema o impedem de governar


“Vamos quebrar o sistema”, dizia Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral. Ele seria o candidato a ser vencido ou morto, pois “quebraria o sistema”. Ele daria solução à crise quando “quebrasse o sistema”.

Na sexta-feira (17), o presidente distribuiu pelo celular um texto que lamenta a vitória do “sistema”. Forças terríveis das “corporações” que vampirizam o Estado, com apoio do Judiciário e do Congresso, impediriam Bolsonaro de governar.

Assessores dizem que o presidente está com “estafa” e, com outras palavras, que está mais paranoico ou “muito amargurado” desde que passou a lidar com o Congresso e com “deslealdades” de ministros que parecem se juntar às forças terríveis do “sistema” que o empareda.

O pote até aqui de mágoa e ressentimento que em suma é Bolsonaro transbordou de vez com o anúncio da investigação ampla dos negócios da família, a começar pelas transações do núcleo Flávio, o filho 01.

Segundo um assessor, seria esse o “tsunami” a que se referiu o presidente na semana retrasada. O texto sobre o “sistema” teria sido um “desabafo”.

Seja lá o que se passe nas profundezas da noite obscura da alma presidencial, o destampatório de sexta-feira faz sentido.

Os ímpetos demagógicos de Bolsonaro se frustram, viram fumaça sob o calor de leis e normas em geral. Basta lembrar-se do dedaço no preço do diesel, da censura do reclame do Banco do Brasil, do desvario de baixar o Imposto de Renda etc. Mesmo o decreto bangue-bangue, o do porte de armas, está sub judice.

O presidente tem de recuar. Como se escrevia nestas colunas ainda na quarta-feira (15): “No limite, Bolsonaro pode dizer que forças ocultas atrapalharam seu governo, terceirizando a responsabilidade”.

Não é apenas dramalhão íntimo. Essa conversa das forças terríveis do “sistema” é idêntica àquela que a militância tuiteira do bolsonarismo voltou a espalhar desde o início do mês, com ataques renovados a ministros do Supremo Tribunal Federal e à Câmara tomando o lugar das mordidas rábicos nos militares.

Estão nas redes insociáveis do bolsonarismo campanhas como a “Vamos invadir Brasília” e “Vamos invadir o Congresso”.

O Congresso reage. Outra vez na semana que passou se ouviu falar de “parlamentarismo branco”, que é uma bobagem ou apenas metáfora para o impasse político, pois é inviável que a Câmara dos Deputados governe.

Faz quase três meses, depois do arranca-rabo entre Rodrigo Maia e Bolsonaro, fala-se de “pauta própria” da Câmara. “A reforma da Previdência será de certa forma um projeto do Parlamento, um roteiro adaptado, baseado na história original elaborada pelo Ministério da Economia”, como se escrevia aqui em março.

Gente da cúpula do Congresso quer mesmo aprovar a reforma e, acredite-se, evitar que o país entre em colapso. Mas não quer dar um presente a Bolsonaro.

Um presidente que cria baderna política e não faz acordo algum levaria de graça o prestígio e o poder renovados que adviriam de uma possível recuperação econômica. Além de espezinhados pelas redes e por Bolsonaro, os deputados ficariam apenas com o “trabalho sujo” e politicamente pesado de aprovar reformas.

Há quem diga que, sendo assim, é melhor fazer o “governo possível” e tolher poderes presidenciais. Por exemplo, conter de modo estrito a emissão de medidas provisórias e impedir nomeações presidenciais mais intragáveis. Seria a solução de fato, se não é possível se livrar de direito de Bolsonaro.

Vai ser difícil que isso preste. Mas é o que temos.

Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA)

Presidência sem rumo - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 19/05


As seguidas vezes em que sua palavra é desautorizada esvaziam de significado político as manifestações de Jair Bolsonaro.


Com preocupante frequência, o presidente Jair Bolsonaro desdiz o que disse ou então é desmentido por ministros, por parlamentares ou, o que é pior, pelos fatos. Pelo cargo que ocupa, Bolsonaro deveria ser a principal referência das decisões do governo federal. Suas declarações deveriam ter o peso institucional que a Presidência da República confere a seu titular. Mas as seguidas vezes em que sua palavra é desautorizada começam a esvaziar de significado político suas manifestações. Para um governante que já demonstrou não ter vocação para agregar apoios no Congresso, essa dificuldade adicional certamente contribuirá para atrapalhar ainda mais o andamento dos projetos de interesse do Palácio do Planalto e, no limite, a própria governabilidade, pois ninguém hoje sabe o que Bolsonaro efetivamente quer.

A mais recente confusão envolvendo declarações do presidente ocorreu depois de um encontro com deputados, vários deles governistas. Esses parlamentares informaram que, diante deles, Bolsonaro telefonou para o ministro da Educação, Abraham Weintraub, para determinar que não houvesse bloqueio de recursos no Orçamento da Educação. Os deputados saíram da reunião e, no plenário, narraram o teor do telefonema. Logo em seguida, porém, foram desmentidos pela Casa Civil – que, em nota, disse que “não procede a informação” e que “o governo está controlando as contas públicas de maneira responsável”. Ou seja, numa única nota, o governo fez os deputados passarem por mentirosos e irresponsáveis.

O líder do PSL (partido do presidente) na Câmara, Delegado Waldir (GO), que esteve na reunião, disse que a Casa Civil “está desmentindo o próprio presidente da República”. O líder do PROS, Capitão Wagner (CE), também testemunha do telefonema, foi contundente: “Não vou admitir, sendo aliado do governo, ser chamado lá no Palácio do Planalto para tratar uma questão séria como essa, presenciar o presidente pegar um celular, ligar para o ministro na presença de vários líderes partidários e, com todas as letras, dizer ‘a partir de agora o corte está suspenso’... Se o governo não sustenta o que o presidente falou na frente de 12 líderes parlamentares, não sou eu que vou passar por mentiroso perante a nação”.

No mesmo dia, a desorientação governista se refletiu na convocação do ministro Weintraub para explicar na Câmara o contingenciamento de verbas na educação. O placar da convocação teve 307 votos a favor – apenas um a menos do que o necessário para aprovar emendas constitucionais. Assim, está mais claro do que nunca que o governo não conta com apoio senão de alguns abnegados que se dizem bolsonaristas a despeito de serem frequentemente maltratados pelo Palácio do Planalto.

Isso acontece, entre outras razões, porque o governo não tem rumo. “Ainda não compreendemos, olhando a longo prazo, quais são as políticas que esse governo trouxe para sobrepor os 13 anos de governo do PT”, disse ao Valor o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). “Até agora a gente não entendeu qual é essa agenda.”

Tal incompreensão é resultado da forma atabalhoada com que o presidente comunica suas decisões, inclusive para seus assessores. Recentemente, anunciou ter orientado o ministro Paulo Guedes a corrigir a tabela do Imposto de Renda (IR) pela inflação – o que pegou de surpresa a equipe econômica. No Senado, o ministro Guedes foi enfático: “(Foi )o presidente que falou que atualizaria a tabela de IR pela inflação. Eu não disse nada. Estamos no meio de uma batalha (a reforma da Previdência). Não adianta me distrair com outra”.

Em menos de cinco meses de governo, a lista de mal-entendidos presidenciais já é longa – inclui gestões indevidas para a queda dos juros dos bancos públicos e do preço do diesel, com forte impacto negativo nos mercados. Para o vice-presidente Hamilton Mourão, o governo tem “falhado na comunicação”. De fato. Mas o problema é que só consegue se comunicar quem tem o que dizer e sabe o que quer – condições às quais o presidente, até agora, está muito longe de atender.

Abismo - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 19/05

É preciso esclarecer o que está em jogo na questão fiscal no discurso do governo e possíveis saídas


Talvez seja útil esclarecer o que está em jogo quando o governo fala em abismo fiscal.

O Orçamento da União é composto por receitas correntes, decorrentes de impostos, contribuições e outras formas de arrecadação. O governo pode se endividar, desde que ache quem queira emprestar-lhe.

Esses recursos financiam as despesas com os salários de servidores, as aposentadorias e as políticas públicas, como segurança nacional, educação e saúde, além dos investimentos em infraestrutura.

A boa gestão requer que as despesas recorrentes, aquelas que ocorrem todos os anos, sejam financiadas por receitas correntes. Novas dívidas devem ser contratadas apenas para pagar as despesas de capital, como dívidas que vencem ou novos investimentos.

A razão é simples. Caso o governo comece a ser endividar para pagar as despesas correntes, o risco é a dívida entrar em uma trajetória explosiva e se tornar impagável. Algo como começar a tomar dinheiro emprestado para pagar o aluguel.

Tudo bem se esse endividamento for consequência de problemas transitórios. Mas se todo ano forem necessários novos empréstimos para pagar as despesas do dia a dia, a dívida sai de controle.

Há uma opção, a inflação crescente, que reduz quanto o governo efetivamente paga de salários, aposentadorias e demais despesas públicas. Trata-se de uma opção perversa, no entanto, como sabem os mais velhos que vivenciaram os anos 1980.

Por essa razão, nossa legislação, como em muitos outros países, proíbe que o governo se endivide para pagar despesas correntes. Essa previsão legal é conhecida como regra de ouro.

Pois bem, desde 2017 a Secretaria do Tesouro vem alertando que as despesas obrigatórias crescem bem acima das receitas correntes e que iria faltar dinheiro até para pagar a conta de luz.

A saída seria reduzir o crescimento dos gastos obrigatórios, a começar pela reforma da Previdência. Aumentar a carga tributária é medida de vida curta, pois as despesas obrigatórias crescem cerca de 6% acima da inflação ao ano, bem mais do que cresce a renda do país, mesmo quando tudo está bem.

O Orçamento para este ano já antecipava que a regra de ouro seria violada e a opção seria o Congresso aprovar créditos suplementares para pagar despesas básicas, como o Bolsa Família. O novo governo dormiu no ponto e, agora, tenta correr atrás do prejuízo.

Alguns atribuem o problema à regra do teto que limita o crescimento do gasto público. Não sabem do que falam.

A luz amarela foi acionada pela regra de ouro, que sinaliza que estamos flertando com o desastre. Podemos trocar de sinaleiro e ignorar o tsunami. Não parece ser a melhor opção.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia

Tudo ou nada já? - VERA MAGALHÃES

O Estado de S. Paulo - 19/05

Medir forças nas ruas é mais uma prova da completa desconexão com a realidade e pode ampliar desgaste do governo.


O governo tem menos de cinco meses, mas os lances da semana que passou, a pior para Jair Bolsonaro desde a posse, mostram que flerta perigosamente com o tudo ou nada, ao estressar as relações institucionais ao mesmo tempo em que tenta medir forças com a oposição nas ruas.

Num intervalo de sete dias, o presidente: 1) disse que fez um acordo com Sérgio Moro para nomeá-lo para o STF, para em seguida recuar; 2) previu um tsumani; 3) viu as investigações sobre o filho Flávio avançarem substancialmente e atingirem o resto do clã político, e reagiu a isso na base da valentia de pai; 4) minimizou os protestos contra a Educação e xingou seus participantes; 5) se enfiou numa viagem caricata a uma cidade desimportante para uma agenda irrelevante para a qual não havia sido convidado; e 6) terminou a semana compartilhando corrente pelo WhatsApp com um texto que diz que sua própria pauta fracassou e que o País é ingovernável. É preciso um talento muito específico para gastar tanta energia assim em um conjunto tão desastroso de ações.

Enquanto Bolsonaro estava em Dallas dando alguns dos tropeços listados acima, seus líderes no Congresso batiam cabeça e complicavam a já delicada situação do governo no Parlamento. Alguns deles decidiram que iam manter o Coaf nas mãos de Moro na marra, no gogó nas redes sociais. O resultado foi que o Centrão sentou em cima das medidas provisórias que estão prestes a caducar, entre elas a que reestrutura o governo nos moldes desejados por Bolsonaro.

O presidente, seus aliados mais ideológicos, os seguidores fanatizados das redes e mesmo alguns ministros bem intencionados, mas não versados nas nuances da política, acusam a imprensa de cobrar duramente o governo e não denunciar o que seria a chantagem do Parlamento.

Aliados de Bolsonaro convocam, com o beneplácito da primeira-família e de assessores cruzados com assento no Planalto, o “homem comum” para ir às ruas se insurgir contra o Legislativo, o Supremo ou quem mais ousar se interpor no caminho das pretensões de Bolsonaro – como se o simples fato de ele ter vencido as eleições lhe outorgasse carta branca para agir à revelia dos demais Poderes e sobrepujando uma parcela significativa da sociedade que não concorda com essa pauta.

Acontece que medir forças nas ruas tendo como currículo de cinco meses de governo investidas sistemáticas contra educação, cultura, diversidade social, meio ambiente e direitos humanos, baseado na crença de que o Brasil se transformou subitamente num País de extrema-direita e que todos esses assuntos são de interesse apenas da esquerda, é uma prova a mais de completa desconexão com a realidade, e pode fazer com que o desgaste do governo escale alguns degraus rapidamente.

Quando aponta que a superação da grave crise do País depende de equilíbrio institucional, da aprovação das reformas estruturantes, da abertura econômica e da segurança jurídica, a imprensa não está apostando na manutenção do establishment corrupto e investindo contra os homens de bem, como devaneiam os neocruzados de Twitter.

Está apenas constatando o óbvio: presidentes que, por teimosia e péssimo assessoramento, optaram por esticar a corda com as instituições e governar no grito se deram mal. Uns tentaram insuflar o “povo" a ir às ruas em sua defesa (Collor, 1992), Outros denunciaram forças ocultas que conspiravam contra o bem (Jânio, 1961). Houve ainda quem quisesse duelar com o Parlamento suprimindo a matemática elementar (Dilma, 2016).

É muito cedo para Bolsonaro enveredar pelo tudo ou nada. A insistência nesse caminho pode ter o efeito de evidenciar um desgaste que cresce a cada dia – é sempre bom repetir – por iniciativa exclusiva do próprio governo.

Medir forças com a oposição nas ruas com cinco meses de governo é aposta arriscada

Hímens de aço - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 19/05

Doris Day nunca fez sexo sem casamento em seus filmes. Marilyn Monroe e Frank Sinatra, também não


Doris Day morreu no dia 13 último e a imprensa martelou a batida frase de Oscar Levant —atribuída pelos desinformados a Groucho Marx— sobre sua suposta virgindade na tela. Suposta? Não, real. De fato, em nenhum de seus 41 filmes subentende-se que Doris Day tenha feito sexo antes do casamento. Que careta, não? Pois tenho novidades: Ava Gardner, Elizabeth Taylor, Katharine Hepburn, Shirley MacLaine, Lauren Bacall, Cyd Charisse, Audrey Hepburn, Ingrid Bergman, Bette Davis, Judy Garland, Kim Novak, Susan Hayward, Natalie Wood, Jayne Mansfield e até Marilyn Monroe também nunca fizeram sexo antes do casamento em seus filmes.

E, para que não se diga que só as atrizes tinham hímens de aço, posso garantir que Humphrey Bogart, Clark Gable, Errol Flynn, Robert Mitchum, Kirk Douglas, Burt Lancaster, Gregory Peck, Gary Cooper, James Stewart, Henry Fonda, Orson Welles, William Holden, Paul Newman, John Wayne e até Frank Sinatra também nunca fizeram sexo antes do casamento em seus filmes. Vou adiante: entre 1934 e 1968, período em que todos eles trabalharam, ninguém fez sexo sem casamento nos filmes americanos.

Todos os estúdios de Hollywood obedeciam a um Código de Produção —imposto por eles próprios para evitar a censura federal—, que obrigava até casais casados a dormir em camas separadas. O Código só caiu em 1968, de caduco. Mas, em seus 34 anos de vigência, ninguém ousou contestá-lo. Sexo, só com casamento e, mesmo assim, subentendido. Era a lei.

Toda a carreira de Doris Day no cinema, de 1948 a 1968, se deu nesse período. Você dirá que, em suas comédias românticas —em que interpretava mulheres independentes e que não tinham de dar satisfações a ninguém—, ela rebatia os assédios do galã por moralismo.

Não. Estava só fazendo algo que, hoje, as mulheres valorizam muito: exercendo o direito de dizer não.

Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues

Políticas de Estado e de Governo (2) - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 19/05


A diferenciação entre políticas de Estado e de governo não é nítida, admite o jurista Joaquim Falcão, fundador da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas e um dos criadores do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Ela muda com a história, ‘o Estado sou eu’, (como agora acredita o presidente do STF, ministro Dias Toffoli), a geografia, a cultura, a religião (como no Irã atualmente)”.

Joaquim Falcão defende um critério mínimo, que classificaria as Forças Armadas (polícia inclusive ), Justiça e Relações Internacionais (Itamaraty ) como carreiras de Estado, como definidas pelo ex-ministro Bresser Pereira na reforma administrativa do governo Fernando Henrique Cardoso.

Foi por este critério, lembra, que defendeu nos anos 2000 o Pacto pela Justiça como um pacto de Estado, como aconteceu na Espanha. “O Toffoli iniciou-se (na presidência do STF) propondo um Pacto Republicano, incluindo reforma da Previdência. Mas presidente do Supremo não tem competência legal para propor ou opinar nada sobre o que terá de julgar”, adverte Joaquim Falcão. Política de governo, a “policy”, é mais conjuntural. Finalmente, outro critério seria a Constituição. As estruturas do estado democrático de direito constitucionalizadas seriam de Estado.

O jurista José Paulo Cavalcanti, ex-ministro da Justiça, membro da Comissão da Verdade, também separa o estrutural do conjuntural. No primeiro caso, haveria carreiras de Estado, interesses de Estado, políticas de Estado. No segundo, só conjunturas, políticas de Governo.

Mas ele admite que se trata de um tema complexo, para o qual seria necessário haver algum tipo de consenso prévio em relação à necessidade, ou conveniência, de uma determinada política pública duradoura. Para além do contingente. E como isso se dá no mundo real?, eis a questão, comenta.

“Quando já estiver na Constituição é até simples. O que nos leva a tentar precisar a vontade coletiva que deveria estar na base de uma ‘política de Estado’”. Como é que ela se daria? Por plebiscitos? Referenduns? Simples pesquisas de opinião?.

Ele entra no debate dos decretos sobre armas. “Houve plebiscito, em que puderam votar todos os brasileiros habilitados. E mais de 70% escolheram poder guardar em casa uma arma. Há, nesse caso, uma vontade popular expressa por um instrumento da Constituição. O resultado foi certo ou errado?, não importa. Cada um pôde expressar sua opinião”.

As dificuldades começam, comenta José Paulo, quando o governo pretende dar cumprimento a essa vontade popular em uma espécie de política. Estamos vendo isso agora. E o governo é criticado precisamente por operacionalizar uma política de Estado que foi definida em plebiscito. “As diferenças entre as tais políticas, de Estado e de governo, ficam turbadas”.

O jurista José Paulo Cavalcanti ressalta que uma “política” não pode ser implementada por palavras. Mas por atos concretos. “Quais as alterações, concretas, propostas para a Constituição? Quais os projetos de lei apresentados? Quais as medidas administradas?”.

A ampliação do alcance do aborto, outro exemplo de política de Estado saída de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro aposentado Eros Grau considera esse um exemplo de juízes fazendo sua própria lei, título de um texto que escreveu sobre o assunto, explicitando sua revolta contra o aborto.

“Não há nenhuma dúvida, pois, a respeito do fato de que o que há no aborto é destruição da vida. Um filho anencéfalo morto pela mãe sob a influência do estado puerperal é um ser vivo. Sua morte pela mãe consubstancia, um homicídio. Então, pergunto: por que não seria criminoso o assassinato de um feto anencéfalo, que — repito — pode receber doações, figurar em disposições testamentárias e mesmo ser adotado?”

Mais uma linha de emergência para ajudar estados - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 19/05

Crise fiscal leva governo a preparar socorro, mas de forma que a má experiência do Rio não se repita


A crise fiscal deixa um rastro de ruínas financeiras na Federação. Sem poderem emitir títulos de dívida — ao contrário da União —, estados encontram-se na penúria, com destaque para aqueles em que políticos consideram o dinheiro público inesgotável.

Já houve, desde a gestão de FH, três rodadas de renegociação de dívidas. O problema agora é de desencontro entre fluxos: receita e despesa. Esta, em ascensão, enquanto a arrecadação tributária é afetada pelo baixo crescimento da economia.

A situação é insustentável, porque os gastos aumentam de forma autônoma, principalmente os previdenciários — aposentadorias e pensões —, que crescem devido ao envelhecimento da população, e ainda são protegidos por lei. É a mesma corda que enforca a União, que pode se endividar, mas já ultrapassou o limite do razoável. Não há mesmo alternativa a não ser uma reforma séria da Previdência.

Para evitar o colapso de serviços públicos, a equipe econômica desenvolve um programa de socorro, apelidado de “Plano Mansueto”, nome do secretário do Tesouro, para que estados possam atender minimamente a população, enquanto se ajustam.

É lógico e necessário que programas deste tipo sejam lançados. Mas deve-se proteger o dinheiro do contribuinte contra a irresponsabilidade fiscal atávica no meio político, que leva governantes a receberem ajuda da União e não cumprirem os ajustes prometidos.

O Rio de Janeiro serve de exemplo: aderiu ao Programa de Recuperação Fiscal, recebeu o auxílio fundamental de não pagar a dívida de 2017 a 2020, mas não cumpre integralmente o combinado.

Tem ao menos respirado, devido aos royalties do petróleo, mas este é um dinheiro finito. Não aprendeu a lição. Se os royalties forem desconsiderados, a receita de janeiro a março, em relação ao mesmo período de 2018, caiu. E houve um leve aumento das despesas de pessoal, com os servidores ativos.

O Rio de Janeiro não pode aderir ao “Plano Mansueto”, pois está sob o regime de ajuste. Mas o provável fracasso fluminense não deverá se repetir no novo programa, que consistirá na concessão de aval do Tesouro a empréstimos bancários a estados, que podem chegar a R$ 40 bilhões até 2022. A finalidade é melhorar a classificação de risco dos estados, para eles poderem ter acesso ao mercado de crédito.

Em troca, os beneficiados precisarão se comprometer com ajustes, assim como no caso do Rio. Mas a liberação do dinheiro será por etapas, para evitar que governadores relaxem o ajuste e continuem a receber os recursos. É positivo que a União comece a fechar brechas pelas quais governantes obtêm ajuda do Tesouro, mas, de forma leniente, não cumprem o prometido e tentam mais à frente renegociar a ajuda. E assim sucessivamente.

O governo contra a economia - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 19/05

Jair Bolsonaro confirmou mais uma vez na sexta-feira a capacidade do governo, especialmente de seu chefe, de causar confusão e prejudicar o País.



Confusão, frustração, cenário desanimador, incerteza e País estressado são palavras do pesquisador Claudio Considera, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), usadas para descrever e explicar o fiasco econômico do primeiro trimestre – primeiro do ano e também do mandato do presidente Jair Bolsonaro. Nesse período a economia brasileira, estagnada, produziu 0,1% menos que nos três meses finais de 2018, segundo o Monitor do PIB-FGV.

Quando esse boletim foi divulgado, na sexta-feira de manhã, o dólar se aproximava de R$ 4,10. O câmbio refletia tensões internacionais e principalmente, segundo analistas do mercado, a insegurança quanto à reforma da Previdência e à recuperação econômica, num quadro próximo de uma crise política. À tarde a cotação passaria de R$ 4,11.

A bolsa paulista, no começo da manhã, havia ensaiado uma reação, depois de haver caído para menos de 90 mil pontos, no dia anterior, e atingido um dos patamares mais baixos desde a época das eleições.

Os números da FGV somaram-se a uma sequência de más notícias econômicas e políticas. Na mesma semana o Banco Central havia informado uma nova queda de seu Índice de Atividade Econômica (IBC-Br) – um recuo de 0,68% em relação ao quarto trimestre do ano passado.

O desastre econômico sofrido pelo País no período de janeiro a março será conhecido com dados oficiais em 30 de maio. Nesse dia o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) deverá apresentar o Produto Interno Bruto (PIB) do primeiro trimestre.

O Monitor elaborado pela FGV, publicado todo mês, tem antecipado com notável aproximação – e até precisão – as contas nacionais do IBGE. Se houver, desta vez, alguma divergência, será por certo muito pequena, a julgar pelo histórico desse trabalho. Dificilmente o balanço oficial mostrará um quadro menos assustador que o apresentado nessa sexta-feira. Se a queda trimestral for confirmada pelo IBGE, terá sido a primeira depois de oito trimestres consecutivos de crescimento. Esse “cenário desanimador”, segundo o responsável pelo relatório, Claudio Considera, reflete “a incerteza política e econômica” com seu impacto negativo no investimento, na atividade, na retomada do emprego e no consumo das famílias.

Outra piora significativa indicada pelo Monitor é a expansão de apenas 0,9% acumulada nos 12 meses até março. Se também confirmada, essa terá sido a primeira variação inferior a 1% em 12 meses, desde novembro de 2017, como lembrou Considera na apresentação do novo relatório.

Em todo o ano de 2018 o PIB cresceu 1,1% em relação ao ano anterior. Essa foi a mesma taxa contabilizada em 2017, primeiro ano depois da recessão de 2015 e 2016. O crescimento em 2018, decepcionante, foi em boa parte explicável pela desastrosa paralisação do transporte rodoviário, em maio, e pela insegurança econômica associada a tensões políticas e à sucessão.

Sondagens apontaram, depois da eleição, expectativas de melhora, mas os primeiros meses do novo governo foram frustrantes na política e na economia. No ano passado houve uma modesta elevação do investimento produtivo, mas também esse indicador piorou. No trimestre findo em agosto de 2018, o investimento, medido pela formação bruta de capital fixo, foi 8,5% maior que o de um ano antes. No trimestre inicial deste ano a alta em relação aos primeiros três meses do ano passado ficou em apenas 0,4%.

“A equipe econômica é ótima, qualificada, todas as expectativas eram positivas, e isso se inverteu em três meses”, disse Claudio Considera. “O comportamento político do governo causou confusão. O País está estressado. Todo dia tem confusão”, resumiu o economista, indo além dos comentários normalmente formulados na divulgação do Monitor-FGV.

No mesmo dia, o presidente postou um tuíte desastrado sobre sua dificuldade de governar com o Congresso, isto é, de acordo com a Constituição. Confirmou, de novo, qualquer afirmação sobre a capacidade do governo, especialmente de seu chefe, de causar confusão e prejudicar o País.


Risco de desgoverno - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 19/05

Crescem sinais de alarme com a desarticulação de Bolsonaro, que precisa evitar crise maior



Havia esperança no início do mandato de Jair Bolsonaro (PSL). Quando o presidente tomou posse, 65% dos brasileiros acreditavam em um governo ótimo ou bom, otimismo considerável para um país que saíra dividido da eleição acirrada.

A confiança de consumidores e empresários aumentara, como costuma ocorrer quando se escolhe um novo mandatário. Preços e taxas do mercado financeiro refletiam a crença de que assumia um governo capaz de implementar reformas e destravar o crescimento.

Menos de cinco meses depois, difundem-se sinais de frustração —e o sentimento vai rapidamente se aproximando do alarme. O desgaste político recrudesce, as expectativas econômicas se deterioram, a tensão financeira é crescente.

Bolsonaro demonstra que não compreende meios e fins de governar. Muitas de suas iniciativas se mostram ineptas e definham, pois eivadas de defeitos jurídicos ou tecnicamente descabidas.

Não raro, o presidente se vê contido por seus próprios ministros, como no caso dos ensaios de intervenção na Petrobras ou no Banco do Brasil. De grande interesse de Bolsonaro, o decreto que facilita o porte de armas está para ser derrubado no Congresso ou na Justiça.

Os projetos legislativos mais importantes do governo, o pacote anticrime e a reforma da Previdência, têm tramitação dificultosa. O mandatário, crítico destrutivo do sistema político, nada colocou no lugar além de abstrações vazias.

O resultado é uma paisagem parlamentar devastada, em que simples medidas provisórias não avançam. O bloco majoritário da Câmara dos Deputados afirma que terá pauta própria e independente, tamanha a acefalia do Executivo.

Bolsonaro não dispõe de coalizão majoritária no Congresso. Teme-se que nem mesmo tenha a intenção de fazê-lo, que seja indiferente à paralisia legislativa ou, pior, que espere a submissão.


A dúvida a respeito da aprovação de reformas fundamentais realimenta a espiral de problemas políticos e econômicos. Mas há mais fatores a intoxicar o ambiente.

O presidente dedica seu tempo a ninharias, a revanchismos e ao apoio a militantes sectários que se acreditam imbuídos da missão de derrubar o establishment. Toleram-se ou ratificam-se os ataques desses cruzados a ministros, ao vice e às cúpulas do Legislativo e do Judiciário —um desperdício de tempo e de capital político.


Em pastas dominadas por essa agenda ideológica, há tumulto administrativo e desnorteio programático, como no caso notório e deplorável da Educação.

Como se não bastasse, o presidente e seu círculo íntimo desprezam a conciliação pragmática, a atitude de chegar a acordos que tornem viáveis princípios e metas de governo de interesse geral.

Ao contrário, insultam críticos e adversários, como Bolsonaro fez ao comentar as manifestações que voltaram às ruas das capitais e de outras grandes cidades.

No passo mais recente dessa marcha insensata, ele se aventurou a sugerir que não leva adiante sua pauta porque estaria preso pelo sistema —ou algo do gênero.


Na sexta-feira (17), o chefe do Executivo difundiu um texto em que se considera o Brasil “ingovernável” sem a prática de conchavos espúrios. Qualquer presidente estará manietado pelas corporações que dominam e sugam o Estado, lá se lê.

Ainda que se trate de mais uma das inconsequências presidenciais, na mensagem está implícita a ideia de que o país precisa se livrar de impedimentos institucionais e acordos sociais e políticos.

Fato é que existe apoio na sociedade para projetos centrais da agenda de Bolsonaro, em especial na área econômica. As últimas três décadas de democracia deram exemplos de que com habilidade e perseverança se conseguem superar as resistências a avanços.

O país controlou a inflação e equacionou a dívida externa herdada da ditadura; aprimorou programas de seguridade social; fortaleceu instituições jurídicas e abalou a tradição de impunidade de poderosos. Os progressos, porém, têm sido lentos e sujeitos a retrocessos. Neste momento, há uma década perdida na economia a superar.

Em vez de insinuar que seus fracassos se devem a forças obscuras, desculpa sombria e inaceitável, Bolsonaro precisa aprender logo rudimentos de diálogo e negociação, a fim de evitar uma crise maior. Resta tempo de sobra para um mandato produtivo, mas as chances precisam ser aproveitadas desde já.