domingo, maio 19, 2019

A democracia e a nossa conjuntura - CELSO LAFER

 Estado de S.Paulo - 19/05

O forte facciosismo do governo no trato da sua inserção com a sociedade divide o País



Ao longo dos anos 1980, um abrangente consenso em torno da democracia uniu todas as vertentes da oposição ao regime autoritário-militar, favorecendo a redemocratização por meio de uma ação política que se valeu de brechas institucionais existentes. A Constituição de 1988 é expressão do consenso em torno da democracia, e a Constituinte, da qual emanou, traduziu em normas a imaginação e os sentimentos que impulsionaram o esforço coletivo abrangente de uma cidadania, que se tornou ativa no seu empenho em prol da redemocratização.

A Constituição de 1988 foi a moldura e o parâmetro no âmbito do qual transcorreu a vida política do país da Presidência Sarney à de Temer. Teve resiliência institucional para permitir que o País lidasse, em consonância com as regras da democracia, com uma complexa pauta e muitas tensões políticas.

Nesse contexto é importante realçar que a democracia é um método de convivência civil e pacífica, uma prática de aprendizagem permanente. Por isso pressupõe, como ensina Bobbio, confiança – “a confiança recíproca entre os cidadãos e dos cidadãos nas instituições”, que postula também a confiança no diálogo democrático, ou seja, o reconhecimento do Outro como adversário, e não como inimigo a ser dizimado, o que a convulsão dos sectarismos não favorece. Sectarismos excludentes e populismos de vários tipos são um dos dados que, em vários países, vêm levando à degeneração do poder democrático e à autocracias eletivas.

Os laços de confiança entre governos e governados foram se esgarçando em nosso país. Para isso contribuiu a revelação da corrupção. A corrupção, como dizia Políbio, é um tenaz agente da cupinização das instituições políticas. Daí a percepção de que a gestão da res publica estava se transformando na administração dos particularismos da res privata. No início, isso alcançou o PT e suas redes, porém nos desdobramentos impactou todo o espectro dos atores políticos.

A semente da desconfiança permeou as eleições de 2018. Todos os partidos que atuaram no pós-redemocratização foram derrotados. Padeceram a erosão de sua capacidade de vincular o indivíduo ao coletivo, PT incluído. Na dinâmica eleitoral, Bolsonaro soube valer-se das novas mídias da era digital, que diminuíram a prévia relevância da mídia tradicional no processo eleitoral. Catalisou um forte e significativo sentimento anti-PT existente na sociedade, para o qual contribuiu a inépcia da gestão do segundo mandato de Dilma. A isso se somaram no ano eleitoral a preocupação com a segurança e a violência, o desemprego e a falta de oportunidades.

Foi nesse caldo de sensibilidades que Bolsonaro, até então figura periférica e solitária na vida política, se viu catapultado para o âmago bem-sucedido das eleições. No Congresso, como deputado em várias legislaturas, não se destacou. Manifestou em suas intervenções grande simpatia pelo regime militar, foi muito crítico dos direitos humanos, altamente conservador em matéria de costumes, no que se viu respaldado pela visão e força política dos evangélicos, encontrando eco na sociedade.

Na campanha e nas constantes manifestações na Presidência, na qual se vale, como Trump, da preferência pelo sintético-não-argumentado do Twitter, tem arguido que ele e seu governo representam uma nova política. Esta, no seu tom e estridência, é uma contestação, para me valer de formulação de Fernando Henrique Cardoso, “ao terreno comum, público e privado, no qual o interesse das pessoas se encontram e em nome do qual um país cria um destino nacional”.
Esse terreno comum foi dado pela moldura da Constituição de 1988 e seus adquiridos axiológicos. A “nova política” questiona esse terreno comum e a respeitabilidade dos seus valores. É um deslocamento de paradigma do funcionamento da vida política brasileira, que, com todas as dificuldades e todos os conflitos, sustentou a democracia em nosso país.

A “nova política” poderá assegurar o bom governo? A dicotomia bom governo/mau governo é um dos temas clássicos da teoria política. Passa pelo “governo das leis” e pelo exercício do poder em prol de um ideal e de uma prática voltada para o bem comum. Um dos ingredientes que desde os gregos e de toda a literatura subsequente leva à desagregação do bom governo, como lembra Bobbio, é a prevalência da formação de facções e o estímulo à discórdia.

Uma das características da presidência de Bolsonaro é a formação de facções dentro de seu próprio governo, que nas suas discórdias fragmentam a nitidez dos rumos governamentais.

O espírito de facção inspira o cerne ideológico do governo, que, alinhado com o perfil do presidente, anima a sua comunicação com o País. Esta alimenta o núcleo duro dos seus seguidores, que é minoritário, mas afasta a maioria remanescente dos seus eleitores e também o vasto grupo de brasileiros que tiveram, no início, uma certa boa vontade com o “novo” que encarnava. Em síntese, o forte facciosismo do governo no trato da sua inserção com a sociedade divide o País e não contribui para a reconstituição dos laços de confiança entre governo e governados. Sustenta-se na ideia de que existem inimigos e conspirações no Brasil e no mundo que cabe combater com vocação de cruzados, que desconhecem a distinção entre fatos e ficção e os critérios do pensamento na lida com o verdadeiro e o falso.

Hobbes, no De Cive (XII, 13), analisa os riscos da multiplicação de facções dentro do Estado e da sociedade para a boa governança. Ilustra a questão com uma narrativa mítica. As filhas de Peleu, rei de Tessália, inspiradas pelo conselho de Medeia, cortaram o velho rei em pedacinhos, cozinharam-no no fogo, esperando, inutilmente, que ressuscitasse com o pleno vigor da juventude. Assim também, continua Hobbes, é a estultice das facções, que na sua conduta querem renovar o velho abrasando o governo, em vez de reformulá-lo. Esta cozinha do abrasar generalizado da “nova política” é um dos riscos da degeneração do poder democrático.

Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)

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