Acender o fósforo repetidas vezes
Ignácio Loyola Brandão
O Estado de S.Paulo - 19/11/10
Depois da colisão com Monteiro Lobato, veio a escorregadela do Enem. Esse ministério não aprende que errar uma vez é humano, errar duas é burrice. Vem também o ministro dizer que os critérios para avaliação internacional do ensino brasileiro, abaixo do da Cochinchina, estão errados e que temos um alto nível. De onde será que o ministério olha? Como avalia? O que salva o ensino brasileiro são atitudes isoladas que, felizmente, existem aos borbotões. Tenho andando, sentido e testemunhado. Como esquecer as professoras que fazem da Casa Meio Norte, em Teresinha, um exemplo esplendoroso (palavra boa, sonora) de como ensinar contra todas as adversidades?
Dia desses, estive em Santo André, convidado pela Luciana Tavares, bibliotecária da Escola 221 do Sesi. Foi uma alegria chegar e ser recebido com um tapete vermelho feito de papel pardo com tiras coloridas. Símbolo afetuoso que os alunos montaram atravessando todo o pátio até a biblioteca. Comoveu ver alunos do ensino médio com o meu romance Não Verás País Nenhum - que não é fácil de ler - nas mãos, porque o livro está sendo trabalhado ali. Algum tempo atrás, quem compareceu foi o Rubem Alves, um parceiro meu em viagens deste tipo. Falar do Brasil, da literatura, da educação, abrir cabeças, abrir mundos, iluminar caminhos. Em momentos assim, tanto Rubem como eu fazemos a mala, esquecemos cachês e trabalhamos por amor. Compensa, alegra.
Há por essa imensidão do Brasil, sim, há, centenas de professores e bibliotecários idealistas lutando para realizar alguma coisa contra currículos esquisitos, diretores obsoletos, normas mal formuladas, entraves burocráticos, kafkianos, incompreensões. Porém, eles vão em frente. Comovente ver os alunos da 221 interessados em literatura, apaixonados por um livro que, tendo sido escrito há 30 anos e sendo meu livro mais traduzido, acabou mostrando a realidade que chegou à nossa porta: o aquecimento global, a angústia da falta d"água, as cidades superpovoadas, a violência, os congestionamentos, as doenças indiagnosticáveis, a miséria. Os professores que estão estudando o Não Verás avançam nas propostas, fazem uma análise abrangente, o que se vê é a própria história do Brasil e as consequências de políticas obsoletas.
Quinze dias depois, eu estava em Sorocaba, diante dos alunos do Objetivo que, orientados pela professora Marisa Telo, tinham virado de cabeça para baixo o livro de contos Cadeiras Proibidas. Metáfora do tempo da ditadura que, mais do que nunca, vem sendo adotado e lido por jovens, dado seu tom fantástico, que excita a imaginação. Ora, em lugar de uma palestra, o que se viu? Um concurso de contos. A partir da inspiração do Cadeiras, que mostra como o absurdo não existe, a realidade é mais absurda que ele, os alunos escreveram 67 contos incríveis. Disse a eles que eu assinaria qualquer um deles. Foi feito um volume, Carteiras Proibidas, que será editado como livro normal. Farei o prefácio.
Faço esta crônica para meus leitores normais, mas principalmente para professores, para dar coragem e dizer: tentem, mudem, avancem, acreditem na fantasia e na imaginação dos jovens, incentivem, arranquem o que eles têm dentro pronto a explodir. Eliminar repreensões, barreiras, cerceamentos. Na sequência, em Sorocaba, os alunos me entrevistaram, perguntaram tudo, inclusive passando pela ridícula "proibição" de Monteiro Lobato e pela polêmica que se estabeleceu em torno de meu conto Obscenidades Para Uma Dona de Casa, que está na antologia Os Cem Melhores Contos do Brasil, organizada por Ítalo Moriconi. Disse - como já tinha dito em Santo André, onde o conto encontrou resistência em uma parcela de professores e pais - que é lamentável que mentalidades inquisitoriais ainda subsistam em pleno 2010. O homem já foi à Lua, corações são transplantados, a vida humana vem sendo prolongada, a longevidade é cada dia mais extensa, a pílula anticoncepcional já existe, camisinhas são vendidas na caixa do supermercado, o mundo é globalizado, a internet está aí, o celular, o iPhone, o iPad, o iPod, o twitter, e há gente parada no tempo do ponto de vista da moral. Por que ainda há palavras que incomodam, sendo palavras da linguagem coloquial? Por que muitos pais não dialogam com os filhos para saber o que se passa em matéria de sexualidade? Por que os pais não dialogam com professores e autores? Por que atitudes hipócritas de censura, esta que foi o braço direito da ditadura, a arma de qualquer sistema totalitário de esquerda ou direita?
Nesses momentos me lembro de Érico Veríssimo em Solo de Clarineta, suas memórias: "Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que o escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto."
É bom quando a literatura é dada com liberdade, espontaneidade, amor, sem preconceitos. Assim ela será recebida. É triste quando se faz da literatura, mesmo que poética, falando da solidão, do tédio e da angústia, algo feio, sujo, pecaminoso, condenação ao fogo do inferno. E os prazeres onde ficam? Ainda bem que existem Lucianas e Marisas no Brasil e existem aos montes. Uso sem medo o lugar-comum: por meio delas, homenageio todos os professores e bibliotecários deste País.