O dia do trabalho é hoje. Mas não vou falar dessas chatices de sindicato, que em muitos casos é coisa de bandido com metafísica social. Sou daqueles que acreditam que, sim, o trabalho molda o caráter, mesmo que seja aquele pequeno trabalho quase invisível do dia a dia.
Uma das razões que considero causa de muita da patifaria que circula entre os jovens e seus pais com mais condição financeira é o fato de não terem de arrumar o quarto.
Estou certo de que uma das razões de a Europa ser tão civilizada é o fato de as pessoas lá não terem acesso a empregada doméstica. O caráter é alguma coisa que brota no silêncio de quem lava louça todo dia. O
caráter não brota numa assembleia de estudantes ou numa manifestação contra a desigualdade social.
Pelo contrário, atividades assim mais deturpam o caráter do que o moldam, porque são atividades em que você só demanda e não dá nada em troca.
Ter direitos não molda o caráter, cumprir deveres, sim. Um dos estragos do mundo contemporâneo é essa histeria por direitos em toda parte.
Todo mundo que vive ou viveu na Europa sabe do que estou falando. E não quero dizer que a Europa seja uma perfeição. Não faço parte do clube de pessoas que entram em orgasmo com a Escandinávia e sua monotonia civilizada. Sinto-me melhor em Portugal e na Espanha e seu caos latino.
Um dia a dia europeu. Você acorda. Se você não deu um jeito na casa na noite anterior, sala, quarto, banheiro e cozinha estarão um lixo. Se tiver um filho pequeno, terá que vesti-lo e alimentá-lo antes da escola. No frio, as camadas de roupa são muitas. Mamadeira pode ser uma constante. Doenças infantis podem criar um problema. Caso tenha marido ou mulher, claro, vocês dividirão esse imprevisto. Quem falta hoje no trabalho? Caso seja um "single parent", não terá escolha, faltará no trabalho.
Claro, você terá de comer, ou o fará num café próximo, mas custa mais caro, e todo dia essa brincadeira poderá sair bem caro. Levar a criança à escola. Buscar ao final do dia. Chegar em casa, dar banho no filho (se forem dois filhos...), preparar comida, colocá-lo para dormir.
Você também tem de tomar banho, preparar a comida, arrumar a casa, limpar a cozinha. Durante o dia, providenciar comida, mantimentos, produtos de limpeza. Roupa a ser lavada. Jogar o lixo fora. Finais de semana?
Lazer, comer, beber. Se quebrar algo na casa, resolver esse problema. Caso compre algo, se quiser que a coisa saia baratinha, terá de levar no metrô sozinho ou sozinha. Carregar, montar. Caso tenha filhos, fazer isso tudo enquanto toma conta do filho.
Não é de se estranhar que os europeus optem cada vez mais por ter menos filhos ou nenhum.
Um traço da vida europeia é que tudo o que você precisar fazer ao longo do dia para manter sua vida funcionando você terá de fazê-lo sozinho, não terá ninguém pra ajudá-lo.
Claro que a existência do Estado de bem-estar social e de razoáveis serviços públicos tornam essa carga cotidiana menos terrível.
Mas nada garante que, com a provável derrocada do Estado de bem-estar social na Europa, apareçam empregadas domésticas de um dia para o outro.
Talvez sírias desesperadas por uma vida melhor comecem a trabalhar com serviços domésticos, ainda assim, as leis trabalhistas europeias tornam o emprego muito caro e proibitivo para um mortal médio.
De qualquer forma, esse cotidiano molda o caráter, sem dúvida.
Sei que está fora de moda dizer isso. Na moda está é ser ressentido, mimado e cobrar direitos de todo mundo.
A ideia de que o trabalho é essencial na formação mínima do caráter é antiga. Na filosofia mais moderna, o inglês John Locke (1632-1704) é um dos primeiros a identificar o trabalho (nesse caso, o trabalho também mediado pelo ganho de dinheiro) como instância moral.
Entre os monges de todas as religiões conhecidas, o trabalho físico sempre foi visto como forma de equilibrar o espírito e a vida moral.
A ocupação e o cansaço evitam que você pense em bobagem e sonhe com o impossível. É nesse silêncio do cansaço que nasce o caráter. No embate com o inevitável.