sábado, abril 23, 2016

Existe uma ideologia petista? - BOLÍVAR LAMOUNIER*

O Estado de S. Paulo - 23/04

Um conjunto reconhecível de ideias o Partido dos Trabalhadores (PT) certamente tem; quanto a isso, não há dúvida. Mas é um conjunto que mereça ou deva ser chamado de ideologia?

Em diversas ocasiões, há cerca de 20 ou 25 anos, muita gente que não votaria no PT afirmava enfaticamente, em tom de crítica aos demais partidos: “O PT pelo menos tem uma ideologia”. Tal elogio (sim, era um elogio) era comum até no meio empresarial. Algumas vezes, cheguei a retrucar que era melhor não ter ideologia nenhuma a ter uma sem pés nem cabeça.

Agora que o PT atingiu a invejável marca dos 36 anos – a madureza, se coubesse aqui uma metáfora biológica –, parece-me oportuno indagar em que, exatamente, consiste o referido conjunto de ideias. Qual é o seu conteúdo? Como evoluiu em suas três décadas e meia de existência?

Nunca é demais lembrar que nos primórdios o PT se apresentava como um partido socialista, mas se apressava a explicar que seu socialismo era sui generis. Era um socialismo em aberto, “em construção”.

Devo confessar que essa definição me deixava embatucado. Na versão soviética, o conceito de socialismo sempre me pareceu de uma clareza meridiana.

1) A divisão da sociedade em classes sociais explica-se pela apropriação privada dos meios de produção: indústrias, fazendas, bancos etc;

2) atribuindo-se a missão de representar o proletariado, o Partido Comunista (PC) toma o poder e estatiza os meios de produção, extinguindo, por conseguinte, o fundamento da divisão em classes;

3) para consolidar a tão almejada sociedade sem classes o PC mantém férreo controle sobre o poder de Estado, exercendo-o como uma “ditadura do proletariado”.

O problema, retomando o fio do argumento, era que o PT queria rejeitava tal modelo, mas não sabia o que colocar no lugar dele. Sem a clareza do conceito soviético, substituído pelo “socialismo em construção”, os petistas pareciam estar pedindo um cheque em branco. Mas, por incrível que pareça, essa absoluta vacuidade não funcionou contra, e, sim, a favor da implantação do partido. Ajudou-o a angariar apoios, principalmente entre os jovens universitários, geralmente movidos pelo desejo romântico de acreditar que sua política não é deste mundo. Que agem por ideais – por motivos “elevados” –, sem sujar as mãos no crasso mundo dos meros “interesses”.

Com o tempo e o acúmulo de experiências práticas, muitas outras interpretações e imagens surgiram, trazendo mais calor que luz à discussão que ora nos ocupa. Numa pesquisa empírica sobre os eleitores do partido, André Singer julgou discernir entre eles um forte veio “conservador”. Com este conceito em si discutível, ele apenas acrescentou outra incógnita à equação: o que temos, então, é um partido que se diz radical, inclinado ao socialismo, que se apresenta como representante putativo de uma base social conservadora.

Marilena Chaui, num episódio célebre, declarou odiar a classe média por sua “ignorância” e sua tendência ao “fascismo”. Quando externou tal ponto de vista, “seu” governo – quero dizer, o governo Dilma Rousseff – proclamava aos quatro ventos um dos maiores sucessos de sua política econômica, graças à qual mais de 50% da população brasileira ascendera à classe média. Devo concluir que a celebrada professora titular da Universidade de São Paulo – ipso facto integrante da mais alta elite brasileira – empresta seu prestígio a um governo que tem entre suas principais metas criar uma camada social ignorante e intrinsecamente fascista?

E que dizer de Luiz Inácio Lula da Silva, o símbolo e chefe inquestionável do PT? Não há como falar de Lula sem antes falar do mito Lula: o imigrante iluminado que veio para São Paulo, venceu no sindicalismo e se transformou no líder carismático fadado a conduzir as massas à tão esperada redenção. O mito, como bem sabemos, foi em grande parte criado por uma parcela da elite cultural, quero dizer, por professores universitários, artistas, escritores, clérigos e jornalistas, coadjuvados, é claro, pelo outrora rebelde sindicalismo do ABC. Esse segmento da elite cultural “construiu” (para usar o verbo da moda) e ainda hoje cultiva o mito Lula como um líder “de esquerda”. Ora, mesmo quem não se define como esquerda, mas algo leu de História e aprecia o bom debate de ideias, haverá de se sentir desconfortável ao ver o conceito de esquerda, cuja densidade histórica ninguém de bom senso haverá de negar, associado ao populismo – essa aberração endêmica que Lula personifica num grau poucas vezes igualado na América Latina.

O que de fato importa é a fala dualista do PT: a divisão maniqueísta do mundo, o povo contra a “zelite”, o “nós contra eles”, etc. Isso é um pensamento de esquerda que intelectuais lidos e viajados possam honestamente endossar? A íntima associação que o governo Lula e, depois, Lula como pessoa física estabeleceram com o chamado “grande capital financeiro” e com as maiores empreiteiras do País são mais do que suficientes para demonstrar que o “nóis contra a zelite” nunca passou de uma fulgurante mistificação.

Trata-se, na verdade, de um maniqueísmo desprovido de conteúdo, uma persistente propensão a acirrar e dividir a sociedade em termos de “nós contra eles”. Na história das ideias, quem melhor expressou essa percepção do universo político foi o jurista alemão Carl Schmitt, um precursor do nazi-fascismo, para quem a essência de toda política é a contraposição amigo x inimigo. Fariam um bom uso de seu tempo os adeptos do mito Lula e do lulopetismo se relessem seu ensaio O Conceito do Político.

*BOLÍVAR LAMOUNIER É CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É AUTOR DO LIVRO ‘TRIBUNOS, PROFETAS E SACERDOTES: INTELECTUAIS E IDEOLOGIAS NO SÉCULO 20’

O Brasil tem pressa - RONALDO CAIADO

FOLHA DE SP - 23/04

Quando se diz que a crise brasileira é política, não significa que se circunscreva aos partidos e aos poderes em litígio, o Legislativo e o Executivo. O alcance e os danos são bem maiores. Abrangem o conjunto da sociedade, com efeitos danosos sobre os mercados, o emprego, as relações exteriores –comerciais e financeiras–, o ânimo e autoestima de cada cidadão. Daí a necessidade de não protelar o seu desfecho.

O país está paralisado há meses; ninguém investe, ninguém planeja e muitas empresas não suportam o quadro de imprevisibilidade –umas fecham suas portas, outras reduzem seus quadros.

O resultado é o que vemos: índices econômicos cada vez mais deprimentes, perda de credibilidade do país, desemprego em níveis inéditos, tensão nas ruas e nos lares. O pior que pode acontecer ao país, em tais circunstâncias, é privá-lo de um retorno rápido à normalidade. E isso está acontecendo.

Ao insistir em classificar de golpe o processo constitucional de impeachment, chancelado pelo STF, a presidente e aliados não só insultam as instituições como estimulam suas milícias a manter o ambiente de anormalidade. Golpe, sim, é isso.

Recorrem a chicanas jurídicas, acionam a mídia internacional com acusações infundadas, pressionam o Senado para esticar prazos na execução do rito do processo, prometem recorrer da votação da Câmara. Tudo em busca não de solução, mas de agravar os problemas, de modo a impedir um desfecho.

Agora mesmo, a pretexto do feriado –e crise não tem feriado–, perdem-se dias preciosos para a instalação da comissão especial do Senado que examinará a decisão da Câmara. O regimento interno dispõe que o colegiado deve ser constituído no mesmo dia em que a denúncia é lida no plenário. Foi assim no impeachment de Fernando Collor; nada impediria que assim o fosse também agora. Mas não foi.

Não se trata de cercear o direito de defesa, de resto exercido à exaustão pelo advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo. Não se pede que o rito suprima a defesa. Pede-se o contrário: que a defesa não comprometa o rito. O que está claro é que o governo não aceita o processo, quer transfigurá-lo em golpe e anulá-lo.

Isso foi dito com todas as letras por deputados da base governista na votação da Câmara. Ameaçaram com "reação nas ruas", na mesma linha do que já haviam manifestado dirigentes da CUT e da Contag, em pleno Palácio do Planalto, além do próprio Lula, que ameaçou chamar o "exército do Stédile", o dirigente da organização criminosa conhecida por MST. Golpe, sim, é isso.

O adiamento pelo STF do julgamento da liminar do ministro Gilmar Mendes, que impede a nomeação de Lula à Casa Civil, é outro fator protelatório, que mantém o ex-presidente como ministro informal, assediando parlamentares.

Lula comparou sua missão a operação de "Bolsa de Valores", em que a cada momento as ações oscilam. Perdeu na Câmara e precisa de prazo para agir no Senado. Golpe é isso.

A presidente aproveita o intervalo e vai ao exterior com a intenção de denunciar o "golpe", incidindo em novos delitos contra o Estado democrático de Direito. Não há golpe quando se cumpre a Constituição.

O impeachment deriva dos crimes de responsabilidade, amplamente demonstrados no processo em exame. Dos mais de 30 pedidos que chegaram à Câmara –inclusive um da OAB–, o que foi submetido a voto se atém às pedaladas. Petistas e defensores de Dilma gostam de fugir do assunto ao dizer que não existe nenhuma delação contra a presidente. Mentem. É só ver que, se a linha fosse Pasadena, obstrução de Justiça e Lava Jato, não faltariam denúncias.


Palácio deserto - ANDRÉ GUSTAVO STUMPF

CORREIO BRAZILIENSE - 23/04

O Brasil é um país pacífico, despreocupado e alienado de seus perigos. Nos últimos dias, o poder está vazio, a presidente viajou para Nova York com o objetivo de criticar seu próprio grupo político, apontar traidores e se colocar no papel de vítima da conspiração. O vice-presidente, Michel Temer, retornou de São Paulo para o Palácio do Jaburu. Nove ministérios não têm titulares.

Um espanto. Mas o Brasil funciona. Ninguém está muito preocupado porque esse ou aquele ministro deixou de aparecer nos jornais. Eles não fazem falta. E a presidente, que nos últimos dias promoveu comícios fechados dentro do Palácio, aproveita a que possivelmente será sua última viagem internacional para desfrutar das vantagens do cargo. Avião privado, cartão de despesas sem limite, e bons jantares. O pessoal do Itamaraty em Nova York entrou em pânico.

Nos Estados Unidos, o poder não fica vago nem um único minuto. São famosas as imagens do vice-presidente Lyndon Johnson, em 1963, jurando sobre a Bíblia para assumir o cargo de presidente dos Estados Unidos dentro do avião. A seu lado estava o cadáver ainda quente de John Kennedy assassinado no Texas. Jaqueline Kennedy assistiu à cena com o vestido manchado pelo sangue do marido. O poder não pode ficar vago. Alguém, sempre, tem que estar no comando. Não há vacância. Aqui, ao contrário, a presidente Dilma se transformou numa espécie de fantasma da política.

Ela não manda, não nomeia e poucos se dispõem a cumprir suas ordens. Ao contrário, os assessores arrumam gavetas e se preparam para o desembarque que, cedo ou tarde, vai acontecer. Os argumentos do poder são frágeis. Aliás, seu governo fez uma tortuosa política externa. Nunca tentou se aproximar do governo norte-americano. Mas no momento do perigo maior, ela correu para Nova York. Normal e natural seria ir para Caracas ou La Paz. Havana já não está disponível. Barack Obama chegou lá antes sob a proteção do papa Francisco, que é argentino. Se Evo Morales pretende invadir o Brasil para garantir o poder a Dilma Rousseff, o momento é agora. O país está sem governo.

Os argumentos que a presidente esgrime não apagam a realidade. O debate sobre o crime de responsabilidade durou quatro meses. As emissoras de televisão franquearam suas câmeras para acusação e defesa. Deputados foram chamados pelo Planalto, que deu todas as suas razões. O ministro José Eduardo Cardozo explicou na comissão e no plenário usando o tempo que quis. Concedeu seguidas entrevistas. Políticos, parlamentares, cidadãos, todos sabiam do que se tratava. As famosas pedaladas cometidas pela presidente Dilma.

O Supremo Tribunal Federal definiu o rito a ser percorrido pelo processo de impeachment. Determinou que o voto fosse aberto, como queria o governo federal. A Comissão Especial se formou. Presidente e relator foram escolhidos pelo voto. Todos os membros da Comissão avaliaram o relatório com ampla disponibilidade de tempo. Foi aprovado por 58,4% dos deputados. No plenário, os deputados aprovaram o documento com 71,5% dos votos.

Dilma realizou comícios no Palácio do Planalto exibidos pelos noticiários de televisão. Os líderes dos partidos do governo pediram 10 segundos para declarar o voto. Isso ajudaria a defesa do governo. Depois de 45 horas de discursos dos deputados, a votação foi precedida pela fala dos líderes para encaminhar a votação. A imprensa teve livre acesso a todos os capítulos dessa história. O contraditório foi garantido no plenário e nas ruas. Até a Esplanada dos Ministérios foi dividida em duas áreas distintas.

As citações de pais, mães, filhos, netos e outros parentes demonstram que a lembrança de familiares não era assunto sentimental no momento do voto. Os parlamentares se obrigaram a demonstrar para sua casa, e a seu eleitor, como estavam procedendo em Brasília. Telões foram colocados nas praças em todo o país, além de televisores nos bares e restaurantes. A audiência da TV Câmara explodiu.

A maioria dos deputados não estava falando para o plenário, mas para seus eleitores em suas cidades, bairros, ruas e residências. As eleições municipais serão realizadas em outubro próximo. E o prestígio do PT está abaixo do volume morto, na expressão do ex-presidente Lula. É esse é o ponto. Protestar em Nova York não muda em nada o andamento do processo. Exceto, é claro, no caso de uma eventual invasão do território nacional pelo exército boliviano.


Os dois papéis - MIRIAM LEITÃO

O GLOBO - 23/04


A presidente, Dilma Rousseff, soube separar, na tribuna da ONU, os papéis que tem. Falou como chefe de Estado e sobre as escolhas permanentes do Brasil. Desafinou um pouco na parte em que fez alusão ao problema interno, mas nada próximo do vexame que se desenhava a partir das declarações do seu entorno político, e dela própria, nas vésperas da viagem aos Estados Unidos.

Um presidente é chefe de Estado e chefe de governo e seria intolerável que ela, da tribuna da Organização das Nações Unidas, misturasse os dois papéis e fosse tratar de brigas conjunturais nas quais sua administração está envolvida. Pesaram na acertada decisão de Dilma as reações antecipadas ao que estava sendo arquitetado pelo seu grupo, principalmente as declarações de ministros do Supremo. Não teria cabimento transformar a sede da ONU em palanque para sua versão dos fatos, como tem feito sistematicamente com a sede do governo.


Sua interpretação do episódio político vivido no Brasil é tão fora de propósito que só a sua ida já nega o que ela diz. Ninguém que esteja de fato sendo ameaçado de golpe deixa o país e entrega a Presidência a quem está, na sua visão, liderando a conspiração. Sete dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal foram indicados pelos governos Lula e Dilma. Sua versão de que está em curso a derrubada inconstitucional do governo não conversa sequer com seu discurso, no qual, na menção breve que fez à crise interna brasileira, sustentou que a democracia é pujante e que o país venceu o autoritarismo.


O Acordo de Paris foi uma conquista importante para o mundo e por isso a presidente fez bem em vencer sua hesitação inicial de estar presente junto a outros chefes de Estado. Até 48 horas antes, o Itamaraty não tinha ainda a confirmação da viagem da presidente, apesar de a casa que a receberia já ter sido preparada com antecedência. Fez bem também em deixar de lado os conselhos de que deveria usar aquele momento para dar mais um passo na sua estratégia política de enfrentar o processo de impeachment.

Ela se disse orgulhosa do trabalho do seu governo no esforço pelo Acordo de Paris. A democracia é mesmo poderosa. Ela vai empurrando os governantes para mudarem suas posturas e convicções. O governo que inicialmente era contra assumir quaisquer compromissos de redução dos gases de efeito estufa veio mudando nos últimos anos nas negociações internacionais. Internamente, o governo Dilma defendeu projetos que foram altamente lesivos ao meio ambiente, como a Usina de Belo Monte, e inverteu a tendência de queda do desmatamento. Não foram aprovadas regras favoráveis à energia fotovoltaica, a energia eólica cresceu pela insistência da indústria, e houve um aumento da presença de fósseis na matriz.

Mesmo assim, ela pôde apresentar o compromisso de reduzir 37% de redução dos gases de efeito estufa em relação a 2005. Grande parte dessa redução já foi conseguida pela diminuição do desmatamento que houve na gestão de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente. As decisões que a ex-ministra tomou inverteram a tendência do desmatamento. O ex-ministro Carlos Minc, que a sucedeu, manteve a mesma tendência. O desmatamento voltou a crescer nos últimos anos, mesmo assim está bem abaixo do nível de 2005.

Dilma falava na meta de desmatamento ilegal zero em 2030, o que é um absurdo porque, lido ao inverso, significa conviver com a ilegalidade por uma década e meia. Ontem, felizmente, a palavra ilegal saiu do discurso, e a meta passou a ser o desmatamento zero.

Os ambientalistas acham que ela poderia ter aproveitado o momento e ampliado os compromissos brasileiros. Foi o que disse o Observatório do Clima, que reúne um grupo de ONGs, em nota divulgada logo após o discurso. Nela, o Observatório lembra que neste momento de recessão há projetos que são ao mesmo tempo bons para o meio ambiente e bons para a economia. De fato, no governo Obama, o investimento em novas fontes e na economia de baixo carbono foi alavanca para sair da recessão.

O Brasil podia fazer mais, mas não fez feio no Acordo de Paris. E ontem evitou o pior. Seria uma confusão institucional e um erro de protocolo usar um acordo multilateral para expor um conflito local. Ainda mais divulgando uma visão que deprecia de forma injusta as instituições brasileiras.

Golpe visto de NY - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 23/04

Depois de ter falado com propriedade e sobriedade na cerimônia da ONU que celebrava a assinatura do acordo do clima de Paris, a presidente Dilma foi passear por Nova York e ver uma exposição de Degas no MoMA. Alguma coisa aconteceu nesse percurso, pois, ao retornar à embaixada brasileira, Dilma retomou o discurso que havia desmentido pela manhã, e se disse, em entrevista coletiva, vítima de um golpe no Brasil.

Os não brasileiros devem ter se espantado com uma presidente que, prestes a ser derrubada por um golpe em seu país, tem uma agenda tão agradável em Nova York, além de todas as mordomias inerentes ao cargo presidencial à sua disposição. E se é assim, a presidente golpeada vai retornar ao Brasil ou pedirá asilo político?

O país é o mesmo, esse que é golpista à tarde, e pela manhã é uma “pujante democracia”? Dilma dissera do púlpito da ONU que o Brasil vive um “grave momento”, mas que, “a despeito disso (...) é um grande país, com uma sociedade que soube vencer o autoritarismo e construir uma pujante democracia. Nosso povo é um povo trabalhador e com grande apreço pela liberdade. Saberá, não tenho dúvidas, impedir quaisquer retrocessos. Sou grata a todos os lideres que expressaram a mim sua solidariedade.”

Parecia uma análise sensata do “grave momento”, embora a mensagem cifrada não deixasse os interlocutores estrangeiros muito informados do que estaria se passando nesse “grande país”. É claro que Dilma, quando disse que o “povo trabalhador com grande apreço pela liberdade” impediria “quaisquer retrocessos”, falava dela mesma, e não do retrocesso que ela representa, na opinião da oposição, que hoje é amplamente majoritária no Congresso e na sociedade.

Enquanto mandava sua mensagem cifrada na ONU, e a explicitava novamente na entrevista, dois vice-líderes do governo no Senado anunciavam a disposição de aderir ao “golpe” e votar a favor da admissibilidade do processo de impeachment no Senado. Já existe, de largada, praticamente o quorum exigido para condená-la em definitivo. Hoje 51 senadores já se posicionaram a favor do impeachment nessa primeira fase, quando seriam necessários 41. E, para a condenação definitiva, há a necessidade de um quorum qualificado de 54 senadores.

Mas a presidente, flanando por Nova York com uma comitiva de 52 pessoas, insiste em afirmar que está sendo vítima de um golpe. Alertada de que incorreria em grave erro diplomático e político se usasse os poucos minutos na tribuna da ONU para falar do suposto golpe, a presidente Dilma portou-se como Chefe de Estado durante mais de sete minutos, falando sobre a intenção de seu governo de levar adiante uma política de redução da emissão de carbono.

No último minuto, não resistiu e abordou lateralmente o “golpe” de que se considera vítima, mas não ousou dizer esse nome, como se a liturgia do momento a impedisse de faltar com a verdade. Depois, em entrevista, voltou ao tom de luta política, anunciando que resistiria até o fim contra o “golpe”.

É uma atitude paradoxal que ela mesma buscou, já que havia anunciado que não iria a Nova York para não deixar o “traidor” do Temer assumir o lugar, mesmo temporariamente. Dentro dessa estratégia de denunciar o “golpe”, faria mais sentido.

Depois, num arroubo revolucionário, decidiu que denunciaria da ONU esse “golpe”, e lá se foi com uma enorme comitiva para Nova York, no avião presidencial, deixando por aqui o vice, que anunciou aos jornalistas estrangeiros estar perturbado com a acusação de traidor, mas pronto para assumir o cargo que a Constituição lhe reserva. E ficamos nós, graças à incapacidade de Dilma de agir de maneira coerente e de organizar suas ideias com clareza, expostos ao mundo como uma sociedade pungente e democrática, mas que está prestes a cometer um crime de lesa pátria destituindo-a da Presidência.

A única explicação, para raposas políticas que avaliam o cenário político, é que Dilma estaria preparando o terreno para um possível asilo político, se não para ela própria, talvez para Lula, que já teria sido oferecido pelo ex-presidente uruguaio Pepe Mujica.


Farofa, Ustra e Marighella - DEMÉTRIO MAGNOLI

FOLHA DE SP - 23/04

"Em nome da gente de bem da minha querida Passa Quatro, da memória de meu pai, da esposa que eu amo, para quem mando um beijo, e dos meus dois filhos adorados, eu voto sim!". Meus amigos discutem história, arquitetura, música, literatura, cinema e até o Big Bang. Eles ficaram deprimidos com o espetáculo do 17 de abril, na Câmara. Também achei mais constrangedor que pitoresco. Contudo, devo dizer a eles que estão errados: o domingo da farofa evidenciou, essencialmente, as virtudes de nossa democracia.

Fala-se nas "traições", nos encontros furtivos no lupanar do Royal Tulip e nas procissões ao Jaburu. Há, sem dúvida, tudo isso. Mas a evolução dos "placares do impeachment" publicados nos jornais revela escassas mudanças bruscas nas posições dos deputados. Nas duas semanas anteriores à deliberação, entre 513, apenas 11 moveram-se do "não" para o "sim" e dois fizeram o inverso. Mesmo se traição for o nome certo para isso, a taxa ficou em torno de 2,5%. Por outro lado, registraram-se algo como 132 ou 133 casos (26%) de "indecisos" que se decidiram pelo "sim" ou pelo "não". Sugiro tomar as declarações de voto como um indício razoável das motivações que conduziram à deliberação.

Haverá deputados "comprados", mas os dois contendores tinham balas equivalentes nas suas agulhas. Temer contou com a expectativa realista de poder; Lula, com edições do "Diário Oficial" que usou além da fronteira do abuso. A família, os netinhos, a "República de Curitiba", os médicos, os agricultores, os ferroviários, os maçons, os fiéis dessa ou daquela igreja e essa gente da amável cidade "que me trouxe até aqui" são um animal diferente: o mundo lá fora, com suas ansiedades, expectativas e, sobretudo, votos. Na farofa do domingão, funcionavam os motores da democracia representativa.

A Ágora grega era a praça do mercado e do debate público. Nela, trocavam-se mercadorias e ideias. No fundo, a democracia é um intercâmbio entre representados e representantes. Paga-se, na moeda do voto, por um serviço político prestado. Os deputados farofeiros que berravam ao microfone queriam ser escutados por seus eleitores. Estavam dizendo, num idioma precário, que sua bússola não era Lula nem Temer, e nem mesmo seu partido ou sua consciência, mas o desejo de quem "me trouxe até aqui". O impeachment triunfou nacionalmente com 71,5% dos votos, mas empatou no Acre e perdeu no Amapá, no Ceará e na Bahia. Faz sentido.

Uma minoria de deputados, dos dois lados, mas especialmente na trincheira governista, preferiu a picanha ao franguinho frito, envolvendo o voto num celofane "ideológico". Surgiram "nãos" em nome do Bolsa Família, dos quilombolas ou da infinita bondade de Lula, bem como "sins" derivados da liberdade ou dos "valores cristãos". Valem tanto quanto os outros, claro. Entretanto, a democracia é o governo da plebe, não dos iluminados. Nela, não seria mais legítima a obediência ao eleitor, cuja referência é a circunstância, que a lealdade perene a um Partido ou uma Ideia?

Como miasmas do núcleo "ideológico", surgiram as declarações de voto de Glauber Braga (PSOL) e Jair Bolsonaro (PSC), inteiramente consagradas ao passado. O primeiro invocou Carlos Marighella, um profeta da morte; o segundo, o covarde torturador Brilhante Ustra. No mundo inteiro, há deputados assim: representam as franjas extremas das sociedades abertas, povoadas por zumbis.

A denúncia do impeachment nasce de um fundamento jurídico. O processo, contudo, é político –só por isso, aliás, corre no Congresso, não nos tribunais. Nosso Congresso, ao contrário do que assevera o senso comum, não "reflete a nação", mas um sistema político e eleitoral torto. Mesmo assim, para o bem ou o mal, ele escuta a algazarra externa. A farofa "é um pouquinho de Brasil, iá iá". A alternativa chama-se Ustra ou Marighella: ditadura.

Dilma muda tom nos EUA para não perder guerra - DORA KRAMER

ESTADÃO - 23/04

Do ponto de vista da guerrilha, o PT acertou ao escolher o cenário internacional para aplicar o truque o “golpe”. Provocou transtorno e preocupação no campo adversário que, pego de surpresa, precisou de última hora empreender esforços para tentar desmontar uma versão que parece fazer sentido àquela imprensa estrangeira que enxerga o Brasil sob a ótica do exotismo institucional.

À luz da normalidade democrática, no entanto, a presidente Dilma Rousseff teria patrocinado um voo de bumerangue se não tivesse, na ONU, mudado o tom dos discursos dos últimos dias. As palavras mais amenas da presidente nos Estados Unidos frustraram petistas, mas a salvaram de um vexame maior. Queira o bom senso que não seja apenas um texto para estrangeiro ver.

Caso pretendam retomar a narrativa anterior, Dilma e o PT perderão. Talvez os conselheiros da presidente tenham percebido o equívoco quando levaram ministros do Supremo Tribunal Federal a se pronunciar colocando as coisas em seus devidos lugares. “Gravíssimo equívoco”, disse o decano da Corte, Celso de Mello, delimitando em duas palavras a fronteira entre a realidade e o realismo de ocasião. Na mesma linha, posicionaram-se os ministros Gilmar Mendes e Antônio Dias Toffoli.

Não fossem afobados, não estivessem tão atordoados a ponto de falar qualquer coisa na falta de ter algo consistente a dizer, os petistas poderiam ter ido dormir na quarta-feira sem essa enquadrada. Foram eles que provocaram a reação vinda do STF, fornecendo ao grupo de Michel Temer a plataforma de defesa ideal que, naquela altura, ainda não haviam encontrado.

Aliados do vice mobilizaram parlamentares e embaixadores para rebater no exterior a falácia, mas não tinham segurança de que conseguiriam êxito até que, involuntariamente e por provocação do adversário, ganharam a defesa perfeita. Isso, sem que fosse necessário recorrer a instrumentos jurídicos.

Enquanto a presidente e seus companheiros disseminavam estultices por aqui mesmo, o STF avaliava que os fatos cuidariam de desmenti-las. Mas, quando a presidente da República mostrou-se disposta a aproveitar compromisso de Estado em Nova York para transformar perante a ONU seu processo de impeachment em denúncia de quebra da legalidade, Celso de Mello houve por bem se pronunciar em prol da Constituição.

Passou em Dilma uma carraspana em regra: “Ainda que de uma perspectiva eminentemente pessoal (a presidente) veja a existência de um golpe, na verdade, há um grande e gravíssimo equívoco, porque o Congresso, por intermédio da Câmara e do STF, deixou muito claro que o procedimento destinado a apurar a responsabilidade política respeitou, até o momento, todas as fórmulas estabelecidas na Constituição”. Bingo.

Dias Toffoli foi mais fundo e específico à questão ao apontar a contradição entre a alegação da presidente da República e a atuação do governo, cuja defesa tem sido atendida em seus pedidos para se manifestar e recorrido sistematicamente ao Supremo. Bingo 2.0. Ora, se vai a um órgão que originalmente reafirmou a legalidade do processo com base na Carta em vigor, o governo desmente o mérito da própria acusação.


Isso, sim, é golpe - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 23/04

O caos político como o País enfrenta é ambiente propício para o vicejar de ideias que, embora à primeira vista pareçam democráticas, atentam contra a mesma democracia que parecem querer preservar. Em alguns casos, não é exagero qualificá-las de tentativas de golpe, ao dar como aceitável que se impeça a posse do vice-presidente Michel Temer no caso do impeachment da presidente Dilma Rousseff.

É assim que se pode interpretar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de número 20/2016, apresentada recentemente por um punhado de senadores de diversos partidos para justificar a convocação de eleições presidenciais antecipadas para outubro deste ano. Diz a PEC que “os atuais ocupantes dos cargos de presidente e vice-presidente da República encerrarão os seus mandatos em 1.º de janeiro de 2017, e os eleitos exercerão mandato de dois anos, até 1.º de janeiro de 2019”, sendo então substituídos pelo presidente e o vice eleitos em outubro de 2018.

A justificativa da PEC, como é previsível, é defender a cláusula constitucional segundo a qual “todo o poder emana do povo”. Com isso, é claro que os parlamentares esperam despertar a simpatia do eleitorado e constranger o mundo político, pois ninguém, obviamente, haverá de discordar desse princípio basilar da democracia. Então o texto segue: “E é nos momentos de crise, quando o sistema político não consegue oferecer respostas aos desafios que se apresentam, que devemos, na maior medida possível, chamar ao centro do processo decisório o povo, legítimo detentor do poder”.

Ora, o poder emanado do povo se manifesta na forma da Constituição, elaborada por representantes eleitos democraticamente e aceita por todos, e na forma da representação política, consubstanciada pelo voto direto. A Constituição prevê a posse do vice-presidente Michel Temer – eleito pelos mesmos 54 milhões de votos dados à presidente Dilma Rousseff em 2014 – em caso de impeachment da petista. Qualquer outra solução que não seja essa representará uma ruptura da ordem constitucional.

Ademais, mandatos não podem ser encurtados, conforme se depreende do artigo 60 da Constituição, que trata das cláusulas pétreas, entre as quais a periodicidade das eleições. E faz todo sentido; afinal, que segurança jurídica teria um país com tamanha instabilidade institucional e com esse nível de desrespeito ao voto?

A explicação dos senadores mal esconde o caráter autoritário da proposta. “Na presente quadra histórica, somente quem passe pelo julgamento popular nas urnas contará com a legitimidade necessária para unificar uma nação dolorosamente dividida e corrigir os rumos da economia.”

Eis aí a grande impostura. Temer, assim como os senadores que querem impedir sua posse, passou devidamente pelo “julgamento popular nas urnas”, mas, na opinião de Suas Excelências, os votos que o vice-presidente recebeu não valem nada, pois não lhe conferem a “legitimidade necessária”. Quem são esses parlamentares para decidir quem tem e quem não tem legitimidade? Apenas pesquisas de opinião bastam? Se for assim, já que estamos no terreno das inovações criativas, por que então não se dissolve também o Congresso? Afinal, seus integrantes são muito malvistos pelos brasileiros, conforme muitas pesquisas.

Mas os defensores da convocação de eleições parecem não se importar nem com a Constituição nem com o ridículo. Para eles, como disseram os senadores na PEC, já está claro que “a população não aceitará, da parte de nenhum outro ator político, a convocação para superar os problemas, mormente quando isso significar impor-lhe sacrifícios adicionais aos já experimentados”.

Resolveram então os nobres parlamentares que “o povo” já decidiu que Temer não pode tomar posse. Não é à toa que teses semelhantes a essa já encontram simpatia entre os petistas. Com o jogo praticamente perdido, a tigrada não hesitará em abraçar causas que lhe deem alguma vantagem na disputa pela opinião pública, mesmo que sejam inexequíveis, como é o caso da antecipação das eleições. Embusteiro por natureza, o lulopetismo já batizou a iniciativa de “Diretas Já”, para comparar o atual momento à luta pelo fim do regime militar. É o típico golpe publicitário que prepara terreno para o golpe de fato. E gente que se diz de bem já encampa essa tese liberticida.