terça-feira, abril 21, 2020

Será que os nascidos entre 1985 e 1995 vão marchar pela democracia liberal? - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 21/04

Falo dos millennials, claro, sobretudo daqueles que tiveram o supremo azar de nascer entre 1985 e 1995



Foi Ernest Hemingway quem popularizou a expressão “geração perdida”. O escritor falava da sua geração, que tinha vivido a Primeira Guerra Mundial.

Em 1914, a civilização cometia suicídio nas trincheiras da Europa. Os jovens que viveram, combateram e sobreviveram ao cataclismo passaram a ter uma existência espectral, sombria, à deriva. Perdida.

Pelo menos, até o momento em que ditadores diversos resgataram essas vidas com uma ilusão de sentido.

Não estamos em guerra. Qualquer comparação com as carnificinas de 1914 é absurda. Mas como negar que existe uma nova geração perdida entre nós?

Falo dos millennials, claro, sobretudo daqueles que tiveram o supremo azar de nascer entre 1985 e 1995, mais coisa, menos coisa.

Os primeiros entraram na vida profissional com a crise financeira de 2008. Ou, melhor dizendo, não entraram. Foram as primeiras vítimas.

Os segundos foram largados na arena com a pandemia de 2020. São as segundas.

Mas os desastres da economia não explicam tudo. Como lembra a revista Economist, que dedica ao assunto um artigo pungente, é a meio dos nossos 20 anos que os valores individuais se cristalizam.

A pergunta é óbvia: quais serão os valores desses fantasmagóricos millennials? Não falo apenas de “estilos de vida”, como “viver o presente como se não houvesse amanhã” ou “poupar para o futuro incerto” (estudo recente, nos Estados Unidos, informa que os millennials massacrados pela crise financeira de 2008 se dividiam entre esses dois grupos).

Falo de valores políticos, ou seja, democráticos: será que a nova geração perdida vai marchar alegremente pela democracia liberal?

É cedo para dizer. Mas um dos melhores estudos que conheço sobre a relação entre os mais jovens e a democracia (“Youth and Populist Wave”, de Roberto Foa e Yascha Mounk) permite levantar um pouco o véu.

Sim, que existe um desencanto com a democracia liberal em todos os grupos etários, vertido em abstenção eleitoral, fraca militância partidária e desconfiança nas instituições, é certo e sabido.

Mas o ponto de Foa e Mounk é que esse desencanto é bastante mais acelerado entre os jovens. Quão essencial é para eles viver em democracia?

Numa escala de um (nada essencial) a dez (totalmente essencial), 72% dos jovens americanos nascidos antes da Segunda Guerra escolhiam a nota máxima. Mais de metade dos europeus da mesma época também.

Entre os millennials, só um terço imita os antepassados. Razão para alarme?

Calma: existe uma diferença entre “apatia” e “antipatia” democráticas, avisam os autores. Uma coisa é não ter interesse pela democracia liberal; outra é desejar derrubá-la. Em 2018, data do estudo, Foa e Mounk ainda viam um cenário misto, nebuloso, onde apáticos e antipáticos se misturavam.

Nas eleições americanas de 2016, por exemplo, só metade dos eleitores com menos de 30 anos se deram ao trabalho de ir votar.

Mas na Europa, “comme d’habitude”, a antipatia era maior. Em 2017, nas eleições presidenciais francesas, metade dos millennials se dividiu entre a extrema esquerda de Jean-Luc Mélenchon e a extrema direita de Marine Le Pen. (Em 2012, os “millennials” votaram maciçamente no centro-esquerda de François Hollande.)

Eu sei: é fácil condenar esses flertes juvenis com o extremismo. E a tese da ignorância é a primeira carta a ser jogada pelos moralistas: como sempre viveram em democracia, esses meninos birrentos nem sonham como ela é preciosa. Pior: alguns olham para a ditadura com olhos benevolentes.

Ainda que isso seja verdade, também é preciso lembrar que os meninos birrentos têm vidas de privação econômica, salários baixos (ou inexistentes) e dívida permanente, ao contrário dos seus pais. Será que isso faz do parceiro um bom democrata?

A essa eu respondo: nunca fez e a história ensina. Hitler, antes de conquistar o Estado, conquistou primeiro os estudantes. Lênin, nascido há precisamente 150 anos (uma efeméride ignorada; bom sinal), fez do partido bolchevique o partido dos mais jovens.

Não sou economista. Não sei como sair da recessão brutal que a pandemia vai provocar. Muito menos como inverter o medíocre crescimento econômico que o Ocidente experimentou nas últimas décadas.

Mas sei que aquilo que as democracias liberais fizerem no futuro próximo para salvar a nova geração perdida vai determinar a sobrevivência do regime democrático no futuro médio.

As gerações perdidas, uma vez perdidas, nunca perdoaram.


João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Deputada ligada a protesto é afilhada de Moro, a quem se subordina a PF - REINALDO AZEVEDO

UOL - 21/04



Sergio Moro, padrinho de casamento de Carla Zambelli, discursa no casamento da deputada. Ela é uma das incentivadoras do evento que atenta contra a Lei de Segurança Nacional. E ele é chefe funcional da PF, que deve investigar a farra liberticidaImagem: Reprodução/Redes sociais


Por que Augusto Aras resolveu recorrer ao Supremo para pedir a abertura de investigação. Porque foi notória a participação e/ou apoio de deputados federais na promoção da patuscada golpista. Um dos destaques do, digamos, evento é a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), afilhada de casamento do ministro Sergio Moro, da Justiça, a quem está subordinada a Polícia Federal, que vai conduzir o inquérito.

"Mas a PF não é independente, Reinaldo?" Posso dizer, com certeza, que foi independente, por exemplo, nos governos Lula, Dilma e Temer, para ficar nos três últimos — basta ver os perrengues sofridos pelo trio. Em alguns casos, diga-se, houve excessos contra os respectivos presidentes. Como atuará a PF subordinada a Moro?

Vi a rapidez com que conseguiu chegar a hackers quando isso era do interesse do próprio Moro e da Lava Jato. Se exibir o mesmo padrão para identificar a bandidagem que financia a agressão sistemática ao Estado de Direito e à democracia, a coisa pode caminhar bem.

Ah, sim, daqui a pouco começa o berreiro: "Eu tenho o direito de dizer o que penso..." Ir à porta de quartel e incitar homens armados a pôr fim à democracia? Ninguém tem esse direito. É diferente de escrever um artigo afirmando que bom mesmo é a ditadura, né? Ou de financiar alguma publicação que tenha tal viés. O presidente, o não-investigado, discursou diante de faixas que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo pelos militares e a volta do AI-5, quando se torturou e matou à farta no país.

Leio na Folha:
A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) também exaltou os atos e disse que as manifestações não foram antidemocráticas. "Oras, o único motivo pelo qual o povo teve motivo de ir às ruas foi o autoritarismo de Rodrigo Maia e o desrespeito à legítima eleição de Jair Bolsonaro. Quem é o ditador afinal?"

A deputada não sabe a diferença entre "oras" e "ora", mas é o de menos. Ela não sabe mesmo é o que distingue uma ditadura de uma democracia. Qual foi o autoritarismo de Rodrigo Maia? Pôr um projeto para tramitar — no qual, inclusive, ela votou? E se a sua turma tivesse vencido? Ela ainda o consideraria um "ditador"?

Pergunto: a deputada não aceita as regras da Constituição e da Casa Legislativa a que pertence, para a qual foi eleita? ORA, então não aceita a democracia, e isso explica seu endosso ao ato. O movimento ao qual é ligada, o Nas Ruas, estava presente. A propósito: quem financia?

Já o deputado Bibo Nunes (PSL-RS) escreveu nas redes sociais:
"As pessoas querem a volta do regime militar por verem tanto desrespeito pelo presidente eleito".

Desrespeitar o presidente, no caso, é discordar dele... Sendo assim, que venha a ditadura?

Há outros parlamentares. Isso justifica, sim, que o pedido seja enviado ao Supremo. A investigação, se for bem-feita, chegará também a pessoas sem prerrogativa de foro. Uma vez concluído o inquérito, que se ofereça a denúncia. Quem tiver foro especial será processado pelo Supremo; quem não tiver, pela Justiça Federal de primeira instância.


Inconfidência - ANA CARLA ABRÃO

ESTADÃO - 21/04

Não é justo o setor público aumentar gastos com pessoal enquanto o privado corta salários e demite


Embora para muitos passe quase desapercebido, hoje é feriado nacional. Dia que se celebra a Inconfidência Mineira e que marca a data em que Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi executado. Mas estamos numa época em que feriados e dias de semana se confundem numa rotina em que horas, dias e semanas se arrastam num mesmo ritmo, sempre à espera do fim dessa pandemia, quando poderemos voltar às ruas e à normalidade.

A boa notícia é que, ao menos no Brasil e graças às medidas de contenção adotadas tempestivamente, a situação parece estar sob controle. Isso não minimiza a dor dos que perderam amigos e familiares nem tampouco alivia a pressão diária sobre os profissionais de saúde e os agentes públicos. A má notícia é que, apesar dos números controlados até aqui, nós não nos livraremos da pandemia tão cedo e ainda não estamos totalmente preparados para lidar com isso.

Embora seja imprescindível que se discutam e se planejem ações de flexibilização do isolamento, há que se entender que a transição para um novo normal precisa de bases que estão por serem construídas. Dentre elas, as medidas econômicas de médio e longo prazos, que vão além das medidas emergenciais ainda em fase de implantação, mas que podem ser estruturalmente comprometidas se não obedecermos alguns princípios. E eles passam, necessariamente pelas questões fiscais, nosso grande e maior gargalo muito antes da pandemia pousar por aqui.

Não completamente internalizada pela classe política, pelos gestores públicos, pelo setor privado e pela população, a verdade é que teremos de conviver com a pandemia ao longo dos próximos 12-18 meses. Isso significa, em linguagem política, que os pouco menos de três anos restantes dos mandatos de governadores e do presidente da República se desenham agora completamente distintos do que era previsto até dois meses atrás.

Em finanças públicas, essa distância entre o que era e o que será se traduz nos orçamentos públicos, que desde já perderam qualquer aderência com os orçamentos aprovados e, consequentemente, com os resultados e metas fiscais previamente definidos não só para 2020, mas para os próximos anos.

Linhas de despesa se inverteram, fontes de arrecadação sumiram e prioridades de política pública mudaram, adicionando complexidade aos esforços de ajuste fiscal e de retomada econômica que existiam até pouco tempo.

Em particular nos Estados, que são a linha de frente do combate à pandemia, os desafios fiscais – que já não eram pequenos – se tornaram um pesadelo que nos aguarda ali adiante. A queda no ICMS já se aproxima dos 20% nos Estados mais afetados e não vai se reverter ao longo dos próximos meses dada a elevação da inadimplência que se soma à fraqueza da atividade econômica. Nas despesas, os gastos de saúde – cuja vinculação constitucional estipula um piso de 12,5% da receita corrente líquida – já superam os 20% e não deverão ceder de forma significativa nos próximos meses. Logo, não há como não defender um socorro a Estados, que estão tendo suas contas implodidas e, ao contrário da União, têm (felizmente) severas limitações para se endividar.

Mas a premissa de salvamento tem de levar em conta dois princípios fundamentais: já havia um profundo desequilíbrio estrutural previamente à crise da covid-19 e ele se agravará caso as medidas não sejam temporárias e focalizadas no combate à pandemia. O segundo deles se refere à composição das despesas nos Estados e à dinâmica que canaliza para despesas de pessoal boa parte dos recursos livres que entram nos Tesouros locais.

Repisando os números: cerca de 70% das receitas dos Estados são consumidas por despesas de pessoal. Além disso, dada a estrutura de carreiras presente na totalidade desses entes, essas despesas crescem entre 5% e 7% ao ano, independentemente de reajustes salariais. Os motores desses aumentos são as promoções e progressões automáticas, além de incorporações de gratificações por tempo de serviço aos salários e a constante necessidade de novos concursos públicos para suprir a falta de mobilidade e os efeitos do fator T (em que a aceleração das carreiras leva todos ao topo muito rápido e desassiste o atendimento na ponta). Compensar as perdas de arrecadação dos Estados sem que haja como contrapartida a interrupção dessa dinâmica significa agravar a situação de desigualdade no Brasil e aprofundar os desequilíbrios estruturais da máquina pública. Enquanto o setor privado corta salários e demite, não é justo que o setor público continue aumentando seus gastos com pessoal e canalizando recursos para se retroalimentar.

Que este feriado atípico seja usado como uma oportunidade de resgate desses princípios por parte dos nossos parlamentares. Afinal, a inconfidência aqui não está no socorro e, sim, na falta de visão de futuro.

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN.

Sobre homens e monstros - MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

ESTADÃO - 21/04

O personagem que governa o País encontrou na pandemia a oportunidade que acalentava para produzir caos, morte, desunião, confusão.


Ninguém pode dizer que está surpreso. Em 2018 elegeu-se um presidente com um prontuário bem fornido. Como indisciplinado, arruaceiro, com dificuldades para cumprir ordens ou bater continência. Foi expulso do Exército por insubordinação. Enquanto na ativa, quis jogar bombas em quartéis e se preocupou em agitar a tropa. Contra o que? Contra tudo, em nome de ideias vagas e de simpatia explícita pela violência, pela tortura e pela ditadura.

Elegeu-se assim uma pessoa que ao longo da vida se mostrou despreparado para as batalhas mais simples. Um personagem tosco, sem qualquer refinamento intelectual, que durante 30 anos montou um bunker com os filhos e alguns fanáticos para tomar de assalto o Estado brasileiro. O quartel-general foi a Câmara dos Deputados, de onde a malha se expandiu, envolvendo políticos tradicionais, milicianos e uma chusma de desqualificados. Nenhum técnico, nenhum intelectual, mas muitos oportunistas, à espreita para descolar uma boquinha quando a hora chegasse.

2018 foi um ponto fora da curva. Há quem prefira analisá-lo como decorrência do impeachment de Dilma Rousseff, visto como um “golpe” que teria aberto a estrada para a extrema-direita. Não é uma visão majoritária, especialmente porque não leva na devida conta a decomposição política que vinha em marcha desde antes e a responsabilidade do PT na ausência de governo, que encorpou a ponto de provocar verdadeira metástase no sistema político, misturando-a com doses cavalares de corrupção e instrumentalização da máquina pública.

Naquele ano, o desencanto do eleitorado com o PT e a esquerda somou-se à incompetência dos políticos democráticos, que se deixaram consumir pela vaidade e pela arrogância, não foram capazes de articular um programa de ação e acabaram por entregar a Presidência de mão beijada para o personagem que estava ali, pronto para agitar, na hora certa, uma hora agônica, que simbolizava o fim de uma época política.

O que assistimos hoje é só um desdobramento desse quadro. O personagem continua solto, com o mal crescendo dentro dele. Piorou muito depois que chegou ao poder. Sentiu-se em condições de fazer tudo e mais um pouco. Contou com militares a seu lado, que aderiram a ele com a expectativa de conseguir controlá-lo. Organizou uma rede de robôs e influencers para espalhar suas mensagens, suas mentiras, seu veneno. Beneficiou-se da covardia de tantos políticos, da falta de clareza dos partidos, da reprodução na opinião pública de uma ideia de que a “política tradicional” era inútil, um desperdício para o País. Foi-se mantendo, ora esperneando, ora agitando os fanáticos, ora minando as instituições. De governo mesmo, não se teve notícia.

O personagem se isolou no seu novo bunker, o Palácio do Planalto. Foi perdendo a guerra que se prontificou a lutar. Manteve a pose de que estava vencendo com a ponta da caneta, demitindo e nomeando. Fazendo lives diárias com os seguidores amontoados na porta do Palácio. Agredindo e ofendendo os que ousavam discrepar ou fazer fluir a informação, como os jornalistas.

O monstro passou a dominar por completo o personagem. Encontrou na pandemia a oportunidade que acalentava para produzir caos, morte, desunião, desencontro, horror, confusão. Adubou esse habitat e fez dele a rampa de lançamento para seguir atacando a população, os políticos, o STF.

Manteve a ressonância entre os fanáticos, como era de se esperar. Eles são como o rebanho que se deixa arrastar para lá e cá. Batem bumbos, fazem carreatas, agridem e ameaçam.

O personagem foi sendo levado pelos aplausos fáceis, tirando vantagem da lentidão das instituições, que não reagem com rapidez, jogando um partido contra outro, governadores contra prefeitos, povo contra povo.

Agora que o caldo está entornando, algumas perguntas ficam soltas no ar.

Como foi possível que um País como o nosso tenha chegado a esse ponto?

Onde estão as figuras “responsáveis” que integram o governo, que nada falam, nada fazem, a tudo assistem como se se tratasse de uma comédia bufa ou de um drama de horror? Continuarão escondidos atrás da “prudência”, da “minimização de danos”, enquanto o fogo se alastra na Esplanada e invade recônditos inesperados?

Onde estão os democratas ativos e responsáveis, permanecerão adormecidos, confusos, olhando para urnas, fazendo cálculos mesquinhos, bem nessa hora em que boa parte do destino nacional pode estar sendo definida? Onde estão os grandes da República, os chefes das instituições, os defensores das melhores tradições?

E os eleitores que sufragaram o personagem em 2018, continuarão a vê-lo como uma solução, como o “mal menor”, agora que o monstro tomou conta daquele corpo e daquela mente de modo irremediável?

Marco Aurélio Nogueira
Cientista político e professor da Universidade Estadual Paulista/Une
sp

O jogador - LUIZ CARLOS AZEDO

CORREIO BRAZILIENSE - 21/04

“Seu gesto pode ser interpretado como crime de responsabilidade, se houver ligações entre os organizadores do ato de domingo e o chamado ‘gabinete do ódio’”



O pior dos mundos nesta pandemia de coronavírus no Brasil seria uma crise institucional, num momento em que as instituições políticas precisam convergir para combater a doença e mitigar os seus efeitos na economia. Em circunstâncias normais, o maior interessado nesse esforço coordenado seria, sem dúvida, o presidente da República, mas acontece que Jair Bolsonaro faz tudo ao contrário. Como no domingo, quando foi ao ato de extrema-direita em frente ao quartel-general do Exército para apoiar manifestantes que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal (STF) e uma intervenção militar.

É difícil compreender seu comportamento, que foge à racionalidade, num momento tão dramático da vida nacional. O gesto de domingo, como não poderia deixar de ser, aprofundou o isolamento político de Bolsonaro. Foi repudiado pelos ministros do Supremo, pelos líderes da Câmara e do Senado, por instituições da sociedade civil e provocou um pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, para que o STF apure as responsabilidades pela organização do ato, que atenta contra a democracia, nos termos da Lei de Segurança Nacional. Bolsonaro foi poupado pelo Ministério Público Federal, mas o presidente do Cidadania, Roberto Freire, e o líder do partido na Câmara, deputado Arnaldo Jardim (SP), se encarregaram de requerer à PGR que investigue também os que participaram do ato.

Ontem, ao sair do Palácio da Alvorada, Bolsonaro minimizou os acontecimentos de domingo. Disse que em nenhum momento endossou os pedidos de fechamento dos demais poderes e de intervenção militar. Ironizou: “O pessoal geralmente conspira para chegar ao poder. Eu já estou no poder. Eu já sou presidente da República (…). Eu estou conspirando contra quem, meu Deus do céu? Falta um pouco de inteligência para aqueles que me acusam de ser ditatorial. O que eu tomei de providência contra a imprensa? Contra a liberdade de expressão?”

Mas Bolsonaro revelou preocupação com o que aconteceu, quando nada porque sabe que seu gesto pode ser interpretado como crime de responsabilidade, sobretudo se houver ligações efetivas entre os organizadores do ato e o chamado “gabinete do ódio”, o grupo ideológico que o assessora na Presidência. “Em todo e qualquer movimento tem infiltrado, tem gente que tem a sua liberdade de expressão. Respeite a liberdade de expressão. Pegue o meu discurso, dá dois minutos, não falei nada contra qualquer outro poder, muito pelo contrário. Queremos voltar ao trabalho, o povo quer isso. Estavam lá saudando o Exército brasileiro. É isso, mais nada. Fora isso, é invencionice, é tentativa de incendiar uma nação que ainda está dentro da normalidade”, disse Bolsonaro, em defesa prévia.

Bolsonaro estimula uma militância fanatizada, que defende claramente um golpe de Estado. Militarizou seu governo a tal ponto que hoje existem mais generais na Esplanada do que em todos os governos do regime militar. Toda vez que tem um problema e não consegue resolver, apela aos ex-colegas de farda. Seu problema não é chegar ao poder, é a ambição de ter poderes absolutos, pois não consegue administrar a institucionalidade da própria Presidência, em situações emblemáticas, como a de domingo, desrespeitando a liturgia do cargo que ocupa. Não digere o sistema de pesos e contrapesos que normatiza as relações com o Congresso e o STF. No fundo, como um Luís XIV, tem uma visão absolutista da Presidência: “Eu sou realmente a Constituição”.

Isolamento

Enquanto isso, a epidemia avança. No balanço do Ministério da Saúde divulgado ontem, já são 2.575 mortes (no domingo, eram 2.462, aumento de 5,6%, ou seja, 113 óbitos a mais), num universo de grande subnotificação: apenas 40.581 confirmados (no domingo, eram 38.654, aumento de 5%, sendo a taxa de letalidade de 6,3% de letalidade). São Paulo tem 1.037 mortes e 14.580 casos confirmados. Bolsonaro minimiza a progressão da epidemia, diz que 70% da população será contaminada e “não adianta querer correr disso”. Lida com a morte como aquele general que manda seus soldados resistir apenas para ganhar tempo para a própria retirada, sabendo que o front está perdido e eles voltarão para casa dentro de um saco plástico: “Aproximadamente 70% da população vai ser infectada. Não adianta querer correr disso. É uma verdade. Estão com medo da verdade?”, afirmou.

Bolsonaro dobra a aposta de altíssimo risco: “Espero que esta seja a última semana desta quarentena, desta maneira de combater o vírus, todo mundo em casa. A massa não tem como ficar em casa, porque a geladeira está vazia”, disse. Assim, estimula a população a desrespeitar a quarentena, culpando governadores e prefeitos pela retração econômica e pelo desemprego, embora a situação esteja se agravando no sistema público de saúde, como em Manaus e Fortaleza, à beira do colapso. Seu novo ministro da Saúde, Nelson Teich, foi eclipsado. Não pode abrir a boca pra falar sobre o aconteceu no domingo. Não pode criticar Bolsonaro nem endossar suas ideias equivocadas.


É ético torcer para que Bolsonaro adoeça? - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 21/04

Ele continua a atrapalhar o trabalho das autoridades sanitárias


Ele fez de novo. Em plena pandemia, participou de um protesto com pauta golpista e provocou aglomeração. Ao final de seu discurso, apareceu uma tossezinha suspeita. A pergunta que se impõe é se é ético torcer para que Bolsonaro contraia uma forma grave de Covid-19 e deixe de atrapalhar o trabalho das autoridades sanitárias.

A resposta depende do tipo de ética que você abraça. Para o consequencialista, que valora as ações pelos resultados que elas produzem, até a morte de um líder inepto pode ser classificada como positiva, se ela, por exemplo, acarretar mais vidas poupadas do que perdidas. O bonito das éticas consequencialistas é que elas são perfeitamente igualitárias. A vida do presidente vale o mesmo que a de um mendigo viciado em crack.

Assim, aqueles que estão convencidos de que a atitude de Bolsonaro, ao fragilizar o isolamento, resultará em mais doença e mais mortes estão filosoficamente legitimados a torcer para que ele experimente o seu “resfriadinho”.

Embora eu creia que o consequencialismo é mais consistente do que os sistemas éticos rivais, é fato que ele não é inteiramente satisfatório. Poucos julgarão ética a conduta do médico que sacrifica um paciente saudável para, transplantando seus órgãos, salvar cinco vidas.

E isso abre o flanco para éticas deontológicas, que são aquelas que definem princípios fundamentais, como os de não matar ou não fazer nem desejar mal ao próximo, e os convertem em regras fortes. Nessa matriz, acalentar mesmo secretamente um pensamento de morte envolvendo o presidente já cheira a pecado.

Como disse, meus instintos são consequencialistas, mas tenho um lado, que podemos chamar de humanista ou até de carola, que faz com que me repugne a ideia de torcer pelo sofrimento ou a morte de alguém, por mais desprezível que seja essa pessoa. É claro que, se Bolsonaro insistir, meu lado nerd acabará dobrando o humanista.

Hélio Schwartsman é jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Bolsonaro tem sido um fator de desestabilização – EDITORIAL O GLOBO

O Globo - 21/04

Em suas idas e vindas, presidente ataca as instituições e recua, mas com isso aumenta as tensões no país


Pode ser conveniente ao político Jair Bolsonaro avançar e recuar no seu radicalismo, mas não atende às exigências do cargo de presidente da República. A fórmula do ex-capitão de aumentar a carga ideológica do seu discurso de extrema direita para conclamar as claques que o apoiam quando se sente fragilizado, para depois voltar atrás, aumenta tensões já criadas pela maior crise da história ainda em sua fase inicial, também degrada a atmosfera política e atrapalha o próprio governo em ações para reduzir o número de mortes na epidemia da Covid-19 e conter ao máximo os estragos que a recessão já provoca no emprego e na área social. Bolsonaro presta um desserviço à nação e a ele.

Por cálculo político, preocupado apenas com os efeitos na economia causados pelo isolamento social — a única forma eficaz de se conter a expansão do vírus Sars-CoV-2 e dar tempo para o sistema de saúde conseguir salvar vidas —, o presidente deseja acelerar a volta das atividades econômicas a qualquer preço, e nisso tem o apoio das falanges bolsonaristas mais radicais que veem no Congresso e no Supremo dois obstáculos a seu intento. Têm razão. Para evitar decisões alucinadas do Executivo é que também existem o Legislativo e o Poder Judiciário.

Assim, as carreatas convocadas pelas redes bolsonaristas, alegadamente em favor da “volta ao trabalho”, para grandes cidades no domingo, transformaram-se em atos contrários à Constituição — favoráveis a um golpe militar, à reedição do funesto AI-5, ao fechamento do Congresso e do Supremo. O resto, a História ensina, vem por força da lei da gravidade: prisões, violência sem freios etc. E Bolsonaro, em Brasília, aderiu a este ato de agressão à Carta, em frente ao Quartel-General do Exército, o Forte Apache.

Cumprindo roteiro conhecido, baixou ontem o tom na sua rotineira confraternização com seguidores, à saída do Alvorada: “No que depender do presidente Jair Bolsonaro, democracia e liberdade acima de tudo”. Responsabilizou “infiltrados” pelas faixas pedindo a volta do AI-5, e ainda incorporou a Carta: “Eu sou realmente a Constituição”. Não é. Está sob ela.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao Supremo abertura de inquérito para apurar responsabilidades na organização das manifestações de domingo, “atos contra o regime da democracia participativa brasileira”. Aras não mencionou o presidente, mas identificou “deputados federais” — também haveria empresários — por trás dos atos, daí haver acionado o Supremo. É preciso que, por este inquérito, fique demonstrado que a Constituição garante um regime de liberdades, mas também oferece recursos para a democracia se defender.

Já em nota divulgada ontem no final da tarde, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, registrou que as Forças Armadas são “sempre obedientes à Constituição”, e que elas se encontram em adaptação para combater o inimigo comum a todos, “o coronavírus e suas consequências sociais”. Precisa ser interpretada corretamente por bolsonaristas.

Chance zero? - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 21/04

Além de recados, cúpula militar tem de manifestar claramente repúdio a golpes e AI-5


Enquanto Jair Bolsonaro fazia discurso inflamado em manifestação não só contra o Supremo e o Congresso, mas a favor de um golpe militar e a volta do famigerado AI-5, um de seus filhos divulgava o vídeo de uma fila de sujeitos praticando tiro, alguns metidos em camisetas pretas com o rosto do presidente e todos gritando: Bolsonaro!

No mesmo domingo, o presidente e seus três filhos mais velhos, um senador, um deputado federal e um vereador licenciado, postavam a foto do café da manhã familiar com uma curiosidade: o quadro na parede não era de uma natureza morta ou da tradicional Santa Ceia, tão comuns nos lares brasileiros, mas de uma metralhadora AK-47, deveras inspiradora.

No dia seguinte, circulava um vídeo em que várias dezenas de soldados corriam num calçadão da zona sul do Rio e no fim se aglomeravam, ainda na praia, à luz do dia, gritando “Bolsonaro” e “mito”. Fariam isso sem orientação de superiores? Esses superiores pediram autorização ao Comando Militar do Leste? O comandante consultou o Comando do Exército em Brasília? Afinal, pode?

O que mais impressionou civis e até militares, porém, foi o local onde Bolsonaro discursou para militantes pró-golpe e AI-5: o Setor Militar Urbano, com o Quartel-General do Exército ao fundo. Um oficial pergunta: e se os políticos decidirem fazer protesto ali? Eu acrescento: e se a CUT e o MST também?

Aboletado na carroceria de uma caminhonete, vestido e agindo como vereador em campanha para a prefeitura de Cabrobó e liderando um ato ostensivamente antidemocrático, Jair Bolsonaro esquecia-se de que, além de presidente da República, eleito por 57 milhões de brasileiros, ele é também comandante em chefe das Forças Armadas - ambas as funções exigem decoro e compostura.

O episódio - que estressou o domingo e que o ministro do STF Luís Roberto Barroso chamou de “assustador” - deixou uma dúvida perturbadora: os comandos militares compactuam com pedidos de golpe e AI-5? Acham normal o uso do SMU e do QG - ou seja, da imagem das FFAA - para atos golpistas? Na primeira reação, generais do governo demonstraram “desconforto”, depois falaram em “saia-justa” e no fim do dia passaram a admitir “irritação”, enquanto discutiam como “reduzir danos”.

E os danos são muitos. As Forças Armadas, instituições de Estado, não de governo, durante décadas mantiveram-se profissionais e imunes à política e a governos que vêm e vão. Consolidaram-se assim no primeiro lugar de prestígio junto à sociedade, sem concorrentes. Vão jogar tudo fora em favor de um presidente, e logo de um que só faz o que lhe dá na veneta?

Há, ainda, a questão da hierarquia. Bolsonaro expõe Exército, Marinha e Aeronáutica a um velho fantasma: as divisões internas. Como já me ensinava o general Ernesto Geisel, quando a política entra por uma porta nos quartéis, a hierarquia se vai pela outra. Tendo como fato que a cúpula militar realmente considerou “péssimo” o teatro antidemocrático de Bolsonaro no domingo, a pergunta seguinte é: e as bases, os capitães, majores, sargentos - e suas famílias - acharam o quê?

O vice Hamilton Mourão já disse marotamente que “está tudo sob controle, só não sabe de quem” e nós, meros mortais, ficamos sem entender nada. É uma grande enrascada e remete à entrevista do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, em dezembro de 2016, em que ele me relatou como respondia aos civis “tresloucados” que vinham bater à sua porta pedindo intervenção militar: “Chance zero!” Em nota, nesta segunda-feira, o Ministério da Defesa foi mais suave, mas disse que as FFAA trabalham pela “paz e a estabilidade”, “sempre obedientes à Constituição”. Logo, contra o golpe. É o que se espera dos líderes militares, diante não apenas da Nação, mas da história.

Nota da Defesa é constrangedoramente necessária - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 21/04

Jair Bolsonaro transformou o flerte de sua Presidência com o golpismo num processo de corrosão da imagem do Brasil. Cada vez que o capitão dá uma de cachorro louco, confraternizando com apoiadores golpistas, envergonha o país no estrangeiro e constrange a cúpula militar.

As Forças Armadas trabalham para "manter a paz e a estabilidade do país, sempre obedientes à Constituição Federal", sentiu-se obrigado a esclarecer o general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, numa nota oficial. A manifestação foi constrangedoramente imprescindível.

A nota é necessária porque o silêncio dos militares poderia soar como um aval para a presença de Bolsonaro na manifestação de domingo em defesa da intervenção militar, da reedição do AI-5 e do fechamento do Congresso e do Supremo. O texto constrange porque todos sabem que ele não deveria existir.

Assim como o perfume não precisaria ser inventado se não existisse o fedor, também a nota do Ministério da Defesa não teria sido redigida se Bolsonaro exibisse um comportamento compatível com o que se espera do chefe de uma nação democrática.

Sem mencionar Bolsonaro, o general Azevedo e Silva sinalizou o que o presidente deveria estar fazendo em vez de desperdiçar o seu tempo em manifestações antidemocráticas. Fez isso ao informar quais são, no momento, as prioridades das Forças Armadas.

O general escreveu que a crise do coronavírus requer o "entendimento e esforço de todos os brasileiros." Realçou que a tropa se equipa para combater o vírus, "inimigo comum a todos", e suas "consequências sociais".

O Brasil não teria sido pendurado de ponta-cabeça nas manchetes da imprensa internacional se Bolsonaro cultivasse os mesmos objetivos das Forças Armadas. O mal de um presidente declara "nós não queremos negociar nada" no meio de apoiadores hidrófobos e de miolo mole é o pessoal que observa de longe não conseguir distinguir quem é quem.

O preço da pusilanimidade - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 21/04

Diante das bravatas bolsonaristas, pode-se riscar uma linha no chão e dizer que, deste ponto em diante, é o terreno do intolerável


O presidente Jair Bolsonaro assumiu de vez que é candidato a caudilho. Em comício para seus simpatizantes, de caráter escandalosamente golpista, anunciou: “Nós não queremos negociar nada. Queremos é ação pelo Brasil. Chega da velha política. Acabou a época da patifaria. Agora é o povo no poder. Lutem com o seu presidente”.

Não é possível dizer que Bolsonaro desta vez passou dos limites, pois, a rigor, ele já os havia ultrapassado quando, ainda militar, se insubordinou ou então, quando deputado, violentou o decoro parlamentar seguidas vezes. No primeiro caso, recebeu uma punição branda; no segundo, nem isso. Ou seja, a pusilanimidade das instituições ao lidar com Bolsonaro deu-lhe a segurança de que, para ele, não há limites, salvo os ditados por seu projeto autoritário de poder.

É reconfortante, no entanto, observar que, desta vez, integrantes de todas as instituições da República se manifestaram com firmeza contra mais essa afronta de Bolsonaro e de seus seguidores à democracia. Até mesmo o procurador-geral da República, Augusto Aras, que vinha se omitindo ante a escalada bolsonarista, anunciou a abertura de um inquérito para investigar “fatos em tese delituosos envolvendo a organização de atos contra o regime da democracia representativa brasileira”. O presidente não está entre os investigados, porque não há indícios de que tenha ajudado a organizar o comício, mas o simples fato de o procurador Aras ter qualificado como atentatório à democracia um ato que teve como sua estrela o presidente da República deveria ser suficiente para embaraçar Bolsonaro.

Mas será difícil constranger o presidente, cuja desconsideração pela opinião alheia, salvo quando é a dos filhos ou dos bajuladores que o cercam, é notória. Diante da repercussão negativa de seu discurso autoritário, o presidente, como sempre, tratou de minimizar o fato, insultando a inteligência de todos. No dia seguinte à afronta, Bolsonaro negou que tivesse atacado os demais Poderes e disse que, “no que depender do presidente Jair Bolsonaro, democracia e liberdade acima de tudo”.

Felizmente, nem a democracia nem a liberdade dependem de Jair Bolsonaro. Dependem, exclusivamente, do cumprimento da Constituição. Num arroubo à Luís XIV, Bolsonaro chegou a dizer: “Eu sou realmente a Constituição”. Não é. A Constituição é a materialização do pacto democrático, aquele ao qual todos se submetem, do mais humilde cidadão ao presidente da República.

Mas Bolsonaro, como sempre fez em sua trajetória política, está testando a disposição da sociedade de defender a ordem democrática por ele sistematicamente ameaçada. Pode-se quedar inerte diante das bravatas bolsonaristas, permitindo que se instaure um clima golpista, mas também se pode riscar uma linha no chão e dizer que, deste ponto em diante, é o terreno do intolerável.

Por isso, espera-se que o até agora silente ministro da Justiça, Sérgio Moro, faça jus à sua fama de inflexível cruzado da moralidade e da lei no exercício do serviço público e manifeste pelo menos desconforto diante do comportamento acintosamente impróprio de Bolsonaro na chefia da Nação. O mesmo se espera dos tantos ministros do presidente, militares reformados e da ativa, tidos como bedéis do governo, responsáveis por conter os muitos excessos de Bolsonaro. Até agora, contudo, predomina o silêncio - tão mais embaraçoso quando se recorda que o ato golpista protagonizado pelo presidente Bolsonaro, que é o comandante em chefe das Forças Armadas, ocorreu no Dia do Exército e diante do QG do Exército.

Consta que a afronta bolsonarista gerou mal-estar nas Forças Armadas, que não querem se ver vinculadas a movimentos que pedem a volta da ditadura militar e de medidas de exceção, como o famigerado AI-5, em franco desafio à Constituição. Para os generais, a guerra a ser vencida hoje não é contra os inimigos que Bolsonaro inventa todos os dias, mas contra o coronavírus.

Mas a guerra de Bolsonaro, já está claro, é contra as instituições da República e contra a maioria absoluta dos brasileiros, afrontados por um presidente que só se importa com o poder. Quem estiver na trincheira com Bolsonaro, seja no governo, seja em movimentos golpistas, vai se desmoralizar junto com ele.

Os cúmplices - RANIER BRAGON

FOLHA DE SP - 21/04

É preciso parar de tratar Bolsonaro como se ele fosse apenas um moleque travesso


Perplexos, políticos não sabem como lidar com Jair Bolsonaro. Apelo ao bom senso, de nunca adiantou. Impeachment ainda não tem força para decolar, avaliam. Ignorá-lo? Mandetta está aí para provar que não dá. Sobram as notas de repúdio que, feitas por quem parece estar pisando em ovos, já merecem todas elas uma nota de repúdio.

Como agir? Ficar como os engravatados da brilhante charge de João Montanaro, a refletir sobre o limite do tolerável até que nenhum mais haja?

Um bom começo poderia ser parar de tratar o sr. Jair Messias Bolsonaro, 65 anos, cinco filhos, mais de 30 anos de velha política nas costas, como um mero moleque travesso.

O método é o mesmo. Avanço, choque, recuo tático. Num dia, ele trepa numa caçamba para estimular ato pró-ditadura de um bando de delinquentes idiotizados. No outro, dá uma amenizada, por assim dizer.

Ufa, suspiram as polianas. Suspiram também seres rastejantes no centrão, suspira Paulo Guedes —essa pessoa que parece habitar a Disneylândia—, suspiram os militares, que emprestam honorabilidade ao moleque travesso. Suspira até Sergio Moro, que se escondeu durante todo o domingo atrás do Fuminho, o traficante, e ainda levou bronca do filhote do presidente —Carlos Bolsonaro cobrou defesa pública do pai sem nominar de quem cobrava, mas tirem suas conclusões.

E nessa toada os limites vão caindo feito dominó. Notem. Há alguns meses, a pornochanchada golpista seria inaceitável. O que será aceitável daqui a alguns meses?

Inglaterra e França não tinham nem de longe certeza de vitória quando decidiram, enfim, delimitar a Hitler o "daqui você não passa". Agiram como adultos, não moleques. A França caiu num primeiro momento, mas a história é sabida. Para quem acha clichê a comparação, penso não ser demais tirar lições de uma catástrofe que custou a vida de mais de 50 milhões de pessoas.

Não defendo que ninguém saque a pistola ao próximo limite rompido. Apenas que faça valer sua dignidade.

Ranier Bragon
Repórter especial em Brasília, está na Folha desde 1998. Foi correspondente em Belo Horizonte e São Luís e editor-adjunto de Poder.

Os novos sócios de Bolsonaro - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 21/04

Ele atravessou os últimos 15 dias em acertos com líderes do Centrão

O negro gato desfilou diante das lentes do fotógrafo Orlando Brito e buscou abrigo do sol de domingo embaixo do automóvel presidencial, estacionado numa quadra da Asa Norte, em Brasília. No apartamento em frente, Jair Bolsonaro e filhos degustavam milho com ketchup, ao lado de uma metralhadora na parede.

O negro gato fugiu antes de o presidente subir no carro preto e seguir para o QG do Exército. Ativistas o aguardavam, como vivandeiras mascaradas, temerosas da morte pelo vírus, invisível e democrático na contaminação. Apelavam para uma ditadura liderada, claro, por Bolsonaro.

Na cena havia algo fora da ordem institucional. O comandante em chefe das Forças Armadas usava a portaria do QG do Exército para um comício planejado, com coro contra o “bando de ladrões no STF, Senado e Câmara”. Presidia um ato de potencial desqualificação do poder militar, inédito também porque jamais se permitiu comício no portão do Forte Apache, como é conhecido o Setor Militar de Brasília. Bolsonaro sorria e, frequentemente, tossia.

Foi para casa, vestiu camiseta amarela, bermuda e chinelos pretos e sentou-se para assistir a críticas de Roberto Jefferson, seu antigo líder no PTB, ao deputado Rodrigo Maia (DEM). Outro jogo combinado.

Bolsonaro quer eleger o sucessor de Maia na Câmara. Sonha com novos sócios no bloco de centro direita, o Centrão, para dominar a pauta legislativa na campanha eleitoral em crise econômica, marcada pelo número de vítimas da “gripezinha”.

Em público diz que não pretende “negociar nada. Mas atravessou os últimos 15 dias em acertos com líderes do Centrão, entre eles Roberto Jefferson (PTB), Valdemar Costa Neto (Progressistas, antigo PP), Gilberto Kassab (PSD) e Marcos Pereira (Republicano/Igreja Universal). Alguns são personagens do mensalão e da corrupção na Petrobras. Todos, como Bolsonaro, tentam garantir a sobrevivência política na crise pós-coronavírus, se possível culpando outros pela imprevidência — o número de mortos já é o dobro da semana passada.


Golpista que mia - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 21/04

Presidente apoia ato antidemocrático; Carta e instituições saberão silenciá-lo



O presidente Jair Bolsonaro, em discurso para apoiadores no domingo (19) - Sergio Lima/AFP


Jair Bolsonaro agrediu a Constituição quando discursou no domingo (19) em favor à manifestação que defendia a volta da ditadura. Não foi a primeira vez em que o presidente se reuniu com o “gabinete do ódio” para escancarar na sequência suas aptidões ditatoriais.

À diferença do que faz parecer Bolsonaro em sua retórica de apoio ao ato golpista, não é a velha política ou qualquer outra quimera do gênero que o impede de governar.

Sua administração é obstruída, desde o início, pela pequenez dos objetivos de um mandatário cujo horizonte mental não vai além de multas de trânsito, porte de armas e bate-bocas em redes sociais.

O que ele diz querer neste momento —e serviu de pretexto para a algazarra dos celerados de domingo— constitui tão somente seu desejo patético de subverter a democracia no Brasil.

Concordam as autoridades sanitárias, praticamente sem dissenso, que não chegou a hora de relaxar as medidas de isolamento social imprescindíveis para evitar uma sobrecarga do sistema hospitalar.

O golpista da carreata não tem seus arroubos contidos apenas por governadores e prefeitos, Congresso e Supremo Tribunal Federal. É desobedecido também por seus subordinados, como o ministro da Saúde, o novo ou o anterior, e os generais palacianos, que com espírito público fazem o possível para enfrentar a calamidade.

Bolsonaro investe contra alvos fáceis, dados os conhecidos e arraigados vícios do sistema político, do Legislativo e do Judiciário brasileiros. A alternativa que sugere, agora com saliência inédita, é personalista, populista e autoritária.

Seu discurso encontra eco apenas em uma minoria fanática que pode clamar por AI-5 como mera palavra de ordem, sem noção de seu tétrico significado.

Com todas as suas imperfeições, a política e os contrapesos da democracia vão dando as melhores respostas à crise. Por interesse eleitoral ou não, governadores e prefeitos trataram de proteger seus cidadãos; a mesma motivação deve guiá-los no abandono paulatino dos regimes de quarentena.

Não sem falhas, excessos e oportunismos, deputados e senadores formularam as providências mais importantes até aqui para mitigar o impacto da inevitável recessão sobre o emprego, a renda e o caixa dos entes federativos. Enquanto isso, Bolsonaro vociferava contra inimigos imaginários.

Que as instituições —e a Constituição— façam do rugido golpista um miado sem consequências.