GAZETA DO POVO - PR 27/06
O presidente Jair Bolsonaro resmungou, à sua moda: “Querem me transformar numa Rainha da Inglaterra”. Não deixa de ser curioso o insinuado desapreço pelo regime e pela liturgia dos ingleses, considerando que parte significativa do eleitorado se declara conservadora e até monarquista. Aliás, nosso príncipe liberal (oximoro só possível em paragens como o Brasil...) chegou a ser cotado para a vice-presidência da República. Foi preterido ou preteriu.
Mas a verdade é que presidente gosta mesmo é de presidir. Bolsonaro, como tantos outros antes dele, adoraria pousar a bic no papel e, se possível, governar por decreto. De decreto em decreto se chega lá. Tal é o sonho de muitos presidentes e de todos os ditadores. A ditadura é simples: eu mando, vocês obedecem. A democracia é complexa, daí as dificuldades. Dificuldades que fazem bem.
Canetas e canetadas à parte, a insatisfação que ele confessa tem fundamento, faz algum sentido e, por incrível que pareça, não deixa de ser um efeito colateral positivo de certa disposição negativa. Ou, para ser mais exato, de certa disposição impositiva de sua parte. Atirou no que viu, acertou no que não viu.
Durante a campanha eleitoral, uma das promessas era a de que não negociaria cargos, não lotearia o governo, não trocaria ministérios por apoio. Em parte, por bons motivos (muitos governos trocaram vagas por votos), em parte, por equívoco (ceder ministérios a aliados competentes não é corrupção). O então candidato jurou de mãos postas e pés juntos que com ele não, violão, com ele nunca, Centrão, com ele a conversa seria outra.
Foi mesmo. Está sendo.
Eleito, tratou de escolher a dedo (às vezes, dedo podre...) seus subordinados. Algumas escolhas boas e técnicas; outras, ruins e ideológicas; outras ainda por lealdade pessoal. O resultado é o que temos aí, já com modificações importantes em algumas áreas. Bolsonaro não negociou, nem permitiu que partidos e coligações tomassem conta de seu governo. Em tese, muito bem.
Na prática, nem tanto. O Messias acreditava piamente que submeteria o Congresso e o Judiciário ao peso de sua bic. Faria da bic um martelo de Thor. E todos, em fila indiana, aguardariam à porta do gabinete, esmolariam cinco minutos de atenção. Lembro-me de quando ele disse isso, quase palavra por palavra, à jornalista Miriam Leitão: “Vou ser presidente, Miriam, eles vão ter que vir falar comigo”.
Faltou combinar com eles.
Que o governo não tenha sido colonizado por aliados de ocasião é uma boa novidade. Não estou sendo irônico. Goste-se ou não das escolhas, quem aceitou, aceitou porque quis e se alinhou ao discurso do governo. Isso é uma vantagem: temos um perfil mais coeso e sabemos o que há para ser elogiado, criticado, cobrado, lembrado, rido, gozado. Sei de quem posso fazer piada. Decorei os nomes.
No entanto, Bolsonaro foi ingênuo ao acreditar que então governaria sem freios nem contrapesos, sem peias nem meias palavras. Como se tudo fosse acontecer da seguinte maneira: como não negociei com ninguém antes, não precisarei negociar com ninguém depois. Eu assino, assinado estará.
Enganou-se. Pois esse engano nos lembrou de uma esquecida novidade: o Congresso tem um papel a cumprir.
Ora, o regime presidencialista não pressupõe um Congresso vendido, por óbvio, mas também não admite um Congresso tímido, submisso ou caudatário das vontades do Executivo. Só mesmo analfabetos políticos e falsificadores da democracia podem acusar o Congresso de, por definição, atrapalhar o país, quando faz o que dele institucionalmente se espera. O Congresso está lá para governar, tanto quanto o presidente. Se o Congresso é ruim, é ruim; quem o elegeu foi o povo. Se o presidente é ruim, é ruim; quem o elegeu foi o mesmo povo. Elejam-se melhores congressistas e melhor presidente.
Por isso mesmo que não, o que temos aí posto e discutido não é “parlamentarismo branco”, como alguns assessores de imprensa (contratados ou vocacionados) acusam. Trata-se do presidencialismo que o presidente quis, prometeu e entregou: sem troca de cargos, sem comércio de votos, sem toma-lá-dá-cá. Cada um faz a sua parte. Ele só se esqueceu de que o Congresso também tinha a sua parte a fazer.
Assim, cutucado por Bolsonaro, provocado pelo novo jeito de montar o governo, o que o Congresso tem feito é o que sempre deveria ter sido feito, desde a redemocratização: assumir-se como casa do povo, onde estão eleitos representantes de interesses que têm de ser representados – minorias e maiorias, bancadas da bala e da Bíblia, dos gays e dos negros, dos liberais e dos progressistas. Os representantes não estão lá para representar as vontades do presidente, mas as de seus eleitores. Isso é a exata definição da coisa. Tratar as disputas parlamentares como se fossem antidemocráticas é confessar ignorância profunda do vocabulário e da sintaxe da democracia.
Portanto, quando se diz, em tom de denúncia, com ares de escândalo, que o Congresso tem uma “pauta”, que o Congresso tem uma “agenda”, o que fica subentendido é que o Congresso deveria ser aquele de antigamente, sem pauta nem agenda, cúmplice de presidentes que governavam por decreto e negociatas. Não, obrigado. Prefiro este modelo, reinaugurado por Bolsonaro meio sem querer, em que o Executivo não compra apoio de parlamentares. E parlamentares não vendem apoio ao Executivo. É assim mesmo que se faz. Que negociem, que lidem com o desacordo, que saibam entrar em acordo quando a pauta comum interessar ao bem comum.
Se não for assim, qual será a alternativa? O presidencialismo de medida provisória e decreto-lei? O presidencialismo que duplica o número de ministros da Suprema Corte e fecha o Congresso? O presidencialismo que inviabiliza a oposição? Ou o presidencialismo petista, que privatiza o Congresso e o divide conforme os interesses do Executivo (e dos sócios ocultos do Executivo)? Se, afinal de contas, o Congresso não puder assumir que é um dos protagonistas do governo, que é também governo, o que o Executivo, por sua vez, assumirá: que para governar bastam um presidente, um cabo e um soldado?"
quinta-feira, junho 27, 2019
O equívoco do presidente - SIMONE TEBET
Folha de S. Paulo - 27/06
Vetos na lei das agências reguladoras afetam eficiência
A vida como ela é depende de como as agências reguladoras são. Elas controlam as atividades, os serviços, o consumo de todos os brasileiros. Estão nas idas e vindas das nossas viagens; no acender e no apagar das luzes; nos nossos planos de saúde; nas águas dos rios ou na água que bebemos; no remédio que ingerimos; quando abastecemos nossos carros; quando enviamos ou recebemos um WhatsApp ou um telefonema. Estão nas nossas vidas, enfim.
Demos um importante passo no Senado, ao aprovar a Lei Geral das Agências Reguladoras. O objetivo era garantir a fiscalização de concessionárias/permissionárias de serviço público sem ingerência (pública ou privada). A medida auxilia no ambiente de negócios, pois uma melhor percepção sobre a estabilidade das regras de mercado e mais segurança jurídica podem gerar maior interesse de investimento no país.
Exemplos não faltam de como as agências se desvirtuaram do objetivo principal e se tornaram, em muitos casos, defensoras das empresas.
A autorização da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) para que empresas aéreas cobrassem pelo transporte de bagagens é um deles. Ao contrário do prometido, o usuário viu o preço das passagens aumentar em 35% em 12 meses. A ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) decidiu que a coparticipação dos clientes nos gastos com planos de saúde poderia ser de até 40% para novos contratos. Já a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) autorizou aumento das tarifas de energia elétrica acima da inflação.
As novas regras para os planos de saúde não prosperaram, depois do grito dos clientes. O Congresso pode, ainda, pôr fim à cobrança das bagagens, apesar do recente veto do presidente Jair Bolsonaro (PSL). No caso da Aneel, tenho a sensação de que a agência representa mais os interesses privados que o do consumidor.
Por um equívoco, o presidente Jair Bolsonaro vetou alguns dos itens mais importantes da lei, alegando que o Congresso o transformaria em “rainha da Inglaterra”.
Ora, o projeto é de 2013, passou por três governos e, em nenhum momento, significou represália. O Congresso ouviu as ruas e estabeleceu critérios rígidos para escolha de dirigentes. Proibiu indicações políticas, de parentes, titulares de mandatos eletivos e sindicais, de quem não fosse ficha limpa ou que tivesse participação em empresa do setor regulado.
No entanto, o presidente entendeu de outra forma e vetou a lista tríplice, a “quarentena” de um ano para executivo do setor regulado e a limitação de recondução ao cargo por mais de uma vez. Em outro veto, prejudicou a transparência e a eficiência, pois tirou do texto a exigência de os dirigentes prestarem contas ao Senado sobre o desempenho das agências.
Enfim, mexeu na essência do projeto, dando um passo contrário às suas próprias promessas de campanha, que eram o combate à corrupção decorrente da barganha política e a defesa dos interesses individuais e coletivos da sociedade brasileira.
O Congresso fez a sua parte.
Simone Tebet, senadora da República (MDB-MS) desde 2015 e presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado
Vetos na lei das agências reguladoras afetam eficiência
A vida como ela é depende de como as agências reguladoras são. Elas controlam as atividades, os serviços, o consumo de todos os brasileiros. Estão nas idas e vindas das nossas viagens; no acender e no apagar das luzes; nos nossos planos de saúde; nas águas dos rios ou na água que bebemos; no remédio que ingerimos; quando abastecemos nossos carros; quando enviamos ou recebemos um WhatsApp ou um telefonema. Estão nas nossas vidas, enfim.
Demos um importante passo no Senado, ao aprovar a Lei Geral das Agências Reguladoras. O objetivo era garantir a fiscalização de concessionárias/permissionárias de serviço público sem ingerência (pública ou privada). A medida auxilia no ambiente de negócios, pois uma melhor percepção sobre a estabilidade das regras de mercado e mais segurança jurídica podem gerar maior interesse de investimento no país.
Exemplos não faltam de como as agências se desvirtuaram do objetivo principal e se tornaram, em muitos casos, defensoras das empresas.
A autorização da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) para que empresas aéreas cobrassem pelo transporte de bagagens é um deles. Ao contrário do prometido, o usuário viu o preço das passagens aumentar em 35% em 12 meses. A ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) decidiu que a coparticipação dos clientes nos gastos com planos de saúde poderia ser de até 40% para novos contratos. Já a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) autorizou aumento das tarifas de energia elétrica acima da inflação.
As novas regras para os planos de saúde não prosperaram, depois do grito dos clientes. O Congresso pode, ainda, pôr fim à cobrança das bagagens, apesar do recente veto do presidente Jair Bolsonaro (PSL). No caso da Aneel, tenho a sensação de que a agência representa mais os interesses privados que o do consumidor.
Por um equívoco, o presidente Jair Bolsonaro vetou alguns dos itens mais importantes da lei, alegando que o Congresso o transformaria em “rainha da Inglaterra”.
Ora, o projeto é de 2013, passou por três governos e, em nenhum momento, significou represália. O Congresso ouviu as ruas e estabeleceu critérios rígidos para escolha de dirigentes. Proibiu indicações políticas, de parentes, titulares de mandatos eletivos e sindicais, de quem não fosse ficha limpa ou que tivesse participação em empresa do setor regulado.
No entanto, o presidente entendeu de outra forma e vetou a lista tríplice, a “quarentena” de um ano para executivo do setor regulado e a limitação de recondução ao cargo por mais de uma vez. Em outro veto, prejudicou a transparência e a eficiência, pois tirou do texto a exigência de os dirigentes prestarem contas ao Senado sobre o desempenho das agências.
Enfim, mexeu na essência do projeto, dando um passo contrário às suas próprias promessas de campanha, que eram o combate à corrupção decorrente da barganha política e a defesa dos interesses individuais e coletivos da sociedade brasileira.
O Congresso fez a sua parte.
Simone Tebet, senadora da República (MDB-MS) desde 2015 e presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado
A nova política - ZEINA LATIF
O Estado de S.Paulo - 27/06
Faltou diálogo com os governadores para inserir os Estados na reforma
Jair Bolsonaro não se envolveu, como se esperaria de um presidente da República, nas discussões da reforma da Previdência. Talvez esse estilo faça parte do que ele denomina a nova política.
Quando se manifestou, foi mais para pedir uma reforma mais branda do que para defender seus pontos mais sensíveis. A ideia ventilada no início do ano, de que Bolsonaro seria o garoto-propaganda da reforma, não vingou.
Seus posicionamentos levaram a ajustes equivocados na proposta enviada ao Congresso. Um exemplo foi a redução da idade mínima para aposentadoria das mulheres, apesar da sua maior expectativa de vida e de que injustiças com as mulheres deverem ser preferencialmente combatidas com outras políticas públicas, e não com regras de previdência mais generosas. Como aponta Cecília Machado, seguindo a lógica das regras diferenciadas para mulheres, negros também deveriam ser em alguma medida contemplados.
Outro ajuste foi nas regras para policiais federais, civis e agentes penitenciários. Foi preservada a integralidade do valor da aposentadoria pelo último salário (para quem atingir 55 anos de idade), inclusive para os que ingressaram antes de 2003, quando houve mudança nas regras de aposentadoria, valendo não a integralidade, mas 80% dos maiores salários. Antes disso, no projeto de lei que trata da mudança do regime dos militares, também foi preservada a integralidade – algo não observado na experiência mundial –, regra que foi replicada para a polícia militar e os bombeiros.
Também faltou diálogo com os governadores, buscando um caminho para inserir os entes subnacionais na reforma, ainda que a diversidade da situação fiscal dos Estados e a postura oportunista de muitos governadores dificultem a tarefa. Se cabia a alguém essa coordenação, era ao presidente. Vale lembrar que na proposta do governo anterior, os Estados teriam até seis meses para aprovar a própria reforma, valendo a regra federal caso contrário. Enfim, a reforma enviada ao Congresso foi muito boa, mas menos ambiciosa por conta das próprias escolhas do presidente.
Apesar da distância de Bolsonaro, assiste-se o avanço na tramitação da proposta no Congresso. Supera-se, ainda que com dificuldade, os obstáculos inerentes à votação de temas complexos e em uma estrutura política fragmentada em vários partidos que não têm compromisso com pautas nacionais. A razão principal para isso é que o tema da Previdência está muito mais maduro politicamente, com o reconhecimento pelas lideranças políticas de que, sem a reforma, o País caminhará para o colapso, e, neste caso, não há vencedores. Nessa linha, parcela do Congresso busca melhorar sua imagem com a sociedade e o establishment.
Esse é um importante ganho de maturidade do País. A nota desalentadora é que foi preciso atingir a beira do abismo para isso acontecer, com graves consequências para a população e para a economia.
O sucesso na aprovação da reforma da Previdência não serve, porém, de sinalização para as demais reformas estruturais. Há limites para o quanto o Congresso consegue avançar sozinho na agenda de reformas, sem a liderança do chefe do Executivo.
Temas polêmicos e cujo debate não está maduro sofrerão forte resistência, especialmente sem o compromisso político do Executivo. Um exemplo recente foi a medida provisória que propunha importantes mudanças no marco regulatório do saneamento básico.
Apesar da contribuição de técnicos do governo na construção da proposta, faltou envolvimento político do governo. O resultado é que a MP caducou. Não sendo superadas as arestas criadas pelas empresas de saneamento estaduais, o projeto de lei sobre o mesmo tema terá sérias dificuldades para avançar.
É possível que Bolsonaro atribua à aprovação da reforma da Previdência um atestado de sucesso da tal nova política, capitalizando politicamente o feito. Será temerário, porém, se se repetir a mesma estratégia no enfrentamento dos próximos desafios do governo.
Economista-chefe da XP Investimentos
Faltou diálogo com os governadores para inserir os Estados na reforma
Jair Bolsonaro não se envolveu, como se esperaria de um presidente da República, nas discussões da reforma da Previdência. Talvez esse estilo faça parte do que ele denomina a nova política.
Quando se manifestou, foi mais para pedir uma reforma mais branda do que para defender seus pontos mais sensíveis. A ideia ventilada no início do ano, de que Bolsonaro seria o garoto-propaganda da reforma, não vingou.
Seus posicionamentos levaram a ajustes equivocados na proposta enviada ao Congresso. Um exemplo foi a redução da idade mínima para aposentadoria das mulheres, apesar da sua maior expectativa de vida e de que injustiças com as mulheres deverem ser preferencialmente combatidas com outras políticas públicas, e não com regras de previdência mais generosas. Como aponta Cecília Machado, seguindo a lógica das regras diferenciadas para mulheres, negros também deveriam ser em alguma medida contemplados.
Outro ajuste foi nas regras para policiais federais, civis e agentes penitenciários. Foi preservada a integralidade do valor da aposentadoria pelo último salário (para quem atingir 55 anos de idade), inclusive para os que ingressaram antes de 2003, quando houve mudança nas regras de aposentadoria, valendo não a integralidade, mas 80% dos maiores salários. Antes disso, no projeto de lei que trata da mudança do regime dos militares, também foi preservada a integralidade – algo não observado na experiência mundial –, regra que foi replicada para a polícia militar e os bombeiros.
Também faltou diálogo com os governadores, buscando um caminho para inserir os entes subnacionais na reforma, ainda que a diversidade da situação fiscal dos Estados e a postura oportunista de muitos governadores dificultem a tarefa. Se cabia a alguém essa coordenação, era ao presidente. Vale lembrar que na proposta do governo anterior, os Estados teriam até seis meses para aprovar a própria reforma, valendo a regra federal caso contrário. Enfim, a reforma enviada ao Congresso foi muito boa, mas menos ambiciosa por conta das próprias escolhas do presidente.
Apesar da distância de Bolsonaro, assiste-se o avanço na tramitação da proposta no Congresso. Supera-se, ainda que com dificuldade, os obstáculos inerentes à votação de temas complexos e em uma estrutura política fragmentada em vários partidos que não têm compromisso com pautas nacionais. A razão principal para isso é que o tema da Previdência está muito mais maduro politicamente, com o reconhecimento pelas lideranças políticas de que, sem a reforma, o País caminhará para o colapso, e, neste caso, não há vencedores. Nessa linha, parcela do Congresso busca melhorar sua imagem com a sociedade e o establishment.
Esse é um importante ganho de maturidade do País. A nota desalentadora é que foi preciso atingir a beira do abismo para isso acontecer, com graves consequências para a população e para a economia.
O sucesso na aprovação da reforma da Previdência não serve, porém, de sinalização para as demais reformas estruturais. Há limites para o quanto o Congresso consegue avançar sozinho na agenda de reformas, sem a liderança do chefe do Executivo.
Temas polêmicos e cujo debate não está maduro sofrerão forte resistência, especialmente sem o compromisso político do Executivo. Um exemplo recente foi a medida provisória que propunha importantes mudanças no marco regulatório do saneamento básico.
Apesar da contribuição de técnicos do governo na construção da proposta, faltou envolvimento político do governo. O resultado é que a MP caducou. Não sendo superadas as arestas criadas pelas empresas de saneamento estaduais, o projeto de lei sobre o mesmo tema terá sérias dificuldades para avançar.
É possível que Bolsonaro atribua à aprovação da reforma da Previdência um atestado de sucesso da tal nova política, capitalizando politicamente o feito. Será temerário, porém, se se repetir a mesma estratégia no enfrentamento dos próximos desafios do governo.
Economista-chefe da XP Investimentos
Entenda a meta de inflação a prazos longos - CELSO MING
ESTADÃO - 27/06
Muita gente pode pensar que a meta de inflação de 2022 é distante demais para se prestar atenção, mas, no mundo dos negócios, prazos esticados são essenciais em investimentos a longo prazo
Na quinta-feira 27, o Conselho Monetário Nacional reúne-se para definir a meta de inflação para 2022. Este assunto pode parecer árido, e é, mas traz importantes consequências para a vida econômica de qualquer brasileiro.
No atual sistema, é o governo que define a meta de inflação a vigorar em determinado ano, e resta ao Banco Central calibrar a política monetária (os juros), ou seja, deve ajustar o volume de moeda na economia para que a meta seja cumprida.
Quem toma a decisão pelo governo é o Conselho Monetário Nacional, também conhecido pelo apelido com carga nordestina de Cenemê. Até o ano passado, faziam parte deste Conselho o ministro da Fazenda, o ministro do Planejamento e o presidente do Banco Central. Com a fusão dos Ministérios da Fazenda e do Planejamento, ocupou a vaga o secretário especial da Fazenda, hoje o economista Waldery Rodrigues.
Muita gente pode pensar que 2022 é horizonte distante demais para que se preste muita atenção para a meta de inflação a ser fixada na quinta-feira. Mas não é assim. O mundo dos negócios tem de lidar com prazos esticados. O prazo de pagamento de uma máquina ou de contratos de fornecimento pode ser de muitos anos. Mesmo o contrato de financiamento de uma casa pode ter prazo de amortização de 20 anos. Por isso, é preciso trabalhar tendo por referência a inflação de anos à frente, para demarcar compromissos e pagamentos.
Para executar sua política monetária, o Banco Central também tem de olhar bem para a frente, mirar o tal “horizonte relevante” que está nos documentos oficiais do Comitê de Política Monetária (Copom), para definir a ração de moeda (e de juros) com que alimentar a economia.
Neste ano, a meta de inflação é de 4,25%. Para 2020, será de 4,0% e para 2021, de 3,75%. A expectativa é que, para 2022, o Conselho Monetário Nacional bata o martelo nos 3,5%, um número inimaginável nos anos 80, quando a inflação chegou a encostar nos 100% ao mês (e não ao ano).
Como o Banco Central vem conduzindo as expectativas do mercado; como a inflação deste ano está apontando para algo abaixo dos 4,0%; e como, para 2020, as projeções do mercado são de que fique nos 3,95%, a meta de 3,5% parece relativamente folgada.
A principal consequência da definição de uma meta e de seu cumprimento por um banco central de credibilidade é produzir a convergência dos fazedores de preços de modo a que operem nos seus negócios com uma inflação dessa ordem. Em contrapartida, quem trabalha no mercado financeiro, num ano de inflação de 3,5%, terá de olhar para juros não superiores a 5% ao ano.
Com esses números, não faz sentido manter o encaixotamento da política monetária dentro de margens de escape como as que vigoram hoje. Margens de escape são os níveis de tolerância, isto é, são os espaços dimensionados acima e abaixo da inflação em que a meta se considera cumprida mesmo se a inflação do ano ficar fora do centro dessa meta, desde que o intervalo de escape seja observado. Para deixar mais claro: se a meta de inflação de 2016 foi de 4,5% e as margens eram de 2,0 pontos porcentuais, a inflação poderia ter ficado entre 2,5% e 6,5%.
A definição dessas margens foi necessária por duas razões: primeira, para acomodar uma inflação que viesse a ser produzida por fatores alheios ao volume de moeda emitido pelo Banco Central. É o caso de uma inflação de alimentos causada por secas ou enchentes. E, segunda razão, porque o critério escolhido para efeito de cumprimento da meta foi a inflação ocorrida dentro do ano-calendário, que nem sempre se consegue acertar.
No tempo em que a meta de inflação era de 8,0%, como era em 1999, as margens de tolerância admitidas também eram de 2 pontos porcentuais para cima ou para baixo da meta. Com eventual meta de inflação de 3,5% para 2020, nem mesmo margens de tolerância parecem apropriadas.
Nenhum grande banco central trabalha com áreas de escape. Primeiro porque, para execução de sua política de juros, não considera exatamente a evolução do custo de vida, mas os chamados núcleos de inflação, ou seja, a inflação expurgada de fatores aleatórios, como alta temporária dos alimentos e do petróleo. E, segundo, porque não olham para o ano-calendário, mas para o período móvel de 12 meses.
Nenhum obstáculo relevante parece impedir que o Brasil adote o mesmo critério. Como o sistema de metas de inflação foi instituído por decreto do presidente da República, qualquer mudança nesse sentido poderia ser feita também por decreto.
Muita gente pode pensar que a meta de inflação de 2022 é distante demais para se prestar atenção, mas, no mundo dos negócios, prazos esticados são essenciais em investimentos a longo prazo
Na quinta-feira 27, o Conselho Monetário Nacional reúne-se para definir a meta de inflação para 2022. Este assunto pode parecer árido, e é, mas traz importantes consequências para a vida econômica de qualquer brasileiro.
No atual sistema, é o governo que define a meta de inflação a vigorar em determinado ano, e resta ao Banco Central calibrar a política monetária (os juros), ou seja, deve ajustar o volume de moeda na economia para que a meta seja cumprida.
Quem toma a decisão pelo governo é o Conselho Monetário Nacional, também conhecido pelo apelido com carga nordestina de Cenemê. Até o ano passado, faziam parte deste Conselho o ministro da Fazenda, o ministro do Planejamento e o presidente do Banco Central. Com a fusão dos Ministérios da Fazenda e do Planejamento, ocupou a vaga o secretário especial da Fazenda, hoje o economista Waldery Rodrigues.
Muita gente pode pensar que 2022 é horizonte distante demais para que se preste muita atenção para a meta de inflação a ser fixada na quinta-feira. Mas não é assim. O mundo dos negócios tem de lidar com prazos esticados. O prazo de pagamento de uma máquina ou de contratos de fornecimento pode ser de muitos anos. Mesmo o contrato de financiamento de uma casa pode ter prazo de amortização de 20 anos. Por isso, é preciso trabalhar tendo por referência a inflação de anos à frente, para demarcar compromissos e pagamentos.
Para executar sua política monetária, o Banco Central também tem de olhar bem para a frente, mirar o tal “horizonte relevante” que está nos documentos oficiais do Comitê de Política Monetária (Copom), para definir a ração de moeda (e de juros) com que alimentar a economia.
Neste ano, a meta de inflação é de 4,25%. Para 2020, será de 4,0% e para 2021, de 3,75%. A expectativa é que, para 2022, o Conselho Monetário Nacional bata o martelo nos 3,5%, um número inimaginável nos anos 80, quando a inflação chegou a encostar nos 100% ao mês (e não ao ano).
Como o Banco Central vem conduzindo as expectativas do mercado; como a inflação deste ano está apontando para algo abaixo dos 4,0%; e como, para 2020, as projeções do mercado são de que fique nos 3,95%, a meta de 3,5% parece relativamente folgada.
A principal consequência da definição de uma meta e de seu cumprimento por um banco central de credibilidade é produzir a convergência dos fazedores de preços de modo a que operem nos seus negócios com uma inflação dessa ordem. Em contrapartida, quem trabalha no mercado financeiro, num ano de inflação de 3,5%, terá de olhar para juros não superiores a 5% ao ano.
Com esses números, não faz sentido manter o encaixotamento da política monetária dentro de margens de escape como as que vigoram hoje. Margens de escape são os níveis de tolerância, isto é, são os espaços dimensionados acima e abaixo da inflação em que a meta se considera cumprida mesmo se a inflação do ano ficar fora do centro dessa meta, desde que o intervalo de escape seja observado. Para deixar mais claro: se a meta de inflação de 2016 foi de 4,5% e as margens eram de 2,0 pontos porcentuais, a inflação poderia ter ficado entre 2,5% e 6,5%.
A definição dessas margens foi necessária por duas razões: primeira, para acomodar uma inflação que viesse a ser produzida por fatores alheios ao volume de moeda emitido pelo Banco Central. É o caso de uma inflação de alimentos causada por secas ou enchentes. E, segunda razão, porque o critério escolhido para efeito de cumprimento da meta foi a inflação ocorrida dentro do ano-calendário, que nem sempre se consegue acertar.
No tempo em que a meta de inflação era de 8,0%, como era em 1999, as margens de tolerância admitidas também eram de 2 pontos porcentuais para cima ou para baixo da meta. Com eventual meta de inflação de 3,5% para 2020, nem mesmo margens de tolerância parecem apropriadas.
Nenhum grande banco central trabalha com áreas de escape. Primeiro porque, para execução de sua política de juros, não considera exatamente a evolução do custo de vida, mas os chamados núcleos de inflação, ou seja, a inflação expurgada de fatores aleatórios, como alta temporária dos alimentos e do petróleo. E, segundo, porque não olham para o ano-calendário, mas para o período móvel de 12 meses.
Nenhum obstáculo relevante parece impedir que o Brasil adote o mesmo critério. Como o sistema de metas de inflação foi instituído por decreto do presidente da República, qualquer mudança nesse sentido poderia ser feita também por decreto.
Fatia do bancos privados no bolo do crédito fica maior que a da banca estatal - VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SP - 27/06
Banca privada volta a ultrapassar estatais; crédito de outras fontes cresce mais
Os bancos privados voltaram a ter maioria no bolo do dinheiro emprestado pelas instituições financeiras, o que não acontecia desde maio de 2013. Os bancos em geral, por sua vez, têm parcela cada vez menor no crédito concedido a famílias e empresas, segundo estatística que o Banco Central começou a publicar no mês passado.
Não é, claro, uma revolução. Mas é mudança pronunciada, evidente e planejada desde 2016 e que deve continuar em marcha cada vez mais rápida pelo menos até 2022. Isto é, caso Jair Bolsonaro não crie caso com o programa ultraliberal do ministro Paulo Guedes (Economia), plano que, se der certo, será apenas liberal, se tanto, depois de coado pela peneira política do país.
Em maio, o total de dinheiro emprestado pelos bancos públicos era de 49,99% do total (trata-se aqui do estoque de crédito, não de novos empréstimos). Nos números, é um empate, o centésimo de porcentagem é uma graça estatística. Na prática, ainda é uma participação historicamente alta, mas indica simbolicamente o fim do programa de inchaço do crédito público dos governos Lula 2 e Dilma Rousseff.
Entre o fim das grandes privatizações bancárias (2001) e o estouro final da grande crise mundial (2008), os bancos públicos tinham algo em torno de 37% do crédito. Ao final de Lula 2, cerca de 42%. Em fins de Dilma 2 (junho de 2016), 56,6%.
Os bancos privados perderam participação tanto porque puseram o pé no freio nas crises da última década como porque os governos petistas puseram o pé no acelerador dos bancos públicos, com resultados pífios para o crescimento, programa que se tornou deletério ou ruinoso depois de 2011.
Desde 2016, houve avanço mais rápido dos empréstimos dos bancos privados, um alta mais comedida no Banco do Brasil e na Caixa Econômica Federal e uma retração violenta do BNDES. Desde a deposição da presidente, cerca de 85% da perda de participação dos bancos públicos deveu-se ao encolhimento do BNDES.
Em 2013 e 2014, auge do programa dilmiano, o BNDES concedia mais de 5% do total dos empréstimos novos do sistema financeiro. Nos últimos 12 meses, apenas 1,7%.
O BNDES encolheu porque: 1) a vontade das empresas de investir caiu (recessão); 2) porque as taxas de juros do banco ficaram menos atrativas (o subsídio começou a acabar); 3) porque o governo forçou um tanto do encolhimento. Talvez por um pouco disso tudo, as empresas foram buscar dinheiro no mercado de capitais.
Parece estar aí um dos motivos pelos quais a participação dos bancosno total de crédito esteja caindo. Desde maio, o BC publica uma medida ampliada do crédito. Além de empréstimos bancários, inclui títulos de dívida, derivativos, empréstimos de outras instituições que não as bancárias, consórcios, empréstimos intercompanhia, de fundos constitucionais etc.
A publicação da estatística é nova e os dados recuam apenas até 2013. Logo, ainda não deu para entender a manha dos números, para piorar abalados pelo choque da recessão. Mas há alguns dados gritantes. Em 2013, o crédito bancário era 72% do “saldo de crédito ampliado”. Zanzou em torno de 66% de 2015 a 2018. Está em 60%.
O programa de encolhimento dos bancos públicos deve continuar. Se o país se emendar, a taxa de juros ainda tende a cair mais e de modo mais duradouro _mais motivos para as empresas irem ao mercado de capitais. A mudança parece grande, convém prestar atenção.
Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).
Banca privada volta a ultrapassar estatais; crédito de outras fontes cresce mais
Os bancos privados voltaram a ter maioria no bolo do dinheiro emprestado pelas instituições financeiras, o que não acontecia desde maio de 2013. Os bancos em geral, por sua vez, têm parcela cada vez menor no crédito concedido a famílias e empresas, segundo estatística que o Banco Central começou a publicar no mês passado.
Não é, claro, uma revolução. Mas é mudança pronunciada, evidente e planejada desde 2016 e que deve continuar em marcha cada vez mais rápida pelo menos até 2022. Isto é, caso Jair Bolsonaro não crie caso com o programa ultraliberal do ministro Paulo Guedes (Economia), plano que, se der certo, será apenas liberal, se tanto, depois de coado pela peneira política do país.
Em maio, o total de dinheiro emprestado pelos bancos públicos era de 49,99% do total (trata-se aqui do estoque de crédito, não de novos empréstimos). Nos números, é um empate, o centésimo de porcentagem é uma graça estatística. Na prática, ainda é uma participação historicamente alta, mas indica simbolicamente o fim do programa de inchaço do crédito público dos governos Lula 2 e Dilma Rousseff.
Entre o fim das grandes privatizações bancárias (2001) e o estouro final da grande crise mundial (2008), os bancos públicos tinham algo em torno de 37% do crédito. Ao final de Lula 2, cerca de 42%. Em fins de Dilma 2 (junho de 2016), 56,6%.
Os bancos privados perderam participação tanto porque puseram o pé no freio nas crises da última década como porque os governos petistas puseram o pé no acelerador dos bancos públicos, com resultados pífios para o crescimento, programa que se tornou deletério ou ruinoso depois de 2011.
Desde 2016, houve avanço mais rápido dos empréstimos dos bancos privados, um alta mais comedida no Banco do Brasil e na Caixa Econômica Federal e uma retração violenta do BNDES. Desde a deposição da presidente, cerca de 85% da perda de participação dos bancos públicos deveu-se ao encolhimento do BNDES.
Em 2013 e 2014, auge do programa dilmiano, o BNDES concedia mais de 5% do total dos empréstimos novos do sistema financeiro. Nos últimos 12 meses, apenas 1,7%.
O BNDES encolheu porque: 1) a vontade das empresas de investir caiu (recessão); 2) porque as taxas de juros do banco ficaram menos atrativas (o subsídio começou a acabar); 3) porque o governo forçou um tanto do encolhimento. Talvez por um pouco disso tudo, as empresas foram buscar dinheiro no mercado de capitais.
Parece estar aí um dos motivos pelos quais a participação dos bancosno total de crédito esteja caindo. Desde maio, o BC publica uma medida ampliada do crédito. Além de empréstimos bancários, inclui títulos de dívida, derivativos, empréstimos de outras instituições que não as bancárias, consórcios, empréstimos intercompanhia, de fundos constitucionais etc.
A publicação da estatística é nova e os dados recuam apenas até 2013. Logo, ainda não deu para entender a manha dos números, para piorar abalados pelo choque da recessão. Mas há alguns dados gritantes. Em 2013, o crédito bancário era 72% do “saldo de crédito ampliado”. Zanzou em torno de 66% de 2015 a 2018. Está em 60%.
O programa de encolhimento dos bancos públicos deve continuar. Se o país se emendar, a taxa de juros ainda tende a cair mais e de modo mais duradouro _mais motivos para as empresas irem ao mercado de capitais. A mudança parece grande, convém prestar atenção.
Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).
Terra arrasada - WILLIAM WAACK
ESTADÃO - 27/06
A Lava Jato está sendo arrastada pelo caos político-institucional
A rigor, o que se publicou até agora de conversas hackeadas de expoentes da Lava Jato confirma o que já se sabia. As figuras principais da Lava Jato percebiam como hostil à operação parte das instituições, incluindo o Supremo. Entendem decisões no STF como resultado de intrincadas lealdades políticas e pessoais por parte dos ministros – ou mesmo inconfessáveis. Portanto, raramente de natureza “técnica”.
O material publicado até aqui sugere que Sérgio Moro e Deltan Dallagnol tinham clara noção de que seu entrosamento, coordenação e atuação eram passíveis de forte contestação “técnica” pela defesa dos acusados e, como se verá, pelo STF. Esse mesmo material hackeado deixa claro, porém, que a preocupação maior deles ia muito além da batalha jurídico-legal.
Consideravam-se participantes de um confronto político de proporções inéditas no qual o adversário – a classe política em geral e o PT em particular – comandava instrumentos poderosos para se proteger, entrincheirado em dispositivos legais (garantidos na Constituição) que os dirigentes da Lava Jato e boa parte da população viam como privilégios.
Não se trata aqui do famoso postulado dos fins (liquidar corrupção) que justificam os meios (ignorar a norma legal). Se Moro e Dallagnol de alguma maneira se aconselharam com Maquiavel, então foram influenciados pelo que se considera na ciência política como a originalidade do pensador florentino do século 16 (que acabou dizendo o que todo mundo sabe, mas ninguém gosta de admitir). É a noção de que ideais nunca conseguem ser alcançados. Em outras palavras: não há um confronto entre política e moralidade. Só existe política.
Arguir a suspeição de Moro e, por consequência, a “moralidade” da conduta da figura central da Lava Jato soa correto para quem pretende que o respeito à norma e à letra da lei é que garante o funcionamento da “boa” política e das instituições. A esta visão, a do “idealismo” da norma legal, se opõe a visão do realismo da ação que busca derrotar o adversário político corrupto tido como imbatível. É a visão da Lava Jato, narrativa hoje sustentada por substancial maioria da população.
Os diálogos sugerem a interpretação de que Moro e Dallagnol, apoiados pelos fatos concretos das avassaladoras corrupção e manipulação políticas, sempre estiveram convencidos de que “idealismo”, legal ou moral, eram só pretextos esgrimidos pelos adversários (inclusive STF). De qualquer maneira (e isso é Maquiavel) não haveria nesse contexto histórico como equilibrar idealismo e realismo. O que existe é a competição entre realismos – de um lado a Lava Jato e, do outro, o “sistema” político e seus tentáculos.
O resultado imediato dessa batalha é conhecido: desarticulou-se um fenomenal império de corrupção e foram expostos o cinismo, a mentira e a imoralidade de seus participantes. As enormes consequências econômicas, políticas e sociais estão apenas no início. Mas também a Lava Jato não parece ser a vitória do “bem” contra o “mal", como pretendem alguns de seus defensores pouco críticos. Ao se lançar na luta política ela foi apanhada pelo mesmo caos político-institucional que ajudou a produzir, mesmo não tendo sido esse o objetivo.
O material hackeado não sugere que os expoentes da operação tivessem intencionalmente se empenhado em destruir o edifício do estado de direito. Na verdade, os dirigentes da Lava Jato se sentiam operando em terra já arrasada. Em cima dela a sociedade brasileira terá de encontrar um novo caminho, por enquanto indefinido. Difícil é imaginar um “retorno” ao que não existia: instituições funcionando dentro do devido marco legal.
A Lava Jato está sendo arrastada pelo caos político-institucional
A rigor, o que se publicou até agora de conversas hackeadas de expoentes da Lava Jato confirma o que já se sabia. As figuras principais da Lava Jato percebiam como hostil à operação parte das instituições, incluindo o Supremo. Entendem decisões no STF como resultado de intrincadas lealdades políticas e pessoais por parte dos ministros – ou mesmo inconfessáveis. Portanto, raramente de natureza “técnica”.
O material publicado até aqui sugere que Sérgio Moro e Deltan Dallagnol tinham clara noção de que seu entrosamento, coordenação e atuação eram passíveis de forte contestação “técnica” pela defesa dos acusados e, como se verá, pelo STF. Esse mesmo material hackeado deixa claro, porém, que a preocupação maior deles ia muito além da batalha jurídico-legal.
Consideravam-se participantes de um confronto político de proporções inéditas no qual o adversário – a classe política em geral e o PT em particular – comandava instrumentos poderosos para se proteger, entrincheirado em dispositivos legais (garantidos na Constituição) que os dirigentes da Lava Jato e boa parte da população viam como privilégios.
Não se trata aqui do famoso postulado dos fins (liquidar corrupção) que justificam os meios (ignorar a norma legal). Se Moro e Dallagnol de alguma maneira se aconselharam com Maquiavel, então foram influenciados pelo que se considera na ciência política como a originalidade do pensador florentino do século 16 (que acabou dizendo o que todo mundo sabe, mas ninguém gosta de admitir). É a noção de que ideais nunca conseguem ser alcançados. Em outras palavras: não há um confronto entre política e moralidade. Só existe política.
Arguir a suspeição de Moro e, por consequência, a “moralidade” da conduta da figura central da Lava Jato soa correto para quem pretende que o respeito à norma e à letra da lei é que garante o funcionamento da “boa” política e das instituições. A esta visão, a do “idealismo” da norma legal, se opõe a visão do realismo da ação que busca derrotar o adversário político corrupto tido como imbatível. É a visão da Lava Jato, narrativa hoje sustentada por substancial maioria da população.
Os diálogos sugerem a interpretação de que Moro e Dallagnol, apoiados pelos fatos concretos das avassaladoras corrupção e manipulação políticas, sempre estiveram convencidos de que “idealismo”, legal ou moral, eram só pretextos esgrimidos pelos adversários (inclusive STF). De qualquer maneira (e isso é Maquiavel) não haveria nesse contexto histórico como equilibrar idealismo e realismo. O que existe é a competição entre realismos – de um lado a Lava Jato e, do outro, o “sistema” político e seus tentáculos.
O resultado imediato dessa batalha é conhecido: desarticulou-se um fenomenal império de corrupção e foram expostos o cinismo, a mentira e a imoralidade de seus participantes. As enormes consequências econômicas, políticas e sociais estão apenas no início. Mas também a Lava Jato não parece ser a vitória do “bem” contra o “mal", como pretendem alguns de seus defensores pouco críticos. Ao se lançar na luta política ela foi apanhada pelo mesmo caos político-institucional que ajudou a produzir, mesmo não tendo sido esse o objetivo.
O material hackeado não sugere que os expoentes da operação tivessem intencionalmente se empenhado em destruir o edifício do estado de direito. Na verdade, os dirigentes da Lava Jato se sentiam operando em terra já arrasada. Em cima dela a sociedade brasileira terá de encontrar um novo caminho, por enquanto indefinido. Difícil é imaginar um “retorno” ao que não existia: instituições funcionando dentro do devido marco legal.
De Viktor Orban a rainha da Inglaterra? - FERNANDO SCHÜLER
FOLHA DE SP - 27/06
Arriscamos cair na síndrome da democracia que não governa, algo próximo à vetocracia
Dias atrás, Bolsonaro reclamou que estava sendo transformado em uma rainha da Inglaterra. Quando li aquilo, achei exagerado. Geralmente acho tudo meio exagerado, em política. Mas depois fiquei pensando e comecei a achar que o presidente tem alguma razão.
Desde a posse, pautas de interesse direto do governo vêm sistematicamente caindo. Assistimos agora ao fim melancólico do decreto das armas e o envio resignado de um projeto de lei ao Congresso (como deveria ter sido feito desde o início). Vimos atentativa frustrada de transferir a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura. Mesmo coisas esquisitas, como a ida da embaixada para Jerusalém, com toda a corte feita por Netanyahu, deu com os burros n’água.
Ainda nesta semana, o presidente vetou o item que prevê a lista tríplice para as agencias reguladoras. Aposto que o veto seja derrubado. Não apenas porque o governo não tem base, mas porque a lista tríplice é uma boa ideia. Despolitiza as agências. Restringe um poder do qual o presidente não precisa e que é bom que não tenha. E não estou falando de Bolsonaro, mas de qualquer presidente que venha pela frente.
Como tapa de luva, o presidente teve que assistir à inclusão, na Constituição, da execução obrigatória das emendas de bancada, retirando mais um naco de poder do Executivo. E precisa escutar todo dia que a reforma da Previdência anda sozinha no Congresso, à moda de um parlamentarismo branco (a expressão, muito boa, é do Fábio Giambiagi).
Enquanto isso, Rodrigo Maia conduz a aprovação da reforma com os partidos e governadores, encomenda uma agenda econômica própria e diz já ter definido instalar a comissão especial da reforma tributária (também nascida dentro do Congresso) ainda antes do recesso parlamentar.
Rodrigo Maia não é, mas parece agir como o primeiro-ministro em nosso parlamentarismo de coalizão. Ou, se quiserem, nosso presidencialismo de consensos provisórios. Tudo muito democrático, com freios e contrapesos funcionando à exaustão, em uma lógica estranha, aqui nos trópicos, que chamei de modelo de corresponsabilidade.
Tudo, aliás, inteiramente diferente do que o cenário desenhado, não faz muito, pela nossa crônica política, que insistia em apresentar Bolsonaro como uma espécie de Viktor Orbán dos trópicos ou, para os mais delirantes, como o novo Hugo Chávez.
A maldita realidade vem mostrando outra coisa. O país parece estar efetivamente fazendo uma experiência de parlamentarismo branco. Com o incômodo detalhe de que esse sistema não existe. Decorre daí nosso maior problema. Ele não vem da ameaça autoritária ou plebiscitária. Quem ainda estiver pensando nisso não está entendendo nada do que se passa por aqui.
O problema é a falta de direção. Nos tornamos um sistema presidencialista funcionando à moda parlamentar. Um sistema a meio caminho: presidencialista na forma, parlamentar no jeito. É possível enxergar alguma virtude aí. A ideia de um país funcionando à base de consensos progressivos e repartição do poder. Já escrevi tentando enxergar o lado positivo disso tudo.
Mas é possível perceber as sombras. A maior delas é a paralisia, a incerteza, a desconfiança crescente da sociedade e do mercado sobre a capacidade do sistema tocar adiante, de fato, alguma agenda relevante, para além da reforma da Previdência.
O país tem diante de si um amplo programa de micro e macro reformas estruturais, bem como um plano audacioso de desestatização. A percepção de que não há um arranjo político e pulso para fazer isso andar é hoje o principal inibidor do investimento a longo prazo no país.
Arriscamos cair na síndrome da democracia que não governa. Algo próximo à vetocracia, de Francis Fukuyama. A situação em que muitos compartilham do poder, mas o sistema como um todo caminha para não sei onde. Na expressão de Andrew Rawnsley, a democracia que se tornou “mais venenosa, ainda que mais desdentada”.
Confesso não ter ideia de como sair dessa zona de sombra. Não se trata de uma tragédia, mas de uma sistema que anda devagar, à base de consensos frágeis, quando deveria envolver a sociedade em um grande projeto de mudança. Se dependesse de mim, apostaria todas as fichas em uma reforma estrutural do sistema político, mas ninguém parece dar bola para essas coisas.
Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Arriscamos cair na síndrome da democracia que não governa, algo próximo à vetocracia
Dias atrás, Bolsonaro reclamou que estava sendo transformado em uma rainha da Inglaterra. Quando li aquilo, achei exagerado. Geralmente acho tudo meio exagerado, em política. Mas depois fiquei pensando e comecei a achar que o presidente tem alguma razão.
Desde a posse, pautas de interesse direto do governo vêm sistematicamente caindo. Assistimos agora ao fim melancólico do decreto das armas e o envio resignado de um projeto de lei ao Congresso (como deveria ter sido feito desde o início). Vimos atentativa frustrada de transferir a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura. Mesmo coisas esquisitas, como a ida da embaixada para Jerusalém, com toda a corte feita por Netanyahu, deu com os burros n’água.
Ainda nesta semana, o presidente vetou o item que prevê a lista tríplice para as agencias reguladoras. Aposto que o veto seja derrubado. Não apenas porque o governo não tem base, mas porque a lista tríplice é uma boa ideia. Despolitiza as agências. Restringe um poder do qual o presidente não precisa e que é bom que não tenha. E não estou falando de Bolsonaro, mas de qualquer presidente que venha pela frente.
Como tapa de luva, o presidente teve que assistir à inclusão, na Constituição, da execução obrigatória das emendas de bancada, retirando mais um naco de poder do Executivo. E precisa escutar todo dia que a reforma da Previdência anda sozinha no Congresso, à moda de um parlamentarismo branco (a expressão, muito boa, é do Fábio Giambiagi).
Enquanto isso, Rodrigo Maia conduz a aprovação da reforma com os partidos e governadores, encomenda uma agenda econômica própria e diz já ter definido instalar a comissão especial da reforma tributária (também nascida dentro do Congresso) ainda antes do recesso parlamentar.
Rodrigo Maia não é, mas parece agir como o primeiro-ministro em nosso parlamentarismo de coalizão. Ou, se quiserem, nosso presidencialismo de consensos provisórios. Tudo muito democrático, com freios e contrapesos funcionando à exaustão, em uma lógica estranha, aqui nos trópicos, que chamei de modelo de corresponsabilidade.
Tudo, aliás, inteiramente diferente do que o cenário desenhado, não faz muito, pela nossa crônica política, que insistia em apresentar Bolsonaro como uma espécie de Viktor Orbán dos trópicos ou, para os mais delirantes, como o novo Hugo Chávez.
A maldita realidade vem mostrando outra coisa. O país parece estar efetivamente fazendo uma experiência de parlamentarismo branco. Com o incômodo detalhe de que esse sistema não existe. Decorre daí nosso maior problema. Ele não vem da ameaça autoritária ou plebiscitária. Quem ainda estiver pensando nisso não está entendendo nada do que se passa por aqui.
O problema é a falta de direção. Nos tornamos um sistema presidencialista funcionando à moda parlamentar. Um sistema a meio caminho: presidencialista na forma, parlamentar no jeito. É possível enxergar alguma virtude aí. A ideia de um país funcionando à base de consensos progressivos e repartição do poder. Já escrevi tentando enxergar o lado positivo disso tudo.
Mas é possível perceber as sombras. A maior delas é a paralisia, a incerteza, a desconfiança crescente da sociedade e do mercado sobre a capacidade do sistema tocar adiante, de fato, alguma agenda relevante, para além da reforma da Previdência.
O país tem diante de si um amplo programa de micro e macro reformas estruturais, bem como um plano audacioso de desestatização. A percepção de que não há um arranjo político e pulso para fazer isso andar é hoje o principal inibidor do investimento a longo prazo no país.
Arriscamos cair na síndrome da democracia que não governa. Algo próximo à vetocracia, de Francis Fukuyama. A situação em que muitos compartilham do poder, mas o sistema como um todo caminha para não sei onde. Na expressão de Andrew Rawnsley, a democracia que se tornou “mais venenosa, ainda que mais desdentada”.
Confesso não ter ideia de como sair dessa zona de sombra. Não se trata de uma tragédia, mas de uma sistema que anda devagar, à base de consensos frágeis, quando deveria envolver a sociedade em um grande projeto de mudança. Se dependesse de mim, apostaria todas as fichas em uma reforma estrutural do sistema político, mas ninguém parece dar bola para essas coisas.
Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
A fogueira do ativismo judiciário - FABIO PRIETO DE SOUZA
ESTADÃO - 27/06
Não há mais cerimônia na encampação das prerrogativas conferidas aos legisladores
O Brasil não tem boa classificação nos rankings sobre segurança jurídica. Profusão de leis e normas administrativas redigidas em linguagem equívoca ou deliberadamente contraditória. Sobreposição de instâncias administrativas e judiciárias. Procedimentos de controle e fiscalização caros, que deveriam ser baratos; ou baratos, quando deveriam ser caros. Quebra constante e imotivada de contratos privados. Falta de efetividade das sanções, insignificantes ou draconianas, raramente ponderadas.
É preciso elevar os valores da previsibilidade e da confiança, duas variáveis necessárias para a fruição do progresso contemporâneo.
Nos estudos nacionais e internacionais, o grave problema da insegurança jurídica, com custos econômicos e sociais expressivos, tem capítulo de destaque para a insegurança judiciária. O sistema de justiça dá relevante contribuição para o ambiente normativo turvo e labiríntico.
A estrutura de justiça – não apenas o Poder Judiciário – é cara, gigantesca e, o mais danoso, ferozmente intervencionista. Como muitas das instituições do País, diante da falta de controle cívico e social, as do sistema de justiça também têm a possibilidade de funcionar para si, por si e para os seus.
Premido pelas influências históricas da cultura geral, o sistema de justiça contribui para o adiamento infinito rumo ao país do futuro, que poderíamos ser, com democracia, livre iniciativa e valor social do trabalho, tudo selado pela lei votada por Parlamento escolhido em eleição módica e disputada por partidos políticos orgânicos.
Mas, para além dos problemas gerais, comuns a todas as instituições, o sistema de justiça está enredado numa crise particular: a da usurpação da democracia representativa, da intervenção desabrida na prerrogativa do povo de fazer escolhas entre várias políticas públicas.
No desejo de contemplar todos, a Constituição de 1988 projetou a mais libertária e rica das nações. É uma espécie de retomada do País dos bacharéis.
O governo de 64 conviveu com altas taxas de crescimento econômico. Mas a ordem jurídica tinha muito subproduto de atos institucionais, para o desprestígio dos bacharéis. Os economistas ganharam o protagonismo da liderança.
As crises do petróleo e a hiperinflação permitiram a virada. Depois de marcar os economistas com o epíteto de tecnocratas – não raro quando cobravam racionalidade e responsabilidade com o dinheiro público –, os bacharéis inscreveram na Constituição de 1988 as mais belas promessas.
Pouco depois, a queda do Muro de Berlim veio lembrar que os fatos da realidade cobrariam o seu preço. Só conseguimos alguma recuperação quando economistas notáveis puseram o Plano Real de pé e refundaram a ordem econômica. Isso sob o fogo cerrado de violenta guerrilha judiciária. O ministro da Fazenda Pedro Malan chegou a ser instado a pagar dezenas de bilhões de reais, só pelo fato de implementar o Plano Real. A URV, espinha dorsal do plano, foi julgada depois de 25 anos de sua criação.
Esses incidentes, independentemente do seu desfecho, demonstram que o sistema de justiça disfuncional tem a possibilidade de atacar, pesadamente, a autoridade de outro Poder de Estado, apenas pela execução de política pública afiançada pelo povo, no sistema democrático, e manter sob suspeição, por décadas, a iniciativa.
Mas a obstrução judiciária de políticas públicas definidas pela democracia é só parte do problema.
O sistema de justiça resolveu legislar abertamente. Não há mais nenhuma cerimônia na encampação das prerrogativas conferidas aos legisladores. Por intermédio das mais variadas modalidades de ações judiciais, certa “hermenêutica dos novos tempos” propõe e executa todo tipo de política pública. Faz “leis judiciárias” para todos os assuntos. Agora, à beira do precipício, vem o convite para o passo fatal: a criação de lei penal, por analogia, pelos juízes.
Centenas de milhares de brasileiros foram vítimas do genocídio das últimas décadas – negros e pardos, jovens e pobres, a maioria. Nem sequer a mais antiga das leis penais, a que sanciona o homicídio, foi aplicada com mínima eficiência. O Código Penal autoriza a pena máxima de 30 anos. Pouco importam o sexo, a raça, a cor da vítima. Portanto, não faltava, nem falta, lei punitiva com alto grau de severidade.
Todavia, estamos na iminência de cometer grave erro civilizatório, para regredir ao que Nelson Hungria chamou de a “mística hitleriana”. Depois de lembrar que o Código Penal comunista permitia ao juiz condenar por analogia – “se uma ação qualquer, considerada socialmente perigosa, não se acha especialmente prevista no presente Código, os limites e fundamentos da responsabilidade se deduzem dos artigos deste Código que prevejam delitos de índole mais análoga” –, Hungria registrou que “esta pura e simples substituição do legislador pelo juiz criminal era incomparável com a essência do Estado totalitário, corporificado no Führer”.
Hitler desejava mais, segundo Nelson Hungria: “Preferiu-se uma outra fórmula, que está inscrita no ‘Memorial’ hitlerista sobre o ‘novo direito penal alemão’: permite-se a punição do fato que escapou à previsão do legislador, uma vez que essa punição seja reclamada pelo ‘sentimento’ ou pela ‘consciência’ do povo, depreendidos e filtrados, não pela interpretação pretoriana dos juízes, mas (e aqui é que o leão mostra a garra...) segundo a revelação do Führer”.
A lançar um dos mais simbólicos direitos fundamentais na fogueira da insegurança jurídica alimentada pelo ativismo judiciário, será preciso saber quem vai incorporar a mística hitleriana, para revelar a nós, os juízes, os crimes do novo direito penal da analogia.
O vanguardismo messiânico, presente na Revolução Russa e no nazismo, tentou refundar o mundo sem passar pela ordem do direito burguês, liberal. Não deu certo. Nem dará. A barbárie nunca civilizou a barbárie.
Não há mais cerimônia na encampação das prerrogativas conferidas aos legisladores
O Brasil não tem boa classificação nos rankings sobre segurança jurídica. Profusão de leis e normas administrativas redigidas em linguagem equívoca ou deliberadamente contraditória. Sobreposição de instâncias administrativas e judiciárias. Procedimentos de controle e fiscalização caros, que deveriam ser baratos; ou baratos, quando deveriam ser caros. Quebra constante e imotivada de contratos privados. Falta de efetividade das sanções, insignificantes ou draconianas, raramente ponderadas.
É preciso elevar os valores da previsibilidade e da confiança, duas variáveis necessárias para a fruição do progresso contemporâneo.
Nos estudos nacionais e internacionais, o grave problema da insegurança jurídica, com custos econômicos e sociais expressivos, tem capítulo de destaque para a insegurança judiciária. O sistema de justiça dá relevante contribuição para o ambiente normativo turvo e labiríntico.
A estrutura de justiça – não apenas o Poder Judiciário – é cara, gigantesca e, o mais danoso, ferozmente intervencionista. Como muitas das instituições do País, diante da falta de controle cívico e social, as do sistema de justiça também têm a possibilidade de funcionar para si, por si e para os seus.
Premido pelas influências históricas da cultura geral, o sistema de justiça contribui para o adiamento infinito rumo ao país do futuro, que poderíamos ser, com democracia, livre iniciativa e valor social do trabalho, tudo selado pela lei votada por Parlamento escolhido em eleição módica e disputada por partidos políticos orgânicos.
Mas, para além dos problemas gerais, comuns a todas as instituições, o sistema de justiça está enredado numa crise particular: a da usurpação da democracia representativa, da intervenção desabrida na prerrogativa do povo de fazer escolhas entre várias políticas públicas.
No desejo de contemplar todos, a Constituição de 1988 projetou a mais libertária e rica das nações. É uma espécie de retomada do País dos bacharéis.
O governo de 64 conviveu com altas taxas de crescimento econômico. Mas a ordem jurídica tinha muito subproduto de atos institucionais, para o desprestígio dos bacharéis. Os economistas ganharam o protagonismo da liderança.
As crises do petróleo e a hiperinflação permitiram a virada. Depois de marcar os economistas com o epíteto de tecnocratas – não raro quando cobravam racionalidade e responsabilidade com o dinheiro público –, os bacharéis inscreveram na Constituição de 1988 as mais belas promessas.
Pouco depois, a queda do Muro de Berlim veio lembrar que os fatos da realidade cobrariam o seu preço. Só conseguimos alguma recuperação quando economistas notáveis puseram o Plano Real de pé e refundaram a ordem econômica. Isso sob o fogo cerrado de violenta guerrilha judiciária. O ministro da Fazenda Pedro Malan chegou a ser instado a pagar dezenas de bilhões de reais, só pelo fato de implementar o Plano Real. A URV, espinha dorsal do plano, foi julgada depois de 25 anos de sua criação.
Esses incidentes, independentemente do seu desfecho, demonstram que o sistema de justiça disfuncional tem a possibilidade de atacar, pesadamente, a autoridade de outro Poder de Estado, apenas pela execução de política pública afiançada pelo povo, no sistema democrático, e manter sob suspeição, por décadas, a iniciativa.
Mas a obstrução judiciária de políticas públicas definidas pela democracia é só parte do problema.
O sistema de justiça resolveu legislar abertamente. Não há mais nenhuma cerimônia na encampação das prerrogativas conferidas aos legisladores. Por intermédio das mais variadas modalidades de ações judiciais, certa “hermenêutica dos novos tempos” propõe e executa todo tipo de política pública. Faz “leis judiciárias” para todos os assuntos. Agora, à beira do precipício, vem o convite para o passo fatal: a criação de lei penal, por analogia, pelos juízes.
Centenas de milhares de brasileiros foram vítimas do genocídio das últimas décadas – negros e pardos, jovens e pobres, a maioria. Nem sequer a mais antiga das leis penais, a que sanciona o homicídio, foi aplicada com mínima eficiência. O Código Penal autoriza a pena máxima de 30 anos. Pouco importam o sexo, a raça, a cor da vítima. Portanto, não faltava, nem falta, lei punitiva com alto grau de severidade.
Todavia, estamos na iminência de cometer grave erro civilizatório, para regredir ao que Nelson Hungria chamou de a “mística hitleriana”. Depois de lembrar que o Código Penal comunista permitia ao juiz condenar por analogia – “se uma ação qualquer, considerada socialmente perigosa, não se acha especialmente prevista no presente Código, os limites e fundamentos da responsabilidade se deduzem dos artigos deste Código que prevejam delitos de índole mais análoga” –, Hungria registrou que “esta pura e simples substituição do legislador pelo juiz criminal era incomparável com a essência do Estado totalitário, corporificado no Führer”.
Hitler desejava mais, segundo Nelson Hungria: “Preferiu-se uma outra fórmula, que está inscrita no ‘Memorial’ hitlerista sobre o ‘novo direito penal alemão’: permite-se a punição do fato que escapou à previsão do legislador, uma vez que essa punição seja reclamada pelo ‘sentimento’ ou pela ‘consciência’ do povo, depreendidos e filtrados, não pela interpretação pretoriana dos juízes, mas (e aqui é que o leão mostra a garra...) segundo a revelação do Führer”.
A lançar um dos mais simbólicos direitos fundamentais na fogueira da insegurança jurídica alimentada pelo ativismo judiciário, será preciso saber quem vai incorporar a mística hitleriana, para revelar a nós, os juízes, os crimes do novo direito penal da analogia.
O vanguardismo messiânico, presente na Revolução Russa e no nazismo, tentou refundar o mundo sem passar pela ordem do direito burguês, liberal. Não deu certo. Nem dará. A barbárie nunca civilizou a barbárie.
FABIO PRIETO DE SOUZA É DESEMBARGADOR FEDERAL, EX-PRESIDENTE DO TRF-3; É DIRETOR CONSELHEIRO DA INTERNATIONAL ASSOCIATION OF TAX JUDGES
Caminho aberto para a reforma - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 27/06
Num avanço notável, consolida-se o cenário em que a maioria dos parlamentares parece convencida da premência da reforma da Previdência. Resta detalhar o formato
Os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), calculam já ter o número suficiente de votos para aprovar a reforma da Previdência. “A Câmara já tem os 308 votos. No Senado, tem ampla maioria”, disse Alcolumbre na segunda-feira passada. É a primeira vez que os dirigentes do Congresso afirmam em público que a reforma já conta com o apoio necessário por parte dos parlamentares.
Segundo o senador Alcolumbre, a aprovação vai se dar em razão da construção do consenso, dentro do Congresso, em torno da necessidade da reforma – e não como resultado da articulação do governo, que, como se sabe, é inexistente.
Consolida-se assim o cenário em que a maioria dos parlamentares parece realmente convencida da premência da reforma da Previdência, restando agora detalhar seu formato. Trata-se de um avanço notável, especialmente porque até pouco tempo atrás a reforma era um tema considerado tabu no Congresso. Aparentemente deixou de ser, o que denota maturidade.
É evidente que as corporações que vivem de privilégios do Estado e que têm muito a perder com a reforma não vão descansar. Na mesma semana em que os presidentes da Câmara e do Senado demonstravam otimismo em relação à aprovação, a líder da Minoria na Câmara, deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), reafirmava as conhecidas mistificações em torno da reforma.
Em sessão de debates na Câmara com o relator da reforma, deputado Sandro Moreira (PSDB-SP), a deputada voltou a dizer que o projeto de saneamento do sistema de aposentadorias vai prejudicar os brasileiros mais pobres; que a Previdência é tratada como a “vilã” das contas do Estado enquanto o verdadeiro problema fiscal do Brasil é o pagamento dos juros de sua dívida; que a expectativa de vida em regiões pobres é baixa e, por isso, a aposentadoria é inalcançável para muitos moradores dessas áreas; e, por fim, que a Previdência não é deficitária. “Essa reforma não é bem-vinda. Ela só prejudica o povo, os trabalhadores. Nós, da oposição, vamos trabalhar de fato para derrotar essa reforma”, disse a deputada Jandira.
Felizmente, a julgar pela contabilidade da liderança do Congresso, que atesta o apoio à reforma, essa série de falsidades e exageros sobre a reforma da Previdência já não tem o mesmo apelo entre os parlamentares. A esta altura, parece ter ficado claro que, ao contrário do que disse a líder da Minoria e do que sustentam os chefes das corporações de funcionários públicos e de sindicatos, a reforma não prejudicará os mais pobres, a maioria dos quais hoje precisa trabalhar até os 65 anos para se aposentar, enquanto os privilegiados do serviço público, estes sim os principais atingidos, podem se aposentar antes dos 60 anos. Também não é verdade que a Previdência é tratada como “vilã” das contas do Estado enquanto se beneficiam os credores da dívida brasileira; o vilão incontestável é o crescimento exponencial do rombo no pagamento de aposentadorias, que consome hoje a maior parte do Orçamento federal, ajudou a quebrar Estados e municípios e, salvo alguma mágica típica dos demagogos, só pode ser contido por meio da reforma.
Já a confusão deliberada entre expectativa de vida ao nascer e expectativa de vida depois dos 65 anos, indicadores muito diferentes, se presta somente a enganar os desinformados. Aqui também os pobres são usados como mero pretexto pelos inimigos da reforma para manter suas sinecuras. Por fim, a reiteração da empulhação segundo a qual não há déficit da Previdência só prova o caráter degenerado desse movimento que agride a aritmética para sustentar seus argumentos contra a reforma.
Ao mesmo tempo que a fragilidade dos argumentos da oposição fica mais evidente, diminui o tradicional receio dos parlamentares de enfrentar um tema que desde sempre é impopular – mas que hoje, conforme as pesquisas de opinião, parece sofrer resistência cada vez menor por parte do eleitorado. Cresce a percepção de que, por mais difícil que possa ser o adiamento da aposentadoria ou a redução de algum benefício, a reforma é necessária para começar a tirar o País do buraco. E é preciso preparar a opinião pública para o fato de que a reforma, com tudo isso, é apenas o começo.
Num avanço notável, consolida-se o cenário em que a maioria dos parlamentares parece convencida da premência da reforma da Previdência. Resta detalhar o formato
Os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), calculam já ter o número suficiente de votos para aprovar a reforma da Previdência. “A Câmara já tem os 308 votos. No Senado, tem ampla maioria”, disse Alcolumbre na segunda-feira passada. É a primeira vez que os dirigentes do Congresso afirmam em público que a reforma já conta com o apoio necessário por parte dos parlamentares.
Segundo o senador Alcolumbre, a aprovação vai se dar em razão da construção do consenso, dentro do Congresso, em torno da necessidade da reforma – e não como resultado da articulação do governo, que, como se sabe, é inexistente.
Consolida-se assim o cenário em que a maioria dos parlamentares parece realmente convencida da premência da reforma da Previdência, restando agora detalhar seu formato. Trata-se de um avanço notável, especialmente porque até pouco tempo atrás a reforma era um tema considerado tabu no Congresso. Aparentemente deixou de ser, o que denota maturidade.
É evidente que as corporações que vivem de privilégios do Estado e que têm muito a perder com a reforma não vão descansar. Na mesma semana em que os presidentes da Câmara e do Senado demonstravam otimismo em relação à aprovação, a líder da Minoria na Câmara, deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), reafirmava as conhecidas mistificações em torno da reforma.
Em sessão de debates na Câmara com o relator da reforma, deputado Sandro Moreira (PSDB-SP), a deputada voltou a dizer que o projeto de saneamento do sistema de aposentadorias vai prejudicar os brasileiros mais pobres; que a Previdência é tratada como a “vilã” das contas do Estado enquanto o verdadeiro problema fiscal do Brasil é o pagamento dos juros de sua dívida; que a expectativa de vida em regiões pobres é baixa e, por isso, a aposentadoria é inalcançável para muitos moradores dessas áreas; e, por fim, que a Previdência não é deficitária. “Essa reforma não é bem-vinda. Ela só prejudica o povo, os trabalhadores. Nós, da oposição, vamos trabalhar de fato para derrotar essa reforma”, disse a deputada Jandira.
Felizmente, a julgar pela contabilidade da liderança do Congresso, que atesta o apoio à reforma, essa série de falsidades e exageros sobre a reforma da Previdência já não tem o mesmo apelo entre os parlamentares. A esta altura, parece ter ficado claro que, ao contrário do que disse a líder da Minoria e do que sustentam os chefes das corporações de funcionários públicos e de sindicatos, a reforma não prejudicará os mais pobres, a maioria dos quais hoje precisa trabalhar até os 65 anos para se aposentar, enquanto os privilegiados do serviço público, estes sim os principais atingidos, podem se aposentar antes dos 60 anos. Também não é verdade que a Previdência é tratada como “vilã” das contas do Estado enquanto se beneficiam os credores da dívida brasileira; o vilão incontestável é o crescimento exponencial do rombo no pagamento de aposentadorias, que consome hoje a maior parte do Orçamento federal, ajudou a quebrar Estados e municípios e, salvo alguma mágica típica dos demagogos, só pode ser contido por meio da reforma.
Já a confusão deliberada entre expectativa de vida ao nascer e expectativa de vida depois dos 65 anos, indicadores muito diferentes, se presta somente a enganar os desinformados. Aqui também os pobres são usados como mero pretexto pelos inimigos da reforma para manter suas sinecuras. Por fim, a reiteração da empulhação segundo a qual não há déficit da Previdência só prova o caráter degenerado desse movimento que agride a aritmética para sustentar seus argumentos contra a reforma.
Ao mesmo tempo que a fragilidade dos argumentos da oposição fica mais evidente, diminui o tradicional receio dos parlamentares de enfrentar um tema que desde sempre é impopular – mas que hoje, conforme as pesquisas de opinião, parece sofrer resistência cada vez menor por parte do eleitorado. Cresce a percepção de que, por mais difícil que possa ser o adiamento da aposentadoria ou a redução de algum benefício, a reforma é necessária para começar a tirar o País do buraco. E é preciso preparar a opinião pública para o fato de que a reforma, com tudo isso, é apenas o começo.
Dormindo com o inimigo - MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 27/06
Os potenciais candidatos já se mexem. E, pior para Bolsonaro, são todos do espectro político de centro
O Presidente Bolsonaro é especialista em dar tiro no próprio pé, a começar pela introdução no debate, sem razão explícita, de palavras perigosas politicamente, como impeachment, ou delicadas, como reeleição, quando garantira na campanha que mandaria um projeto para o Congresso extinguindo essa possibilidade.
É verdade que os dois temas corriam a boca pequena nas conversas de bastidores dos parlamentares, e mesmo na opinião pública. Bolsonaro pode ter usado uma, reeleição, para neutralizar a outra, impeachment. Mesma tática de Trump.
Mas o fato é que o presidente se isola cada vez mais ao decidir montar em torno de si uma equipe de assessores que valem pela lealdade presumida. Dá a impressão de que sente dormindo com o inimigo, no sentido figurado hétero, é claro.
Tirou um general de quem era amigo há quarenta anos, Santos Cruz, para colocar outro, Luiz Eduardo Ramos, quatro estrelas da ativa e amigo do presidente também há muito tempo.
Tirou o general Floriano Peixoto para colocar em seu lugar o advogado e major da PM da reserva Jorge Antonio de Oliveira Francisco, amigo de seus filhos desde a infância, cujo pai foi chefe de gabinete de Bolsonaro na Câmara. “Um garoto de ouro”, conforme o presidente o definiu na posse.
No campo parlamentar, as dificuldades continuam grandes, mesmo que a reforma da Previdência tenha tudo para ser aprovada. Mas está sendo negociada dentro do Parlamento, sem que a equipe econômica participe, e Paulo Guedes tenha protestado contra os grandes lobbies do serviço público, que teriam tomado conta dos deputados. E vem mais por aí, com uma provável mudança da tabela de transição.
O presidente Bolsonaro ganhou a batalha das nomeações públicas, terminando com o toma-lá-dá-cá e criando o chamado “banco de talentos”. São nomes técnicos indicados por políticos, o que é uma ideia inovadora e, se fosse implementada, seria um avanço no funcionalismo público.
Mas até mesmo esse sistema está emperrado, pela desconfiança que o Palacio do Planalto tem das indicações politicas. Desconfiança, aliás, retribuída. As várias decisões tomadas pela Câmara para limitar os poderes presidenciais, a ponto de Bolsonaro ter dito que querem que seja uma “Rainha da Inglaterra”, são retaliações que, pelo ambiente instaurado no Congresso, continuarão.
As reformas econômicas estruturais serão aprovadas, mas dentro do que já esta sendo chamado de calendário Maia. A ideia é transmitir imagem positiva do Congresso, afastada da do presidente.
Assim como Bolsonaro abriu prematuramente a discussão sobre reeleição, os potenciais candidatos já se mexem. E, pior para Bolsonaro, são todos do espectro político de centro, e começam a se distanciar dele.
O governador de São Paulo, João Doria, é um deles, e abriu debate contra o apoio de Bolsonaro ao governo do Rio para receber a prova de Fórmula 1. O presidente ironizou o empenho de Doria: “Dizem que quer ser presidente. Se for isso, não tem problema para ele, que tem que pensar no país. Se for candidato à reeleição ao governo, aí pode ter problemas lá no Estado dele”.
Doria criticou o Rio, o que não é bom para seus planos nacionais. Ainda mais que ao lado de Bolsonaro está o governador Witzel, que, como o presidente, se preocupa com coisas irrelevantes para o Estado, como a Fórmula 1, e é mais de bravatas do que de realizações no campo da segurança pública.
Witzel também se diz candidato a presidente. Embora pareça uma alucinação de uma noite de verão, depois que ele, do nada, se elegeu governador, tudo é possível.
Outro candidato potencial é o próprio presidente da Câmara Rodrigo Maia, que vem tendo destaque nacional com sua atuação no comando da reforma da Previdência.
O terceiro é o ministro da Justiça Sérgio Moro, o ministro mais popular do governo. No dia 30 teremos uma boa ideia do tamanho dessa popularidade nas manifestações a favor da Lava Jato e dele próprio, acossado pelos diálogos hackeados. Moro já disse que não seria candidato se Bolsonaro concorrer, mas em política é bom nunca dizer nunca.
Há até uma chapa Moro e Rodrigo Maia sendo cogitada a boca pequena. Ou vice-versa, assim como João Doria também gostaria de ter Moro como vice-presidente. O que parece que não faltará é opção de centro para o eleitor, o que pode fazer Bolsonaro ficar limitado ao eleitorado de extrema direita que, por si só, não o elegeria.
Mas, em política, três anos são uma eternidade. Ainda mais num governo imprevisível como esse.
Os potenciais candidatos já se mexem. E, pior para Bolsonaro, são todos do espectro político de centro
O Presidente Bolsonaro é especialista em dar tiro no próprio pé, a começar pela introdução no debate, sem razão explícita, de palavras perigosas politicamente, como impeachment, ou delicadas, como reeleição, quando garantira na campanha que mandaria um projeto para o Congresso extinguindo essa possibilidade.
É verdade que os dois temas corriam a boca pequena nas conversas de bastidores dos parlamentares, e mesmo na opinião pública. Bolsonaro pode ter usado uma, reeleição, para neutralizar a outra, impeachment. Mesma tática de Trump.
Mas o fato é que o presidente se isola cada vez mais ao decidir montar em torno de si uma equipe de assessores que valem pela lealdade presumida. Dá a impressão de que sente dormindo com o inimigo, no sentido figurado hétero, é claro.
Tirou um general de quem era amigo há quarenta anos, Santos Cruz, para colocar outro, Luiz Eduardo Ramos, quatro estrelas da ativa e amigo do presidente também há muito tempo.
Tirou o general Floriano Peixoto para colocar em seu lugar o advogado e major da PM da reserva Jorge Antonio de Oliveira Francisco, amigo de seus filhos desde a infância, cujo pai foi chefe de gabinete de Bolsonaro na Câmara. “Um garoto de ouro”, conforme o presidente o definiu na posse.
No campo parlamentar, as dificuldades continuam grandes, mesmo que a reforma da Previdência tenha tudo para ser aprovada. Mas está sendo negociada dentro do Parlamento, sem que a equipe econômica participe, e Paulo Guedes tenha protestado contra os grandes lobbies do serviço público, que teriam tomado conta dos deputados. E vem mais por aí, com uma provável mudança da tabela de transição.
O presidente Bolsonaro ganhou a batalha das nomeações públicas, terminando com o toma-lá-dá-cá e criando o chamado “banco de talentos”. São nomes técnicos indicados por políticos, o que é uma ideia inovadora e, se fosse implementada, seria um avanço no funcionalismo público.
Mas até mesmo esse sistema está emperrado, pela desconfiança que o Palacio do Planalto tem das indicações politicas. Desconfiança, aliás, retribuída. As várias decisões tomadas pela Câmara para limitar os poderes presidenciais, a ponto de Bolsonaro ter dito que querem que seja uma “Rainha da Inglaterra”, são retaliações que, pelo ambiente instaurado no Congresso, continuarão.
As reformas econômicas estruturais serão aprovadas, mas dentro do que já esta sendo chamado de calendário Maia. A ideia é transmitir imagem positiva do Congresso, afastada da do presidente.
Assim como Bolsonaro abriu prematuramente a discussão sobre reeleição, os potenciais candidatos já se mexem. E, pior para Bolsonaro, são todos do espectro político de centro, e começam a se distanciar dele.
O governador de São Paulo, João Doria, é um deles, e abriu debate contra o apoio de Bolsonaro ao governo do Rio para receber a prova de Fórmula 1. O presidente ironizou o empenho de Doria: “Dizem que quer ser presidente. Se for isso, não tem problema para ele, que tem que pensar no país. Se for candidato à reeleição ao governo, aí pode ter problemas lá no Estado dele”.
Doria criticou o Rio, o que não é bom para seus planos nacionais. Ainda mais que ao lado de Bolsonaro está o governador Witzel, que, como o presidente, se preocupa com coisas irrelevantes para o Estado, como a Fórmula 1, e é mais de bravatas do que de realizações no campo da segurança pública.
Witzel também se diz candidato a presidente. Embora pareça uma alucinação de uma noite de verão, depois que ele, do nada, se elegeu governador, tudo é possível.
Outro candidato potencial é o próprio presidente da Câmara Rodrigo Maia, que vem tendo destaque nacional com sua atuação no comando da reforma da Previdência.
O terceiro é o ministro da Justiça Sérgio Moro, o ministro mais popular do governo. No dia 30 teremos uma boa ideia do tamanho dessa popularidade nas manifestações a favor da Lava Jato e dele próprio, acossado pelos diálogos hackeados. Moro já disse que não seria candidato se Bolsonaro concorrer, mas em política é bom nunca dizer nunca.
Há até uma chapa Moro e Rodrigo Maia sendo cogitada a boca pequena. Ou vice-versa, assim como João Doria também gostaria de ter Moro como vice-presidente. O que parece que não faltará é opção de centro para o eleitor, o que pode fazer Bolsonaro ficar limitado ao eleitorado de extrema direita que, por si só, não o elegeria.
Mas, em política, três anos são uma eternidade. Ainda mais num governo imprevisível como esse.
Rainha do Planalto - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 27/06
Ao contrário do que entenderam cortesãos, vitória eleitoral não leva um programa ao trono
A figura moderna e democrática do presidente da República surgiu nos Estados Unidos, em 1787, a substituir a autoridade e a imagem simbólica do então rei da Inglaterra.
Presidentes vivem em palácios, cercam-se de cortesãos e se apresentam ao eleitorado como a grande liderança individual do país. Entretanto submetem-se a mandatos fixos e têm seus poderes regulados por leis e demais instituições.
No Planalto, Jair Bolsonaro (PSL) vai se atrapalhando com limites e conceitos. “Querem me deixar como rainha da Inglaterra?”, queixou-se do Congresso Nacional, poucos dias atrás, a respeito de um projeto que impõe regras às indicações para agências reguladoras, afinal sancionado com vetos.
O incômodo decerto tem mais razões. O mandatário não se conformou, por exemplo, ao ver rejeitado pelo Legislativo o trecho de uma medida provisória que transferia ao Ministério da Agricultura —no qual predomina a influência dos produtores rurais— a atribuição de demarcar terras indígenas.
Neste mês, o governo voltou ao assunto por meio de uma nova MP, restabelecendo o ditame original. “Quem demarca terra indígena sou eu. Não é ministro. Quem manda sou eu”, declarou Bolsonaro.
O tom monarquista, felizmente, não se repetiu na exposição oficial de motivos da medida. Ali o Executivo argumenta, com sobriedade, que o Congresso extrapolou suas prerrogativas ao legislar sobre diretrizes administrativas reservadas pela Constituição ao presidente.
Fato é que, na segunda (24), o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu a vigência do novo texto, apontando que a Carta veda a reedição de MP num mesmo período legislativo. No dia seguinte, o presidente do Senado e do Congresso anunciou que o dispositivo seria rejeitado pelo mesmo motivo.
Trata-se claramente de um tipo de conflito que poderia ser resolvido mais facilmente pela via da negociação política —ou reservado a objetivos mais fundamentais.
O padrão se repete com os esdrúxulos decretos que ampliavam, de modo juridicamente duvidoso, o porte de armas de fogo. O Senado barrou a ofensiva, e a Câmara se inclinava a seguir o exemplo. A iminência da derrota levou o Planalto a substituir os textos e enviar projeto de lei sobre o tema.
Bolsonaro dedica energia desproporcional a aspectos mais ideológicos e populistas de sua agenda, incluindo do patrulhamento de professores ao afrouxamento das regras de trânsito —e até à volta das corridas de Fórmula 1 ao Rio.
Ao contrário do que entenderam muitos cortesãos palacianos, a vitória eleitoral não leva um programa de governo ao trono. Se o presidente dispõe de legitimidade para propor o que julga correto, nem um amplo respaldo popular, nada palpável hoje, autoriza o atropelo das normas republicanas.
Ao contrário do que entenderam cortesãos, vitória eleitoral não leva um programa ao trono
A figura moderna e democrática do presidente da República surgiu nos Estados Unidos, em 1787, a substituir a autoridade e a imagem simbólica do então rei da Inglaterra.
Presidentes vivem em palácios, cercam-se de cortesãos e se apresentam ao eleitorado como a grande liderança individual do país. Entretanto submetem-se a mandatos fixos e têm seus poderes regulados por leis e demais instituições.
No Planalto, Jair Bolsonaro (PSL) vai se atrapalhando com limites e conceitos. “Querem me deixar como rainha da Inglaterra?”, queixou-se do Congresso Nacional, poucos dias atrás, a respeito de um projeto que impõe regras às indicações para agências reguladoras, afinal sancionado com vetos.
O incômodo decerto tem mais razões. O mandatário não se conformou, por exemplo, ao ver rejeitado pelo Legislativo o trecho de uma medida provisória que transferia ao Ministério da Agricultura —no qual predomina a influência dos produtores rurais— a atribuição de demarcar terras indígenas.
Neste mês, o governo voltou ao assunto por meio de uma nova MP, restabelecendo o ditame original. “Quem demarca terra indígena sou eu. Não é ministro. Quem manda sou eu”, declarou Bolsonaro.
O tom monarquista, felizmente, não se repetiu na exposição oficial de motivos da medida. Ali o Executivo argumenta, com sobriedade, que o Congresso extrapolou suas prerrogativas ao legislar sobre diretrizes administrativas reservadas pela Constituição ao presidente.
Fato é que, na segunda (24), o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu a vigência do novo texto, apontando que a Carta veda a reedição de MP num mesmo período legislativo. No dia seguinte, o presidente do Senado e do Congresso anunciou que o dispositivo seria rejeitado pelo mesmo motivo.
Trata-se claramente de um tipo de conflito que poderia ser resolvido mais facilmente pela via da negociação política —ou reservado a objetivos mais fundamentais.
O padrão se repete com os esdrúxulos decretos que ampliavam, de modo juridicamente duvidoso, o porte de armas de fogo. O Senado barrou a ofensiva, e a Câmara se inclinava a seguir o exemplo. A iminência da derrota levou o Planalto a substituir os textos e enviar projeto de lei sobre o tema.
Bolsonaro dedica energia desproporcional a aspectos mais ideológicos e populistas de sua agenda, incluindo do patrulhamento de professores ao afrouxamento das regras de trânsito —e até à volta das corridas de Fórmula 1 ao Rio.
Ao contrário do que entenderam muitos cortesãos palacianos, a vitória eleitoral não leva um programa de governo ao trono. Se o presidente dispõe de legitimidade para propor o que julga correto, nem um amplo respaldo popular, nada palpável hoje, autoriza o atropelo das normas republicanas.
Vetos na lei das agências servem como um alerta - EDITORIAL O GLOBO
O GLOBO - 27/06
Bolsonaro repete Lula diante da autonomia desses órgãos, mas a nova legislação é um avanço
Da reforma liberal que a primeira-ministra Margaret Tatcher executou a partir de quando assumiu, em 1979, constava o fortalecimento de agências reguladoras, para, de forma independente, equidistantes de empresa, governo e clientes, zelar pelo cumprimento de contratos e pelos interesses dos consumidores. Isso aconteceu na esteira de privatizações. A inflação da Grã-Bretanha, de dois dígitos, foi debelada; privatizações, bem-sucedidas, ajudaram a economia a voltar a gerar gerar empregos, e Tatcher ficou 11 anos no poder.
A importação da ideia das agências reguladoras ocorreu na gestão de Fernando Henrique, sob, por óbvio, ruidosa oposição. Não apenas às privatizações que originaram as agências, como a elas mesmas. Acabar com estatais que eram ordenhadas pelo sistema político fisiologista e criar um ente autônomo para ficar distante dos interesses dos subterrâneos de Brasília, a fim de mediar o inevitável conflito de interesses entre ex-estatais, governo e mercado, nunca foram bem digeridos pela baixa política.
Mais de duas décadas depois de criadas as primeiras agências, o seu papel continua incompreendido, como demonstram vetos feitos na terça-feira pelo presidente Bolsonaro no texto da nova lei que regula esses organismos. Um deles suprime da legislação o método de escolha de dirigentes das agências por meio de listas tríplices constituídas por profissionais a serem levadas ao presidente para fazer sua escolha. Alega o Planalto que é prerrogativa do presidente nomear, o que não está em questão. Pode-se entender o ponto de vista de Bolsonaro, que, como disse, não quer ser uma “rainha da Inglaterra”. Mas é um exagero.
É claro que todo este processo de escolha tem de ser transparente, obedecidos parâmetros profissionais, éticos etc. Mas é preciso encontrar-se um meio termo entre o poder presidencial, que no Brasil é excessivo, e as exigências de qualidade e profissionalismo na regulação de mercados.
As duas décadas de agências reguladoras no Brasil reforçam o temor de seu uso político, como acontece com ministérios, autarquias e todo tipo de instrumentos da administração direta. Quando Lula assumiu, em 2003, fez críticas às agências do mesmo teor do reparo de Bolsonaro: “elas terceirizam o governo”. Na verdade, foi outra maneira de Lula dizer que se sentia “rainha da Inglaterra”.
O lulopetismo, então, aparelhou as agências, e elas perderam a razão de ser. A nova lei, submetida a vetos de Bolsonaro, não deixa de ser um avanço em relação ao quadro de terra arrasada deixado por Lula e Dilma.
O presidente repetir o cacoete do lulopetismo, de subordinar a máquina pública a seus desígnios, é um alerta. Ainda mais se for considerado que o governo pretende executar um amplo programa de privatizações, o que impõe a necessidade de um sistema regulador eficiente e não capturado por qualquer outro tipo de interesse que não seja o da eficiência.
Bolsonaro repete Lula diante da autonomia desses órgãos, mas a nova legislação é um avanço
Da reforma liberal que a primeira-ministra Margaret Tatcher executou a partir de quando assumiu, em 1979, constava o fortalecimento de agências reguladoras, para, de forma independente, equidistantes de empresa, governo e clientes, zelar pelo cumprimento de contratos e pelos interesses dos consumidores. Isso aconteceu na esteira de privatizações. A inflação da Grã-Bretanha, de dois dígitos, foi debelada; privatizações, bem-sucedidas, ajudaram a economia a voltar a gerar gerar empregos, e Tatcher ficou 11 anos no poder.
A importação da ideia das agências reguladoras ocorreu na gestão de Fernando Henrique, sob, por óbvio, ruidosa oposição. Não apenas às privatizações que originaram as agências, como a elas mesmas. Acabar com estatais que eram ordenhadas pelo sistema político fisiologista e criar um ente autônomo para ficar distante dos interesses dos subterrâneos de Brasília, a fim de mediar o inevitável conflito de interesses entre ex-estatais, governo e mercado, nunca foram bem digeridos pela baixa política.
Mais de duas décadas depois de criadas as primeiras agências, o seu papel continua incompreendido, como demonstram vetos feitos na terça-feira pelo presidente Bolsonaro no texto da nova lei que regula esses organismos. Um deles suprime da legislação o método de escolha de dirigentes das agências por meio de listas tríplices constituídas por profissionais a serem levadas ao presidente para fazer sua escolha. Alega o Planalto que é prerrogativa do presidente nomear, o que não está em questão. Pode-se entender o ponto de vista de Bolsonaro, que, como disse, não quer ser uma “rainha da Inglaterra”. Mas é um exagero.
É claro que todo este processo de escolha tem de ser transparente, obedecidos parâmetros profissionais, éticos etc. Mas é preciso encontrar-se um meio termo entre o poder presidencial, que no Brasil é excessivo, e as exigências de qualidade e profissionalismo na regulação de mercados.
As duas décadas de agências reguladoras no Brasil reforçam o temor de seu uso político, como acontece com ministérios, autarquias e todo tipo de instrumentos da administração direta. Quando Lula assumiu, em 2003, fez críticas às agências do mesmo teor do reparo de Bolsonaro: “elas terceirizam o governo”. Na verdade, foi outra maneira de Lula dizer que se sentia “rainha da Inglaterra”.
O lulopetismo, então, aparelhou as agências, e elas perderam a razão de ser. A nova lei, submetida a vetos de Bolsonaro, não deixa de ser um avanço em relação ao quadro de terra arrasada deixado por Lula e Dilma.
O presidente repetir o cacoete do lulopetismo, de subordinar a máquina pública a seus desígnios, é um alerta. Ainda mais se for considerado que o governo pretende executar um amplo programa de privatizações, o que impõe a necessidade de um sistema regulador eficiente e não capturado por qualquer outro tipo de interesse que não seja o da eficiência.
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