Arriscamos cair na síndrome da democracia que não governa, algo próximo à vetocracia
Dias atrás, Bolsonaro reclamou que estava sendo transformado em uma rainha da Inglaterra. Quando li aquilo, achei exagerado. Geralmente acho tudo meio exagerado, em política. Mas depois fiquei pensando e comecei a achar que o presidente tem alguma razão.
Desde a posse, pautas de interesse direto do governo vêm sistematicamente caindo. Assistimos agora ao fim melancólico do decreto das armas e o envio resignado de um projeto de lei ao Congresso (como deveria ter sido feito desde o início). Vimos atentativa frustrada de transferir a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura. Mesmo coisas esquisitas, como a ida da embaixada para Jerusalém, com toda a corte feita por Netanyahu, deu com os burros n’água.
Ainda nesta semana, o presidente vetou o item que prevê a lista tríplice para as agencias reguladoras. Aposto que o veto seja derrubado. Não apenas porque o governo não tem base, mas porque a lista tríplice é uma boa ideia. Despolitiza as agências. Restringe um poder do qual o presidente não precisa e que é bom que não tenha. E não estou falando de Bolsonaro, mas de qualquer presidente que venha pela frente.
Como tapa de luva, o presidente teve que assistir à inclusão, na Constituição, da execução obrigatória das emendas de bancada, retirando mais um naco de poder do Executivo. E precisa escutar todo dia que a reforma da Previdência anda sozinha no Congresso, à moda de um parlamentarismo branco (a expressão, muito boa, é do Fábio Giambiagi).
Enquanto isso, Rodrigo Maia conduz a aprovação da reforma com os partidos e governadores, encomenda uma agenda econômica própria e diz já ter definido instalar a comissão especial da reforma tributária (também nascida dentro do Congresso) ainda antes do recesso parlamentar.
Rodrigo Maia não é, mas parece agir como o primeiro-ministro em nosso parlamentarismo de coalizão. Ou, se quiserem, nosso presidencialismo de consensos provisórios. Tudo muito democrático, com freios e contrapesos funcionando à exaustão, em uma lógica estranha, aqui nos trópicos, que chamei de modelo de corresponsabilidade.
Tudo, aliás, inteiramente diferente do que o cenário desenhado, não faz muito, pela nossa crônica política, que insistia em apresentar Bolsonaro como uma espécie de Viktor Orbán dos trópicos ou, para os mais delirantes, como o novo Hugo Chávez.
A maldita realidade vem mostrando outra coisa. O país parece estar efetivamente fazendo uma experiência de parlamentarismo branco. Com o incômodo detalhe de que esse sistema não existe. Decorre daí nosso maior problema. Ele não vem da ameaça autoritária ou plebiscitária. Quem ainda estiver pensando nisso não está entendendo nada do que se passa por aqui.
O problema é a falta de direção. Nos tornamos um sistema presidencialista funcionando à moda parlamentar. Um sistema a meio caminho: presidencialista na forma, parlamentar no jeito. É possível enxergar alguma virtude aí. A ideia de um país funcionando à base de consensos progressivos e repartição do poder. Já escrevi tentando enxergar o lado positivo disso tudo.
Mas é possível perceber as sombras. A maior delas é a paralisia, a incerteza, a desconfiança crescente da sociedade e do mercado sobre a capacidade do sistema tocar adiante, de fato, alguma agenda relevante, para além da reforma da Previdência.
O país tem diante de si um amplo programa de micro e macro reformas estruturais, bem como um plano audacioso de desestatização. A percepção de que não há um arranjo político e pulso para fazer isso andar é hoje o principal inibidor do investimento a longo prazo no país.
Arriscamos cair na síndrome da democracia que não governa. Algo próximo à vetocracia, de Francis Fukuyama. A situação em que muitos compartilham do poder, mas o sistema como um todo caminha para não sei onde. Na expressão de Andrew Rawnsley, a democracia que se tornou “mais venenosa, ainda que mais desdentada”.
Confesso não ter ideia de como sair dessa zona de sombra. Não se trata de uma tragédia, mas de uma sistema que anda devagar, à base de consensos frágeis, quando deveria envolver a sociedade em um grande projeto de mudança. Se dependesse de mim, apostaria todas as fichas em uma reforma estrutural do sistema político, mas ninguém parece dar bola para essas coisas.
Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
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