FOLHA DE SP - 01/11
De acordo com os números mais recentes, 18,6 milhões de brasileiros têm TV por assinatura. É pouco, evidentemente, para uma população de 208 milhões de habitantes. Estima-se que seja necessário gastar 12% do salário médio para bancar as mensalidades dos pacotes de TV paga.
Há muitas razões para que milhares de assinantes desistam deste serviço, que deveria proporcionar diversão de alta qualidade.
Nos últimos anos, as operadoras têm nos empurrado para os combos –pacotes com TV, telefone fixo e acesso à banda larga–, por meio da cobrança de pesadas taxas para contratar estes serviços individualmente.
Por que o boleto da TV paga é tão caro? Primeiramente, porque somos espoliados pelo Estado perdulário e incompetente, em todo o Brasil. No ano passado, os consumidores pagaram R$ 64 bilhões em tributos sobre serviços de telecomunicações.
O tributo mais pesado é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que vai para os cofres dos estados.
A situação do consumidor fica ainda pior porque o nível da programação da TV paga caiu muito nos últimos anos, principalmente dos filmes. Para ter acesso a boas partidas de futebol, por exemplo, é necessário assinar pacotes caros. Recentemente, ainda houve um guerra entre algumas emissoras de TV aberta e as teles, mas a crise parece estar superada.
Na TV aberta, gratuita, são os comerciais que bancam os custos e o lucro das emissoras. Na TV fechada, há cada vez mais comerciais, inclusive durante um jogo de futebol ou um filme, e os pacotes estão cada vez mais caros.
Em lugar de entender a insatisfação dos assinantes, as operadoras investem, isto sim, contra empresas como Netflix, provedor de filmes e séries por streaming. Em São Paulo, o prefeito João Dória, enviou projeto de lei à Câmara Municipal para tributar, com alíquota de 2,9%, plataformas de streaming (distribuição multimídia em rede de pacotes), como Netflix e Spotify (música).
Isso mostra que, na hora de tributar, os governantes se assemelham.
Tratamos, aqui, dos preços, da programação, mas não podemos nos esquecer dos problemas técnicos. Mesmo a TV transmitida por fibra óptica tem frequentes interrupções e aqueles malditos quadradinhos coloridos na imagem, que tanto irritam o consumidor.
Nesses casos, o assinante deve ser ressarcido (geralmente, com desconto no valor do próximo boleto). Recomenda-se, também, que denuncie a falha a uma entidade de defesa do consumidor e à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
Que, por sua vez, deveria agir com mais firmeza com as teles também em relação à TV paga. Por exemplo, exigindo melhor qualidade técnica e mais flexibilidade na oferta de pacotes, que continuam formatados exclusivamente de acordo com o interesse das operadoras, não do consumidor.
Na TV por assinatura, como na telefonia fixa, móvel e no acesso à banda larga, ninguém é por nós.
quarta-feira, novembro 01, 2017
Vida do consumidor moderno se complica com escolhas demais a fazer - MARCELO COELHO
FOLHA DE SP - 01/11
Crédito ou débito? À vista ou parcelado? Inclui o CPF? Faz parte do programa vale-ponto? Vai levar sacolinha? Quantas vai precisar?
Se para prevenir o Alzheimer o cérebro precisar mesmo de exercício (algo de que duvido, uma vez que não é músculo), acho que a simples compra de duas garrafas de água e de uma barra de cereais no supermercado já seria suficiente para me livrar dessa ameaça.
Tenho algumas respostas prontas –sei de cor o CPF e até o número do cartão de crédito. Mas sempre paro para pensar quando se trata de número de sacolas ou da nota fiscal paulista.
Pessoas mais racionais do que eu planejam a data de vencimento do cartão e jogam com quatro ou cinco "bandeiras" como se fosse com uma mão de truco. De minha parte, se encontrar o cartão de crédito dentro da carteira já me considero uma pessoa de sorte.
O fato é que querem complicar demais a vida do consumidor, e uma teoria alternativa sobre o Alzheimer –a de que você deve economizar espaço na cabeça– pode ser sem dúvida invocada contra o mundo moderno.
Não tenho nada contra a livre concorrência, mas gostaria de não ter de fazer tantas escolhas ao mesmo tempo.
Antes, você ligava para o ponto de táxi e ele vinha. Agora, depois de baixar o aplicativo (qual? Há uns quatro ou cinco), devo decidir se quero o modelo pop, o preto, o de preço reduzido ou o de tarifa cheia.
O critério do preço não é decisivo, como sabemos. Nunca é. O mais barato demora mais para chegar, a não ser que aconteça o contrário e, por algum mistério, o carro mais caro não chegue nunca.
Tudo foi parar em alguma nuvem, cujo fiapo a nosso alcance é o sinal do celular (qual a sua operadora? Mas essa não é boa). De resto, qual a minha operadora? Era uma, que se fundiu com uma terceira, e a segunda, essa eu mudei de plano quando instalei a fibra ótica, que não é a mesma do telefone fixo...
Estou perdido, com cada coisa a um simples toque do dedo.
O café costumava aclarar meu pensamento, mas tornou-se outro motivo para me deixar com a cabeça quente. Ristretto ou Arpeggio? Borneo ou Surabaya? Porcelanato ou Vittelone? Resolvi ignorar as sutilezas do Nespresso, uma vez que, por razões gástricas, passei a misturar tudo com uma talagada de leite.
Semi-integral ou desnatado? Sem lactose ou com mais cálcio? Soja ou arroz? Piracanjuba ou Piracaia?
Melhor evitar complicação. Feliz com minha máquina de Nespresso, comprei cápsulas de café com leite pronto. Ou latte, como se diz agora.
Poverino! Não sabia que as cápsulas de latte e cappuccino só funcionam em outra máquina. A de Nespresso só "trabalha" com "blends" de "grãos". Cápsulas de chocolate quente, cappuccino ou mesmo chá só entram em dispositivos de outro tipo.
Compro outra máquina, que vem com instruções precisas. Há uma capsuleta especial que deve ser usada após você ter "degustado" o seu "machiatto". Serve para limpar os dutos do aparelho, sob pena de restos de leite impregnarem de toques rançosos o aroma geral do ambiente.
Foi o que aconteceu comigo, obrigando-me a tentar desmontar a geringonça para o trabalho de higienização interna. Sim, mas com que chave de fenda? Os parafusinhos eram de três tipos diferentes, cada qual exigindo ferramenta própria.
O mundo vai ficando mais esperto do que eu. A marca de minha incapacidade veio quando adicionaram um 9 ao número do celular. Até oito algarismos, eu sabia em que ritmo falar o número que eu tinha. Com o novo prefixo, perdi o ritmo, perdi o pé, perdi a paciência.
"Mas você não precisa falar o seu número! Mande pelo WhatsApp!" Hã? Hein? Como é que faz?
Fico aliviado quando me deparo com uma máquina mais simples, como o elevador. Sempre teve um ou dois botões que ninguém sabe para que serviam: a diferença entre "PO" e "Parar" ("Stop") nunca foi das mais claras, e poucos são os que se arriscaram a resolver esse problema.
Mas os elevadores já se complicam também. Em alguns estabelecimentos comerciais, você só entra se digitar o código da sala ou do escritório que pretende visitar. Ué, não te deram? Esqueceu? Tente o celular do recepcionista...
Para resumir, há opções demais, teclas demais, escolhas demais a fazer. Talvez eu esteja errado em reclamar, entretanto. Para o segundo turno, os favoritos são Lula e Bolsonaro. Quer com leite ou vai puro mesmo?
Crédito ou débito? À vista ou parcelado? Inclui o CPF? Faz parte do programa vale-ponto? Vai levar sacolinha? Quantas vai precisar?
Se para prevenir o Alzheimer o cérebro precisar mesmo de exercício (algo de que duvido, uma vez que não é músculo), acho que a simples compra de duas garrafas de água e de uma barra de cereais no supermercado já seria suficiente para me livrar dessa ameaça.
Tenho algumas respostas prontas –sei de cor o CPF e até o número do cartão de crédito. Mas sempre paro para pensar quando se trata de número de sacolas ou da nota fiscal paulista.
Pessoas mais racionais do que eu planejam a data de vencimento do cartão e jogam com quatro ou cinco "bandeiras" como se fosse com uma mão de truco. De minha parte, se encontrar o cartão de crédito dentro da carteira já me considero uma pessoa de sorte.
O fato é que querem complicar demais a vida do consumidor, e uma teoria alternativa sobre o Alzheimer –a de que você deve economizar espaço na cabeça– pode ser sem dúvida invocada contra o mundo moderno.
Não tenho nada contra a livre concorrência, mas gostaria de não ter de fazer tantas escolhas ao mesmo tempo.
Antes, você ligava para o ponto de táxi e ele vinha. Agora, depois de baixar o aplicativo (qual? Há uns quatro ou cinco), devo decidir se quero o modelo pop, o preto, o de preço reduzido ou o de tarifa cheia.
O critério do preço não é decisivo, como sabemos. Nunca é. O mais barato demora mais para chegar, a não ser que aconteça o contrário e, por algum mistério, o carro mais caro não chegue nunca.
Tudo foi parar em alguma nuvem, cujo fiapo a nosso alcance é o sinal do celular (qual a sua operadora? Mas essa não é boa). De resto, qual a minha operadora? Era uma, que se fundiu com uma terceira, e a segunda, essa eu mudei de plano quando instalei a fibra ótica, que não é a mesma do telefone fixo...
Estou perdido, com cada coisa a um simples toque do dedo.
O café costumava aclarar meu pensamento, mas tornou-se outro motivo para me deixar com a cabeça quente. Ristretto ou Arpeggio? Borneo ou Surabaya? Porcelanato ou Vittelone? Resolvi ignorar as sutilezas do Nespresso, uma vez que, por razões gástricas, passei a misturar tudo com uma talagada de leite.
Semi-integral ou desnatado? Sem lactose ou com mais cálcio? Soja ou arroz? Piracanjuba ou Piracaia?
Melhor evitar complicação. Feliz com minha máquina de Nespresso, comprei cápsulas de café com leite pronto. Ou latte, como se diz agora.
Poverino! Não sabia que as cápsulas de latte e cappuccino só funcionam em outra máquina. A de Nespresso só "trabalha" com "blends" de "grãos". Cápsulas de chocolate quente, cappuccino ou mesmo chá só entram em dispositivos de outro tipo.
Compro outra máquina, que vem com instruções precisas. Há uma capsuleta especial que deve ser usada após você ter "degustado" o seu "machiatto". Serve para limpar os dutos do aparelho, sob pena de restos de leite impregnarem de toques rançosos o aroma geral do ambiente.
Foi o que aconteceu comigo, obrigando-me a tentar desmontar a geringonça para o trabalho de higienização interna. Sim, mas com que chave de fenda? Os parafusinhos eram de três tipos diferentes, cada qual exigindo ferramenta própria.
O mundo vai ficando mais esperto do que eu. A marca de minha incapacidade veio quando adicionaram um 9 ao número do celular. Até oito algarismos, eu sabia em que ritmo falar o número que eu tinha. Com o novo prefixo, perdi o ritmo, perdi o pé, perdi a paciência.
"Mas você não precisa falar o seu número! Mande pelo WhatsApp!" Hã? Hein? Como é que faz?
Fico aliviado quando me deparo com uma máquina mais simples, como o elevador. Sempre teve um ou dois botões que ninguém sabe para que serviam: a diferença entre "PO" e "Parar" ("Stop") nunca foi das mais claras, e poucos são os que se arriscaram a resolver esse problema.
Mas os elevadores já se complicam também. Em alguns estabelecimentos comerciais, você só entra se digitar o código da sala ou do escritório que pretende visitar. Ué, não te deram? Esqueceu? Tente o celular do recepcionista...
Para resumir, há opções demais, teclas demais, escolhas demais a fazer. Talvez eu esteja errado em reclamar, entretanto. Para o segundo turno, os favoritos são Lula e Bolsonaro. Quer com leite ou vai puro mesmo?
Futebol não é para os crédulos - TOSTÃO
FOLHA DE SP - 01/11
Milhares de razões da astronômica ascensão e queda do Corinthians já foram abordadas, um milhão de vezes, na mídia, nas ruas e nos botequins. Alguns psicólogos do esporte pensam que houve um relaxamento do time, como mostrou, nesta terça (31), matéria da Folha. Novas estatísticas surgem a cada dia, para tentar explicar o fenômeno. Se o Corinthians não for campeão, haverá uma mega congresso, com os maiores catedráticos nos assunto.
Como sou metido a entendido, tenho também minhas teorias, que têm grandes chances de estarem erradas. Pela lógica do caos, do acaso e dos mistérios da mente, os jogadores entraram em pânico, em vez de relaxarem, quando perceberam, no início do 2º turno, que seria um vexame perder o título, pois estava muito fácil ser campeão. Até o sensato Carille perdeu o bom senso, ao pôr, ao fim de vários jogos, um excesso de atacantes, o que diminuiu organização e chance de vitórias.
Começaram as comparações entre Carille e Valentim. Se o Palmeiras for campeão, Valentim será endeusado, como foi Carille no primeiro turno. Já o técnico do Corinthians, poderá ser, se brilhar, no primeiro semestre de 2018, o Valentim do fim de 2017. As coisas vão e voltam, especialmente as análises sobre a qualidade dos técnicos.
Os melhores treinadores, ou melhor, os que ganham mais títulos, sobretudo os campeonatos por pontos corridos, são os que dirigem as equipes com os melhores jogadores. Há exceções, pontuais. Um técnico inferior pode, surpreendentemente, ganhar um grande título, passar a dirigir as mais fortes equipes e ter mais sucesso que um outro superior, que não teve as mesmas chances. O melhor é relativo.
Parafraseando Tom Jobim, o futebol não é para os crédulos, ingênuos.
Empate
Antes do jogo contra o Cruzeiro, parecia, pelos programas esportivos e pelas conversas de rua, que o Palmeiras já se preparava para conquistar a liderança contra o Corinthians, no próximo fim de semana.
O Palmeiras jogou bem, criou chances de gol, pela qualidade de seus atacantes e pela pressão por jogar em casa, mas mostrou problemas defensivos. O time avançava a marcação e deixava espaços na defesa, ainda mais que não tem defensores de qualidade. O Cruzeiro, no início do segundo tempo, fez um gol e teve chance de fazer o terceiro. Aí, Mano Menezes trocou Arrascaeta por mais um volante, Lucas Silva. O time não melhorou a marcação, não teve mais contra-ataque e foi sufocado, até sofrer o gol de empate.
Decisões
No Fla-Flu que define a classificação na Sul-Americana, três jogadores me chamam a atenção: o jovem Scarpa, 23, que, se jogasse em um time de grandes jogadores teria chance de evoluir e se tornar um meia excepcional; Juan, 38, um dos grandes zagueiros da história do futebol brasileiro, ainda melhor que os outros; e Vinícius Jr., que passou da hora de ser mais bem aproveitado no time titular do Flamengo.
O Grêmio está praticamente na final da Libertadores. Se houver uma zebra e o time ser eliminado, após vencer o Barcelona por 3 a 0, e, ao mesmo tempo, o Corinthians perder o título, o que era inimaginável ao término do primeiro turno do Brasileiro, serão situações tão surpreendentes quanto um corrupto e seus aliados apoiarem a Lava Jato.
Milhares de razões da astronômica ascensão e queda do Corinthians já foram abordadas, um milhão de vezes, na mídia, nas ruas e nos botequins. Alguns psicólogos do esporte pensam que houve um relaxamento do time, como mostrou, nesta terça (31), matéria da Folha. Novas estatísticas surgem a cada dia, para tentar explicar o fenômeno. Se o Corinthians não for campeão, haverá uma mega congresso, com os maiores catedráticos nos assunto.
Como sou metido a entendido, tenho também minhas teorias, que têm grandes chances de estarem erradas. Pela lógica do caos, do acaso e dos mistérios da mente, os jogadores entraram em pânico, em vez de relaxarem, quando perceberam, no início do 2º turno, que seria um vexame perder o título, pois estava muito fácil ser campeão. Até o sensato Carille perdeu o bom senso, ao pôr, ao fim de vários jogos, um excesso de atacantes, o que diminuiu organização e chance de vitórias.
Começaram as comparações entre Carille e Valentim. Se o Palmeiras for campeão, Valentim será endeusado, como foi Carille no primeiro turno. Já o técnico do Corinthians, poderá ser, se brilhar, no primeiro semestre de 2018, o Valentim do fim de 2017. As coisas vão e voltam, especialmente as análises sobre a qualidade dos técnicos.
Os melhores treinadores, ou melhor, os que ganham mais títulos, sobretudo os campeonatos por pontos corridos, são os que dirigem as equipes com os melhores jogadores. Há exceções, pontuais. Um técnico inferior pode, surpreendentemente, ganhar um grande título, passar a dirigir as mais fortes equipes e ter mais sucesso que um outro superior, que não teve as mesmas chances. O melhor é relativo.
Parafraseando Tom Jobim, o futebol não é para os crédulos, ingênuos.
Empate
Antes do jogo contra o Cruzeiro, parecia, pelos programas esportivos e pelas conversas de rua, que o Palmeiras já se preparava para conquistar a liderança contra o Corinthians, no próximo fim de semana.
O Palmeiras jogou bem, criou chances de gol, pela qualidade de seus atacantes e pela pressão por jogar em casa, mas mostrou problemas defensivos. O time avançava a marcação e deixava espaços na defesa, ainda mais que não tem defensores de qualidade. O Cruzeiro, no início do segundo tempo, fez um gol e teve chance de fazer o terceiro. Aí, Mano Menezes trocou Arrascaeta por mais um volante, Lucas Silva. O time não melhorou a marcação, não teve mais contra-ataque e foi sufocado, até sofrer o gol de empate.
Decisões
No Fla-Flu que define a classificação na Sul-Americana, três jogadores me chamam a atenção: o jovem Scarpa, 23, que, se jogasse em um time de grandes jogadores teria chance de evoluir e se tornar um meia excepcional; Juan, 38, um dos grandes zagueiros da história do futebol brasileiro, ainda melhor que os outros; e Vinícius Jr., que passou da hora de ser mais bem aproveitado no time titular do Flamengo.
O Grêmio está praticamente na final da Libertadores. Se houver uma zebra e o time ser eliminado, após vencer o Barcelona por 3 a 0, e, ao mesmo tempo, o Corinthians perder o título, o que era inimaginável ao término do primeiro turno do Brasileiro, serão situações tão surpreendentes quanto um corrupto e seus aliados apoiarem a Lava Jato.
A recessão acabou: e daí? - ALEXANDRE SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 01/11
Na semana passada, o Comitê de Datação de Ciclos Econômicos anunciou que a recessão iniciada no segundo trimestre de 2014 se encerrou no quarto trimestre de 2016 (11 trimestres), não só a mais longa desde 1980 (empatada com a observada entre 1989 e 1992), como também a associada à maior queda de produto, 8,6%, um pouco pior do que a registrada durante a crise da dívida, de 1981 a 1983.
Isso significa que a economia, que vinha em processo de encolhimento a partir de meados de 2014, interrompeu sua queda e voltou a crescer moderadamente, uma boa notícia, mas que precisa ser qualificada.
Assim como inflação mais baixa denota preços subindo mais vagarosamente (e não preços em queda; fenômeno que chamamos de deflação), o fim da recessão não equivale a dizer que a economia está pujante; apenas que parou de piorar.
Dados do segundo trimestre deste ano, já com alguma melhora, dão uma ideia de quanto ainda falta para a recuperação: o PIB ainda se encontra 7,5% (R$ 132 bilhões) abaixo do observado no primeiro trimestre de 2014, enquanto a demanda doméstica (consumo das famílias, investimento e consumo do governo) caiu quase 11% (R$ 197 bilhões) no período, valor apenas parcialmente compensado pelo aumento do superávit nas transações com o resto do mundo.
Já o desemprego, ajustado à sazonalidade, se encontrava em 12,8% no segundo trimestre de 2017, contra 6,7% no primeiro trimestre de 2014, associado à perda de quase 1,6 milhões de postos de trabalho neste intervalo, lembrando que ao longo do período a População em Idade Ativa aumentou em 7,3 milhões de pessoas, enquanto a População Economicamente Ativa cresceu 5,4 milhões.
Considerando que o crescimento potencial do país seja algo da ordem de 2,2% aa, conforme mencionamos em coluna recente, seriam necessários quase 9 anos de expansão a 3,5% aa para que voltássemos ao nível de produto potencial do país, ou pouco menos de 7 anos, caso nosso crescimento médio retomasse o ritmo de 4% aa observado durante o longo ciclo positivo de preços de commodities, entre 2004 e 2011. Pela ótica do desemprego, mesmo sob os ritmos de expansão acima considerados, precisaríamos de 6 a 8 anos para retomar os níveis vigentes antes da recessão.
Resumindo, muito embora a recessão tenha ficado para trás, a "sensação térmica" da economia ainda se encontra distante daquilo que deixaria famílias e empresas em condição mais confortável. E, mesmo com a provável aceleração do ritmo de crescimento no final deste ano e ao longo do ano que vem, será difícil superar tal sensação.
A verdade é que o estrago da Nova Matriz, pobre órfã, foi muito profundo. Parte do dano foi reparada, em particular do lado regulatório, onde houve boas iniciativas (a transição para a TLP, a gestão da Petrobras, retomada dos leilões para exploração de petróleo, para citar apenas algumas), mas há consequências muito mais duradouras do lado fiscal, cuja reversão tem se mostrado extraordinariamente difícil, sugerindo se tratar de tarefa que alcança bem mais do que um mandato presidencial.
Tendo obtido sucesso moderado ao estancar a recessão, precisamos agora melhorar a sensação térmica, limpando de vez o legado desastroso da Nova Matriz e, principalmente, ignorando conselhos dos pais (ausentes) deste desastre.
Na semana passada, o Comitê de Datação de Ciclos Econômicos anunciou que a recessão iniciada no segundo trimestre de 2014 se encerrou no quarto trimestre de 2016 (11 trimestres), não só a mais longa desde 1980 (empatada com a observada entre 1989 e 1992), como também a associada à maior queda de produto, 8,6%, um pouco pior do que a registrada durante a crise da dívida, de 1981 a 1983.
Isso significa que a economia, que vinha em processo de encolhimento a partir de meados de 2014, interrompeu sua queda e voltou a crescer moderadamente, uma boa notícia, mas que precisa ser qualificada.
Assim como inflação mais baixa denota preços subindo mais vagarosamente (e não preços em queda; fenômeno que chamamos de deflação), o fim da recessão não equivale a dizer que a economia está pujante; apenas que parou de piorar.
Dados do segundo trimestre deste ano, já com alguma melhora, dão uma ideia de quanto ainda falta para a recuperação: o PIB ainda se encontra 7,5% (R$ 132 bilhões) abaixo do observado no primeiro trimestre de 2014, enquanto a demanda doméstica (consumo das famílias, investimento e consumo do governo) caiu quase 11% (R$ 197 bilhões) no período, valor apenas parcialmente compensado pelo aumento do superávit nas transações com o resto do mundo.
Já o desemprego, ajustado à sazonalidade, se encontrava em 12,8% no segundo trimestre de 2017, contra 6,7% no primeiro trimestre de 2014, associado à perda de quase 1,6 milhões de postos de trabalho neste intervalo, lembrando que ao longo do período a População em Idade Ativa aumentou em 7,3 milhões de pessoas, enquanto a População Economicamente Ativa cresceu 5,4 milhões.
Considerando que o crescimento potencial do país seja algo da ordem de 2,2% aa, conforme mencionamos em coluna recente, seriam necessários quase 9 anos de expansão a 3,5% aa para que voltássemos ao nível de produto potencial do país, ou pouco menos de 7 anos, caso nosso crescimento médio retomasse o ritmo de 4% aa observado durante o longo ciclo positivo de preços de commodities, entre 2004 e 2011. Pela ótica do desemprego, mesmo sob os ritmos de expansão acima considerados, precisaríamos de 6 a 8 anos para retomar os níveis vigentes antes da recessão.
Resumindo, muito embora a recessão tenha ficado para trás, a "sensação térmica" da economia ainda se encontra distante daquilo que deixaria famílias e empresas em condição mais confortável. E, mesmo com a provável aceleração do ritmo de crescimento no final deste ano e ao longo do ano que vem, será difícil superar tal sensação.
A verdade é que o estrago da Nova Matriz, pobre órfã, foi muito profundo. Parte do dano foi reparada, em particular do lado regulatório, onde houve boas iniciativas (a transição para a TLP, a gestão da Petrobras, retomada dos leilões para exploração de petróleo, para citar apenas algumas), mas há consequências muito mais duradouras do lado fiscal, cuja reversão tem se mostrado extraordinariamente difícil, sugerindo se tratar de tarefa que alcança bem mais do que um mandato presidencial.
Tendo obtido sucesso moderado ao estancar a recessão, precisamos agora melhorar a sensação térmica, limpando de vez o legado desastroso da Nova Matriz e, principalmente, ignorando conselhos dos pais (ausentes) deste desastre.
Teu mal é comentar o passado - ROSANGELA BITTAR
Valor Econômico - 01/11
Reconhecer a realidade é um dom e, trabalhar com ela, prova de inteligência. A disputa presidencial em andamento, a um ano de sua realização, carece dessas qualidades, como está se configurando. Tudo parece arcaico, uma repetição das experiências mal sucedidas, enquanto todos esperam por um milagre.
Que não virá. Não foi por acaso que os últimos Presidentes da República chegaram aos seus cargos. O populismo fácil ajudou muita gente, por oportunismo de época, e ainda pode ajudar hoje, não sai de moda. O país não avançou ao ponto de perceber sempre quando está sendo enganado. Mas organização e construção da proposta foram fundamentais em outras ocasiões, cada vez mais percebidas pelo eleitorado.
Juscelino Kubitscheck tinha vivência de prefeito, de constituinte, de deputado federal, mas quando resolveu ir mais longe plantou meticulosamente os alicerces da caminhada. A partir do apoio do PSD, construiu uma base física sólida, toda semana ia a um Estado, hospedava-se em casa de aliados naquele local, resolvia os problemas do grupo e, quando precisou, a consequência da preparação apareceu.
Jânio Quadros não foi eleito por ser excêntrico. Professor de português, descobriu São Paulo na essência da política que se desenvolve perto do cidadão, como vereador. Frequentou protestos, redações de jornais e em nome do povo reclamou do preço do pãozinho à sujeira visível. Ancorado em dois partidos que não eram os mais importantes, venceu todos os outros grandes reunidos para enfrentá-lo. O populismo, mais uma vez, foi arma.
Fernando Collor surfou também nessa onda, vindo de um mandato de governador de pequeno Estado. Seu problema foi escrachar o populismo de tal maneira que, de caçador de marajás, virou um deles, e ninguém conseguiu ainda enquadrá-lo, como ele também não deu alçapão às suas caças, eram só peças de campanha.
Fernando Henrique, com a experiência de uma candidatura a prefeito, sua representação da esquerda e expoente da resistência, tendo um plano econômico bem sucedido a exibir e um partido relativamente novo e sem desgastes ainda, correu duas vezes para o abraço.
Lula veio de uma liderança sindical mais forte até que um partido, mas o seu também era forte, à época. E de experiências de eleições que perdeu. O populismo encontrou nele um siamês, e levou às últimas consequências o que se pode esperar da transformação do que sai da garganta em popularidade.
São algumas evidências refletidas no espelho retrovisor, mas não se pode viver no futuro de repetições do passado.
Não é possível adivinhar o que vai interessar ao cidadão mas é possível não contar com a repetição saturada. A situação de Juscelino não se compara à de quem não tem um partido homogêneo e hegemônico, a de Jânio não se repete jamais para quem hoje vive de queimar etapas, as condições de Fernando Henrique e Lula não podem se instalar para quem está longe de ser uma candidatura natural.
Nenhum deles é modelo para o outro e também para os que querem disputar hoje. O Brasil é outro, os meios de comunicação são outros. Algum marqueteiro vai inventar os marajás? E o eleitor vai se sensibilizar com essa falsa perseguição aos privilegiados?
O tema sensível é a corrupção? Será o enfrentamento da rejeição? Ou será a economia, o bolso do eleitor, como sempre se traduz o emprego, salário, os preços de alimentos, assistência em saúde, retorno em educação e segurança, a vida enfim? Não se deve pedir refúgio na economia, porque há dados que permitem euforia e há dados que permitem depressão. Não se pode comemorar os 2,54% de inflação, nem os 7,5% de juros, diante dos 159 bilhões de déficit primário e o resistente desemprego que, embora descendo, continua alto. Nos jornais há parâmetros para qualquer gosto, da produção de cebola à do açucar. A economia é apenas uma questão.
O processo é de construção, não de adivinhação. A economia é de uma multiplicidade de situações impressionante. A corrupção é tema enfrentado, medidas providenciadas, cadeias lotadas. De novo: é preciso construir a candidatura, a história, o mais original que for possível. Tendo a realidade no horizonte.
Lula encerrou sua viagem por cidades de Minas Gerais, em campanha, com um comício em Belo Horizonte, na noite de segunda, no qual disse a que virá em 2018: vai revogar todas as medidas aprovadas no atual governo, como o teto de gastos, a reforma trabalhista, a reforma da previdência se vier a ser aprovada, a quebra da participação da Petrobras nos blocos de petróleo do pré-sal. É o mesmo candidato que para se eleger teve que se comprometer, por escrito, com a estabilidade, que venceu porque negou ruptura. E se preparou, com intenção clara para prometer o nada, pois o processo já tem nome: "referendo revogatório". E de quebra, para se defender, disse que "eles inventaram essa história de corrupção da Petrobras". Eles, no caso, são seus adversários políticos que, como ele, estão cobertos de denúncias.
Qual a proposta? O que viabiliza o candidato, hoje, parece ser não aquilo de que é a favor, mas sim o que é contra.
Nada mais velho que o discurso dos outsiders que, como tais, querem ser reconhecidos e amados: qual a proposta de Ciro Gomes, Jair Bolsonaro, Marina Silva, que não seja um populismo de nicho, um esperar sem fim que algo caia do céu em forma de projeto de país, equipe e votos? Nem o Rede aguenta mais o discurso messiânico à deriva, estão todos se digladiando em torno de zero. Talvez do fundo partidário.
Ninguém mais do que ela teve chances desperdiçadas, apoio de empresários sérios e com lastro, uma segunda candidatura atirada ao seu colo com extremo apelo sentimental. Ficou pelo meio do caminho.
Ciro sonha com recall e não sai do lugar, Bolsonaro com uma representação de voz que ninguém mediu nem sabe qual é, mas é na raia radical que não se sabe se o Brasil já aceita. Geraldo Alckmin é o antipopulista, tem partido, organização e está construindo. Para fazer o quê?
São enfadonhas mesmices do marco zero eleitoral.
Reconhecer a realidade é um dom e, trabalhar com ela, prova de inteligência. A disputa presidencial em andamento, a um ano de sua realização, carece dessas qualidades, como está se configurando. Tudo parece arcaico, uma repetição das experiências mal sucedidas, enquanto todos esperam por um milagre.
Que não virá. Não foi por acaso que os últimos Presidentes da República chegaram aos seus cargos. O populismo fácil ajudou muita gente, por oportunismo de época, e ainda pode ajudar hoje, não sai de moda. O país não avançou ao ponto de perceber sempre quando está sendo enganado. Mas organização e construção da proposta foram fundamentais em outras ocasiões, cada vez mais percebidas pelo eleitorado.
Juscelino Kubitscheck tinha vivência de prefeito, de constituinte, de deputado federal, mas quando resolveu ir mais longe plantou meticulosamente os alicerces da caminhada. A partir do apoio do PSD, construiu uma base física sólida, toda semana ia a um Estado, hospedava-se em casa de aliados naquele local, resolvia os problemas do grupo e, quando precisou, a consequência da preparação apareceu.
Jânio Quadros não foi eleito por ser excêntrico. Professor de português, descobriu São Paulo na essência da política que se desenvolve perto do cidadão, como vereador. Frequentou protestos, redações de jornais e em nome do povo reclamou do preço do pãozinho à sujeira visível. Ancorado em dois partidos que não eram os mais importantes, venceu todos os outros grandes reunidos para enfrentá-lo. O populismo, mais uma vez, foi arma.
Fernando Collor surfou também nessa onda, vindo de um mandato de governador de pequeno Estado. Seu problema foi escrachar o populismo de tal maneira que, de caçador de marajás, virou um deles, e ninguém conseguiu ainda enquadrá-lo, como ele também não deu alçapão às suas caças, eram só peças de campanha.
Fernando Henrique, com a experiência de uma candidatura a prefeito, sua representação da esquerda e expoente da resistência, tendo um plano econômico bem sucedido a exibir e um partido relativamente novo e sem desgastes ainda, correu duas vezes para o abraço.
Lula veio de uma liderança sindical mais forte até que um partido, mas o seu também era forte, à época. E de experiências de eleições que perdeu. O populismo encontrou nele um siamês, e levou às últimas consequências o que se pode esperar da transformação do que sai da garganta em popularidade.
São algumas evidências refletidas no espelho retrovisor, mas não se pode viver no futuro de repetições do passado.
Não é possível adivinhar o que vai interessar ao cidadão mas é possível não contar com a repetição saturada. A situação de Juscelino não se compara à de quem não tem um partido homogêneo e hegemônico, a de Jânio não se repete jamais para quem hoje vive de queimar etapas, as condições de Fernando Henrique e Lula não podem se instalar para quem está longe de ser uma candidatura natural.
Nenhum deles é modelo para o outro e também para os que querem disputar hoje. O Brasil é outro, os meios de comunicação são outros. Algum marqueteiro vai inventar os marajás? E o eleitor vai se sensibilizar com essa falsa perseguição aos privilegiados?
O tema sensível é a corrupção? Será o enfrentamento da rejeição? Ou será a economia, o bolso do eleitor, como sempre se traduz o emprego, salário, os preços de alimentos, assistência em saúde, retorno em educação e segurança, a vida enfim? Não se deve pedir refúgio na economia, porque há dados que permitem euforia e há dados que permitem depressão. Não se pode comemorar os 2,54% de inflação, nem os 7,5% de juros, diante dos 159 bilhões de déficit primário e o resistente desemprego que, embora descendo, continua alto. Nos jornais há parâmetros para qualquer gosto, da produção de cebola à do açucar. A economia é apenas uma questão.
O processo é de construção, não de adivinhação. A economia é de uma multiplicidade de situações impressionante. A corrupção é tema enfrentado, medidas providenciadas, cadeias lotadas. De novo: é preciso construir a candidatura, a história, o mais original que for possível. Tendo a realidade no horizonte.
Lula encerrou sua viagem por cidades de Minas Gerais, em campanha, com um comício em Belo Horizonte, na noite de segunda, no qual disse a que virá em 2018: vai revogar todas as medidas aprovadas no atual governo, como o teto de gastos, a reforma trabalhista, a reforma da previdência se vier a ser aprovada, a quebra da participação da Petrobras nos blocos de petróleo do pré-sal. É o mesmo candidato que para se eleger teve que se comprometer, por escrito, com a estabilidade, que venceu porque negou ruptura. E se preparou, com intenção clara para prometer o nada, pois o processo já tem nome: "referendo revogatório". E de quebra, para se defender, disse que "eles inventaram essa história de corrupção da Petrobras". Eles, no caso, são seus adversários políticos que, como ele, estão cobertos de denúncias.
Qual a proposta? O que viabiliza o candidato, hoje, parece ser não aquilo de que é a favor, mas sim o que é contra.
Nada mais velho que o discurso dos outsiders que, como tais, querem ser reconhecidos e amados: qual a proposta de Ciro Gomes, Jair Bolsonaro, Marina Silva, que não seja um populismo de nicho, um esperar sem fim que algo caia do céu em forma de projeto de país, equipe e votos? Nem o Rede aguenta mais o discurso messiânico à deriva, estão todos se digladiando em torno de zero. Talvez do fundo partidário.
Ninguém mais do que ela teve chances desperdiçadas, apoio de empresários sérios e com lastro, uma segunda candidatura atirada ao seu colo com extremo apelo sentimental. Ficou pelo meio do caminho.
Ciro sonha com recall e não sai do lugar, Bolsonaro com uma representação de voz que ninguém mediu nem sabe qual é, mas é na raia radical que não se sabe se o Brasil já aceita. Geraldo Alckmin é o antipopulista, tem partido, organização e está construindo. Para fazer o quê?
São enfadonhas mesmices do marco zero eleitoral.
O emprego na reforma trabalhista - VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SP - 01//11
No Brasil que se arrasta para fora do buraco da recessão, até setembro ainda desapareciam empregos com carteira assinada, mostra o IBGE. O grosso do emprego que aparece é o dos "por conta própria", com salário médio 24% menor que o dos celetistas, e o dos sem carteira (salário médio 38% menor).
Não é lá surpresa, neste país precário, de empresas na retranca, de Justiça caótica e de recuperação econômica sob risco político. Para variar, porém, agora em novembro entra em vigor alguma reforma trabalhista. A reforma vai modificar ritmo e padrão da recuperação do emprego?
Há empresas que esperam a vigência da lei nova antes de contratar, como se ouve em conversas pontuais. A maioria parece ainda na retranca porque sobra capacidade em suas firmas ou porque receia uma reviravolta em 2018, tumulto por causa da eleição.
De acordo com estudos lá não muito críveis (pouco robustos, no jargão) e especulação teórica de economistas sobre a reforma, ritmo e padrão de contratações de trabalhadores começariam a mudar de modo visível já em 2018, tudo mais constante.
O que se sabe de fato é que o número de contratados com carteira assinada caiu 2,4% em relação a setembro de 2016 (810 mil empregos a menos). Bem ruim, embora o ritmo da deterioração pareça menor pelos dados do Caged (queda de 1,2%).
Sim, são dados diferentes. A pesquisa do IBGE, a Pnad, acompanha amostras da população por um trimestre, é uma estatística, uma estimativa. O Caged é um registro de admissões e demissões de trabalhadores. Ainda assim, devem conversar, de tempos em tempos, o que não foi o caso na primeira metade de 2012 (os dados da Pnad eram melhores), nem é o deste ano, desde o segundo trimestre, quando a recuperação parece mais rápida pelo Caged.
O aumento do número de pessoas ocupadas é expressivo, 1,46 milhão a mais que em setembro do ano passado. Mas o número dos "por conta" aumentou 1 milhão; o dos sem carteira, 641 mil.
Embora não se conheça bem a composição desse universo de trabalhadores "por conta própria" (de autônomos a pessoas que fazem meros bicos), o quadro geral é de empresas ainda muito na retranca, seja qual for o motivo. Trata-se de um mercado em que os celetistas passaram de 40% do total dos trabalhadores, em abril de 2014 (início da recessão), para 36,5%, em setembro.
Tratamos de uma economia que não conhecemos bem, depois de mais de três anos de crise. De uma economia em que empresas se esforçaram em poupar trabalho, dada a catástrofe recessiva, que devem estar mais eficientes e, mesmo neste Brasil atrasado, devem recorrer mais a tecnologias que eliminam mão de obra ou contratos convencionais de trabalho.
Para piorar, não sabemos o tamanho da destruição da capacidade, de capital que não vai dar retorno ou que se tornou obsoleto. Isto é, não sabemos bem quais setores saíram menos arrebentados da recessão, quais vão investir etc.
Com a reforma trabalhista e, tomara, com crescimento mais acelerado em 2018, não é implausível uma recuperação com empregos, mas a princípio "wageless", com reação fraca dos salários, com mais gente terceirizada, trabalhando em tempo parcial ou outro tipo de contrato assim menor, ou então oficialmente precarizada.
No Brasil que se arrasta para fora do buraco da recessão, até setembro ainda desapareciam empregos com carteira assinada, mostra o IBGE. O grosso do emprego que aparece é o dos "por conta própria", com salário médio 24% menor que o dos celetistas, e o dos sem carteira (salário médio 38% menor).
Não é lá surpresa, neste país precário, de empresas na retranca, de Justiça caótica e de recuperação econômica sob risco político. Para variar, porém, agora em novembro entra em vigor alguma reforma trabalhista. A reforma vai modificar ritmo e padrão da recuperação do emprego?
Há empresas que esperam a vigência da lei nova antes de contratar, como se ouve em conversas pontuais. A maioria parece ainda na retranca porque sobra capacidade em suas firmas ou porque receia uma reviravolta em 2018, tumulto por causa da eleição.
De acordo com estudos lá não muito críveis (pouco robustos, no jargão) e especulação teórica de economistas sobre a reforma, ritmo e padrão de contratações de trabalhadores começariam a mudar de modo visível já em 2018, tudo mais constante.
O que se sabe de fato é que o número de contratados com carteira assinada caiu 2,4% em relação a setembro de 2016 (810 mil empregos a menos). Bem ruim, embora o ritmo da deterioração pareça menor pelos dados do Caged (queda de 1,2%).
Sim, são dados diferentes. A pesquisa do IBGE, a Pnad, acompanha amostras da população por um trimestre, é uma estatística, uma estimativa. O Caged é um registro de admissões e demissões de trabalhadores. Ainda assim, devem conversar, de tempos em tempos, o que não foi o caso na primeira metade de 2012 (os dados da Pnad eram melhores), nem é o deste ano, desde o segundo trimestre, quando a recuperação parece mais rápida pelo Caged.
O aumento do número de pessoas ocupadas é expressivo, 1,46 milhão a mais que em setembro do ano passado. Mas o número dos "por conta" aumentou 1 milhão; o dos sem carteira, 641 mil.
Embora não se conheça bem a composição desse universo de trabalhadores "por conta própria" (de autônomos a pessoas que fazem meros bicos), o quadro geral é de empresas ainda muito na retranca, seja qual for o motivo. Trata-se de um mercado em que os celetistas passaram de 40% do total dos trabalhadores, em abril de 2014 (início da recessão), para 36,5%, em setembro.
Tratamos de uma economia que não conhecemos bem, depois de mais de três anos de crise. De uma economia em que empresas se esforçaram em poupar trabalho, dada a catástrofe recessiva, que devem estar mais eficientes e, mesmo neste Brasil atrasado, devem recorrer mais a tecnologias que eliminam mão de obra ou contratos convencionais de trabalho.
Para piorar, não sabemos o tamanho da destruição da capacidade, de capital que não vai dar retorno ou que se tornou obsoleto. Isto é, não sabemos bem quais setores saíram menos arrebentados da recessão, quais vão investir etc.
Com a reforma trabalhista e, tomara, com crescimento mais acelerado em 2018, não é implausível uma recuperação com empregos, mas a princípio "wageless", com reação fraca dos salários, com mais gente terceirizada, trabalhando em tempo parcial ou outro tipo de contrato assim menor, ou então oficialmente precarizada.
A alma e o arame farpado - FABIO DE BIAZZI
ESTADÃO - 01/11
A criação da URSS foi a mais sanguinária das experiências sociais da História da humanidade
O mês de outubro marcou os cem anos da Revolução Bolchevique, que levou ao surgimento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1922-1991). A criação da URSS foi a mais sanguinária das experiências sociais da História da humanidade, com números estimados entre 20 milhões e 60 milhões de mortos, habitantes dos seus próprios países, assassinados pelo Estado por meio das mais diversas garras totalitárias.
Apesar de conhecidos esses números há muitos anos, dessa e de outras brutais ditaduras socialistas, continuamos incompreensivelmente a conviver com defensores desses governos bárbaros na política, no jornalismo, na academia. Visitemos as redações dos maiores jornais e eles estarão lá. Visitemos as universidades públicas e os defensores ardorosos da foice e do martelo estarão lá, talvez agora travestidos de bizarros exemplares bolivarianos.
Essa visão anacrônica e engajada com as promessas e os ideais socialistas fundamentaram partidos e “movimentos sociais” de esquerda mundo afora e deveu sua longevidade também ao que Bertrand Russell chamou de falácia da aristocracia: os indivíduos que levam à frente essas ideias as julgam imaginando que farão parte da minoria privilegiada que estará no comando, com papel e condições de vida totalmente diferentes dos que aguardariam os cidadãos comuns. Embora essa visão tenha sido abandonada em quase todo o mundo civilizado, seria perigosa ingenuidade acreditar que tal perspectiva política esteja enterrada no Brasil.
Aos pais que se preocupam por seus jovens serem doutrinados pelas promessas mentirosas e pelos fantasiosos ideais socialistas – e não, como deveriam ser, devidamente apresentados às consequências e aos resultados práticos desses regimes – segue uma singela sugestão: indiquem a seus filhos a leitura do livro Arquipélago Gulag, do Prêmio Nobel de Literatura Alexander Soljenitsyn (1918-2008).
Esse corajoso físico e matemático russo foi um capitão condecorado na 2.ª Guerra que acabou preso por terem encontrado em sua correspondência pessoal críticas a Stalin e ao governo soviético. Soljenitsyn passou 11 anos aprisionado em campos de trabalhos forçados, que surgiram ainda na época de Lenin e cujo número ultrapassou uma centena, quase todos espalhados pela Sibéria. Libertado por Kruchev, durante os anos seguintes dedicou-se a registrar não só as próprias memórias, mas os relatos e experiências de outros 227 presos nos campos que compunham o Gulag. Em suas próprias palavras, o livro é “um monumento coletivo àqueles que foram torturados e assassinados”.
Segundo Soljenitsyn, a realidade mais aterradora do que ele vivenciou nos campos siberianos era que, como um câncer, os venenos do Arquipélago Gulag se espraiavam e contaminavam todas as relações sociais e humanas naqueles países. No capítulo do livro de que foi extraído o título deste artigo, ele enumera dez traços, atitudes e comportamentos da vida dos soviéticos “livres” que eram “determinados pela proximidade com o Arquipélago” ou parecidos com os comportamentos dos presos nos campos.
1) O medo constante – todos sabiam que “apenas um gesto ou palavra descuidada poderia significar uma queda sem retorno no abismo”. 2) Servidão e subjugação – ninguém podia mudar de residência ou de trabalho sem obter vistos e autorizações. 3) Dissimulação e desconfiança – esses sentimentos substituíram a “cordialidade e a hospitalidade” que sempre foram “sentimentos de defesa naturais de qualquer família ou pessoa”. 4) Ignorância universal – a necessidade de esconder dos outros sentimentos e pensamentos levou à absoluta falta de informação. “Ninguém aprendia nada com ninguém” e estavam todos “completamente nas mãos dos jornais e porta-vozes oficiais”. 5) O medo de ser delatado – mesmo num pequeno grupo de pessoas, parentes ou vizinhos, sempre existia a possibilidade de um deles ser informante do regime. Soljenitsyn estima que um a cada quatro ou cinco cidadãos soviéticos havia sido convidado a ser “dedo-duro”. 6) A traição como forma de existência – “a forma menos perigosa de sobreviver era a traição constante”, materializada principalmente pelo silêncio dos amigos e parentes dos que eram aprisionados injustamente, pois todos temiam ser acusados de dar apoio a um inimigo do regime. 7) Degradação moral – mais de 50 milhões de pessoas foram enviadas aos campos de trabalhos forçados e a maioria foi denunciada por alguém ou condenada porque alguém serviu de testemunha. Isso implicou milhões e milhões de corresponsáveis pelas prisões e mortes vivendo em meio ao “nosso povo soviético”. 8) A mentira como parte de sua natureza – por medo ou por interesse próprio, todos passaram a se acostumar com “mentiras prontas” e clichês em suas conversas, mesmo em família. Aos pais restava o trágico dilema de falar verdades aos filhos ou vê-los crescer em meio às mentiras. 9) Crueldade – “a bondade era ridicularizada, a piedade era ridicularizada, a misericórdia era ridicularizada”. Ao recusar socorrer os que eram injustamente acusados e aprisionados, todos se tornavam cruéis. 10) Psicologia de escravos – nos mais diversos lugares, guardas tinham cães “preparados para cravar os dentes em qualquer um e todos se acostumaram com essas figuras como se fossem a coisa mais natural do mundo”.
Impossível uma síntese mais chocante e assustadora do que essa de Soljenitsyn. Ela mostra o que um regime socialista comunista é capaz de fazer a um povo: destruir os corpos dos injustamente acusados e dilacerar a alma dos que restaram “livres”. Sob o socialismo comunista, como no Gulag, toda a vida é enredada pelo arame farpado. O fato de alguns adultos ainda se recusarem a enxergar isso não significa que nossas crianças não mereçam crescer conscientes.
*Engenheiro de produção, mestre e doutor pela Escola Politécnica da USP, é sócio da Baepi Partners e professor de liderança e comportamento organizacional do Insper
A criação da URSS foi a mais sanguinária das experiências sociais da História da humanidade
O mês de outubro marcou os cem anos da Revolução Bolchevique, que levou ao surgimento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1922-1991). A criação da URSS foi a mais sanguinária das experiências sociais da História da humanidade, com números estimados entre 20 milhões e 60 milhões de mortos, habitantes dos seus próprios países, assassinados pelo Estado por meio das mais diversas garras totalitárias.
Apesar de conhecidos esses números há muitos anos, dessa e de outras brutais ditaduras socialistas, continuamos incompreensivelmente a conviver com defensores desses governos bárbaros na política, no jornalismo, na academia. Visitemos as redações dos maiores jornais e eles estarão lá. Visitemos as universidades públicas e os defensores ardorosos da foice e do martelo estarão lá, talvez agora travestidos de bizarros exemplares bolivarianos.
Essa visão anacrônica e engajada com as promessas e os ideais socialistas fundamentaram partidos e “movimentos sociais” de esquerda mundo afora e deveu sua longevidade também ao que Bertrand Russell chamou de falácia da aristocracia: os indivíduos que levam à frente essas ideias as julgam imaginando que farão parte da minoria privilegiada que estará no comando, com papel e condições de vida totalmente diferentes dos que aguardariam os cidadãos comuns. Embora essa visão tenha sido abandonada em quase todo o mundo civilizado, seria perigosa ingenuidade acreditar que tal perspectiva política esteja enterrada no Brasil.
Aos pais que se preocupam por seus jovens serem doutrinados pelas promessas mentirosas e pelos fantasiosos ideais socialistas – e não, como deveriam ser, devidamente apresentados às consequências e aos resultados práticos desses regimes – segue uma singela sugestão: indiquem a seus filhos a leitura do livro Arquipélago Gulag, do Prêmio Nobel de Literatura Alexander Soljenitsyn (1918-2008).
Esse corajoso físico e matemático russo foi um capitão condecorado na 2.ª Guerra que acabou preso por terem encontrado em sua correspondência pessoal críticas a Stalin e ao governo soviético. Soljenitsyn passou 11 anos aprisionado em campos de trabalhos forçados, que surgiram ainda na época de Lenin e cujo número ultrapassou uma centena, quase todos espalhados pela Sibéria. Libertado por Kruchev, durante os anos seguintes dedicou-se a registrar não só as próprias memórias, mas os relatos e experiências de outros 227 presos nos campos que compunham o Gulag. Em suas próprias palavras, o livro é “um monumento coletivo àqueles que foram torturados e assassinados”.
Segundo Soljenitsyn, a realidade mais aterradora do que ele vivenciou nos campos siberianos era que, como um câncer, os venenos do Arquipélago Gulag se espraiavam e contaminavam todas as relações sociais e humanas naqueles países. No capítulo do livro de que foi extraído o título deste artigo, ele enumera dez traços, atitudes e comportamentos da vida dos soviéticos “livres” que eram “determinados pela proximidade com o Arquipélago” ou parecidos com os comportamentos dos presos nos campos.
1) O medo constante – todos sabiam que “apenas um gesto ou palavra descuidada poderia significar uma queda sem retorno no abismo”. 2) Servidão e subjugação – ninguém podia mudar de residência ou de trabalho sem obter vistos e autorizações. 3) Dissimulação e desconfiança – esses sentimentos substituíram a “cordialidade e a hospitalidade” que sempre foram “sentimentos de defesa naturais de qualquer família ou pessoa”. 4) Ignorância universal – a necessidade de esconder dos outros sentimentos e pensamentos levou à absoluta falta de informação. “Ninguém aprendia nada com ninguém” e estavam todos “completamente nas mãos dos jornais e porta-vozes oficiais”. 5) O medo de ser delatado – mesmo num pequeno grupo de pessoas, parentes ou vizinhos, sempre existia a possibilidade de um deles ser informante do regime. Soljenitsyn estima que um a cada quatro ou cinco cidadãos soviéticos havia sido convidado a ser “dedo-duro”. 6) A traição como forma de existência – “a forma menos perigosa de sobreviver era a traição constante”, materializada principalmente pelo silêncio dos amigos e parentes dos que eram aprisionados injustamente, pois todos temiam ser acusados de dar apoio a um inimigo do regime. 7) Degradação moral – mais de 50 milhões de pessoas foram enviadas aos campos de trabalhos forçados e a maioria foi denunciada por alguém ou condenada porque alguém serviu de testemunha. Isso implicou milhões e milhões de corresponsáveis pelas prisões e mortes vivendo em meio ao “nosso povo soviético”. 8) A mentira como parte de sua natureza – por medo ou por interesse próprio, todos passaram a se acostumar com “mentiras prontas” e clichês em suas conversas, mesmo em família. Aos pais restava o trágico dilema de falar verdades aos filhos ou vê-los crescer em meio às mentiras. 9) Crueldade – “a bondade era ridicularizada, a piedade era ridicularizada, a misericórdia era ridicularizada”. Ao recusar socorrer os que eram injustamente acusados e aprisionados, todos se tornavam cruéis. 10) Psicologia de escravos – nos mais diversos lugares, guardas tinham cães “preparados para cravar os dentes em qualquer um e todos se acostumaram com essas figuras como se fossem a coisa mais natural do mundo”.
Impossível uma síntese mais chocante e assustadora do que essa de Soljenitsyn. Ela mostra o que um regime socialista comunista é capaz de fazer a um povo: destruir os corpos dos injustamente acusados e dilacerar a alma dos que restaram “livres”. Sob o socialismo comunista, como no Gulag, toda a vida é enredada pelo arame farpado. O fato de alguns adultos ainda se recusarem a enxergar isso não significa que nossas crianças não mereçam crescer conscientes.
*Engenheiro de produção, mestre e doutor pela Escola Politécnica da USP, é sócio da Baepi Partners e professor de liderança e comportamento organizacional do Insper
Quando as contas não fecham - HELIO SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 01/11
SÃO PAULO - Se me fosse dado o poder de apagar duas obsessões inscritas na natureza humana, eu eliminaria a religiosidade e o nacionalismo. Não é que nunca tragam nada de bom, mas o número de guerras que já causaram, a quantidade de sangue que já verteram e o volume de sofrimento que já disseminaram fazem com que a contabilidade, numa perspectiva consequencialista, seja-lhes francamente negativa. Mas, como não tenho o poder de suprimir nada, religiosos e nacionalistas podem ficar sossegados.
O mais novo capítulo da grande história das burradas nacionalistas, a crise da Catalunha, pode até ser descrito como um episódio benigno. Por mais complexa que seja a situação, ninguém imagina que a questão será resolvida com recurso às armas. Se a crise tivesse sido deflagrada apenas algumas décadas atrás, o mais provável é que tanques já tivessem sido despachados para "pacificar" Barcelona. A relativa tranquilidade do cenário atual é mérito das instituições democráticas nacionais (Espanha) e supranacionais (União Europeia), apesar de muitos insistirem que elas já caducaram.
O que ainda me assusta na novela catalã é a irracionalidade dos cálculos dos separatistas. Do lado dos ganhos está apenas a realização do desejo, até meio infantil, de dizer que são independentes. Do lado das perdas, contam-se a exclusão do mercado da Espanha, a exclusão do mercado da União Europeia, a perda de investimentos e a fuga de empresas.
A revolta talvez se justificasse se Madri impusesse um regime de terror e perseguição aos catalães, mas isso deixou de ser o caso desde a redemocratização da Espanha nos anos 1970. Enfim, custa-me crer que seres racionais, que façam contas e ponderações antes de agir, possam escolher mesmo a separação. O perigo do nacionalismo e da religião é justamente que eles turvam a razão, fazendo as pessoas agirem contra seus melhores interesses.
SÃO PAULO - Se me fosse dado o poder de apagar duas obsessões inscritas na natureza humana, eu eliminaria a religiosidade e o nacionalismo. Não é que nunca tragam nada de bom, mas o número de guerras que já causaram, a quantidade de sangue que já verteram e o volume de sofrimento que já disseminaram fazem com que a contabilidade, numa perspectiva consequencialista, seja-lhes francamente negativa. Mas, como não tenho o poder de suprimir nada, religiosos e nacionalistas podem ficar sossegados.
O mais novo capítulo da grande história das burradas nacionalistas, a crise da Catalunha, pode até ser descrito como um episódio benigno. Por mais complexa que seja a situação, ninguém imagina que a questão será resolvida com recurso às armas. Se a crise tivesse sido deflagrada apenas algumas décadas atrás, o mais provável é que tanques já tivessem sido despachados para "pacificar" Barcelona. A relativa tranquilidade do cenário atual é mérito das instituições democráticas nacionais (Espanha) e supranacionais (União Europeia), apesar de muitos insistirem que elas já caducaram.
O que ainda me assusta na novela catalã é a irracionalidade dos cálculos dos separatistas. Do lado dos ganhos está apenas a realização do desejo, até meio infantil, de dizer que são independentes. Do lado das perdas, contam-se a exclusão do mercado da Espanha, a exclusão do mercado da União Europeia, a perda de investimentos e a fuga de empresas.
A revolta talvez se justificasse se Madri impusesse um regime de terror e perseguição aos catalães, mas isso deixou de ser o caso desde a redemocratização da Espanha nos anos 1970. Enfim, custa-me crer que seres racionais, que façam contas e ponderações antes de agir, possam escolher mesmo a separação. O perigo do nacionalismo e da religião é justamente que eles turvam a razão, fazendo as pessoas agirem contra seus melhores interesses.
Paradoxo Temer - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 01/11
Excetuando sociedades marcadas por conflitos armados, tensões étnicas e religiosas ou miséria crônica, o Brasil está sem dúvida entre os países mais difíceis de governar.
Não bastassem as dimensões do território e da população, há profundas desigualdades sociais e regionais, que se traduzem em demandas múltiplas e, não raro, contraditórias entre si.
Depois de sucessivos percalços ao longo da história, viabilizou-se uma democracia baseada num sistema político permissivo, que ao mesmo tempo favorece a proliferação de partidos e a baixíssima fidelidade dos eleitos às siglas.
Acrescente-se uma organização federativa, com 26 Estados e 5.570 municípios dotados de autonomia administrativa, e um Congresso Nacional bicameral —o resultado é uma pletora incomum de obstáculos potenciais a medidas do Executivo ou propostas legislativas.
Se governantes em todo o mundo costumam ser avaliados pela capacidade de promover reformas, aqui a mera conclusão do mandato tem se mostrado um desafio.
Nesse contexto, parecem espantosos os resultados obtidos por Michel Temer (PMDB) em menos de um ano e meio de uma Presidência acidentada desde a origem.
Aprovaram-se projetos tão controversos quanto o redesenho da legislação trabalhista e o teto constitucional para os gastos públicos, sob oposição do sindicalismo e de amplas parcelas do Judiciário. Reduziram-se subsídios do BNDES a grandes empresas; deu-se início à reformulação do ensino médio.
A despeito da impopularidade acachapante e crescente, Temer também conseguiu votos para barrar as duas denúncias por crime comum de que foi alvo —a primeira delas com elementos mais do que suficientes para justificar uma investigação que o afastaria do cargo.
De modo contraintuitivo, o cientista político Carlos Pereira sustentou, em artigo publicado nesta Folha, que tais vitórias se deram a um custo baixo, na comparação com os verificados em governos anteriores, conforme índice engenhoso que combina a quantidade de ministérios e o volume de verbas liberadas à coalizão situacionista.
Sempre haverá o que questionar, claro, em métricas do gênero. Mas é fato que o peemedebista, experiente no manejo congressual, uniu em torno de si partidos com razoáveis afinidades programáticas e de preferências mais próximas às da média do Legislativo.
Tudo isso facilita, decerto, a gestão da aliança —embora não se possam isolar, no caso de Temer, os efeitos da crise econômica brutal sobre o senso de urgência de deputados e senadores.
Evidenciam-se, por vias tortas, as vantagens de um regime de governo mais assemelhado ao parlamentarista. Nota-se, ainda, que nosso presidencialismo pode ser particularmente hostil a neófitos.
Excetuando sociedades marcadas por conflitos armados, tensões étnicas e religiosas ou miséria crônica, o Brasil está sem dúvida entre os países mais difíceis de governar.
Não bastassem as dimensões do território e da população, há profundas desigualdades sociais e regionais, que se traduzem em demandas múltiplas e, não raro, contraditórias entre si.
Depois de sucessivos percalços ao longo da história, viabilizou-se uma democracia baseada num sistema político permissivo, que ao mesmo tempo favorece a proliferação de partidos e a baixíssima fidelidade dos eleitos às siglas.
Acrescente-se uma organização federativa, com 26 Estados e 5.570 municípios dotados de autonomia administrativa, e um Congresso Nacional bicameral —o resultado é uma pletora incomum de obstáculos potenciais a medidas do Executivo ou propostas legislativas.
Se governantes em todo o mundo costumam ser avaliados pela capacidade de promover reformas, aqui a mera conclusão do mandato tem se mostrado um desafio.
Nesse contexto, parecem espantosos os resultados obtidos por Michel Temer (PMDB) em menos de um ano e meio de uma Presidência acidentada desde a origem.
Aprovaram-se projetos tão controversos quanto o redesenho da legislação trabalhista e o teto constitucional para os gastos públicos, sob oposição do sindicalismo e de amplas parcelas do Judiciário. Reduziram-se subsídios do BNDES a grandes empresas; deu-se início à reformulação do ensino médio.
A despeito da impopularidade acachapante e crescente, Temer também conseguiu votos para barrar as duas denúncias por crime comum de que foi alvo —a primeira delas com elementos mais do que suficientes para justificar uma investigação que o afastaria do cargo.
De modo contraintuitivo, o cientista político Carlos Pereira sustentou, em artigo publicado nesta Folha, que tais vitórias se deram a um custo baixo, na comparação com os verificados em governos anteriores, conforme índice engenhoso que combina a quantidade de ministérios e o volume de verbas liberadas à coalizão situacionista.
Sempre haverá o que questionar, claro, em métricas do gênero. Mas é fato que o peemedebista, experiente no manejo congressual, uniu em torno de si partidos com razoáveis afinidades programáticas e de preferências mais próximas às da média do Legislativo.
Tudo isso facilita, decerto, a gestão da aliança —embora não se possam isolar, no caso de Temer, os efeitos da crise econômica brutal sobre o senso de urgência de deputados e senadores.
Evidenciam-se, por vias tortas, as vantagens de um regime de governo mais assemelhado ao parlamentarista. Nota-se, ainda, que nosso presidencialismo pode ser particularmente hostil a neófitos.
Os donos da verdade - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 01/11
Não é o Ministério Público quem proclama a Justiça. Essa obviedade parece ter sido esquecida por alguns de seus membros. Numa mentalidade abusiva, eles transformam suas opiniões políticas em dogmas
Dois recentes acontecimentos envolvendo membros do Ministério Público demonstram a existência de uma mentalidade abusiva no órgão que deveria, por força de sua função institucional, ser um vigoroso defensor do bom Direito. Em 7 de agosto deste ano, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), sob a batuta do então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, publicou uma nova edição da resolução que dispõe sobre a instauração e a tramitação do procedimento investigatório criminal conduzido pelo Ministério Público. A medida autoriza promotores e procuradores a realizar vistorias, inspeções e diligências, e a requisitar informações e documentos de autoridades públicas e privadas sem autorização judicial, conforme revelou o Estado.
A Resolução 181/2017 do CNMP é claramente abusiva. Em primeiro lugar, o CNMP não tem competência para legislar sobre a matéria. Segundo a Constituição, “compete ao Conselho Nacional do Ministério Público o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros”. Ou seja, a função constitucional desse conselho, criado em 2004 durante a reforma do Judiciário, é justamente garantir que o Ministério Público atue dentro da lei. Não pode, por decreto, expandir os poderes do Ministério Público.
E é exatamente isso o que faz a Resolução 181/2017, ao permitir que os membros do Ministério Público atuem muito além do que dispõe a lei processual penal. O art. 7.º autoriza o procurador a fazer “vistorias, inspeções e quaisquer outras diligências, inclusive em organizações militares”, mesmo sem ordem judicial. E ainda estabelece que, para o Ministério Público, não existe sigilo. “Nenhuma autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de função pública poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento que lhe seja fornecido” (art. 7.º, § 1.º).
Nessa concessão de abundantes poderes extralegais, evidencia-se que o CNMP tem uma concepção equivocada a respeito das funções do Ministério Público. É, no mínimo, uma situação esdrúxula. Sem ter claro quais são as atribuições institucionais do órgão que deveria acompanhar, o conselho fiscalizador cria uma resolução que libera o abuso.
No mesmo diapasão do CNMP, que atribui ao Ministério Público uma espécie de infalibilidade, o procurador da República Deltan Dallagnol, da força-tarefa da Lava Jato de Curitiba, anunciou um novo pacote de medidas anticorrupção. A novidade é que, em vez das dez propostas antes apresentadas, agora são “100 medidas contra a corrupção”.
O conteúdo das novas 100 medidas deverá ser divulgado apenas em fevereiro de 2018. De toda forma, é preocupante o tom adotado no seu anúncio, de clara afronta ao Legislativo. Diz-se, por exemplo, que não serão encaminhadas agora ao Congresso as propostas para evitar interferências da atual legislatura. Nota-se, portanto, a mesma disposição autoritária que se viu durante a tramitação das anteriores dez medidas, negando ao Congresso o direito de debater e alterar os projetos de lei. Simplesmente porque a Câmara se negou a referendar integralmente a proposta do Ministério Público, difundiram a ideia de que o projeto tinha sido desfigurado.
Ainda bem, deve-se reconhecer, que os deputados não aceitaram tudo o que o Ministério Público propunha com as Dez Medidas Anticorrupção. No pacote havia medidas acintosamente abusivas, como, por exemplo, a permissão para o aproveitamento no processo penal de algumas provas ilícitas e o abrandamento dos prazos prescricionais.
Não é o Ministério Público quem proclama a Justiça. Essa obviedade, no entanto, parece ter sido esquecida por alguns de seus membros, que transformam suas opiniões políticas em dogmas. Querem fazer valer uma absurda e autoritária disjuntiva – ou todos se sujeitam às ações e propostas do Ministério Público ou tudo não passa de um pernicioso conluio com a impunidade. É preciso imenso cuidado com esse tipo de mentalidade, pois, nessa toada, Congresso e Justiça parecem ser dispensáveis. Valerá a vontade soberana do Ministério Público.
Não é o Ministério Público quem proclama a Justiça. Essa obviedade parece ter sido esquecida por alguns de seus membros. Numa mentalidade abusiva, eles transformam suas opiniões políticas em dogmas
Dois recentes acontecimentos envolvendo membros do Ministério Público demonstram a existência de uma mentalidade abusiva no órgão que deveria, por força de sua função institucional, ser um vigoroso defensor do bom Direito. Em 7 de agosto deste ano, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), sob a batuta do então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, publicou uma nova edição da resolução que dispõe sobre a instauração e a tramitação do procedimento investigatório criminal conduzido pelo Ministério Público. A medida autoriza promotores e procuradores a realizar vistorias, inspeções e diligências, e a requisitar informações e documentos de autoridades públicas e privadas sem autorização judicial, conforme revelou o Estado.
A Resolução 181/2017 do CNMP é claramente abusiva. Em primeiro lugar, o CNMP não tem competência para legislar sobre a matéria. Segundo a Constituição, “compete ao Conselho Nacional do Ministério Público o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros”. Ou seja, a função constitucional desse conselho, criado em 2004 durante a reforma do Judiciário, é justamente garantir que o Ministério Público atue dentro da lei. Não pode, por decreto, expandir os poderes do Ministério Público.
E é exatamente isso o que faz a Resolução 181/2017, ao permitir que os membros do Ministério Público atuem muito além do que dispõe a lei processual penal. O art. 7.º autoriza o procurador a fazer “vistorias, inspeções e quaisquer outras diligências, inclusive em organizações militares”, mesmo sem ordem judicial. E ainda estabelece que, para o Ministério Público, não existe sigilo. “Nenhuma autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de função pública poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento que lhe seja fornecido” (art. 7.º, § 1.º).
Nessa concessão de abundantes poderes extralegais, evidencia-se que o CNMP tem uma concepção equivocada a respeito das funções do Ministério Público. É, no mínimo, uma situação esdrúxula. Sem ter claro quais são as atribuições institucionais do órgão que deveria acompanhar, o conselho fiscalizador cria uma resolução que libera o abuso.
No mesmo diapasão do CNMP, que atribui ao Ministério Público uma espécie de infalibilidade, o procurador da República Deltan Dallagnol, da força-tarefa da Lava Jato de Curitiba, anunciou um novo pacote de medidas anticorrupção. A novidade é que, em vez das dez propostas antes apresentadas, agora são “100 medidas contra a corrupção”.
O conteúdo das novas 100 medidas deverá ser divulgado apenas em fevereiro de 2018. De toda forma, é preocupante o tom adotado no seu anúncio, de clara afronta ao Legislativo. Diz-se, por exemplo, que não serão encaminhadas agora ao Congresso as propostas para evitar interferências da atual legislatura. Nota-se, portanto, a mesma disposição autoritária que se viu durante a tramitação das anteriores dez medidas, negando ao Congresso o direito de debater e alterar os projetos de lei. Simplesmente porque a Câmara se negou a referendar integralmente a proposta do Ministério Público, difundiram a ideia de que o projeto tinha sido desfigurado.
Ainda bem, deve-se reconhecer, que os deputados não aceitaram tudo o que o Ministério Público propunha com as Dez Medidas Anticorrupção. No pacote havia medidas acintosamente abusivas, como, por exemplo, a permissão para o aproveitamento no processo penal de algumas provas ilícitas e o abrandamento dos prazos prescricionais.
Não é o Ministério Público quem proclama a Justiça. Essa obviedade, no entanto, parece ter sido esquecida por alguns de seus membros, que transformam suas opiniões políticas em dogmas. Querem fazer valer uma absurda e autoritária disjuntiva – ou todos se sujeitam às ações e propostas do Ministério Público ou tudo não passa de um pernicioso conluio com a impunidade. É preciso imenso cuidado com esse tipo de mentalidade, pois, nessa toada, Congresso e Justiça parecem ser dispensáveis. Valerá a vontade soberana do Ministério Público.
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