quarta-feira, fevereiro 22, 2012
O PT ensina a privatizar com ternura - GUILHERME FIUZA
REVISTA ÉPOCA
Depois da festa de aniversário do PT, o Brasil respirou aliviado: após o leilão de três aeroportos pelo governo Dilma, o Diretório Nacional do partido divulgou uma resolução garantindo que “não é verdade que acabou a disputa ideológica sobre as privatizações”. Graças a Deus! Sem disputa ideológica, como se sabe, o PT desapareceria. E isso seria muito grave. Não pelo desgoverno, mas pelo desemprego: para onde iria o imenso contingente de companheiros pendurados na máquina pública graças à mitologia do partido? Hoje, o fim da disputa ideológica seria praticamente um problema social.
O mito das privatizações como coisa do demônio já rendeu à esquerda uma coleção de vitórias eleitorais. A ideia da “privataria” é uma mina de ouro, um filão aparentemente inesgotável de votos. E o negócio é seguro, porque ao eleitorado, nesse caso, não interessa a verdade. Assim como as crianças diante dos contos de fadas, o eleitor prefere que o bem e o mal sejam distinguidos pelo mito – que, entre outras vantagens, está sempre no mesmo lugar.
Se dependesse do PT, a telefonia nacional estaria até hoje nas mãos da Telesp, Telerj e congêneres. Era um sistema apodrecido pela corrupção e pela ineficiência, que servia menos aos aparelhos telefônicos que ao aparelhamento político. Mas era “nosso”. A privatização mudou a vida de milhões de brasileiros, especialmente os mais pobres, que até outro dia ainda se comunicavam pelo sistema de recado na birosca. Mas, como a fábula não pode terminar com a vitória do monstro (neoliberal), o eleitor arranjou um jeito de adorar seu telefone novo e detestar a privatização. Viva o milagre da disputa ideológica.
O mito da “privataria” é tão forte que vende até livro. Um ajuntamento criativo de documentos que, bem embaralhados, resultam numa série de quase denúncias gravíssimas – no melhor do jornalismo impressionista – vira best-seller. As privatizações melhoraram a vida dos brasileiros e livraram o Estado de uma multidão de parasitas. Mas é muito mais emocionante acreditar na lenda de uma quadrilha de espertos que saqueou o país vendendo “o que é nosso”. E que – atenção! – pode voltar a qualquer momento tentando derrotar o PT.
Confrontos entre ideologias já se viram aos montes. Mas um partido defendendo a própria “disputa ideológica” é a primeira vez. Eis a tradução da nota do PT para o português:
– Prezados eleitores, por favor, não abandonem essa dicotomia estúpida entre privatização e defesa do patrimônio público. Não deixem de acreditar que a fronteira entre o bem e o mal está nesse dilema imaginário. Esqueçam o bom funcionamento de telefones, aeroportos e outros itens da monotonia cotidiana. Sejam politizados, revolucionários, concentrem-se no duelo entre direita e esquerda. Só assim, com essa mente esquemática e essa lógica primária, vocês terão a chance de vestir a camisa, levantar a bandeira e verter seu ódio contra o inimigo. Ah, sim: e, nas eleições, exerçam sua cidadania descarregando seus votos conscientes nos candidatos contra a privataria (que, por acaso, são os nossos).
A inédita defesa dessa instituição lucrativa (a disputa ideológica) se fez necessária por causa da privatização dos aeroportos de Guarulhos, Campinas e Brasília. Antes que o povo começasse a confundir o bem com o mal e vice-versa, o partido fez o esclarecimento definitivo: privatização do PT não é privatização.
Alívio geral. Por um momento, até pareceu que algum vírus neoliberal tivesse sido solto no gabinete da companheira Dilma. Felizmente isso não aconteceu. O que parecia privatização era, na verdade, “concessão”. A privatização da telefonia também foi uma concessão, mas aí há uma enorme diferença: não foi feita pelo PT. Portanto, é privataria.
Com tudo colocado em seu devido lugar, o partido da presidente pôde cuidar de retocar outras verdades. Pela resolução do Diretório Nacional, o país ficou sabendo que a queda de sete ministros de Dilma após uma escandalosa sucessão de fraudes foi “uma campanha de setores da oposição que buscavam desestabilizar o governo através de seguidas denúncias de corrupção em ministérios”. Por essa, ninguém esperava. Os neoliberais fizeram até os companheiros do bem privatizarem dinheiro do povo.
Acarajés quentes no tabuleiro da “Graciosa” - REVISTA ÉPOCA
REVISTA ÉPOCA
A herança de Sergio Gabrielli para Maria das Graças Foster, na Petrobras, inclui denúncias de desvios de dinheiro da estatal para campanhas do PT na Bahia
Hudson Corrêa
Na Bahia, acarajé quente é sinônimo de bastante apimentado. Chamada de “Graciosa” pela presidente Dilma Rousseff na cerimônia de posse na última segunda-feira, a mineira radicada no Rio de Janeiro Maria das Graças Foster assumiu a presidência da Petrobras diante de um cardápio de problemas que inclui dois acarajés quentíssimos. Eles foram deixados sobre sua mesa por seu antecessor direto, o petista José Sergio Gabrielli, e referem-se a duas denúncias de desvio de recursos da empresa para irrigar campanhas do PT na Bahia, terra natal de Gabrielli. E é justamente lá onde o mais longevo presidente da Petrobras retomará a carreira política. Após seis anos e sete meses no comando da maior empresa da América Latina, Gabrielli fará parte do governo de Jaques Wagner (PT), onde pretende pavimentar sua candidatura ao governo do Estado em 2014.
Não há elementos que envolvam diretamente Gabrielli com as duas denúncias narradas a seguir. Mas os dois episódios ocorreram em sua gestão, e ele pouco ou nada fez para saná-los. O primeiro caso passa pela ONG Pangea – Centro de Estudos Socioambientais, sediada em Salvador. De acordo com documentos da Controladoria-Geral da União (CGU), a que ÉPOCA teve acesso com exclusividade, boa parte do dinheiro repassado pela Petrobras à Pangea foi desviada. A CGU suspeita de que parte desses recursos tenha ido parar no caixa dois de campanha do PT na Bahia. Indo aos valores exatos: entre junho de 2004 e dezembro de 2006, a Pangea recebeu R$ 7,7 milhões da Petrobras para dar assistência e organizar catadores de lixo em dez municípios baianos. Um pente-fino da CGU, órgão do governo encarregado de fiscalizar o uso de verbas federais, concluiu que não há comprovação de gastos para mais de R$ 2,2 milhões.
Na ocasião do repasse, a Pangea era presidida por seu fundador, Sérgio Veiga de Santana, um ex-deputado estadual do PMDB baiano, partido que teve papel fundamental na eleição de Jaques Wagner em 2006. Ao investigar o destino que a Pangea deu ao dinheiro, a equipe da CGU identificou um cheque de R$ 25 mil pago a Ademilson Cosme Santos de Souza, irmão e tesoureiro de campanha de Antonio Magno de Souza. Conhecido como Magno do PT, Antonio concorria à prefeitura da cidade baiana de Vera Cruz. O depósito foi feito em setembro de 2004, às vésperas das eleições municipais. Naquele ano, Magno do PT informou à Justiça Eleitoral ter arrecadado apenas R$ 21.600 para a campanha, sem mencionar o tal cheque. Isso reforça a suspeita de caixa dois. No relatório da CGU, os técnicos afirmam que a legislação impede que ONGs façam doações a políticos.
O cheque de Magno do PT é apenas um dos indícios do desvio da verba da Petrobras. O dinheiro do patrocínio à Pangea deveria ter sido depositado numa conta bancária específica, registrada em contrato, mas a CGU descobriu que pelo menos R$ 1,9 milhão foram transferidos para outras contas bancárias da ONG, com altos saques na boca do caixa. Em meio a essas transações, apareceu o cheque de R$ 25 mil. Magno do PT nega ter recebido o dinheiro e afirma que Ademilson, seu irmão, se afastou da campanha e do PT, passando ao grupo adversário. Na data do cheque, de acordo com a CGU, Ademilson ainda era tesoureiro de Magno do PT. A CGU constatou outros problemas. O próprio fundador da ONG, Sérgio Santana, recebeu R$ 11.500, atribuídos à venda de um carro usado à Pangea, mas a CGU não encontrou recibos da transação. Procurado e questionado sobre o uso dos recursos, Santana disse: “Não me lembro, deixei a ONG em 2007”.
O primeiro contrato da Pangea com a Petrobras foi fechado em 2004, quando o presidente da Petrobras era o também petista José Eduardo Dutra. Na gestão seguinte, de Gabrielli, foram assinados mais cinco contratos com a ONG, totalizando R$ 11 milhões. A fiscalização sobre o dinheiro repassado à Pangea começou em setembro de 2008. E, mesmo com os indícios de desvios detectados pela CGU nos contratos fechados entre 2004 e 2006, a Petrobras aprovou mais dois patrocínios para a Pangea em 2010: um de R$ 2 milhões, para um projeto envolvendo catadores de lixo, e outro de R$ 1,4 milhão, voltado à geração de renda para pescadores. O projeto milionário da Pangea registrava, segundo a própria ONG, 748 cooperados até março do ano passado.
Um dos primeiros passos da equipe da CGU ao iniciar a investigação foi tentar localizar cinco empresas contratadas pela ONG com dinheiro da Petrobras. Juntas, as firmas receberam cerca de R$ 2 milhões. O endereço atribuído a elas fica no município de Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador. No local onde deveria estar a Estrada Construções, responsável pela construção de galpões para as cooperativas dos catadores de material reciclável, os fiscais se viram diante de um consultório odontológico com uma enorme placa onde se lia “Volte a sorrir”. No andar de cima, os letreiros informavam que ali era a sede da Igreja Missionária Pentecostal.
Os funcionários do consultório desconheciam a Estrada Construções. Logo que a investigação dos auditores começou, as empresas comunicaram à Receita Federal mudança de endereço das sedes, uma possível estratégia para despistar os auditores. Curiosamente, o novo endereço da Estrada era, segundo a CGU, o mesmo de outras duas empresas procuradas: a Acap Construções e a Vac-All do Brasil Serviços Industriais. À primeira também se atribuía a construção de galpões e à segunda a fabricação de contêineres. No novo endereço, os auditores não encontraram nenhuma das três empresas. O andar de cima era uma residência. O de baixo estava reservado a cultos evangélicos.
A Vac-All foi localizada a 12 quilômetros de distância, num pequeno galpão, com instalações modestas para uma empresa que, segundo a Pangea, fornecera cinco esteiras transportadoras mecânicas, 140 carrinhos para o transporte de materiais e nove compactadoras de lixo, entre outros equipamentos, a um custo de R$ 904 mil. Como a Vac-All não tinha inscrição estadual para vender máquinas, emitiu notas fiscais de prestação de serviços indevidamente. Os fiscais também não localizaram nem a Engenho Serviços, tida como fabricante de bonés e camisetas para catadores da cooperativa, nem a JR 2 Comunicação, responsável pelo material de divulgação do projeto. O empresário Wellington Oliveira Rangel, dono da Vac-All e cuja família aparecia como gestora da Estrada Construções e da JR 2, negou a ÉPOCA que as empresas sejam de fachada. Ele disse que os serviços e equipamentos foram efetivamente entregues à Pangea.
CGU enviou o relatório de fiscalização com todas as irregularidades para o Tribunal de Contas da União (TCU). O processo, dentro do Tribunal, ainda não foi concluído. No final do ano passado, o TCU solicitou à CGU informações sobre as providências adotadas no caso Pangea. A Controladoria cobrou da Petrobras explicações sobre o dinheiro desviado. Em casos semelhantes, o TCU determinou que a própria companhia fiscalize a aplicação do dinheiro.
A Petrobras afirmou que, nos casos de contratos de patrocínio, não verifica o destino dos recursos repassados às entidades. A única fiscalização feita tem o objetivo de verificar se o projeto foi executado conforme o contrato e se houve a contrapartida para a imagem da empresa, enquanto patrocinadora. No caso da Pangea, essa fiscalização ocorreu, segundo a Petrobras, com visita in loco e análises de relatórios. “O projeto cumpriu todas as metas” e ainda recebeu prêmios, afirmou a companhia. A Petrobras disse também que os contratos não tiveram motivação política. A companhia não comentou a suspeita de caixa dois. A Pangea também negou desvios. Disse que o relatório da CGU é preliminar e inconclusivo. Afirmou que as empresas não localizadas pela Controladoria prestaram os serviços contratados e que todos os recursos da Petrobras foram aplicados.
O outro acarajé quente para Maria das Graças Foster se chama Geovane de Morais, ex-gerente de comunicação da área de Abastecimento da Petrobras demitido por justa causa pela companhia no dia 3 de abril de 2009. Ligado ao grupo político de Gabrielli e do governador Jaques Wagner, o baiano Morais cometeu uma série de irregularidades. Ele extrapolou o orçamento de sua gerência. Sem licitação ou autorização formal, gastou cinco vezes o previsto em 2008, ano de eleições municipais. Seu orçamento era de R$ 31 milhões, e a despesa chegou a R$ 151 milhões. Houve pagamentos sequenciais e sem o amparo legal de contratos. Entre as empresas beneficiadas estavam duas produtoras de vídeo baianas que trabalharam para a campanha de Wagner em 2006 e para duas prefeituras petistas.
Passados quase três anos, a demissão de Morais, de 45 anos de idade, não foi efetivada. Ele continua recebendo todo mês o mesmo que ganhava como funcionário de carreira da Petrobras. A despesa é bancada pela companhia e pela Previdência Social (auxílio-doença). Segundo a estatal, a demissão não foi efetivada porque o ex-gerente permanece de licença médica. Qual seu salário e que doença afinal ele tem? “São informações pessoais e não podem ser divulgadas”, diz a Petrobras. A estatal afirma que todos os procedimentos internos para formalizar a demissão foram adotados. Não respondeu se caberia alguma decisão judicial e disse que já comunicou a demissão a Morais. Ele parece não ter se incomodado. É outro acarajé para Maria das Graças Foster digerir.
Na Bahia, acarajé quente é sinônimo de bastante apimentado. Chamada de “Graciosa” pela presidente Dilma Rousseff na cerimônia de posse na última segunda-feira, a mineira radicada no Rio de Janeiro Maria das Graças Foster assumiu a presidência da Petrobras diante de um cardápio de problemas que inclui dois acarajés quentíssimos. Eles foram deixados sobre sua mesa por seu antecessor direto, o petista José Sergio Gabrielli, e referem-se a duas denúncias de desvio de recursos da empresa para irrigar campanhas do PT na Bahia, terra natal de Gabrielli. E é justamente lá onde o mais longevo presidente da Petrobras retomará a carreira política. Após seis anos e sete meses no comando da maior empresa da América Latina, Gabrielli fará parte do governo de Jaques Wagner (PT), onde pretende pavimentar sua candidatura ao governo do Estado em 2014.
Não há elementos que envolvam diretamente Gabrielli com as duas denúncias narradas a seguir. Mas os dois episódios ocorreram em sua gestão, e ele pouco ou nada fez para saná-los. O primeiro caso passa pela ONG Pangea – Centro de Estudos Socioambientais, sediada em Salvador. De acordo com documentos da Controladoria-Geral da União (CGU), a que ÉPOCA teve acesso com exclusividade, boa parte do dinheiro repassado pela Petrobras à Pangea foi desviada. A CGU suspeita de que parte desses recursos tenha ido parar no caixa dois de campanha do PT na Bahia. Indo aos valores exatos: entre junho de 2004 e dezembro de 2006, a Pangea recebeu R$ 7,7 milhões da Petrobras para dar assistência e organizar catadores de lixo em dez municípios baianos. Um pente-fino da CGU, órgão do governo encarregado de fiscalizar o uso de verbas federais, concluiu que não há comprovação de gastos para mais de R$ 2,2 milhões.
Na ocasião do repasse, a Pangea era presidida por seu fundador, Sérgio Veiga de Santana, um ex-deputado estadual do PMDB baiano, partido que teve papel fundamental na eleição de Jaques Wagner em 2006. Ao investigar o destino que a Pangea deu ao dinheiro, a equipe da CGU identificou um cheque de R$ 25 mil pago a Ademilson Cosme Santos de Souza, irmão e tesoureiro de campanha de Antonio Magno de Souza. Conhecido como Magno do PT, Antonio concorria à prefeitura da cidade baiana de Vera Cruz. O depósito foi feito em setembro de 2004, às vésperas das eleições municipais. Naquele ano, Magno do PT informou à Justiça Eleitoral ter arrecadado apenas R$ 21.600 para a campanha, sem mencionar o tal cheque. Isso reforça a suspeita de caixa dois. No relatório da CGU, os técnicos afirmam que a legislação impede que ONGs façam doações a políticos.
O cheque de Magno do PT é apenas um dos indícios do desvio da verba da Petrobras. O dinheiro do patrocínio à Pangea deveria ter sido depositado numa conta bancária específica, registrada em contrato, mas a CGU descobriu que pelo menos R$ 1,9 milhão foram transferidos para outras contas bancárias da ONG, com altos saques na boca do caixa. Em meio a essas transações, apareceu o cheque de R$ 25 mil. Magno do PT nega ter recebido o dinheiro e afirma que Ademilson, seu irmão, se afastou da campanha e do PT, passando ao grupo adversário. Na data do cheque, de acordo com a CGU, Ademilson ainda era tesoureiro de Magno do PT. A CGU constatou outros problemas. O próprio fundador da ONG, Sérgio Santana, recebeu R$ 11.500, atribuídos à venda de um carro usado à Pangea, mas a CGU não encontrou recibos da transação. Procurado e questionado sobre o uso dos recursos, Santana disse: “Não me lembro, deixei a ONG em 2007”.
O primeiro contrato da Pangea com a Petrobras foi fechado em 2004, quando o presidente da Petrobras era o também petista José Eduardo Dutra. Na gestão seguinte, de Gabrielli, foram assinados mais cinco contratos com a ONG, totalizando R$ 11 milhões. A fiscalização sobre o dinheiro repassado à Pangea começou em setembro de 2008. E, mesmo com os indícios de desvios detectados pela CGU nos contratos fechados entre 2004 e 2006, a Petrobras aprovou mais dois patrocínios para a Pangea em 2010: um de R$ 2 milhões, para um projeto envolvendo catadores de lixo, e outro de R$ 1,4 milhão, voltado à geração de renda para pescadores. O projeto milionário da Pangea registrava, segundo a própria ONG, 748 cooperados até março do ano passado.
Um dos primeiros passos da equipe da CGU ao iniciar a investigação foi tentar localizar cinco empresas contratadas pela ONG com dinheiro da Petrobras. Juntas, as firmas receberam cerca de R$ 2 milhões. O endereço atribuído a elas fica no município de Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador. No local onde deveria estar a Estrada Construções, responsável pela construção de galpões para as cooperativas dos catadores de material reciclável, os fiscais se viram diante de um consultório odontológico com uma enorme placa onde se lia “Volte a sorrir”. No andar de cima, os letreiros informavam que ali era a sede da Igreja Missionária Pentecostal.
Os funcionários do consultório desconheciam a Estrada Construções. Logo que a investigação dos auditores começou, as empresas comunicaram à Receita Federal mudança de endereço das sedes, uma possível estratégia para despistar os auditores. Curiosamente, o novo endereço da Estrada era, segundo a CGU, o mesmo de outras duas empresas procuradas: a Acap Construções e a Vac-All do Brasil Serviços Industriais. À primeira também se atribuía a construção de galpões e à segunda a fabricação de contêineres. No novo endereço, os auditores não encontraram nenhuma das três empresas. O andar de cima era uma residência. O de baixo estava reservado a cultos evangélicos.
A Vac-All foi localizada a 12 quilômetros de distância, num pequeno galpão, com instalações modestas para uma empresa que, segundo a Pangea, fornecera cinco esteiras transportadoras mecânicas, 140 carrinhos para o transporte de materiais e nove compactadoras de lixo, entre outros equipamentos, a um custo de R$ 904 mil. Como a Vac-All não tinha inscrição estadual para vender máquinas, emitiu notas fiscais de prestação de serviços indevidamente. Os fiscais também não localizaram nem a Engenho Serviços, tida como fabricante de bonés e camisetas para catadores da cooperativa, nem a JR 2 Comunicação, responsável pelo material de divulgação do projeto. O empresário Wellington Oliveira Rangel, dono da Vac-All e cuja família aparecia como gestora da Estrada Construções e da JR 2, negou a ÉPOCA que as empresas sejam de fachada. Ele disse que os serviços e equipamentos foram efetivamente entregues à Pangea.
CGU enviou o relatório de fiscalização com todas as irregularidades para o Tribunal de Contas da União (TCU). O processo, dentro do Tribunal, ainda não foi concluído. No final do ano passado, o TCU solicitou à CGU informações sobre as providências adotadas no caso Pangea. A Controladoria cobrou da Petrobras explicações sobre o dinheiro desviado. Em casos semelhantes, o TCU determinou que a própria companhia fiscalize a aplicação do dinheiro.
A Petrobras afirmou que, nos casos de contratos de patrocínio, não verifica o destino dos recursos repassados às entidades. A única fiscalização feita tem o objetivo de verificar se o projeto foi executado conforme o contrato e se houve a contrapartida para a imagem da empresa, enquanto patrocinadora. No caso da Pangea, essa fiscalização ocorreu, segundo a Petrobras, com visita in loco e análises de relatórios. “O projeto cumpriu todas as metas” e ainda recebeu prêmios, afirmou a companhia. A Petrobras disse também que os contratos não tiveram motivação política. A companhia não comentou a suspeita de caixa dois. A Pangea também negou desvios. Disse que o relatório da CGU é preliminar e inconclusivo. Afirmou que as empresas não localizadas pela Controladoria prestaram os serviços contratados e que todos os recursos da Petrobras foram aplicados.
O outro acarajé quente para Maria das Graças Foster se chama Geovane de Morais, ex-gerente de comunicação da área de Abastecimento da Petrobras demitido por justa causa pela companhia no dia 3 de abril de 2009. Ligado ao grupo político de Gabrielli e do governador Jaques Wagner, o baiano Morais cometeu uma série de irregularidades. Ele extrapolou o orçamento de sua gerência. Sem licitação ou autorização formal, gastou cinco vezes o previsto em 2008, ano de eleições municipais. Seu orçamento era de R$ 31 milhões, e a despesa chegou a R$ 151 milhões. Houve pagamentos sequenciais e sem o amparo legal de contratos. Entre as empresas beneficiadas estavam duas produtoras de vídeo baianas que trabalharam para a campanha de Wagner em 2006 e para duas prefeituras petistas.
Passados quase três anos, a demissão de Morais, de 45 anos de idade, não foi efetivada. Ele continua recebendo todo mês o mesmo que ganhava como funcionário de carreira da Petrobras. A despesa é bancada pela companhia e pela Previdência Social (auxílio-doença). Segundo a estatal, a demissão não foi efetivada porque o ex-gerente permanece de licença médica. Qual seu salário e que doença afinal ele tem? “São informações pessoais e não podem ser divulgadas”, diz a Petrobras. A estatal afirma que todos os procedimentos internos para formalizar a demissão foram adotados. Não respondeu se caberia alguma decisão judicial e disse que já comunicou a demissão a Morais. Ele parece não ter se incomodado. É outro acarajé para Maria das Graças Foster digerir.
A ignorância ignorada - MARTHA MEDEIROS
ZERO HORA - 22/02/12
Quando soube que Lindemberg Alves Fernandes havia sido condenado a 98 anos de prisão, senti um mal-estar que não soube de onde vinha. Óbvio que se ele tivesse sido absolvido, o mal-estar seria maior, porém 98 anos, num país onde ninguém fica preso por mais de 30, soou como provocação infantil. “Querem o fim de impunidade? Taí! Fartem-se!” A advogada de defesa do assassino disse que apelará da sentença, pois seu cliente merece e deve pagar pelos crimes que cometeu, mas sem servir de bode expiatório.
Meu mal-estar acabou sendo esclarecido através das palavras da ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, em debate ocorrido em Brasília. Rosário alertou para a sexualização precoce e suas consequências, o que de certa forma tem relevância com o fato: Eloá, a vítima, começou a namorar Lindemberg aos 12 anos, numa relação consentida pelos pais.
Adolescentes vivendo experiências adultas é prática comum hoje. Parecem todos preparados para o prazer, mas na hora de enfrentar crises de possessão, rejeições e demais efeitos colaterais do amor, voltam a ser crianças indefesas, sem as ferramentas para refletir e agir de forma sensata. Nesse sentido, Lindemberg poderia abater esses 98 anos com os pais dele, e também com os pais de Eloá, comigo, com você, com todos que fazem parte de uma sociedade que parece não se incomodar com o fato de a ignorância estar ganhando tanto espaço.
Crimes passionais são recorrentes, acontecem com pobres e ricos, moços e velhos. O machismo ainda é praga e precisa ser combatido. Mas o ato insano de Lindemberg não foi provocado apenas por machismo, o que tornam exageradas as manifestações da secretária de Política para a Mulher, Eleonora Menicucci, que ao saber da condenação, declarou: “Que grande emoção, que grande vitória. Essa é uma grande notícia para o Brasil e para as mulheres”.
Prefiro me solidarizar com a reação preocupada e lúcida de Maria do Rosário, que enxerga a questão com mais amplitude: o crime desse rapaz, assim como tiroteios dentro de escolas, turismo sexual envolvendo menores de idade, tráfico de drogas ocorrendo abertamente nas ruas, adolescentes pilotando veículos sem habilitação, tudo isso é uma tragédia anunciada: os jovens estão sem um olhar vigilante. Rosário declarou: “Precisamos não só de governos mais atentos, mas de pais e mães mais atentos, cuidadores mais atentos, sociedade mais atenta”.
O que dói na sentença de 98 anos de Lindemberg é que essa “vitória” é na verdade a revelação do fracasso de todo um sistema familiar que não prioriza o bem-estar mental e físico de cidadãos em formação. Não é culpa dos pais quando os filhos erram, ninguém tem controle e responsabilidade sobre as atitudes dos outros, mas os desatinos proliferam quando há falta de orientação, de apoio, de exemplo, de limite, de estrutura. O resultado desse abandono é que estamos matando e morrendo por estupidez generalizada.
Quando soube que Lindemberg Alves Fernandes havia sido condenado a 98 anos de prisão, senti um mal-estar que não soube de onde vinha. Óbvio que se ele tivesse sido absolvido, o mal-estar seria maior, porém 98 anos, num país onde ninguém fica preso por mais de 30, soou como provocação infantil. “Querem o fim de impunidade? Taí! Fartem-se!” A advogada de defesa do assassino disse que apelará da sentença, pois seu cliente merece e deve pagar pelos crimes que cometeu, mas sem servir de bode expiatório.
Meu mal-estar acabou sendo esclarecido através das palavras da ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, em debate ocorrido em Brasília. Rosário alertou para a sexualização precoce e suas consequências, o que de certa forma tem relevância com o fato: Eloá, a vítima, começou a namorar Lindemberg aos 12 anos, numa relação consentida pelos pais.
Adolescentes vivendo experiências adultas é prática comum hoje. Parecem todos preparados para o prazer, mas na hora de enfrentar crises de possessão, rejeições e demais efeitos colaterais do amor, voltam a ser crianças indefesas, sem as ferramentas para refletir e agir de forma sensata. Nesse sentido, Lindemberg poderia abater esses 98 anos com os pais dele, e também com os pais de Eloá, comigo, com você, com todos que fazem parte de uma sociedade que parece não se incomodar com o fato de a ignorância estar ganhando tanto espaço.
Crimes passionais são recorrentes, acontecem com pobres e ricos, moços e velhos. O machismo ainda é praga e precisa ser combatido. Mas o ato insano de Lindemberg não foi provocado apenas por machismo, o que tornam exageradas as manifestações da secretária de Política para a Mulher, Eleonora Menicucci, que ao saber da condenação, declarou: “Que grande emoção, que grande vitória. Essa é uma grande notícia para o Brasil e para as mulheres”.
Prefiro me solidarizar com a reação preocupada e lúcida de Maria do Rosário, que enxerga a questão com mais amplitude: o crime desse rapaz, assim como tiroteios dentro de escolas, turismo sexual envolvendo menores de idade, tráfico de drogas ocorrendo abertamente nas ruas, adolescentes pilotando veículos sem habilitação, tudo isso é uma tragédia anunciada: os jovens estão sem um olhar vigilante. Rosário declarou: “Precisamos não só de governos mais atentos, mas de pais e mães mais atentos, cuidadores mais atentos, sociedade mais atenta”.
O que dói na sentença de 98 anos de Lindemberg é que essa “vitória” é na verdade a revelação do fracasso de todo um sistema familiar que não prioriza o bem-estar mental e físico de cidadãos em formação. Não é culpa dos pais quando os filhos erram, ninguém tem controle e responsabilidade sobre as atitudes dos outros, mas os desatinos proliferam quando há falta de orientação, de apoio, de exemplo, de limite, de estrutura. O resultado desse abandono é que estamos matando e morrendo por estupidez generalizada.
Partido. Que partido?! - DENISE ROTHENBURG
CORREIO BRAZILIENSE - 22/02/12
Uma Câmara que há três semanas não consegue se entender para a simples distribuição de presidência das comissões técnicas não conseguirá votar a reforma política tão cedo
Se você puder, faça um teste. Ao visitar uma cidade do interior do Brasil, puxe assunto com o caixa do supermercado, o frentista do posto de gasolina, a chef do restaurante da pousada: “Quem é o prefeito aqui?”. O nome do cidadão, a maioria sabe. E, no meio da conversa, não hesite. Acrescente, sem tom de cobrança: “Qual é o partido dele?” O sujeito vai coçar a cabeça, olhar pro céu, pro colega do lado e, se brincar, vai se sair com esta: “Acho que é um pequeno, não sei, não... Não sou muito ligado nesse negócio de partido”.
Fiz esse teste na pequena Cavalcante, no último fim de semana. Lá, os oposicionistas costumam chamar o prefeito, Josias Magalhães, de “o homem do fim do mundo”. A cidadezinha, um dos polos turísticos da região da Chapada dos Veadeiros, parece abandonada. Ruas esburacadas, praças mal-cuidadas. Uma tristeza. O passeio vale pelas cachoeiras. Especialmente, Santa Bárbara, no sítio histórico dos Kalungas, descendentes dos quilombos.
Não me dei ao trabalho de procurar o prefeito, porque, sinceramente, nenhuma explicação, seja falta de recurso ou outra qualquer, seria plausível para justificar o que se vê ali. O que me impressionou, e às outras 13 pessoas que compunham o nosso grupo, foi o fato de a população não vincular as (não) realizações ao partido do prefeito.
Por falar em partido...
O descaso do povo de Cavalcante com o partido do prefeito Josias é o retrato do que ocorre em grande parte do Brasil. Nossa visão da política ainda é messiânica e personalista. E nada indica que isso será alterado por conta da reforma política em curso. Isso porque nenhum partido se agarra para valer nesse serviço.
Há dois anos, quando deixava o Palácio do Planalto com o título de ex-presidente, Lula afirmou que iria se dedicar a essa proposta. Mencionou a necessidade de fortalecimento dos partidos. E, agora, curado da doença que lhe impediu de levar avante vários projetos, Lula se dedicará mais em fortalecer os candidatos petistas a prefeito, leia-se Fernando Haddad em São Paulo, do que da reforma política.
Por falar em eleições...
No Congresso, embora todos apresentem o tema como prioridade em discursos, ninguém acredita no sucesso da reforma política a curto prazo. Uma Câmara que, há três semanas, não consegue se entender para a simples distribuição de presidência das comissões técnicas, não conseguirá votar a reforma política tão cedo.
Nesta Legislatura, infelizmente, os congressistas incorrem nos mesmos erros das anteriores: os senadores e os deputados analisam, cada um, uma reforma diferente. Depois, mandam para a outra Casa, que termina engavetando a proposta porque o partido A ou B está na fase da “onda” em que prefere não reformar nada.
Por falar em “onda boa”…
O primeiro a perceber esse tipo de movimento de “onda” foi o antigo, PFL, hoje DEM. Na época em que nadava de braçada na posição de maioria, a pefelândia liderada por Jorge Bornhausen fez de tudo para impor todos os limites possíveis à mudança partidária. Bom de faro na política, o “Alemão”, como os pefelistas se referiam a Bornhausen, percebeu que a “onda boa” do PFL estava terminando seu ciclo e propôs a reforma política como forma de dar uma sobrevida. Os partidos de esquerda não quiseram levá-la adiante.
Agora, embora os petistas falem da reforma e tenham até o relator na Câmara, Henrique Fontana (PT-RS), dificilmente o projeto caminhará a contento. Isso porque, dentro do Congresso, há muita gente desconfiada de que o PT deseja aprovar a reforma política agora apenas para instituir o financiamento público das campanhas e, assim, arrumar um discurso alternativo ao mensalão a ser julgado este ano. E, sendo assim, quem não vai querer a reforma são as outras legendas. E, assim, a população vai continuar com sua política messiânica, em busca de um salvador, sem ligar para os partidos, como ocorre em Cavalcante.
Por falar em Cavalcante...
Houve quem me dissesse, cheio de certeza, que o partido do prefeito da cidade de Cavalcante (GO) era o PSDB. Não é. Josias Magalhães Costa Sobrinho é do PTN. E, para sua informação: o site webdemocracia.com o apresenta como um dos piores no ranking dos prefeitos dos municípios goianos. Só perde para os de Aurilândia e Guarinos. É, pois é.
Uma Câmara que há três semanas não consegue se entender para a simples distribuição de presidência das comissões técnicas não conseguirá votar a reforma política tão cedo
Se você puder, faça um teste. Ao visitar uma cidade do interior do Brasil, puxe assunto com o caixa do supermercado, o frentista do posto de gasolina, a chef do restaurante da pousada: “Quem é o prefeito aqui?”. O nome do cidadão, a maioria sabe. E, no meio da conversa, não hesite. Acrescente, sem tom de cobrança: “Qual é o partido dele?” O sujeito vai coçar a cabeça, olhar pro céu, pro colega do lado e, se brincar, vai se sair com esta: “Acho que é um pequeno, não sei, não... Não sou muito ligado nesse negócio de partido”.
Fiz esse teste na pequena Cavalcante, no último fim de semana. Lá, os oposicionistas costumam chamar o prefeito, Josias Magalhães, de “o homem do fim do mundo”. A cidadezinha, um dos polos turísticos da região da Chapada dos Veadeiros, parece abandonada. Ruas esburacadas, praças mal-cuidadas. Uma tristeza. O passeio vale pelas cachoeiras. Especialmente, Santa Bárbara, no sítio histórico dos Kalungas, descendentes dos quilombos.
Não me dei ao trabalho de procurar o prefeito, porque, sinceramente, nenhuma explicação, seja falta de recurso ou outra qualquer, seria plausível para justificar o que se vê ali. O que me impressionou, e às outras 13 pessoas que compunham o nosso grupo, foi o fato de a população não vincular as (não) realizações ao partido do prefeito.
Por falar em partido...
O descaso do povo de Cavalcante com o partido do prefeito Josias é o retrato do que ocorre em grande parte do Brasil. Nossa visão da política ainda é messiânica e personalista. E nada indica que isso será alterado por conta da reforma política em curso. Isso porque nenhum partido se agarra para valer nesse serviço.
Há dois anos, quando deixava o Palácio do Planalto com o título de ex-presidente, Lula afirmou que iria se dedicar a essa proposta. Mencionou a necessidade de fortalecimento dos partidos. E, agora, curado da doença que lhe impediu de levar avante vários projetos, Lula se dedicará mais em fortalecer os candidatos petistas a prefeito, leia-se Fernando Haddad em São Paulo, do que da reforma política.
Por falar em eleições...
No Congresso, embora todos apresentem o tema como prioridade em discursos, ninguém acredita no sucesso da reforma política a curto prazo. Uma Câmara que, há três semanas, não consegue se entender para a simples distribuição de presidência das comissões técnicas, não conseguirá votar a reforma política tão cedo.
Nesta Legislatura, infelizmente, os congressistas incorrem nos mesmos erros das anteriores: os senadores e os deputados analisam, cada um, uma reforma diferente. Depois, mandam para a outra Casa, que termina engavetando a proposta porque o partido A ou B está na fase da “onda” em que prefere não reformar nada.
Por falar em “onda boa”…
O primeiro a perceber esse tipo de movimento de “onda” foi o antigo, PFL, hoje DEM. Na época em que nadava de braçada na posição de maioria, a pefelândia liderada por Jorge Bornhausen fez de tudo para impor todos os limites possíveis à mudança partidária. Bom de faro na política, o “Alemão”, como os pefelistas se referiam a Bornhausen, percebeu que a “onda boa” do PFL estava terminando seu ciclo e propôs a reforma política como forma de dar uma sobrevida. Os partidos de esquerda não quiseram levá-la adiante.
Agora, embora os petistas falem da reforma e tenham até o relator na Câmara, Henrique Fontana (PT-RS), dificilmente o projeto caminhará a contento. Isso porque, dentro do Congresso, há muita gente desconfiada de que o PT deseja aprovar a reforma política agora apenas para instituir o financiamento público das campanhas e, assim, arrumar um discurso alternativo ao mensalão a ser julgado este ano. E, sendo assim, quem não vai querer a reforma são as outras legendas. E, assim, a população vai continuar com sua política messiânica, em busca de um salvador, sem ligar para os partidos, como ocorre em Cavalcante.
Por falar em Cavalcante...
Houve quem me dissesse, cheio de certeza, que o partido do prefeito da cidade de Cavalcante (GO) era o PSDB. Não é. Josias Magalhães Costa Sobrinho é do PTN. E, para sua informação: o site webdemocracia.com o apresenta como um dos piores no ranking dos prefeitos dos municípios goianos. Só perde para os de Aurilândia e Guarinos. É, pois é.
A economia brasileira é diferente? - PAULO R. HADDAD
O ESTADÃO - 22/02/12
Desde o início da atual crise econômica e financeira global, a economia brasileira tem apresentado um padrão de dinamismo diferente do que vem ocorrendo nas economias mais desenvolvidas. Cresceu, quando estas involuíam; persistiu investindo, quando estas entravam em desalento; e, mais recentemente, até mesmo desacelerou seu ritmo de expansão, quando estas estagnaram. Tudo isso num ambiente de relativa estabilidade econômica.
A economia brasileira é diferente? Tudo depende da profundidade e da duração da crise global. Quanto mais duradoura e mais intensa a recessão econômica mundial, maior será sua capacidade de homogeneizar seus impactos adversos e suas mazelas sobre as mais diversas economias nacionais dos cinco continentes.
Entretanto, quando se observa a evolução dos ciclos das economias de diferentes países, quando de uma crise econômico-financeira global que transmuta de uma recessão na direção de uma depressão, é possível verificar padrões diferenciados desses ciclos quanto ao seu início, sua intensidade, sua cadência, seu sequenciamento e sua reversão.
Em primeiro lugar, num ambiente de crise potencial, há que considerar o grau de flexibilidade de que as autoridades econômicas dispõem para manipular os instrumentos das políticas fiscal, monetária e cambial para preservar as condições de crescimento e de estabilidade da economia. Neste ponto, somos muito diferentes das economias da União Monetária Europeia, que não têm como promover política cambial ativa visando a expandir suas exportações para fins de crescimento. Somos diferentes também das economias desenvolvidas onde as políticas monetárias expansionistas levam tão somente ao empoçamento da liquidez ou à amortização de dívidas públicas e privadas acumuladas no passado.
Em segundo lugar, diferenças emergem também nas estruturas produtivas de cada país quanto às possibilidades de aproveitamento de suas potencialidades econômicas diante das demandas diversificadas de uma economia global com polos de crescimento policêntrico. O Brasil dispõe de uma base de recursos naturais renováveis e não renováveis exuberante que pode se transformar num espaço privilegiado de investimentos para atender às demandas de economias emergentes sedentas de alimentos, de minérios e metais, de bioenergéticos, etc. A exploração econômica dessas potencialidades não representa uma reespecialização regressiva da história da economia brasileira, uma vez que o conteúdo tecnológico das exportações primárias é cada vez mais intenso em suas cadeias de valor por força da competição e das especificações da demanda dos mercados globalizados.
Em terceiro lugar, há que considerar os ventos que sopram a favor da expansão econômica induzida pela dinamização do nosso mercado interno resultante das melhorias da produtividade total dos fatores de produção e da distribuição da renda e da riqueza nacional. Essas melhorias são impulsionadas também pelo desmonte de uma política monetária concebida para os anos de superinflação, o que tem levado à expansão das condições de crédito e de financiamento compatíveis com a realidade econômica de milhões de brasileiros até então excluídos dos mercados de bens duráveis de consumo e de imóveis residenciais.
Não há um descontrole do processo de endividamento público e privado; muitas das principais reformas de modernização das nossas instituições financeiras já ocorreram quando da consolidação do Plano Real; e a política fiscal está sendo conduzida de forma adequada com um olho nos indicadores de inflação e o outro nos indicadores de uma eventual estagnação econômica.
Todos esses fatores nos levam a afirmar que há grande chance de podermos ter liberdade para diferenciar o nosso ciclo econômico até mesmo no contexto da maior crise econômico-financeira mundial desde a depressão de 1929. Mas, como se dizia antigamente, o preço dessa liberdade é a eterna vigilância.
Um esclarecimento final - VLADIMIR SAFATLE
FOLHA DE SP - 22/02/12
O senhor José Pereira Coutinho diz gostar de polidez. Ele deve então começar por oferecer aquilo que gostaria de receber. Depois de iniciar uma polêmica comparando-me a um turista diletante e desinformado e de terminar seu texto com a respeitosa argumentação "fazer turismo é bom. Pensar com a cabeça toda é melhor", é exercício de cinismo demonstrar raiva por ter sido tratado da mesma forma.
Sobre os argumentos de sua resposta, eles são prenhes de erros. Primeiro, afirma que a "parte de cimento da barreira de segurança da Cisjordânia constitui apenas 5%". Isso que o senhor Coutinho chama de "barreira" tem 708 km de extensão, sendo que 61,8% do projeto original está construído, 8,2% em construção e 30% por construir. Na parte construída, há 61 km de um muro de concreto de 8 a 9 metros de altura, que passa principalmente pelas áreas urbanas de Jerusalém, Belém, Qalqiliya e Tulkarm. Fotos podem ser vistas por qualquer um na internet. Ou seja, o muro equivale a algo próximo de 14% do que já existe, e não 5%. Ele ainda será ampliado. Como se vê, precisão não é o forte do jornalista.
A leveza do senhor Coutinho em relação a números é idêntica ao peso de suas afirmações. Ele diz que "Israel construiu este muro quilométrico apenas na retórica de Vladimir Safatle". Bem, fico feliz em saber que minha retórica consegue construir muros de 61 km de extensão. Nunca achei que palavras tivessem tanta força. De toda forma, preciso confessar ao senhor Coutinho: não fiz isso sozinho, construí o muro com a ajuda da Corte Internacional de Justiça, a principal corte da ONU. A mesma Corte que publicou em 2004 uma condenação contra o governo de Israel por meio de um documento cujo título é "Consequências Legais da Construção de um Muro nos Territórios Palestinos Ocupados". No documento, a Corte afirmava ser completamente ilegal uma construção que, em 85% de sua extensão, avançava sobre território palestino. Mesmo assim, sei que há leitores que afirmarão que a ONU é um antro de amigos de terroristas e que apenas a opinião do senhor Coutinho conta.
Mas, como era de se esperar, o senhor Coutinho afirma que o muro irreal não é obstáculo para a paz. Nem mesmo os assentamentos o são. Para tanto, ele lembra que o governo de Israel desmantelou assentamentos em Gaza e no Sinai quando tais territórios foram devolvidos. Eu mesmo levantei este contra-argumento em meu primeiro texto. No entanto, o jornalista simplesmente "esquece" um pequeno problema de escala. Há hoje 520 mil colonos na Cisjordânia. Não havia nada nem perto disso em Gaza e no Sinai. Na última vez em que um primeiro-ministro israelense tentou desmantelar assentamentos na Cisjordânia, ele foi assassinado -não pelo Hamas ou por algum grupo terrorista, mas por um colono israelense. Depois disso, o processo de paz nunca mais foi o mesmo.
Sobre essa questão, vale sempre a pena perguntar: se os assentamentos não são realmente obstáculo para a paz, então por que o governo de Israel não segue as exigências da comunidade internacional e para, de uma vez por todas, de construir novos assentamentos? Eu mesmo visitei assentamentos que foram construídos no ano passado. Mas é verdade que alguém que não enxerga muros dificilmente enxergaria obstáculos.
Em vez de apurar sua visão, o senhor Coutinho prefere usar o velho argumento de que os palestinos são os únicos responsáveis pelo seu próprio sofrimento. Uma verdadeira pérola. Para o argumento funcionar, ele não pode dizer sequer uma palavra a respeito do fato de a carta programa do Likud não reconhecer a existência de um Estado palestino. Ele não pode dizer nada a respeito das claras afirmações de Netanyahu, no Congresso norte-americano, expondo sua recusa absoluta em aceitar as fronteiras de 1967, contrariamente ao que Obama havia exigido. Por fim, e isso é muito mais grave, ele "esquece" que a liga árabe ofereceu, em 2002 e 2007, uma proposta de normalização completa e definitiva das relações dos países árabes com Israel em troca da retirada israelense dos territórios ocupados e de uma solução para o problema dos refugiados. Tal proposta recebeu um forte suporte da autoridade palestina. O governo israelense recusou nas duas vezes. Ou seja, uma visão mais honesta do processo afirmaria, no mínimo, que ocasiões para a paz foram igualmente desperdiçadas por ambos os lados.
No entanto, tudo o que o senhor Coutinho diz é que o reconhecimento do Estado da Palestina foi oferecido por Israel em 2000, com Barak, e 2008, com Olmert. Mas ele não tem coragem de dizer claramente o que eram tais propostas. Primeiro, a "solução" proposta por Ehud Olmert incluía, entre outras coisas, a anexação completa de Jerusalém e de vários assentamentos. Ela ignorava soberanamente que um dos pontos fundamentais de negociação sempre foi o reconhecimento de que a parte árabe de Jerusalém seria devolvida aos palestinos para a constituição da capital de seu futuro Estado.
Segundo, a respeito da proposta de Barak e das negociações de Camp David, melhor do que retornar a uma visão simplista do processo que tenta simplesmente demonizar Arafat é ler o clássico artigo de Robert Malley, "Camp David: a Tragédia de Erros". Malley era o negociador norte-americano e representante do governo Clinton à ocasião. Sua descrição é fiel e ponderada, feita por alguém que esteve, desde o início, dentro do processo. O resultado que sai daí é muito diferente do que o senhor Coutinho tenta apresentar. As recusas e inseguranças de Arafat tornam-se mais compreensíveis e ficam longe da ideia de "mais uma prova de que, no fundo, os palestinos querem a simples destruição do Estado de Israel". Mas já percebi que o jornalista não leva a sério descrições de pessoas que veem os processos com os próprios olhos. Diga-se de passagem, a respeito da "proposta" de Barak referente aos refugiados a que o senhor Coutinho alude, ela começou prevendo o retorno de 15 mil palestinos e terminou com não mais do que 100 mil em um contingente de 4 milhões. De toda forma, já expressei minha opinião a respeito deste problema.
Por fim, o senhor Coutinho diz não se impressionar com "interjeições adolescentes" do tipo "há situações inaceitáveis sob quaisquer circunstâncias". Julgo sintomático que a defesa de juízos incondicionais e universais em política seja vista por ele como um exercício retórico (mais um) para "impressionar alguns alunos pós-púberes". Com isso, ele se coloca abaixo de qualquer princípio efetivo de universalização de direitos e mostra claramente suas credenciais políticas, o que também não me impressiona.
Mate calibrado - ANCELMO GOIS
O GLOBO - 22/02/12
A novidade deste carnaval na Praia de Ipanema foi uma mistura de mate com vodca.
Ambulantes de mate no latão, os que Eduardo Paes vai transformar em patrimônio carioca, vendiam a mistura por R$ 5.
Caso médico
Roseana Sarney, a governadora do Maranhão, foi atendida no posto médico da Sapucaí com problemas de sinusite.
Garoto de Ipanema
Eduardo Paes só espera um “nada a opor” da família de Tom Jobim para escolher um local de Ipanema para pôr uma escultura de Tom Jobim.
A estátua está pronta. Foi esculpida por Christina Motta, a mesma artista plástica que fez a de Brigitte Bardot, em Búzios.
País armado
A PM paulista apreendeu 130 armas no carnaval — 58 de fogo e 72 “brancas” (facas, facões...).
No mais
Sérgio Cabral defendeu que as escolas de samba deixem de ser controladas por patronos ligados a atividades ilegais, como jogo do bicho e milícia.
Em 1991, veja a foto, um governador (Moreira Franco) não só recebeu no palácio a cúpula da contravenção e da Liesa como, criticado, saiu-se com este desatino: “Ué, a rainha Elizabeth não recebeu os Beatles?”
País do futuro
Hoje faz 70 anos que o famoso escritor Stefan Zweig, judeu nascido na Áustria, suicidou-se em Petrópolis com a mulher, Lotte.
Zweig é autor do livro “Brasil, país do futuro”, de 1941, hino de amor ao país que adotou.
Coisa nossa
Dos seis anéis reluzentes que Jennifer Lopez exibiu no Camarote da Brahma, na Sapucaí, cinco são da H.Stern.
Um Celtic Dunes, dois modelos Stars, um Pedras Roladas e um Highlight. Todos da coleção particular da bela.
Ju e Fergie
Segunda, no camarote Devassa, na Sapucaí, Juliana Paes teve de se refugiar no salão de maquiagem para escapar do frisson e do empurra-empurra causado... não por ela (que injustiça), mas pela entrada da cantora americana Fergie, vocalista da banda Black Eyed Peas.
Sou mais a Ju.
Grande hotel
Está à venda por R$ 31 milhões o Edifício Erlu, número 324 da Av. Atlântica, no Leme, no Rio, com oito andares, pertencente à família Baeta Neves.
Todos os inquilinos serão despejados.
Com que roupa?
De uma titia na porta do camarote Devassa, ao ver o bonitão Malvino Salvador:
— Cruzes, essa gente tem tanto dinheiro e só se veste com trapo...
Neymar e Thiaguinho
Neymar, segunda, subiu ao palco do Camarote da Brahma e cantou “Tá vendo aquela lua”, do grupo ExaltaSamba.
O grupo vai retribuir hoje no Riocentro, em seu show de despedida: o vocalista Thiaguinho vai usar uma peruca de Neymar ao cantar a canção, que dedicará ao jogador.
Mulher damasco
Versão safadinha da marchinha “Cachaça”, de Lúcio de Castro, Heber Lobato e Mirabeau Pinheiro, cantada por um grupo de gaiatos num ônibus da linha 172, no domingo de carnaval:
— Você pensa que mulher é damasco/Mulher não é damasco, não/Mulher dá o ano inteiro/ Damasco só dá no verão...”
Ambulantes de mate no latão, os que Eduardo Paes vai transformar em patrimônio carioca, vendiam a mistura por R$ 5.
Caso médico
Roseana Sarney, a governadora do Maranhão, foi atendida no posto médico da Sapucaí com problemas de sinusite.
Garoto de Ipanema
Eduardo Paes só espera um “nada a opor” da família de Tom Jobim para escolher um local de Ipanema para pôr uma escultura de Tom Jobim.
A estátua está pronta. Foi esculpida por Christina Motta, a mesma artista plástica que fez a de Brigitte Bardot, em Búzios.
País armado
A PM paulista apreendeu 130 armas no carnaval — 58 de fogo e 72 “brancas” (facas, facões...).
No mais
Sérgio Cabral defendeu que as escolas de samba deixem de ser controladas por patronos ligados a atividades ilegais, como jogo do bicho e milícia.
Em 1991, veja a foto, um governador (Moreira Franco) não só recebeu no palácio a cúpula da contravenção e da Liesa como, criticado, saiu-se com este desatino: “Ué, a rainha Elizabeth não recebeu os Beatles?”
País do futuro
Hoje faz 70 anos que o famoso escritor Stefan Zweig, judeu nascido na Áustria, suicidou-se em Petrópolis com a mulher, Lotte.
Zweig é autor do livro “Brasil, país do futuro”, de 1941, hino de amor ao país que adotou.
Coisa nossa
Dos seis anéis reluzentes que Jennifer Lopez exibiu no Camarote da Brahma, na Sapucaí, cinco são da H.Stern.
Um Celtic Dunes, dois modelos Stars, um Pedras Roladas e um Highlight. Todos da coleção particular da bela.
Ju e Fergie
Segunda, no camarote Devassa, na Sapucaí, Juliana Paes teve de se refugiar no salão de maquiagem para escapar do frisson e do empurra-empurra causado... não por ela (que injustiça), mas pela entrada da cantora americana Fergie, vocalista da banda Black Eyed Peas.
Sou mais a Ju.
Grande hotel
Está à venda por R$ 31 milhões o Edifício Erlu, número 324 da Av. Atlântica, no Leme, no Rio, com oito andares, pertencente à família Baeta Neves.
Todos os inquilinos serão despejados.
Com que roupa?
De uma titia na porta do camarote Devassa, ao ver o bonitão Malvino Salvador:
— Cruzes, essa gente tem tanto dinheiro e só se veste com trapo...
Neymar e Thiaguinho
Neymar, segunda, subiu ao palco do Camarote da Brahma e cantou “Tá vendo aquela lua”, do grupo ExaltaSamba.
O grupo vai retribuir hoje no Riocentro, em seu show de despedida: o vocalista Thiaguinho vai usar uma peruca de Neymar ao cantar a canção, que dedicará ao jogador.
Mulher damasco
Versão safadinha da marchinha “Cachaça”, de Lúcio de Castro, Heber Lobato e Mirabeau Pinheiro, cantada por um grupo de gaiatos num ônibus da linha 172, no domingo de carnaval:
— Você pensa que mulher é damasco/Mulher não é damasco, não/Mulher dá o ano inteiro/ Damasco só dá no verão...”
Cinzas e a garrafa de Klein - ROBERTO DaMATTA
O Estado de S.Paulo - 22/02/12
Como máquinas de marcar, regular e inventar o tempo, determinando suas eventuais funções - tempo de colher e plantar, de rir e de chorar, de vadiar ou de trabalhar, de obedecer ou de enlouquecer, de discursar ou de cantar -, as festas e os rituais realizam cortes nas rotinas diárias. Fatiar o tempo é, como dizia Thomas Mann, como tentar cortar a água, mas se não podemos concretizar o tempo, podemos ao menos tentar enjaulá-lo ou enredá-lo por meio de convenções que contrariam ou repudiam a realidade do chamado aqui e agora.
Como? Promovendo descontinuidades naquilo que é vivido como uma experiência sem início ou fim. Por meio das baterias, da nudez das mulheres, da confusão entre fundo e forma e pela conjunção da entrada e da saída, tentamos separar de uma continuidade infinita algo discreto: um drama com início, meio e fim. Todo ritual tem um alvo e hoje, querido leitor, você deve estar exausto ou pensando que este carnaval de 2012 que acabou de acabar foi mais uma disciplinada e programada loucura. A menos que nele e por meio dele você tenha vivido alguma coisa extraordinária.
* * * *
Quando menino, eu ouvi de um dos meus tios maternos uma história de carnaval que se equipara a uma parábola e que poderia se transformar num conto.
A história era uma das poucas narrativas produzidas pelo meu avô Raul, desembargador aposentado pelo Estado do Amazonas e chamado por esses tios de "velho Raul": um homem sisudo como esses magistrais magistrados do STF. Baiano de pouco falar, que não gostava muito de criança, ele se satisfazia mais em ver os filhos, enteados, noras e netos falando e discutindo do que tomando parte ativa nas intermináveis discussões e saraus narrativos praticados pela nossa família.
O caso do velho Raul contava o seguinte: num antigo carnaval baiano, um jovem conquistador apaixonou-se por uma linda morena e dançou com ela todo o carnaval. Em vez de tomar parte nos mil e um eventos que constituem a teia das festas carnavalescas, o jovem concentrou-se apenas naquela mulher misteriosa cujo enorme decote combinava com uma meia-máscara.
Todas as noites, eles rodopiavam pelos salões, enredados nas serpentinas e, entre taças de champanhe com pingos de confete, olhavam-se com aquela voracidade capaz de enxergar a alma que, afinal de contas, o carnaval tanto deita em risco. Ao fim do terceiro e último dia, vésperas das cinzas que são o símbolo da fragmentação ou do fracionamento de todos nós, a moça atende às propostas mais abusivas e decide acompanhar o rapaz para a casa de um amigo. Naquele tempo, vovô remarcava, não existiam hotéis e tudo tinha de ser feito com o maior cuidado.
Chegaram na casa combinada pelas 3 horas da manhã. Tecnicamente já estavam na Quarta-feira de Cinzas, mas os beijos apaixonados e os abraços atrevidos garantiam a licença carnavalesca levando para a alcova o clima do baile. Despiram-se e na hora da verdade que os corpos nus não podem esconder, o jovem descobriu que a mocinha linda e envergonhada era um homem.
Essa história sempre terminava com um sorriso dos meus tios. Não me passou pela cabeça perguntar a nenhum deles o que ocorreu em seguida. Hoje, eu compreendo o peso da pergunta e ela me diz que certamente nenhum dos ouvintes ousou perguntar o desfecho desse caso de carnaval para o nosso vetusto juiz de juízes.
* * * *
Penso que, neste nosso mundo globalizado, o grande sertão inventado pelo carnaval da parábola baiana de vovô Raul não promove mais suspense. Pois se entre homem e mulher existem distinções biológicas palpáveis, nada cobre o espaço entre o masculino e o feminino, exceto um conjunto de disposições ou disponibilidades de distinção (ou extinção) convencionais e arbitrárias, de tal modo que um lado pode muito bem ultrapassar o outro. O resultado desses encontros seria uma figura como um cachorro que sumiu comendo o próprio rabo; ou como uma garrafa de Klein - ou uma inversão transversa seja lá o que isso - viva o carnaval! - queira dizer.
* * * *
Descubro que as máscaras do travesti personagem do programa humorístico Zorra Total, Valéria, e de sua coadjuvante, Janete, foram as mais vendidas neste carnaval, ao lado das do palhaço político Tiririca e de Ronaldinho. No Halloween, o nosso americanizado Dia de Finados, a máscara de Michel Temer abafou. Mas nesses dias de folia e inversão do mundo, nada melhor que essas ambiguidades de ambiguidades que remetam ao próprio espírito do Rei da Desordem.
Todo carnaval tem temas. Nos últimos anos vimos os bailes que dividiam um carnaval fechado de um outro, mais aberto, realizado nas ruas, praias e praças, serem substituídos pelos desfiles de Escolas de Samba a ponto de uma "descarnavalização" - de um restabelecimento do fosso hierárquico entre atores e espectadores que, como sugeria Bakhtin, o grande estudioso dessa festa, o carnaval destrói porque ele conduz, como todos nós, brasileiros, sabemos bem, a uma dramática e quase sempre grotesca ou cômica troca de lugar.
Mas a despeito de tudo, eu espero que nesta Quarta-feira de Cinzas, que todo ano pauta minha escrita, você tenha se divertido num dos mil blocos que hoje parecem ser mais um centro de inspiração para "brincar" e "pular" do nosso velho e sempre recorrente carnaval.
Súplica à China - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 22/02/12
Durante visita de autoridades da China ao país, o governo brasileiro solicitou ao chinês que restringisse as exportações de suas empresas para o Brasil. Demandava-se proteção para as empresas brasileiras do setor de tecidos, roupas, calçados e eletroeletrônicos.
O governo não forneceu mais detalhes a respeito desse pedido nem dos objetivos diplomáticos dessa iniciativa. Sem mais explicações, ela parece tanto patética quanto reveladora do desnorteio da política comercial brasileira.
Em primeiro lugar, tal demanda no máximo pode ser um meio de expressar a insatisfação do Brasil diante das políticas comercial e econômica da China. Segundo: autoridades chinesas têm longo histórico de indiferença a demandas comerciais de outros países. O caso mais notório é o desprezo chinês em resposta a queixas americanas a respeito de manipulação cambial e propriedade intelectual.
Terceiro: a política brasileira para setores expostos à dura concorrência asiática é míope. Manufaturas como as de têxteis e calçados sofrem no presente a pressão chinesa. Daqui a muito pouco, porém, tais produtos serão exportados por vizinhos, como Vietnã e Camboja, que também incorporam massas de mão de obra barata à sua força de trabalho.
Quarto: deve ser considerado que as condições em que se dá o comércio de manufaturados básicos são afetadas, no que mais importa, por fatores sobre os quais o Brasil tem pouca influência -câmbio e crise mundial. Quinto: de fato, há subfaturamento e contrabando no comércio asiático. Nesse caso, o Brasil deve tomar medidas duras, mas o problema não se limita à competição desleal.
Sexto: o governo federal precisa acelerar a remoção de empecilhos burocráticos e a carga de custos que prejudicam as empresas brasileiras. Impostos, energia, logística -tudo aqui é mais caro.
Por fim, dados todos esses argumentos, o governante pode ficar tentado a assumir francamente a atitude protecionista e elevar tarifas. Nesse caso, governo e empresas reconhecerão sua inépcia; os custos aumentarão (inflação).
A boca entortada pelo uso do cachimbo protecionista anunciará medidas para a proteção de mais setores. Mas parte da indústria brasileira não terá como competir com o complexo asiático -no mínimo, nossos salários são mais altos.
A receita continua a mesma: reduzir custos e burocracia; incentivar a inovação; estimular o uso do capital e do trabalho nacionais em setores mais avançados que o de commodities agrícolas e minerais.
Durante visita de autoridades da China ao país, o governo brasileiro solicitou ao chinês que restringisse as exportações de suas empresas para o Brasil. Demandava-se proteção para as empresas brasileiras do setor de tecidos, roupas, calçados e eletroeletrônicos.
O governo não forneceu mais detalhes a respeito desse pedido nem dos objetivos diplomáticos dessa iniciativa. Sem mais explicações, ela parece tanto patética quanto reveladora do desnorteio da política comercial brasileira.
Em primeiro lugar, tal demanda no máximo pode ser um meio de expressar a insatisfação do Brasil diante das políticas comercial e econômica da China. Segundo: autoridades chinesas têm longo histórico de indiferença a demandas comerciais de outros países. O caso mais notório é o desprezo chinês em resposta a queixas americanas a respeito de manipulação cambial e propriedade intelectual.
Terceiro: a política brasileira para setores expostos à dura concorrência asiática é míope. Manufaturas como as de têxteis e calçados sofrem no presente a pressão chinesa. Daqui a muito pouco, porém, tais produtos serão exportados por vizinhos, como Vietnã e Camboja, que também incorporam massas de mão de obra barata à sua força de trabalho.
Quarto: deve ser considerado que as condições em que se dá o comércio de manufaturados básicos são afetadas, no que mais importa, por fatores sobre os quais o Brasil tem pouca influência -câmbio e crise mundial. Quinto: de fato, há subfaturamento e contrabando no comércio asiático. Nesse caso, o Brasil deve tomar medidas duras, mas o problema não se limita à competição desleal.
Sexto: o governo federal precisa acelerar a remoção de empecilhos burocráticos e a carga de custos que prejudicam as empresas brasileiras. Impostos, energia, logística -tudo aqui é mais caro.
Por fim, dados todos esses argumentos, o governante pode ficar tentado a assumir francamente a atitude protecionista e elevar tarifas. Nesse caso, governo e empresas reconhecerão sua inépcia; os custos aumentarão (inflação).
A boca entortada pelo uso do cachimbo protecionista anunciará medidas para a proteção de mais setores. Mas parte da indústria brasileira não terá como competir com o complexo asiático -no mínimo, nossos salários são mais altos.
A receita continua a mesma: reduzir custos e burocracia; incentivar a inovação; estimular o uso do capital e do trabalho nacionais em setores mais avançados que o de commodities agrícolas e minerais.
Por que a nossa internet é tão cara e ruim? - WALTER FELDMAN
FOLHA DE SP - 22/02/12
A Anatel defende as empresas, não os consumidores; permite-se que as empresas entreguem 10% da internet prometida e que vendam o patrimônio público
A privatização da telefonia aconteceu em 1998 e o governo do PT assumiu o poder em 2003. Portanto, o que se fez no período posterior à privatização? Se ela foi tão ruim, não era o caso do PT aperfeiçoá-la?
Todo mundo hoje tem uma linha de celular e o uso de banda larga está crescendo. Porém, os avanços vislumbrados na privatização não alcançaram o êxito que projetamos.
O ex-ministro das Comunicações no governo FHC, Sérgio Motta, teve uma sacada brilhante. No contrato de concessão, incluiu uma cláusula: dez anos depois, o contrato teria de ser revisto.
Ele argumentou que a tecnologia era tão veloz que não fazíamos ideia de como seria o futuro.
Em 2008, quando o contrato venceu, o PT já estava no poder desde 2003. O governo simplesmente ratificou a privatização que tanto utiliza para criticar o PSDB, assinando o contrato com as empresas de telefonia por mais 20 anos.
O governo perdeu uma oportunidade de dar um salto de qualidade nesse setor tão estratégico. O país e os consumidores saíram perdendo. A telefonia no Brasil se tornou uma das piores do mundo: falamos menos e pagamos mais.
Também pagamos caro para uma internet lenta e problemática, com quedas e instabilidade constantes. Tanto que o número de reclamações contra as empresas de telefonia no Procon é recorde todos os anos.
A Anatel defende as empresas, não os consumidores. A sua omissão é tanta que ela está revendo a sua própria decisão de implantar uma auditoria para auferir a velocidade da banda larga, depois que as operadoras reclamaram contra a medida.
O contrato das operadoras com os clientes obriga a entrega de uma banda mínima de apenas 10% da velocidade vendida. Se o consumidor comprou dez megabytes, vai receber apenas um megabyte.
A Oi protesta abertamente contra a medida. Não é por menos, a empresa ganhou poder no governo do PT, que diminuiu a competição, em vez de estimulá-la.
Os fundos de pensão das estatais apoiaram a polêmica fusão da Oi com a Brasil Telecom, em um dos lances mais confusos da história recente, como envolvimento da Polícia Federal na famosa Operação Satiagraha.
O mais surpreendente foi o apoio do governo, por meio dos fundos de pensão, aos sócios Andrade Gutierrez e Grupo La Fonte, para que eles ampliassem a sua participação e o seu controle na Oi. Esses grupos, aliás, tinham sido demonizados durante a privatização.
Para maquiar a situação, a Oi e as operadoras chegaram a um acordo com a Anatel. Elas próprias vão auditar a si mesmas, por meio de uma entidade do setor, o SindiTeleBrasil.
O descaso da Anatel e do governo com os consumidores não para por aí.
Um dos termos no contrato de concessão era que a concessionária poderia deveria devolver os bens da União depois do final do contrato ou então repassá-los para um novo concessionário.
Em 2008, ao ratificar o contrato, o governo poderia pegar alguns bens de volta para beneficiar a população
A Anatel, porém, permitiu que as operadoras vendessem o patrimônio público. Só a venda de um terreno (em frente ao Palmeiras, em São Paulo) rendeu um valor na casa do bilhão. O local poderia servir para construir um imenso parque, escolas e creches.
Nós vamos chamar o presidente da Anatel para fazer cobranças. Vamos convidar o Ministério Público para nos ajudar a conferir a lista de imóveis vendidos. Também exigiremos que a própria agência conduza as auditorias das operadoras, por meio de entidades qualificadas.
Queremos saber: por que a internet continua tão cara e o serviço é tão ruim? Essa não é uma exigência nossa, é uma exigência de qualquer usuário de internet, telefone fixo ou celular no Brasil. A população está farta de tanto desrespeito.
Mentira e colonização da Grécia - VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SP - 22/02/12
Plano de "ajuda" coloniza o país, o destroça e serve apenas para dar tempo para a elite europeia se arranjar
Faz algumas semanas, era piada dizer que a Grécia seria reduzida à condição de república bananeira, ocupada por estrangeiros que vinham cobrar dívidas, como os americanos faziam na América Central no início do século 20.
Agora é oficial: inspetores da União Europeia e/ou FMI vão ter uma cadeira no departamento de contas a pagar e a receber do governo grego, praticamente dizendo o que pode e o que não pode. Haverá ainda uma conta especial para canalizar o dinheiro dos credores (o que sobrar, fica com os gregos).
Se implementado, o "plano de socorro" reduz a Grécia à condição de colônia: sem moeda, sem autonomia orçamentária, sem crédito, sem nada.
Para completar o cenário, faltariam apenas canhoneiras ancoradas no Pireu (o porto perto de Atenas) e agentes estrangeiros recolhendo dinheiro na alfândega.
Em termos econômicos, o "plano de socorro" é uma mentira cínica que as lideranças europeias contam a fim de ganhar tempo.
Vazou para os jornalistas um documento oficial e confidencial sobre a possibilidade de sucesso do "plano de ajuste" grego. Na hipótese mais otimista, a Grécia ainda deverá uns 130% do PIB em 2020.
Mas a hipótese mais otimista é alucinada. Depende de um cronograma irrealista de redução de deficit, de privatizações e de expectativa de crescimento econômico.
Como o próprio documento observa, um atraso na aplicação inicial do plano explode as demais e seguintes projeções irrealistas de "progresso". Isto é, se a Grécia não cresce, se não faz superavit primário suficiente ou não privatiza no preço e na velocidade projetados, o plano irá rapidamente para o vinagre.
Esclareça-se aqui o que é "otimismo" (dívida caindo a 130% do PIB em 2020): recessão de 4,3% em 2012, estagnação em 2013, redução média de salários em torno de 25% (sim, um quarto) até 2014. Um colapso.
O PIB grego encolheu uns 13% desde 2007. Na perspectiva otimista, a economia não voltaria ao nível de produção ("tamanho") de 2007 até 2022: 15 anos de estagnação. A essa altura, a renda per capita teria caído uns 15%, pelo menos. Se tudo der certo, pois, os gregos estarão, em 2020, 15% mais pobres do que o eram em 2007.
Obviamente ninguém está dando a mínima para a Grécia, e menos ainda para os gregos comuns. O que a elite europeia pretende é ganhar tempo, como o faz desde 2009.
Evita-se o calote grego, talvez até 2013. Nesse ínterim, tomam-se medidas para acolchoar o ambiente e proteger bancos e governos europeus de um "acidente" na Grécia (como uma revolução).
Em dezembro, o Banco Central Europeu emprestou meio trilhão de euros à banca da eurozona, a taxas de juros negativos (deu dinheiro, pois). No dia 29, terça que vem, pode emprestar outro meio trilhão.
A dinheirama atenuou o temor de quebra de bancos europeus, vários deles zumbis, mortos-vivos, reavivou um pouco de crédito interbancário e até permitiu que se usasse parte desse dinheiro na compra de títulos da dívida da Itália e da Espanha. O plano, enfim, põe a "Europa do Sul" na linha dura -a tortura grega fica como uma ameaça para recalcitrantes.
O sentido de uma sentença - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo - 22/02/12
Saiu há pouco a primeira sentença judicial que expõe a falsidade da principal - e quase única - alegação utilizada pelos cabeças do mensalão, para negar que tenha existido o esquema petista de suborno de parlamentares federais para servir ao governo do presidente Lula, então no primeiro mandato: tratava-se de uma "conspiração" para armar o impeachment de Lula. Revelada em 2005, a compra de votos na Câmara dos Deputados levou a Procuradoria-Geral da República a pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) a abertura de processo contra 40 envolvidos no escândalo - o mais escabroso da história recente da política nacional. O STF, que acolheu a denúncia em 2007, poderá julgar este ano os 36 réus remanescentes.
Na semana passada, o juiz substituto da 11.ª Vara Federal de Belo Horizonte, Henrique Gouveia da Cunha, condenou o publicitário Marcos Valério Fernandes de Souza, apontado como operador do mensalão, a 9 anos e 8 meses de prisão por crimes de sonegação fiscal e falsificação de documentos públicos. Ele e dois sócios haviam sido acusados de omitir receitas e passar informações falsas ao Fisco. A maioria dos vultosos valores sonegados foram justificados como empréstimos ao PT para serem distribuídos a integrantes da base aliada na Câmara. Segundo a acusação, os empréstimos é que nunca existiram: foram simulados para encobrir o desvio de recursos públicos, sob a forma de contratos publicitários firmados pela administração federal com a SMP&B, empresa de Marcos Valério, para a compra de políticos.
No processo do mensalão, ele responde por formação de quadrilha, falsidade ideológica, corrupção passiva e ativa, peculato, lavagem de dinheiro, delito de gestão fraudulenta de instituição financeira e evasão de divisas. Em valores atualizados até 2007, a sonegação montava a R$ 90 milhões. Quando o mensalão veio a público, o criativo publicitário tentou se antecipar à devassa que a Receita Federal inevitavelmente faria na sua empresa, retificando as declarações manipuladas. A manobra teve efeito bumerangue. "A retificação", concluiu o juiz Gouveia da Cunha, "constitui confissão das fraudes anteriormente encetadas para se lograr a sonegação." Dez ações contra Valério correm na Justiça Federal de Minas Gerais.
Em dezembro passado, ele passou 10 dias preso na Bahia, sob a acusação de falsificar matrículas de propriedades no município de São Desidério. O golpe tem ligação com uma suposta dívida do grupo de Valério com o Banco Rural, no valor de R$ 38,4 milhões. O débito, ao que tudo indica, é tão fictício quanto os empréstimos da SMP&B ao PT. Como esses, também foi fabricado para acobertar o repasse de dinheiro público a deputados federais, por intermédio do partido do presidente da República. Como se recorda, ao vir à tona o mensalão apanhou Lula desprevenido. Depois de alegar, apesar das evidências, que nunca teve conhecimento da baixaria, declarou-se "traído", sem nomear os traidores, e chegou a pedir desculpas ao País.
Mais adiante, porém, afirmou que a dinheirama se destinava ao caixa 2 do partido. "O que o PT fez do ponto de vista eleitoral é o que é feito no Brasil sistematicamente por outros partidos", disse, numa entrevista tristemente memorável. Por fim, brandiu a confortável teoria de que o escândalo tinha sido confeccionado numa "conspiração das elites" para removê-lo do poder. Essa fabulação é sustentada, entre outros, pelo principal de seus companheiros à espera de julgamento no STF, o ex-ministro e "capitão do time" do Planalto, deputado cassado José Dirceu, que figura nos autos como "chefe da quadrilha" do mensalão.
É bem verdade que o PT não inventou o mensalão - apenas aplicou no atacado o que Valério fizera no varejo em Minas, em 1998, para beneficiar o governador tucano (e fracassado candidato à reeleição) Eduardo Azeredo. No ano passado, a Justiça Estadual o condenou a 6 anos de prisão. Assim como no caso da decisão da alçada federal, ele tem assegurado o direito de recorrer em liberdade. O que não se entende é a demora do Supremo Tribunal em marcar a data do acerto de contas dos mensaleiros com os delitos de que são acusados. Daqui a pouco, no dia 7 de junho próximo, a revelação do escândalo completará sete anos.
O pessimista entre a anarquia e o poder - ELIANA CARDOSO
O ESTADÃO - 22/02/12
No território da bandidagem e da violência, a discussão da origem do Estado não se assenta na República de Platão, mas na lenda hobbesiana da vida curta e brutal. E - lamenta-se o señor Juan, protagonista de Coetzee no Diário de um Ano Ruim - Hobbes nos esconde que a entrega do exercício da força ao Estado é irreversível e impede para sempre a volta ao estado natural. Entretanto, se o estado natural era a barbárie, porque haveríamos de querer voltar para lá? Você não quer. Nem eu. Mas ao señor Juan interessa demonstrar a solidez da opinião anarquista: o que está errado com a política é o poder em si.
Para ilustrar seu argumento o señor Juan comenta a "ingenuidade" do filme Os Sete Samurais, no qual Kurosawa oferece sua versão da origem do Estado. Uma aldeia japonesa, durante um período de desordem política - quando o Estado praticamente deixara de existir -, sofria invasões de uma tropa de bandidos, que roubava mantimentos, estuprava mulheres e matava quem resistisse. Aos poucos, os bandidos - mutantes de predadores em parasitas - sistematizaram as visitas, comparecendo à aldeia apenas uma vez por ano para cobrar tributo.
O filme começa com a decisão dos camponeses de contratar um bando de durões (sete samurais desempregados) para proteger a aldeia. Os samurais derrotam os bandidos e, tendo visto como o sistema de extorsão funciona, oferecem aos camponeses uma proposta: pagamento anual em troca de proteção permanente. Como Kurosawa é um sonhador romântico, quando os camponeses recusam a oferta, os samurais vão embora em paz.
Coetzee desacredita do final feliz do filme de Kurosawa, mas é exatamente um final feliz que desejamos na solução dos conflitos iniciados pela Polícia Militar que ocupou a Assembleia Legislativa da Bahia, durante a segunda semana de fevereiro. Por isso, vários analistas tentaram entender o que se passou e perguntar como evitar que o motim se repita no futuro.
Vale começar passando em revista o susto da população brasileira, quando o movimento articulado por grevistas espalhou o pânico para forçar a aprovação da PEC 300, que cria piso nacional para o salário de policiais e bombeiros. Os homens do Exército e da Força Nacional fecharam o cerco aos policiais militares acampados dentro do prédio da Assembleia Legislativa em Salvador, transformado em quartel-general dos grevistas. Fracassada a primeira tentativa de negociação, o Exército endureceu. O clima ficou tenso. Helicópteros deram rasantes sobre o prédio. De dentro da Assembleia, um dos líderes do movimento ordenou atos de vandalismo. A greve provocou uma onda de crimes. Houve relatos de mendigos assassinados e ônibus invadidos por supostos policiais. O Exército reforçou a tropa que cercava a Assembleia. Suspendeu a entrega de comida. Cortou a energia e a água. A ocupação terminou.
As greves policiais são comuns no Brasil, declarou um defensor dos grevistas, no suplemento Aliás de O Estado de S. Paulo, como se o clichê do "todo mundo faz" pudesse justificar a não justificável violação dos direitos humanos da população, sujeita a assassinatos e saques.
A maioria dos analistas concordou que a reivindicação salarial era justa. Mas a maioria também argumentou que uma reivindicação justa deixa de sê-lo quando vem vinculada a técnicas de intimidação e extorsão. A discussão então se voltou para a regulamentação do direito de greve do setor público e a omissão do Congresso Nacional na aprovação desse disciplinamento.
Mas a nossa Constituição inclui os policiais e os bombeiros na categoria de militares, porque a eles cabe preservar a ordem e garantir a segurança. Os profissionais que portam armas estão, segundo a Constituição, barrados da sindicalização e da greve. A esses servidores públicos, portanto, não se aplica a necessidade de regulamentação do direito de greve, pois a proibição já existe.
Nenhuma democracia conta com organizações simétricas para todos os seus grupos. Por exemplo: os desempregados, os consumidores e os contribuintes não se encontram organizados. A consequência é que grupos organizados e poderosos (como o dos trabalhadores sindicalizados ou o dos banqueiros) tendem a ignorar as perdas para os grupos não organizados. As forças do mercado não são suficientes para garantir comportamentos que beneficiem igualmente todos os grupos sociais. Entende-se, portanto, que os policiais precisam reivindicar ajustes, mas terão de fazê-lo por meio de atos de suas associações ou esperar que o Estado lhes dê cobertura legal para realizarem um movimento reivindicatório disciplinado e com mobilização parcial, sem ação violenta, sem ocupação de prédios e sem vandalismo.
Aqui entra a inação do Congresso Nacional e dos governos estaduais e federal. A sociedade pergunta-se por que a PEC 300, que tramita na Câmara desde 2008, ainda não foi discutida nem se votaram emendas para harmonizar salários levando em consideração as condições e o custo de vida nas diferentes regiões do País. Por onde andavam nossos representantes todos esses anos?
A explicação parece ser a de que os políticos acreditam que não têm mandato para se anteciparem aos problemas e o público não reage à inação de seus representantes. A consequência é que problemas que parecem pequenos acabam se transformando em tragédias. A Câmara só age sob pressão.
O señor Juan - personagem de Coetzee que abriu este artigo - declara-se anarquista-quietista-pessimista. Anarquista porque o que está errado com a política é o poder em si. Quietista porque a vontade de se pôr a mudar o mundo se encontra, ela também, infectada pelo desejo de poder. E pessimista porque não acredita que coisas possam mudar. A posição parece intelectualmente sofisticada. E, com certeza, é cômoda. Mas se todos pensarmos como ele, estaremos entregando o Brasil aos bandidos.
Quanto riso, quanta dúvida - PAULA CESARINO COSTA
FOLHA DE SP - 22/02/12
RIO DE JANEIRO - Eles estavam vestidos só de fraldão geriátrico e sandálias. Ou fantasiados de cidadãos do Império Romano. Homens apareceram travestidos de mulher. Executivas flertaram como odaliscas.
Eles e elas se espalharam pelas ruas do Rio nos últimos dias, como se nascidos por aqui, mas denunciados a cada momento em que tentavam entoar uma marchinha de Carnaval.
Alguns sassaricavam pela primeira vez. Outros já tinham se mudado para o Rio há algum tempo. Cotidianamente vestem terno e gravata, embarcam em plataformas no meio do oceano, pesquisam nos centros de tecnologia ou aproveitam as bolsas de estudos em universidades surfando na onda Brics.
A invasão estrangeira no Brasil, e especialmente no Rio, não dá sinais de que vai parar. Em 2011, o número recorde de 5,4 milhões de turistas chegou ao país. Os vistos de trabalho concedidos para estrangeiros cresceram 26%, atingindo 70.524.
Mais albergues e hostels surgiram na medida em que os hotéis tradicionais têm preços à beira do absurdo. Isso fez com que o mercado hoteleiro olhasse para o centro e a Lapa, antes regiões degradadas, mas em fase de recuperação plena.
O deficit de quartos é imenso. Já quase não há vagas para o mais importante evento diplomático dos últimos anos no país, a conferência Rio+20, que acontece em junho.
O governador promete verba recorde para o turismo, o prefeito transformou a cidade em um canteiro de obras. Parece haver uma visão de longo prazo.
No entanto taxistas continuam a enganar passageiros, aeroportos e porto demonstram que estão no seu limite, o serviço em restaurantes é sofrível.
Há tanto por fazer e só resta um sorriso orgulhoso, mas cético, quando o turista encantado pela cidade se aproxima e pergunta: "Isso é o Brasil? Preciso morar aqui...".
Eles e elas se espalharam pelas ruas do Rio nos últimos dias, como se nascidos por aqui, mas denunciados a cada momento em que tentavam entoar uma marchinha de Carnaval.
Alguns sassaricavam pela primeira vez. Outros já tinham se mudado para o Rio há algum tempo. Cotidianamente vestem terno e gravata, embarcam em plataformas no meio do oceano, pesquisam nos centros de tecnologia ou aproveitam as bolsas de estudos em universidades surfando na onda Brics.
A invasão estrangeira no Brasil, e especialmente no Rio, não dá sinais de que vai parar. Em 2011, o número recorde de 5,4 milhões de turistas chegou ao país. Os vistos de trabalho concedidos para estrangeiros cresceram 26%, atingindo 70.524.
Mais albergues e hostels surgiram na medida em que os hotéis tradicionais têm preços à beira do absurdo. Isso fez com que o mercado hoteleiro olhasse para o centro e a Lapa, antes regiões degradadas, mas em fase de recuperação plena.
O deficit de quartos é imenso. Já quase não há vagas para o mais importante evento diplomático dos últimos anos no país, a conferência Rio+20, que acontece em junho.
O governador promete verba recorde para o turismo, o prefeito transformou a cidade em um canteiro de obras. Parece haver uma visão de longo prazo.
No entanto taxistas continuam a enganar passageiros, aeroportos e porto demonstram que estão no seu limite, o serviço em restaurantes é sofrível.
Há tanto por fazer e só resta um sorriso orgulhoso, mas cético, quando o turista encantado pela cidade se aproxima e pergunta: "Isso é o Brasil? Preciso morar aqui...".
A negociação - ILIMAR FRANCO
O GLOBO - 22/02/12
COM FERNANDA KRAKOVICS
O PSD não é problema
O DEM quer ainda reciprocidade do PSDB em outras capitais, principalmente Salvador e Recife. Na capital baiana, a cúpula dos dois partidos já fechou um acordo para apoiar ACM Neto (DEM), mas o deputado Jutahy Júnior (PSDB-BA) resiste. No Recife, a proximidade do PSDB com o governador Eduardo Campos (PSB) incomoda. Em São Paulo, a provável candidatura de José Serra facilita a aliança, já que nenhum dos quatro pré-candidatos tucanos era considerado competitivo pelo DEM. Nem a presença do PSD na chapa é um empecilho. Dirigentes do DEM dizem que o problema seria se o PSD fosse cabeça de chapa.
"Terei comportamento republicano. A contribuição que darei aos partidos da base é um grande esforço de eficiência administrativa” — presidente Dilma, na reunião do Conselho Político, sobre sua participação nas eleições
MÉDIO PRAZO. Apesar de o PSD votar com a base aliada no Congresso, a ocupação de um ministério pelo partido se daria apenas em um eventual segundo governo da presidente Dilma. Isso estava no radar do presidente do PSD, Gilberto Kassab, ao negociar uma aliança com o PT nas eleições para a prefeitura de São Paulo. As conversas foram suspensas quando José Serra resolveu reavaliar sua candidatura na capital paulista.
Privilégio
O Senado gastou em janeiro R$ 65 mil em reembolso de despesas médicas de três ex-senadores. Ex-presidente do PT, José Eduardo Dutra recebeu R$ 32.958. Senadores e seus dependentes têm direito a plano de saúde vitalício.
Correlação de força
Pré-candidato à prefeitura de Fortaleza, o senador José Pimentel (PSB-CE) tem como suplente Sérgio Novais (PSB). Dos 13 senadores do PT, seis têm suplentes de outros partidos. O PSB tem dois, e PSC, PR, PDT e PP têm um cada.
Suando a camisa
A prioridade do presidente do PT, Rui Falcão, é tentar pacificar o partido em Fortaleza, Belo Horizonte e Recife para as eleições municipais. Apesar de seu esforço para evitar prévias em Fortaleza, a prefeita Luizianne Lins, presidente do diretório regional, é a favor da disputa interna, que considera um sinal de vitalidade do partido. E ela não se sente à vontade para impor uma decisão de cima para baixo, já que foi vítima disso quando era pré-candidata e quase foi tratorada pelo PT nacional.
Dança das cadeiras
Embaixadora do Brasil na ONU, em Genebra, Maria Nazareth Farani Azevêdo está cotada para assumir a missão do Brasil junto à OEA, em Washington, no lugar de Ruy de Lima Casaes e Silva. Ele será cônsul-geral do Brasil em Lisboa.
PEC da Música
Músicos e cantores preparam mobilização para pressionar o Senado a votar proposta que garante isenção tributária para CDs, DVDs e mídias digitais produzidos no Brasil. O relator na CCJ será o senador Eunício Oliveira (PMDB-CE).
LADEIRA ABAIXO. A briga do PT de Niterói vai parar na Executiva Nacional. Lideranças do PT do Rio se preocupam com a autofagia no partido. “Está faltando juízo ao PT”, disse um dirigente.
O ITAMARATY vai reunir diplomatas brasileiros sediados no Oriente Médio, na próxima quinta-feira, em Istambul, para discutir a Primavera Árabe.
TROCA-TROCA. O senador Clésio Andrade (PR-MG) SE filia ao PMDB no dia 5, em cerimônia na Assembleia Legislativa de Minas. O vice-presidente Michel Temer é esperado no evento.
A nêmesis do PT - FERNANDO RODRIGUES
FOLHA DE SP - 22/02/12
BRASÍLIA - Hoje recomeça a novela sobre o tucano José Serra ser ou não ser candidato a prefeito de São Paulo. Do outro lado da cerca, uma parte da cúpula do PT difunde um raciocínio fantasioso sobre Serra ser o melhor adversário na disputa de outubro. Balela.
Esse cenário só seria bom para os petistas se fosse possível prever o futuro e ter certeza de uma derrota de Serra. O tucano ficaria quase liquidado para tentar se lançar ao Planalto em 2014. Seria também um revés enorme para a oposição.
Ocorre que eleições são bichos de comportamento imprevisível. Ninguém hoje arrisca com muita segurança um prognóstico para a sucessão de Gilberto Kassab no comando da maior cidade do país.
O cenário oposto ao desejado pelo PT, com Serra sendo candidato e vencendo, robusteceria a oposição. Se ocorrer, significará que a alta popularidade do lulo-petismo ainda não fincou raízes definitivas entre os eleitores paulistanos mais conservadores, moderados e alguns órfãos renitentes do malufismo.
Se vencer, Serra teria, por óbvio, dificuldade de sair novamente da Prefeitura de São Paulo para se candidatar a outro cargo em 2014. Em contrapartida, ele se firmaria como protagonista para conduzir outros processos eleitorais pelo país na condição de líder do PSDB.
Muitos já tentaram encarnar o papel, mas só Serra continua sendo a nêmesis do PT. Sua entrada na disputa paulistana mais atrapalha do que ajuda os planos hegemônicos de Lula e de seu partido. Já a ausência de Serra facilita a vida do atual grupo no poder federal, que cobiça como nunca entrar em São Paulo.
Não é uma decisão fácil para o tucano. Ele está entre duas possibilidades principais, ambas arriscadas. Uma é priorizar seu antigo projeto de um dia ser presidente. O outro caminho seria cumprir uma missão para tentar segurar as pontas dos combalidos partidos de oposição.
Esse cenário só seria bom para os petistas se fosse possível prever o futuro e ter certeza de uma derrota de Serra. O tucano ficaria quase liquidado para tentar se lançar ao Planalto em 2014. Seria também um revés enorme para a oposição.
Ocorre que eleições são bichos de comportamento imprevisível. Ninguém hoje arrisca com muita segurança um prognóstico para a sucessão de Gilberto Kassab no comando da maior cidade do país.
O cenário oposto ao desejado pelo PT, com Serra sendo candidato e vencendo, robusteceria a oposição. Se ocorrer, significará que a alta popularidade do lulo-petismo ainda não fincou raízes definitivas entre os eleitores paulistanos mais conservadores, moderados e alguns órfãos renitentes do malufismo.
Se vencer, Serra teria, por óbvio, dificuldade de sair novamente da Prefeitura de São Paulo para se candidatar a outro cargo em 2014. Em contrapartida, ele se firmaria como protagonista para conduzir outros processos eleitorais pelo país na condição de líder do PSDB.
Muitos já tentaram encarnar o papel, mas só Serra continua sendo a nêmesis do PT. Sua entrada na disputa paulistana mais atrapalha do que ajuda os planos hegemônicos de Lula e de seu partido. Já a ausência de Serra facilita a vida do atual grupo no poder federal, que cobiça como nunca entrar em São Paulo.
Não é uma decisão fácil para o tucano. Ele está entre duas possibilidades principais, ambas arriscadas. Uma é priorizar seu antigo projeto de um dia ser presidente. O outro caminho seria cumprir uma missão para tentar segurar as pontas dos combalidos partidos de oposição.
Tragédia grega - HÉLIO SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 22/02/12
SÃO PAULO - Até que ponto as draconianas exigências impostas pela União Europeia à Grécia são compatíveis com a democracia? É razoável, como chegou a sugerir o ministro das Finanças alemão, que as eleições fossem adiadas, para impedir que os gregos fizessem a escolha "errada"?
É inegável que os "Diktaten" europeus não se coadunam com a ideia que fazemos de democracia, pela qual os povos devem ser livres para decidir seu próprio destino.
A questão, porém, é mais complicada do que parece. Embora os helenos sejam os protagonistas da epopeia, eles não são a única parte com interesses legítimos nas negociações. Governos europeus, afinal, estão colocando bilhões de euros no resgate, sem perguntar a seus cidadãos se estão dispostos a incorrer nesses gastos. Caso aplicássemos o princípio da consulta popular em países como Alemanha e França, talvez os gregos nem tivessem a possibilidade de escolha.
Se a ideia é resolver a crise grega democraticamente, quem deve ser ouvido? Além de aqueus e cidadãos da zona do euro, estão envolvidos no "imbroglio" e poderiam ter algum tipo de voz trabalhadores cotistas de fundos de pensão que compraram títulos gregos, países que contribuem para o FMI e até banqueiros.
A verdade é que a democracia resolve uma série de problemas, mas não é nem nunca pretendeu ser a solução para todas as dificuldades. Em situações desastrosas como é a da Grécia, nas quais não há solução indolor, os limites da consulta popular ficam um pouco menos obscuros.
Curiosamente, os norte-americanos perceberam já no século 19 que havia assuntos complicados demais para deixar nas mãos tanto do mercado como de políticos e, por isso, criaram as agências reguladoras.
Na contramão do assembleísmo democrático, elas são autarquias compostas por especialistas indicados pelo Executivo e que desempenham funções legislativas e judiciais. Ainda que com falhas, funcionam.
SÃO PAULO - Até que ponto as draconianas exigências impostas pela União Europeia à Grécia são compatíveis com a democracia? É razoável, como chegou a sugerir o ministro das Finanças alemão, que as eleições fossem adiadas, para impedir que os gregos fizessem a escolha "errada"?
É inegável que os "Diktaten" europeus não se coadunam com a ideia que fazemos de democracia, pela qual os povos devem ser livres para decidir seu próprio destino.
A questão, porém, é mais complicada do que parece. Embora os helenos sejam os protagonistas da epopeia, eles não são a única parte com interesses legítimos nas negociações. Governos europeus, afinal, estão colocando bilhões de euros no resgate, sem perguntar a seus cidadãos se estão dispostos a incorrer nesses gastos. Caso aplicássemos o princípio da consulta popular em países como Alemanha e França, talvez os gregos nem tivessem a possibilidade de escolha.
Se a ideia é resolver a crise grega democraticamente, quem deve ser ouvido? Além de aqueus e cidadãos da zona do euro, estão envolvidos no "imbroglio" e poderiam ter algum tipo de voz trabalhadores cotistas de fundos de pensão que compraram títulos gregos, países que contribuem para o FMI e até banqueiros.
A verdade é que a democracia resolve uma série de problemas, mas não é nem nunca pretendeu ser a solução para todas as dificuldades. Em situações desastrosas como é a da Grécia, nas quais não há solução indolor, os limites da consulta popular ficam um pouco menos obscuros.
Curiosamente, os norte-americanos perceberam já no século 19 que havia assuntos complicados demais para deixar nas mãos tanto do mercado como de políticos e, por isso, criaram as agências reguladoras.
Na contramão do assembleísmo democrático, elas são autarquias compostas por especialistas indicados pelo Executivo e que desempenham funções legislativas e judiciais. Ainda que com falhas, funcionam.
Os verdadeiros mentirosos - MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 22/02/12
O caso da doença do presidente venezuelano Hugo Chávez é exemplo dos transtornos que um regime quase ditatorial pode causar na sua tarefa cotidiana de esconder os fatos e manipular informações.
O jornalista Nelson Bocaranda, com prestígio consolidado na Venezuela depois de ter dado no ano passado o furo jornalístico sobre o tratamento do câncer de Chávez em Cuba, foi atacado ferozmente por ter postado em seu blog e divulgado pelo twitter na segundafeira que Chávez havia retornado a Cuba, acompanhado de vários parentes, inclusive sua mãe.
A notícia de que o estado de saúde de Chávez havia piorado foi negada pelo governo de maneira peremptória, e o ministro da (des) Informação, Andrés Izarra, disse que a notícia fazia parte de uma "guerra suja da escória".
O líder governista no Congresso, Diosdado Cabello, chegou a afirmar que Chávez estava saudável, dizendo também pelo twitter que "Bocaranda está doente na alma".
Da mesma maneira, depois que na quinta-feira publiquei no meu blog (http:// oglobo.globo.com/blogs/ blogdomerval/) que o quadro de saúde de Chávez havia piorado, com informações de médicos brasileiros que haviam analisado exames do presidente da Venezuela indicando a possibilidade de metástase em direção ao fígado, Maximilien Arvelaiz, pomposamente intitulado "embaixador da República Bolivariana da Venezuela no Brasil", enviou carta ao GLOBO afirmando que "o tratamento contra um câncer, ao qual o presidente Hugo Chávez foi submetido em 2011, foi exitoso, estando o presidente gozando de boa saúde".
O embaixador bolivariano chega a ser inadvertidamente irônico ao afirmar a certa altura de sua mensagem que via na notícia "uma falta de transparência no texto ao reproduzir o falso diagnóstico creditado a "médicos" que não possuem nem identidade".
Além de demonstrar que nada conhece sobre o jornalismo em um país democrático, onde se pode preservar o sigilo da fonte, chega a ser risível o representante de um país que esconde todos os fatos relacionados à doença de seu presidente falar em "falta de transparência".
Ainda mais quando se sabe que Chávez deixou de se tratar no Brasil por que não foi possível aceitar suas exigências de sigilo absoluto.
O presidente venezuelano, com o espírito ditatorial que lhe é próprio, queria interditar dois andares do Hospital Sírio e Libanês em São Paulo e colocar o Exército para tomar conta do hospital, revistando todos os visitantes.
E ainda proibir a divulgação de boletins médicos.
A rejeição de Chávez ao Hospital Sírio e Libanês se justifica, do ponto de vista autoritário, justamente pelo sistema aberto de informações, que fez com que fosse revelada até mesmo a presença do paranormal João de Deus no hospital, para um tratamento espiritual a Lula paralelamente ao tratamento oficial.
A falta de transparência na Venezuela é tanta que até o momento não se sabe oficialmente em que local do corpo de Chávez está localizado o primeiro tumor.
Sabe-se que poderia estar na "região pélvica", talvez no colo do reto, mas não há mais detalhes.
Da mesma maneira, as informações sobre o segundo tumor, que obrigará Chávez a fazer uma outra operação em Cuba — em São Paulo, sendo as exigências as mesmas, continua impossível, mesmo que as condições técnicas sejam melhores — saíram até agora apenas da boca do interessado, o próprio Chávez.
Na véspera de viajar para Cuba para os exames que confirmaram que ele tinha um novo tumor, Chávez apareceu em público para negar a notícia que eu havia divulgado pelo blog, e depois no GLOBO de papel, afirmando que o câncer "se fora" de seu corpo.
Assim como, quando regressou de Cuba depois da primeira operação, declarouse "curado".
Quando o presidente venezuelano diz que não se trata de uma metástase, mas de um novo tumor encontrado no mesmo local do anterior, não temos nenhuma evidência médica para comprovar.
Pode ser o que os médicos chamam de uma "recidiva local", quando um tumor surge no mesmo lugar do que foi extirpado, ou pode ser um efeito do processo de metástase.
Há outras hipóteses, como a levantada pela agência de notícias Reuters, de que Chávez sofre também de síndrome da lise tumoral (SLT), complicações metabólicas que podem ocorrer após o tratamento de um câncer, mais comum em linfomas e leucemias, que podem causar, entre outras coisas, insuficiência renal aguda.
A quimioterapia pode precipitar a síndrome, mas o tratamento com esteroides também pode ter como consequência a SLT.
O jornalista venezuelano Nelson Bocaranda disse em seu blog que o presidente Hugo Chávez estava usando esteroides ultimamente para mascarar os sintomas da doença, tentando uma aparência mais saudável.
Os esteroides atacam também o fígado, podendo até mesmo provocar câncer.
Todas essas especulações se devem apenas à falta de transparência com que o governo venezuelano, à maneira de todas as ditaduras, trata a doença do presidente, como se ela não fosse um assunto de interesse público.
A maneira mais fácil para um governo democrático acabar com as especulações sobre a saúde de um presidente é a divulgação integral dos exames médicos, o que dissiparia quaisquer dúvidas.
Nos casos do ex-presidente Lula e da presidente Dilma, as informações médicas foram dadas com a transparência possível até o momento.
Mesmo os médicos brasileiros que tiveram acesso aos exames de Chávez, alguns a pedido do próprio Lula, não tiveram permissão para ver todos eles e analisaram peças isoladas, como se montassem um quebra-cabeça.
Na Venezuela, o twitter não para com gozações sobre "os verdadeiros mentirosos", o ministro da Comunicação Social Andrés Izarra e o líder no Congresso Diosdado Cabello, "os chavistas desinformados".
Mas é surpreendente como temos "chavistas desinformados" também aqui no Brasil.
A lição de Debussy - MARCELO COELHO
FOLHA DE SP - 22/02/12
Nuvens. Festas. Jogos. As fadas são maravilhosas dançarinas. Da aurora ao meio-dia sobre o mar.
Quem gosta de Claude Debussy(1862-1918) reconhece os títulos, sempre poéticos, de suas composições. Cento e cinquenta anos depois de seu nascimento, a música de Debussy continua tão "moderna" e tão sedutora quanto sempre foi.
Naturalmente, a influência do compositor francês se estendeu ao longo do século 20, sobre Stravinski e Villa-Lobos, assim como sobre o jazz e Tom Jobim.
Mas, se você experimentar ouvir alguns de seus "Prelúdios" para piano, ou os "Estudos", mais modernos ainda, uma sensação de alheamento ainda prevalece.
A música que ele faz é estranha, e continuará sendo, mesmo com tudo o que dela se absorveu ao longo de mais de um século.
Tento responder por quê.
Talvez a primeira coisa que Debussy aboliu, na música clássica, tenha sido o senso da coerência emocional. Ouvindo, por exemplo, a suíte "Em Preto e Branco", para dois pianos, o que choca não é o "som", bem agradável, dos instrumentos, mas a mudança brusca das disposições: o triste e o sonhador se alternam com o eufórico e o decidido sem nenhuma explicação.
Debussy ignora os ritmos e as transições da alma. O caprichoso, ou melhor, em italiano, o "capriccioso", que existia desde os barrocos italianos até o romântico Robert Schumann, foi radicalizado por Debussy numa espécie de cinema mudo.
Sabe-se que "Em Preto e Branco", essa suíte para dois pianos de Debussy que estou comentando, foi inspirada pelos "Caprichos" em água-forte de Goya. Penso, entretanto, no cinema de 1910: o senso do corte, da montagem, da velocidade em preto e branco, não está ausente dessas peças.
Outra razão para o estranhamento que Debussy ainda provoca -e para a sedução que ele exerce- está nos títulos que ele dava às suas composições.
Na maior parte das vezes, ele trata suas músicas como se fossem quadros. "O Terraço das Audiências ao Luar", por exemplo, se inspira na legenda de uma foto que ele viu no jornal, referindo-se a não sei que palácio indiano. Orientalismo e espanholismo, aliás, nunca estiveram longe da sua música.
Mesmo quando ele se volta para situações domésticas -"Jardins sob a Chuva", "Peixinhos Dourados", "Reflexos na Água"-, o seu propósito é pictórico, descritivo.
Foi o que lhe valeu a qualificação de "impressionista", e as comparações de sua música, colorida e vaga, com as telas de Monet.
Mas muitos compositores antes dele foram hábeis em reproduzir, por meio de sons, tempestades, serpentes ou flocos de neve. Basta ouvir "A Criação", de Haydn.
O que existe de moderno na música de Debussy está em não ver mais as coisas como "acontecimentos", e sim como "fenômenos". Ele não pensa em "histórias", em "causas e efeitos", mas numa espécie de ocorrência pura, sem narrativa.
Nesse sentido, Debussy é menos o discípulo da filosofia que se fazia contemporaneamente na França (a de Bergson) e mais o da escola que surgia na Viena de seu tempo, com Ernst Mach.
Confiando na continuidade essencial da experiência vivida (a sua famosa "duração"), Henri Bergson tinha como "modelo musical", por assim dizer, algo de mais clássico. Um modelo que, indo de Beethoven a Wagner, passando por Darwin, imaginava tudo "o que é" como algo que "veio a ser", que "evoluiu", que "foi construído" infinitamente.
O mundo de Debussy é outro, mais moderno, no qual nenhuma "essência", nenhuma "coisa" persiste. Não há essências, não há coisas: há apenas fenômenos em sucessão. Causa e efeito, desde Hume, aliás, nada mais são do que ilusões de ótica ou óculos de grande utilidade.
Daí, acredito, a extrema fragmentação da escrita orquestral de Debussy. E também sua decidida negação daquilo que, na harmonia clássica, fazia o papel de criar expectativas, sistemas de causa e efeito, no ouvido do público.
O semitom, a diferença entre si e dó, tende a desaparecer na música de Debussy (vale ler a este respeito o capítulo sobre o assunto na "História Oxford da Música Ocidental", de Richard Taruskin).
Tudo acontece sem expectativa. É fenômeno, é coisa a ser fruída. Eis a lição, algo triste, sempre "desumana" (para lembrar Ortega y Gasset), que Debussy transformou em pretexto de música e de prazer.
Nuvens. Festas. Jogos. As fadas são maravilhosas dançarinas. Da aurora ao meio-dia sobre o mar.
Quem gosta de Claude Debussy(1862-1918) reconhece os títulos, sempre poéticos, de suas composições. Cento e cinquenta anos depois de seu nascimento, a música de Debussy continua tão "moderna" e tão sedutora quanto sempre foi.
Naturalmente, a influência do compositor francês se estendeu ao longo do século 20, sobre Stravinski e Villa-Lobos, assim como sobre o jazz e Tom Jobim.
Mas, se você experimentar ouvir alguns de seus "Prelúdios" para piano, ou os "Estudos", mais modernos ainda, uma sensação de alheamento ainda prevalece.
A música que ele faz é estranha, e continuará sendo, mesmo com tudo o que dela se absorveu ao longo de mais de um século.
Tento responder por quê.
Talvez a primeira coisa que Debussy aboliu, na música clássica, tenha sido o senso da coerência emocional. Ouvindo, por exemplo, a suíte "Em Preto e Branco", para dois pianos, o que choca não é o "som", bem agradável, dos instrumentos, mas a mudança brusca das disposições: o triste e o sonhador se alternam com o eufórico e o decidido sem nenhuma explicação.
Debussy ignora os ritmos e as transições da alma. O caprichoso, ou melhor, em italiano, o "capriccioso", que existia desde os barrocos italianos até o romântico Robert Schumann, foi radicalizado por Debussy numa espécie de cinema mudo.
Sabe-se que "Em Preto e Branco", essa suíte para dois pianos de Debussy que estou comentando, foi inspirada pelos "Caprichos" em água-forte de Goya. Penso, entretanto, no cinema de 1910: o senso do corte, da montagem, da velocidade em preto e branco, não está ausente dessas peças.
Outra razão para o estranhamento que Debussy ainda provoca -e para a sedução que ele exerce- está nos títulos que ele dava às suas composições.
Na maior parte das vezes, ele trata suas músicas como se fossem quadros. "O Terraço das Audiências ao Luar", por exemplo, se inspira na legenda de uma foto que ele viu no jornal, referindo-se a não sei que palácio indiano. Orientalismo e espanholismo, aliás, nunca estiveram longe da sua música.
Mesmo quando ele se volta para situações domésticas -"Jardins sob a Chuva", "Peixinhos Dourados", "Reflexos na Água"-, o seu propósito é pictórico, descritivo.
Foi o que lhe valeu a qualificação de "impressionista", e as comparações de sua música, colorida e vaga, com as telas de Monet.
Mas muitos compositores antes dele foram hábeis em reproduzir, por meio de sons, tempestades, serpentes ou flocos de neve. Basta ouvir "A Criação", de Haydn.
O que existe de moderno na música de Debussy está em não ver mais as coisas como "acontecimentos", e sim como "fenômenos". Ele não pensa em "histórias", em "causas e efeitos", mas numa espécie de ocorrência pura, sem narrativa.
Nesse sentido, Debussy é menos o discípulo da filosofia que se fazia contemporaneamente na França (a de Bergson) e mais o da escola que surgia na Viena de seu tempo, com Ernst Mach.
Confiando na continuidade essencial da experiência vivida (a sua famosa "duração"), Henri Bergson tinha como "modelo musical", por assim dizer, algo de mais clássico. Um modelo que, indo de Beethoven a Wagner, passando por Darwin, imaginava tudo "o que é" como algo que "veio a ser", que "evoluiu", que "foi construído" infinitamente.
O mundo de Debussy é outro, mais moderno, no qual nenhuma "essência", nenhuma "coisa" persiste. Não há essências, não há coisas: há apenas fenômenos em sucessão. Causa e efeito, desde Hume, aliás, nada mais são do que ilusões de ótica ou óculos de grande utilidade.
Daí, acredito, a extrema fragmentação da escrita orquestral de Debussy. E também sua decidida negação daquilo que, na harmonia clássica, fazia o papel de criar expectativas, sistemas de causa e efeito, no ouvido do público.
O semitom, a diferença entre si e dó, tende a desaparecer na música de Debussy (vale ler a este respeito o capítulo sobre o assunto na "História Oxford da Música Ocidental", de Richard Taruskin).
Tudo acontece sem expectativa. É fenômeno, é coisa a ser fruída. Eis a lição, algo triste, sempre "desumana" (para lembrar Ortega y Gasset), que Debussy transformou em pretexto de música e de prazer.
Deportaram? Deportaremos - ELIO GASPARI
O GLOBO - 22/02/12
Fora do mundo do palavrório, a diplomacia da doutora Dilma praticou o primeiro gesto prático na defesa dos cidadãos brasileiros: comunicou ao governo espanhol que a partir de abril seus viajantes que chegarem aos aeroportos de Pindorama deverão cumprir as mesmas exigências que são feitas aos brasileiros que descem em Madri. A saber: comprovar que têm pelo menos US$ 100 para cada dia de permanência, ou crédito disponível no cartão, reserva de hotel quitada, mais passagem de volta. Quem não o fizer será deportado.
A truculência da polícia espanhola e o descaso (ou desprestígio) de seu serviço diplomático obrigaram o governo a dar aos espanhóis o mesmo tratamento recebido pelos brasileiros. A providência veio com três anos de atraso.
Até agosto de 2011, 1.005 brasileiros foram impedidos de entrar na Espanha. Nenhum dos dois países exige vistos de entrada e a polícia espanhola argumenta que cumpre a legislação comum da União Europeia. É verdade, mas desde 2008 o governo e o Congresso brasileiros reclamam de episódios exorbitantes. Houve casos de professores brasileiros deportados quando desceram em Madri a caminho de Lisboa. Em 2003 uma pesquisadora da USP ficou três dias numa pequena sala, com outras trinta pessoas, dormindo no chão. Anos depois a sala tinha 30 metros quadrados, com 300 detidos. Numa ocasião, seus beliches eram compartilhados por homens, mulheres e crianças. Banho? Nem pensar. Jamais houve um pedido de desculpas. Nem mesmo ao padre a quem um policial perguntou se o que tinha na mala era uma fantasia de carnaval. Eram paramentos litúrgicos.
Não seria justo julgar a civilidade do governo espanhol a partir dos modos dos policiais do aeroporto de Barajas. Eles estão lá para impedir a entrada de pessoas que pretendem viver na Espanha sem a devida documentação. Há quadrilhas que exploram mulheres levando-as para a Europa (o tio da duquesa de Cambridge orgulha-se de ter um plantel de brasileiras disponíveis em Ibiza). Há também europeus grisalhos que vêm sozinhos para as praias no Nordeste.
Em 2008, num sinal de que o governo brasileiro poderia reagir, sete turistas espanhóis foram barrados em Salvador. Não se conhecem as gestões dos embaixadores espanhóis junto a seu governo. Para o público brasileiro, insistiram em dizer que a Espanha segue a legislação europeia e as reclamações das vítimas eram "superdimensionadas" pela imprensa, até mesmo com "manifestações (...) inteiramente fora de propósito", como escreveu o embaixador Carlos Alonso Zaldívar. Faltou-lhe sorte. No mesmo dia chegara ao Brasil um plantel de deportados que passara dois dias detido, sem acesso a bagagem de mão, remédios, sabonete ou escova de dentes. (Numa das refeições, serviram-lhes sardinhas.)
Durante três anos o Itamaraty mostrou seu desconforto. Ou o serviço diplomático espanhol não conseguiu fazer com que seu governo entendesse o que estava acontecendo ou, tendo entendido, ele achou que a última palavra devia continuar com a meganha de Barajas. Com a reciprocidade de exigências, os dois governos podem entrar numa competição saudável: passam a tratar direito os viajantes que apresentam documentação julgada insuficiente e não servem sardinhas a quem não pode escovar os dentes.
A paciência esgotou-se e Pindorama aplicará aos espanhóis o tratamento recebido pelos brasileiros
Pé na jaca x pé no talco - ANTONIO PRATA
FOLHA DE SP - 22/02/12
Deve haver um momento na formação de todo indivíduo em que ele decide se irá sentar-se na primeira fileira ou se aderirá à turma do fundão. Algum ponto obscuro e fundamental entre o desenvolvimento intrauterino e a última chupeta que determina se ele vai estar mais pro cauteloso cidadão que entrega a declaração do imposto de renda no primeiro dia do prazo ou mais pro tio que, depois da terceira cerveja, pula de bombinha na piscina e faz uma demonstração de "Baleia Branca" aos sobrinhos de sete anos.
Comigo, algo muito curioso se deu -ou melhor, não se deu. Pulei essa etapa. Sou dois. Um monge franciscano e um Rei Momo vivem dentro de mim, revezando-se no uso e abuso deste corpo, como se eu fosse uma casa de cômodos. (Ou de incômodos, dependendo do que os inquilinos façam aqui dentro.)
Meu lado certinho gosta de granola com iogurte desnatado no café da manhã e comprou, recentemente, um aparelho que auxilia nos exercícios abdominais. O Rei Momo gargalha, diz que se recusa a compactuar com essa época covarde que, em vez do mundo, quer mudar a taxa de triglicérides -e dá mais uma dentada num naco de salame.
O ideal de felicidade do monge é, depois de correr na esteira e tomar banho, sentar em sua poltrona: uma garrafinha de água com gás numa mão, um livro na outra. O ideal de felicidade do pândego é sair sem rumo, encontrar um amigo num bar, ir dali comer uma bisteca no Sujinho e acabar numa roda de samba, num quintal desconhecido, fazendo carinho com o pé num vira-lata e descendo a mão num tamborim. (O Rei Momo já foi avisado diversas vezes pelo monge para não misturar álcool e instrumentos de percussão, mas cadê que ele escuta?)
O CDF sente uma paz no coração ao regar a samambaia e acredita que a vida está realmente bem encaminhada quando corta as unhas dos pés e põe talco no tênis. O fanfarrão só crê que a vida valha à pena quando os batimentos passam de 150 por minuto.
O monge aperta a pasta de dentes pela base, admira João Cabral e as grandes obras da engenharia. O Rei Momo usa faca de cozinha como chave de fenda, é fã do Jim Jarmusch e da seleção de 82. Enquanto o primeiro repete o conselho de Nelson Rodrigues -"jovens, envelheçam!"-, o segundo soluça Bandeira: não quer saber de lirismo que não seja libertação.
O espartano acusa o estroina de tentar fazer seu desequilíbrio passar por ousadia. (Que lirismo libertário há em se cantar "lá lá lá iá" na madrugada de uma quarta, roçando o pé num cão pulguento?) O Rei Momo acusa o monge de tentar fazer sua covardia passar por disciplina. (Que virtude há no autocontrole de quem não tem coragem de se descontrolar?)
Como podem esses antípodas habitar o mesmo corpo? Não podem, meus caros, por isso vivo sob fogo cruzado, recebendo no peito as balas e bombas dos exércitos inimigos. Veja hoje, por exemplo: nos últimos cinco dias o folião reinou incólume e agora, enquanto rolo na cama, nesta gelatinosa Quarta-Feira de Cinzas, me abandona nas mãos do pontífice, que se aproxima zunindo seu chicote. Não fui eu, seu moço, foi ele, eu digo, escondendo-me sob os lençóis e já prevendo uma longa temporada de granola, esteira e água com gás.
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