FOLHA DE SP - 22/02/12
Nuvens. Festas. Jogos. As fadas são maravilhosas dançarinas. Da aurora ao meio-dia sobre o mar.
Quem gosta de Claude Debussy(1862-1918) reconhece os títulos, sempre poéticos, de suas composições. Cento e cinquenta anos depois de seu nascimento, a música de Debussy continua tão "moderna" e tão sedutora quanto sempre foi.
Naturalmente, a influência do compositor francês se estendeu ao longo do século 20, sobre Stravinski e Villa-Lobos, assim como sobre o jazz e Tom Jobim.
Mas, se você experimentar ouvir alguns de seus "Prelúdios" para piano, ou os "Estudos", mais modernos ainda, uma sensação de alheamento ainda prevalece.
A música que ele faz é estranha, e continuará sendo, mesmo com tudo o que dela se absorveu ao longo de mais de um século.
Tento responder por quê.
Talvez a primeira coisa que Debussy aboliu, na música clássica, tenha sido o senso da coerência emocional. Ouvindo, por exemplo, a suíte "Em Preto e Branco", para dois pianos, o que choca não é o "som", bem agradável, dos instrumentos, mas a mudança brusca das disposições: o triste e o sonhador se alternam com o eufórico e o decidido sem nenhuma explicação.
Debussy ignora os ritmos e as transições da alma. O caprichoso, ou melhor, em italiano, o "capriccioso", que existia desde os barrocos italianos até o romântico Robert Schumann, foi radicalizado por Debussy numa espécie de cinema mudo.
Sabe-se que "Em Preto e Branco", essa suíte para dois pianos de Debussy que estou comentando, foi inspirada pelos "Caprichos" em água-forte de Goya. Penso, entretanto, no cinema de 1910: o senso do corte, da montagem, da velocidade em preto e branco, não está ausente dessas peças.
Outra razão para o estranhamento que Debussy ainda provoca -e para a sedução que ele exerce- está nos títulos que ele dava às suas composições.
Na maior parte das vezes, ele trata suas músicas como se fossem quadros. "O Terraço das Audiências ao Luar", por exemplo, se inspira na legenda de uma foto que ele viu no jornal, referindo-se a não sei que palácio indiano. Orientalismo e espanholismo, aliás, nunca estiveram longe da sua música.
Mesmo quando ele se volta para situações domésticas -"Jardins sob a Chuva", "Peixinhos Dourados", "Reflexos na Água"-, o seu propósito é pictórico, descritivo.
Foi o que lhe valeu a qualificação de "impressionista", e as comparações de sua música, colorida e vaga, com as telas de Monet.
Mas muitos compositores antes dele foram hábeis em reproduzir, por meio de sons, tempestades, serpentes ou flocos de neve. Basta ouvir "A Criação", de Haydn.
O que existe de moderno na música de Debussy está em não ver mais as coisas como "acontecimentos", e sim como "fenômenos". Ele não pensa em "histórias", em "causas e efeitos", mas numa espécie de ocorrência pura, sem narrativa.
Nesse sentido, Debussy é menos o discípulo da filosofia que se fazia contemporaneamente na França (a de Bergson) e mais o da escola que surgia na Viena de seu tempo, com Ernst Mach.
Confiando na continuidade essencial da experiência vivida (a sua famosa "duração"), Henri Bergson tinha como "modelo musical", por assim dizer, algo de mais clássico. Um modelo que, indo de Beethoven a Wagner, passando por Darwin, imaginava tudo "o que é" como algo que "veio a ser", que "evoluiu", que "foi construído" infinitamente.
O mundo de Debussy é outro, mais moderno, no qual nenhuma "essência", nenhuma "coisa" persiste. Não há essências, não há coisas: há apenas fenômenos em sucessão. Causa e efeito, desde Hume, aliás, nada mais são do que ilusões de ótica ou óculos de grande utilidade.
Daí, acredito, a extrema fragmentação da escrita orquestral de Debussy. E também sua decidida negação daquilo que, na harmonia clássica, fazia o papel de criar expectativas, sistemas de causa e efeito, no ouvido do público.
O semitom, a diferença entre si e dó, tende a desaparecer na música de Debussy (vale ler a este respeito o capítulo sobre o assunto na "História Oxford da Música Ocidental", de Richard Taruskin).
Tudo acontece sem expectativa. É fenômeno, é coisa a ser fruída. Eis a lição, algo triste, sempre "desumana" (para lembrar Ortega y Gasset), que Debussy transformou em pretexto de música e de prazer.
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